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domingo, 17 de maio de 2020

Tempo, trabalho e dominação social: uma reinterpretação da teoria crítica de Marx (Parte IV) – Moishe Postone

Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-398-1
Tradução: Amilton Reis e Paulo Cézar Castanheira
Opinião: ★☆☆☆☆
Páginas: 486
Sinopse: Ver Parte I

“Como já notado, nas sociedades tradicionais, as atividades de trabalho e seus produtos são mediados por relações sociais abertas e nela inseridos, ao passo que no capitalismo o trabalho e seus produtos medeiam a si mesmos. Em uma sociedade que estão inseridos uma matriz de relações sociais, o trabalho e seus produtos são informados por essas relações, e delas recebem o seu caráter — ainda assim, o caráter social atribuído a vários trabalhos parece intrínseco a eles. Nessa situação, a atividade produtiva não existe como um meio puro nem os instrumentos e produtos aparecem como meros objetos. Em vez disso, informados pelas relações sociais, eles são imbuídos dos significados e significâncias — sejam manifestamente sociais ou quase sagrados — que parecem intrínsecos a eles111.
Isso leva a uma inversão notável. Uma atividade, implemento ou objeto que é não conscientemente determinado por relações sociais parece, dado o seu caráter simbólico resultante, possuir um caráter socialmente determinante. Numa estrutura social rigidamente tradicional, por exemplo, o objeto ou atividade parece corporificar e determinar a posição social e definição de gênero112. Atividades de trabalho nas sociedades tradicionais não simplesmente parecem trabalho, mas cada forma de trabalho é socialmente impregnada e se apresenta como uma determinação particular de existência social. Essas formas de trabalho são muito diferentes do trabalho no capitalismo: não podem ser entendidas adequadamente como ação instrumental. Ademais, o caráter social desse trabalho não deve ser confundido com o que descrevi como caráter social específico do trabalho no capitalismo. Trabalho nas sociedades não capitalistas não constitui a sociedade, pois não possui o caráter sintético peculiar que marca o trabalho determinado por mercadorias. Apesar de social, ele não constitui relações sociais, mas é constituído por elas. O caráter social do trabalho nas sociedades tradicionais é, evidentemente, visto como “natural”. Mas essa noção do natural – e, assim, também a da natureza — é muito diferente do natural de uma sociedade em que prevalece a forma-mercadoria. A natureza nas sociedades tradicionais é dotada de um caráter que é “essencialmente” variegado, personalizado e não relacional como as relações sociais que caracterizam a sociedade113.
Como já vimos, o trabalho no capitalismo não é mediado por relações sociais, mas, pelo contrário, constitui ele próprio uma mediação social. Se, em sociedades tradicionais, as relações sociais atribuem significado e significância ao trabalho, no capitalismo o trabalho atribui a si próprio e às relações sociais um caráter “objetivo”. Esse caráter objetivo é historicamente constituído quando o trabalho, que recebe vários significados específicos das relações sociais abertas em outras sociedades, medeia a si próprio e nega esses significados. Nesse sentido, objetividade pode ser vista como o “significado” não abertamente social que emerge historicamente quando a atividade social de objetivação reflexivamente se determina socialmente. Na estrutura dessa abordagem, as relações sociais nas sociedades tradicionais determinam trabalhos, implementos e objetos que, inversamente, parecem possuir um caráter socialmente determinante. No capitalismo, trabalho e seus produtos criam uma esfera de relações sociais objetivas: elas são de fato socialmente determinantes, mas não se apresentam como tal. Pelo contrário, parecem ser puramente “materiais”.
Essa última inversão merece exame adicional. já mostrei que o papel mediador específico do trabalho no capitalismo aparece necessariamente em forma objetivada e não diretamente como atributo do trabalho. Em vez disso, dado que o trabalho no capitalismo atribui a si próprio seu caráter social, ele aparece simplesmente com trabalho em geral, despido da aura de significação social atribuída a trabalhos diversos em sociedades mais tradicionais. Paradoxalmente, uma vez que precisamente a dimensão social do trabalho no capitalismo e reflexivamente constituída, e não é um atributo conferido por relações sociais abertas, esse trabalho não parece ser a atividade mediadora que realmente é nessa formação social. Pelo contrário, ele aparece como uma das suas dimensões, como trabalho concreto, uma atividade técnica que pode ser aplicada e regulada socialmente de maneira instrumental.
Esse processo de “objetivação” do trabalho na sociedade capitalista é também um processo de “secularização” paradoxal da mercadoria como objeto social. Apesar de a mercadoria como objeto não adquirir seu caráter social em resultado de relações sociais, mas, pelo contrário, ser um objeto intrinsecamente social (no sentido de ser uma mediação social materializada), ela aparece simplesmente uma coisa. Como já observado, apesar de a mercadoria ser simultaneamente um valor de uso e um valor, a segunda dimensão social se torna exteriorizada na forma de um equivalente universal, dinheiro. Como resultado dessa “duplicação” da mercadoria em mercadoria e dinheiro, a segunda aparece como a objetivação da dimensão abstrata, ao passo que o primeiro é apenas uma coisa. Em outras palavras, o fato de a mercadoria ser ela própria uma mediação social materializada implica a ausência de relações sociais abertas que impregnem os objetos com uma significação “supracoisal” (social ou sagrada). Como mediação, a mercadoria é ela própria uma coisa “supracomocoisa”. A exteriorização da sua dimensão mediadora resulta, portanto, no aparecimento da mercadoria como um objeto puramente material114.
Essa “secularização” do trabalho e dos seus produtos é um momento do processo histórico da dissolução e transformação dos elos sociais tradicionais por uma mediação social com um duplo caráter — concreto-material e abstrato-social. A precipitação da primeira dimensão avança paralelamente a construção da segunda. Portanto, como já vimos, só aparentemente é o caso de, com a superação das determinações e dos limites associados a relações sociais abertas e formas de dominação, os humanos agora disporem livremente do seu trabalho. Dado que o trabalho no capitalismo não é realmente livre da determinação social não consciente, mas, ele próprio, se tornou o meio dessa determinação, as pessoas se veem diante de uma nova compulsão, esta baseada precisamente no que superou as ligações das formas sociais tradicionais: as relações sociais alienadas, abstratas que são mediadas pelo trabalho. Essas relações constituem uma estrutura de restrições aparentemente não sociais nas quais indivíduos autodeterminantes perseguem seus interesses — nas quais “indivíduos” e “interesses” parecem ser ontologicamente dados, e não socialmente constituídos. Ou seja, é constituído um novo contexto social que não parece ser social nem contextual. Dito de forma simples, a forma de contextualização social característica do capitalismo é a da aparente descontextualização.
(Superar a compulsão social não consciente em uma sociedade emancipada, então, levaria a “libertação” do trabalho secularizado do seu papel como mediação social. As pessoas poderiam dispor do trabalho e dos seus produtos de uma maneira livre dos limites sociais tradicionais e compulsões sociais objetivas alienadas. Alternativamente, trabalho, ainda que secular, poderia ser mais uma vez imbuído de significância — não em resultado da tradição não consciente, mas por causa da sua reconhecida importância social, bem como da satisfação substancial e significado que poderia oferecer aos indivíduos.)”
111 Ver a excelente discussão de Gyorgy Markus da relação entre normas explicitas e diretas e objetos e instrumentos nas sociedades pré-capitalistas em “Die Welt menschlicher Objekte: Zum Problem der Konstitution im Marxismus”, em Axel Hommeth e Urs Jaeggi (orgs.), Arbeit, Handlung, Normativität (Frankfurt, Suhrkamp, 1980), p. 24-38.
112 Markus, por exemplo, menciona sociedades em que os objetos que pertencem a um grupo não são nem mesmo tocados por membros de outros grupos – como, as armas dos homens não devem ser tocadas pelas mulheres e crianças (ibidem, p. 31).
113 Lukács sugeriu abordagem semelhante de concepções de natureza: ver “Reification and the Consciousness of Proletariat”.
114 Não vou, neste nível abstrato de análise, tratar a questão do significado conferido aos valores no capitalismo, mas apenas sugerir que qualquer exame dessa questão deveria levar em conta as relações muito diferentes entre objetos (e trabalho) e relações sociais em sociedades capitalistas e não capitalistas. Parece que objetos recebem significância no capitalismo com sentido diferente do que nas sociedades tradicionais. Seu significado não é visto tanto como intrínseco a elas, um atributo “essencial”; pelo contrário, eles são coisas “como coisas” que têm significado – são como sinais no sentido de que não existe relação necessária entre o significador e o significado. Pode-se tentar relacionar as diferenças entre o “intrínseco” e o “contingente”, atributos “como coisas” de objetos, bem como o desenvolvimento histórico da importância dos julgamentos de gosto para o desenvolvimento da mercadoria como a forma social totalizante da sociedade capitalista. Mas esse tema não será tratado aqui.


“Em O eclipse da razão, Max Horkheimer relaciona o trabalho à ação instrumental, que ele caracteriza como aquela forma reduzida de razão que se tornou dominante com a industrialização. Razão instrumental, de acordo com Horkheimer, se interessa apenas pela questão do meio mais correto ou mais eficiente para um dado fim. Ela se relaciona com a noção de Weber da racionalidade formal, por oposição a substantiva. Os objetivos em si não são determináveis pela razão humana125. A ideia de que a razão em si só é significativamente válida com relação aos instrumentos, ou é ela própria um instrumento, está intimamente ligada a deificação positivista das ciências naturais como único modelo de conhecimento126. Essa ideia resulta em completo relativismo em relação aos objetivos e sistemas substantivos de moral, política e economia127. Horkheimer relaciona essa instrumentalização ao desenvolvimento de métodos crescentemente complexos de produção:
A transformação completa do mundo em um mundo de meios e não de fins é em si a consequência do desenvolvimento histórico dos métodos de produção. À medida que a produção material e a organização social se tornavam mais complicadas e reificadas, o reconhecimento dos meios como tal se torna cada vez mais difícil, pois assume a aparência de entidades autônomas.128
Horkheimer declara de fato que esse processo de instrumentalização crescente não é função da produção per se, mas do seu contexto social129. Como já argumentei, Horkheimer, apesar de algumas evasivas, identifica o trabalho em si e por si com a ação instrumental. Ainda que eu concorde que exista uma ligação entre ação instrumental e razão instrumental, discordo de sua identificação ação instrumental com o trabalho como tal. A explicação de Horkheimer para o crescente caráter instrumental do mundo diante da crescente complexidade da produção é menos que convincente. O trabalho sempre pode ser um meio técnico pragmático para se atingir objetivos particulares, além de qualquer outro significado que lhe possa ser atribuído, mas isso não chega a explicar o crescente caráter instrumental do mundo – a dominação crescente dos meios “livres de valor” sobre valores e objetivos substantivos, a transformação do mundo num mundo de meios. Só à primeira vista o trabalho parece ser o exemplo por excelência da ação instrumental. Gyorgy Markus e Cornelius Castoriadis, por exemplo, afirmaram convincentemente que o trabalho social nunca é simplesmente uma ação instrumental130. Tendo em vista a argumentação que desenvolvi aqui, essa proposição pode ser modificada: o trabalho social como tal não é ação instrumental, mas o trabalho no capitalismo é ação instrumental.
A transformação do mundo em um mundo de meios, e não de fins, um processo que se estende até as pessoas131, está relacionada ao caráter particular do trabalho mediado pela mercadoria como um meio. Embora o trabalho social seja sempre um meio para um fim, apenas isso não o torna instrumental. Como já observado, nas sociedades pré-capitalistas, por exemplo, o trabalho recebe significância pelas relações sociais abertas e é modelado pela tradição. Dado que o trabalho produtor de mercadoria não é mediado por essas relações, ele é, em certo sentido, privado de significado, “secularizado”. Esse desenvolvimento pode ser uma condição necessária da crescente instrumentalização do mundo, mas não é condição suficiente para o caráter instrumental do trabalho – o fato de ele existir como puro meio. Esse caráter é uma função de um tipo de meio que o trabalho é no capitalismo.
Como já vimos, o trabalho determinado por mercadorias é, como o trabalho concreto, um meio de produzir um produto particular; ademais, e mais essencialmente, como trabalho abstrato, ele é automediador – é um meio social de aquisição de produtos de outros. Portanto, para os produtores, o trabalho é abstraído do seu produto concreto: ele serve a eles como puro meio, um instrumento para adquirir produtos que não tem relação intrínseca com o caráter substantivo da atividade produtiva por meio da qual eles são adquiridos132.
O objetivo da produção no capitalismo não são os bens materiais produzidos nem os efeitos reflexivos da atividade do trabalho sobre o produtor, é o valor ou, mais precisamente, o mais-valor. Mas, valor é um objetivo puramente quantitativo, não existe diferença qualitativa entre o valor do trigo e o das armas. Valor é puramente quantitativo porque, como forma de riqueza, ele é um meio objetivado: ele é a objetivação do trabalho abstrato – do trabalho como meio objetivo de aquisição de bens que não produziu. Assim, produção para o (mais-)valor é produção cujo objetivo é em si um meio133. Portanto, a produção no capitalismo é necessariamente orientada quantitativamente para quantidades sempre crescentes de mais-valor. Essa é a base da análise de Marx da produção no capitalismo como produção pela produção134. Nessa estrutura, a instrumentalização do mundo é função da determinação da produção e das relações sociais por essa forma historicamente específica de mediação social — ela não é função da complexidade crescente da produção material como tal. Produção pela produção significa que a produção não é mais um meio para um fim substantivo, mas um meio para um fim que é ele próprio um meio, um momento em uma cadeia sem fim de expansão. Produção no capitalismo se torna um meio para um meio. A emergência de um objetivo de produção social que é na verdade um meio que está na base da dominação crescente, observada por Horkheimer, dos meios sobre os fins. Ela não está enraizada no caráter do trabalho concreto como meio material determinado de criação de um produto específico, pelo contrário, está enraizada no caráter do trabalho no capitalismo como meio social que é quase objetivo e suplanta as relações abertamente sociais. Horkheimer, de fato, atribui ao trabalho em geral uma consequência do caráter específico do trabalho no capitalismo.”
Apesar de o processo de instrumentalização ser logicamente implicado pelo duplo caráter do trabalho no capitalismo, esse processo é grandemente intensificado pela transformação dos humanos em meios. Como elaborarei adiante, o primeiro estágio dessa transformação é a mercantilização do trabalho em si como força de trabalho (o que Marx chama de “subsunção formal do trabalho sob o capital”), que não transforma necessariamente a forma material da produção. O segundo estágio é quando o processo de produção de mais-valor molda o processo de trabalho a sua imagem (a “subsunção real do trabalho sob o capital”)135. Com a subsunção real, o objetivo da produção capitalista — que é na verdade um meio – molda o meio material de sua realização. A relação entre a forma material da produção e seu objetivo (valor) não é mais contingente. Pelo contrário, o trabalho abstrato começa a quantificar e moldar o trabalho concreto a sua imagem, a dominação abstrata do valor começa a se materializar no processo de trabalho em si. Um marco da subsunção real, de acordo com Marx, é que, apesar das aparências, as matérias-primas reais do processo de produção não são os materiais físicos que são transformados em produtos materiais, mas os trabalhadores cujo tempo de trabalho objetivado constitui o sangue vital da totalidade136. Com a subsunção real, essa determinação do processo de valorização se materializa: a pessoa, literalmente, se torna um meio.”
125 Max Horkheimer, Eclipse o f Reason, cit., p. 3-6.
126 Ibidem, p. 59s., 105.
127 Ibidem, p. 31.
128 Ibidem, p. 102.
129 Ibidem, p. 153-4.
130 Cornelius Castoriadis, Crossroads in the Labyrinth (trad. Kate Soper e Martin H. Ryle, Cambridge, MIT Press, 1984), p. 244-9; Gyorgy Markus, “Die Welt menschlicher Objekte: Zum Problem der Konstitution im Marxismus”, cit., p. 24s.
131 Max Horkheimer, Eclipse of Reason, cit., p. 151.
132 Essa análise do trabalho oferece uma determinação lógica inicial e abstrata para o desenvolvimento no século XX, observada por Andre Gorz e Daniel Bell, entre outros, da autoconcepção dos trabalhadores como trabalhadores/consumidores e não como trabalhadores/produtores. Ver Andre Gorz, Critique of Econômic Reason (trad. Gillian Handyside e Chris Turner, Londres/Nova York, Verso, 1989), p. 44s.; e Daniel Bell, “The Cultural Contradictions of Capitalism”, em The Cultural Contradictions of Capitalism (Nova York, Basic Books, 1978), p. 65-72.
133 A ascensão do formalismo social e político, bem como do teórico, pode ser investigada com relação a esse processo de separação da forma e conteúdo, pela qual a primeira domina a segunda. Em outro nível, Giddens sugeriu que, dado que o processo de comodificação destrói ao mesmo tempo os valores tradicionais e os modos de vida e resulta nessa separação de forma e conteúdo, ele induz sentimentos generalizados de falta de significado. Ver A Contemporary Critique of Historical Materialism, cit., p. 152-3.
134 Karl Marx, O capital, cit., Livro I, p. 669-70; idem, “Results of the Immediate Process of Production”, cit., p. 1.037-8.


“A crítica madura marxiana analisa a relação entre objetividade e subjetividade em termos de estruturas de mediação sociais, determinados modos de constituição e constituidora de práticas sociais. A “práxis” a qual Marx se refere, como deve estar claro, não é a prática revolucionária, mas a prática como atividade socialmente constituidora. O trabalho constitui formas de vida social apreendidas pelas categorias da crítica de Marx. No entanto, essa prática socialmente constituidora não pode ser entendida adequadamente em termos do trabalho per se, ou seja, trabalho concreto em geral. Não é apenas o trabalho concreto que cria o mundo que Marx analisa, mas uma qualidade mediadora do trabalho, que cria relações alienadas caracterizadas pela antinomia de uma dimensão abstrata, geral, objetiva e uma dimensão concreta, particular, que até mesmo se objetiva em produtos. Essa dualidade faz aparecer um tipo de campo de ser social unificado no capitalismo. Um sujeito-objeto idêntico (capital) existe como o sujeito totalizante histórico e pode ser desenvolvido a partir de uma única categoria, de acordo com Marx, porque duas dimensões da vida social – as relações entre as pessoas e as relações entre as pessoas e a natureza – são fundidas no capitalismo na medida em que ambas são medidas pelo trabalho. Essa fusão molda tanto a forma de produção quanto as formas das relações sociais no capitalismo e as relaciona internamente. O fato de as categorias da crítica da economia política de Marx expressarem ambas as dimensões da vida social de forma unificada singular (que é, ainda assim, intrinsecamente contraditória) deriva desta fusão real.
A teoria madura de Marx da prática social no capitalismo é, assim, uma teoria da constituição pelo trabalho das formas sociais que medeiam as relações entre as pessoas umas com as outras e com a natureza, e são, portanto, formas de ser e consciência. Ela é uma teoria da constituição histórica e social de formas determinadas, estruturadas de práticas sociais assim como do conhecimento social, normas e necessidades que moldam a ação. Apesar de as formas sociais que Marx analisa serem constituídas por práticas sociais, elas não podem ser apreendidas no nível imediato apenas da interação. A teoria da prática de Marx é a teoria da constituição e possível transformação das formas de mediação sociais.
Essa interpretação da teoria de Marx transforma os problemas tradicionais da relação entre trabalho e pensamento formulando-a em termos da relação, entre formas de relações, sociais medidas pelo trabalho e formas de pensamento, mais que entre trabalho concreto e pensamento. Eu argumentei que, assim como a constituição social não é função apenas do trabalho concreto, na análise de Marx, a constituição da consciência pela prática social não deve ser entendida apenas em termos de interações dos sujeitos individuais ou grupos sociais com o ambiente natural mediadas pelo trabalho. Isso se aplica até mesmo às concepções da realidade natural: elas não foram obtidas pragmaticamente, apenas de lutas com e transformações da natureza, mas, como eu tentei indicar, também estão fundadas no caráter e em determinadas formas sociais que estruturam essas interações com a natureza. Em outras palavras, o trabalho como atividade produtiva não pode, em si mesmo dar sentido, portanto, como argumentei, mesmo o trabalho obtém seu sentido das relações sociais nas quais está inserido. Quando essas relações sociais são constituídas pelo próprio trabalho, o trabalho existe de uma forma “secular” e pode ser analisado como ação instrumental.
A noção de que o trabalho é socialmente constituído não está, portanto, baseada na redução por Marx da prática social ao trabalho como produção material, em que a interação da humanidade com a natureza se torna o paradigma da interação117. Esse poderia de fato ter sido o caso se Marx tivesse entendido a práxis em termos do “trabalho”. No entanto, a concepção de Marx em seus textos maduros sobre o trabalho como prática social constituidora está ligada à sua análise da mediação pelo trabalho de dimensões da vida social que, em outras sociedades, não são mediadas. Essa análise, de acordo com Marx, é sine qua non para um entendimento crítico adequado da especificidade das formas das relações sociais, produção e consciência na formação social capitalista. A fusão citada das duas dimensões da vida social no capitalismo permite que Marx análise a constituição social em termos de uma forma de prática (trabalho) e investigue a relação intrínseca da objetividade e subjetividade social em termos de um único conjunto de categorias da prática estruturada. É possível que em outra sociedade, na qual a produção e as relações sociais não sejam constituídas como uma esfera totalizante da objetividade social por um princípio estruturante singular, a noção de uma forma singular de prática constituidora pudesse ser modificada e a relação entre as formas de consciência e formas de ser social pudessem ser apreendidas diferentemente.”
117 Albrecht Wellmer formula essa crítica no ensaio “Communication and Emancipation: Reflections on the Linguistic Turn in Crítical Theory”, em John O’Neil (org.), On Crítical Theory (Nova York, Seabury, 1976), p. 232-3.


“A especificidade histórica das categorias da crítica de maturidade de Marx tem mais implicações gerais para a questão de uma epistemologia social autorreflexiva. Argumentei que uma vez que a interação da humanidade com a natureza e as relações sociais essenciais são mediadas pelo trabalho no capitalismo, a epistemologia desse modo de vida social pode ser formulada em termos de categorias de trabalho social alienado. Mas as formas de interação com a natureza e de interação humana, variam consideravelmente entre as formações sociais. Formações diferentes, em outras palavras, são constituídas por modos diferentes de constituição social. Isso, por sua vez, sugere que formas de consciência e o modo mesmo de sua constituição variam histórica e socialmente. Cada formação social, então, exige a sua própria epistemologia. Dito de forma mais geral: ainda que a teoria social evolua com base em certos princípios muito gerais e indeterminados (por exemplo, o trabalho social como pré-requisito da reprodução social), suas categorias devem ser adequadas a especificidade do seu objeto. Não existe teoria social trans-historicamente válida e determinada.
Essa abordagem marxiana historicamente determinada oferece uma estrutura dentro da qual também se pode analisar o caráter subespecificado das noções de Habermas de sistema e mundo da vida. Como já mostrei, Marx argumenta que as relações sociais do capitalismo são únicas na medida em que não parecem de forma alguma ser sociais. A estrutura de relações constituída pelo trabalho determinado pela mercadoria solapa sistemas anteriores de ligações sociais abertas sem, entretanto, substitui-los por um sistema semelhante. Pelo contrário, o que surge é um universo social que Marx descreve como um universo de independência pessoal num contexto de dependência objetiva. A estrutura abstrata e quase objetiva de necessidade e, em nível imediato, a latitude de interação muito maior na sociedade capitalista do que numa sociedade tradicional, são momentos da forma de mediação que caracteriza o capitalismo. Em certo sentido, a oposição entre sistema e mundo da vida — tal como a anterior entre trabalho e interação — expressa uma hipostasia desses dois momentos de uma forma que dissolve as relações sociais capitalistas em esferas “simbólicas” e “materiais”. As características da dimensão de valor das relações sociais alienadas são atribuídas a dimensão sistêmica. Essa objetivação conceitual deixa uma esfera aparentemente indeterminada de comunicação que não é mais vista como estruturada por uma forma de mediação social (na medida em que essa forma não é abertamente social), pelo contrário, e sim como autoestruturante e “neutramente social”. Então, dentro da estrutura dessa abordagem, a subespecificação do mundo da vida, bem como sistema, expressa um ponto de partida teórico que manteve a noção de “trabalho”.


“A esfera da circulação, ou troca de mercadorias, de acordo com Marx, é
um verdadeiro Éden dos direitos inatos do homem. Ela é o reino exclusivo da liberdade, da igualdade, da propriedade e de Bentham. Liberdade, pois os compradores e vendedores de uma mercadoria, por exemplo, da força de trabalho, são movidos apenas por seu livre-arbítrio. Eles contratam como pessoas livres, dotadas dos mesmos direitos [...]. Igualdade, pois eles se relacionam um com o outro apenas como possuidores de mercadorias e trocam equivalente por equivalente. Propriedade, pois cada um dispõe apenas do que é seu. Bentham, pois cada um olha somente para si mesmo. A única força que os une e os põe em relação mutua é [...] de seus interesses privados. E é justamente porque cada um se preocupa apenas consigo mesmo e nenhum se preocupa com o outro que todos, em consequência de uma harmonia preestabelecida das coisas ou sob os auspícios de uma providencia todo-astuciosa, realizam em conjunto [...] do interesse geral.35
Qual é a natureza dessa crítica? Em um nível, ela apresenta como social e historicamente constituídos esses modos estruturados de ação social e valores considerados “eternos” e “naturais”. Marx claramente está relacionando as determinações da sociedade civil — como expressas no pensamento iluminista, nas teorias da economia política e direito natural, e no utilitarismo — com a forma-mercadoria das relações sociais. Ele argumenta que a diferenciação da vida social na Europa Ocidental em uma esfera política formal e uma esfera da sociedade civil (de modo que esta funciona independentemente do controle político e também está livre de muitas restrições sociais tradicionais) está ligada a expansão e ao aprofundamento dessa forma de relações sociais — do mesmo modo que os valores modernos de liberdade e igualdade, bem como a noção de que a sociedade esfera da é construída pelas ações de indivíduos autônomos agindo em interesse próprio. Ao dar embasamento social e histórico ao indivíduo moderno – que é um ponto de partida não examinado do pensamento iluminista — e aos valores e modos de ação associados a sociedade civil, Marx busca dissipar a ideia de que eles são “naturais”, que surgem quando pessoas, livres das amarras de superstições, costumes e autoridades irracionais, são capazes de buscar seus próprios interesses racionalmente e de maneira compatível com a natureza humana (no qual o “racional”, obviamente, é visto como independente da especificidade social e histórica). além disso, Marx também tenta ancorar socialmente a noção de uma forma “natural” da própria vida social: o capitalismo difere fundamentalmente de outras sociedades na medida em que suas relações sociais características não são evidentes, mas sim “objetivamente” constituídas e, portanto, não parecem de forma alguma socialmente específicas. Essa diferença, no próprio tecido das relações sociais, contribui para que as diferenças entre as sociedades capitalistas e não capitalistas pareçam estar entre instituições sociais extrínsecas a natureza humana, portanto “artificiais”, e aquelas que são socialmente “naturais”36. Ao especificar as relações sociais determinantes do capitalismo, mostrando que elas não parecem de forma alguma sociais e indicando que os indivíduos aparentemente descontextualizados, que atuam de acordo com seu próprio interesse, são social e historicamente constituídos (como o é a própria categoria de juro), a teoria crítica de Marx da sociedade capitalista fundamenta socialmente e, assim, mina a noção moderna do “naturalmente social”37.
34 Karl Marx, O capital, cit., Livro I, p. 250.
35 Ibidem, p. 250-1.
36 Ibidem, nota 33, p. 156.
37 Esse argumento poderia servir de ponto de partida para uma crítica da noção de Habermas, desenvolvida em A teoria da ação comunicativa, de que minar as formas sociais tradicionais do capitalismo permite o surgimento histórico de um mundo da vida constituído pela ação comunicativa como tal, isto e, ação social, cujas características não são socialmente determinadas.


“Na análise de Marx, o desenvolvimento do mais-valor relativo atribui ao capitalismo uma dinâmica que, embora constituída pela prática social, tem a forma de uma lógica histórica. Ela é direcional, desdobra-se de maneira regular, está além do controle de seus agentes constituintes e exerce sobre eles uma forma abstrata de coação.”


“O desenvolvimento pode ser compreendido com referência a categoria do tempo histórico. Como veremos ao considerar a trajetória da produção, com o desenvolvimento da produção científica e tecnologicamente avançada, aumentos na produtividade também expressam o acúmulo de experiência social prévia e trabalho, bem como os aumentos frequentemente descontínuos no conhecimento geral que ocorrem com base nesse passado preservado16. A dinâmica do capitalismo, como compreendida pelas categorias de Marx, é tal que, com o acúmulo do tempo histórico, há uma crescente disparidade entre as condições para a produção de riqueza material e as condições para a geração de valor. Considerada tendo em vista a dimensão do valor de uso do trabalho (isto é, em termos de criação de riqueza material), a produção é cada vez menos um processo de objetivação material das habilidades e dos conhecimentos de produtores individuais ou mesmo da classe imediatamente envolvida; em vez disso, torna-se cada vez mais uma objetivação do conhecimento coletivo acumulado das espécies, da humanidade — que, como uma categoria geral, é constituída com o acúmulo de tempo histórico. Em relação a dimensão do valor de uso com o pleno desenvolvimento do capitalismo, a produção torna-se cada vez mais um processo de objetivação do tempo histórico, e não do tempo de trabalho imediato. De acordo com Marx, no entanto, o valor continua a ser necessariamente expressão da objetivação deste último.”
16 O capital, cit., Livro I, p. 459s.


“As determinações de classe — que eu admito ter apenas começado a elucidar (por exemplo, o proletariado como proprietário da força de trabalho-mercadoria e como objeto do processo de valorização) – não são simplesmente determinações “posicionais”, mas sim determinações tanto da objetividade como da subjetividade social. Isso implica uma crítica a abordagens que, primeiro, definem classe “objetivamente” – em termos da posição dentro da estrutura social – e, em seguida, abordam a questão de como a classe se constitui “subjetivamente”; isso normalmente implica relacionar objetividade e subjetividade extrinsecamente, por meio da noção de “interesse”.
Se a determinação inicial da classe na abordagem de Marx não é de posição objetiva, mas de objetividade e subjetividade, a questão da dimensão subjetiva de uma determinação de classe em particular deve ser distinta da questão das condições sob as quais muitas pessoas agem como membros de uma classe. Eu não posso aqui responder a essa última questão, mas, no que diz respeito a primeira, a dimensão subjetiva da classe não pode — mesmo no nível de sua determinação inicial – ser entendida apenas diante da consciência dos interesses coletivos se as concepções particulares desses interesses, bem como a noção de interesse em si, não são compreendidas no contexto social e histórico. Procurei mostrar como, de acordo com a abordagem categorial marxiana, a consciência não é um mero reflexo de condições objetivas; em vez disso, as categorias, que expressam as mediações sociais básicas características do capitalismo, delineiam formas de consciência como momentos intrínsecos de formas do ser social. Assim, as determinações de classe, para Marx, implicam formas de subjetividade determinadas social e historicamente — por exemplo, pontos de vista da sociedade e de si mesmo, sistemas de valores, entendimentos de ação, concepções sobre as fontes de males sociais e possíveis formas de remediação – que estão enraizadas nas formas de mediação social como constituem diferencialmente uma classe em particular. Nesse sentido, a categoria de classe é um momento de uma abordagem que busca compreender a determinação histórica e social de várias concepções e necessidades sociais, bem como de formas de ação.
A classe social, estruturada pelas formas sociais e pelo momento propulsor da totalidade social capitalista, é também uma categoria estruturadora de sentido e consciência social. Isso não quer dizer que todos os indivíduos que podem ser “situados” de maneira semelhante tenham as mesmas crenças, nem que a ação social e política siga “automaticamente” as linhas de classe. Isso de fato significa que a especificidade social e histórica das formas de subjetividade e ação social podem ser elucidadas diante da noção de classe. A natureza das exigências sociais e políticas, ou das formas determinadas das lutas associadas a tais exigências, por exemplo, pode ser compreendida e explicada social e historicamente em relação a classe, contanto que a classe seja compreendida com referência às formas categoriais.”


“Se o valor é a categoria fundamental das relações sociais de produção capitalista, e se a dimensão do valor de uso da força de trabalho engloba as forças produtivas, então o capital pode ser entendido como uma estrutura alienada de relações de produção mediadas pelo trabalho que promove o desenvolvimento de forças produtivas sociais gerais enquanto as incorpora como atributos. A dialética entre as forças e relações de produção — cujas determinações fundamentais analisei como dialética entre transformação e reconstituição — é, pois, uma dialética entre duas dimensões do capital, e não entre o capital e forças a ele extrínsecas. Essa dialética está no cerne do capital como uma totalidade social dinâmica e contraditória. Longe de denotar apenas os meios de produção possuídos pela classe de expropriadores privados, a categoria do capital refere-se a uma estrutura alienada e dual de relações mediadas pelo trabalho em termos das quais o peculiar tecido da sociedade moderna, sua forma abstrata de dominação, sua dinâmica histórica e suas formas características de produção e de trabalho podem ser entendidas sistematicamente.”

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