Editora: Jorge Zahar
ISBN: 978-85-7110-414-3
Tradução: Guido Antonio de Almeida
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 224
Sinopse:
Considerado como a pedra angular das ideias que tiveram por berço a Escola de
Frankfurt, este livro é uma crítica filosófica e psicológica de amplo espectro
das categorias ocidentais da razão e da natureza, de Homero a Nietzsche.
“Aos censores, que as fábricas de filmes
mantêm voluntariamente por medo de acarretar no final um aumento dos custos,
correspondem instâncias análogas em todas as áreas. O processo a que se submete
um texto literário, se não na previsão automática do seu produtor, pelo menos
pelo corpo de leitores, editores, redatores e ghost-writers dentro e fora do escritório da editora, é muito mais
minucioso que qualquer censura. Tornar inteiramente supérfluas suas funções
parece ser, apesar de todas as reformas benéficas, a ambição do sistema
educacional. Na crença de que ficaria excessivamente suscetível à charlatanice
e à superstição, se não se restringisse à constatação de fatos e ao cálculo de
probabilidades, o espírito conhecedor prepara um chão suficientemente
ressequido para acolher com avidez a charlatanice e a superstição. Assim como a
proibição sempre abriu as portas para um produto mais tóxico ainda, assim
também o cerceamento da imaginação teórica preparou o caminho para o desvario
político. E, mesmo quando as pessoas ainda não sucumbiram a ele, elas veem-se
privadas dos meios de resistência pelos mecanismos de censura, tanto os
externos quanto os implantados dentro delas próprias.”
“A naturalização dos homens hoje não é
dissociável do progresso social. O aumento da produtividade econômica, que por
um lado produz as condições para um mundo mais justo, confere por outro lado ao
aparelho técnico e aos grupos sociais que o controlam uma superioridade imensa
sobre o resto da população. O indivíduo se vê completamente anulado em face dos
poderes econômicos. Ao mesmo tempo, estes elevam o poder da sociedade sobre a
natureza a um nível jamais imaginado. Desaparecendo diante do aparelho a que
serve, o indivíduo se vê, ao mesmo tempo, melhor do que nunca provido por ele.
Numa situação injusta, a impotência e a dirigibilidade da massa aumentam com a
quantidade de bens a ela destinados. A elevação do padrão de vida das classes
inferiores, materialmente considerável e socialmente lastimável, reflete-se na
difusão hipócrita do espírito. Sua verdadeira aspiração é a negação da reificação.
Mas ele necessariamente se esvai quando se vê concretizado em um bem cultural e
distribuído para fins de consumo. A enxurrada de informações precisas e
diversões assépticas desperta e idiotiza as pessoas ao mesmo tempo.”
“A universalidade dos pensamentos, como a
desenvolve a lógica discursiva, a dominação na esfera do conceito, eleva-se
fundamentada na dominação do real. É a substituição da herança mágica, isto é,
das antigas representações difusas, pela unidade conceptual que exprime a nova
forma de vida, organizada com base no comando e determinada pelos homens
livres. O eu, que aprendeu a ordem e a subordinação com a sujeição do mundo,
não demorou a identificar a verdade em geral com o pensamento ordenador, e essa
verdade não pode subsistir sem as rígidas diferenciações daquele pensamento
ordenador. Juntamente com a magia mimética, ele tornou tabu o conhecimento que
atinge efetivamente o objeto. Seu ódio volta-se contra a imagem do mundo
pré-histórico superado e sua felicidade imaginária. Os deuses ctônicos dos
habitantes primitivos são banidos para o inferno em que se converte a terra,
sob a religião do sol e da luz de Indra e Zeus.
O céu e o inferno, porém, estão ligados um ao
outro. Assim como, em cultos que não se excluíam, o nome de Zeus era dado tanto
a um deus subterrâneo quanto a um deus da luz,19 e os deuses olímpicos
cultivavam toda espécie de relações com os ctônicos, assim também as potências
do bem e do mal, a graça e a desgraça, não eram claramente separadas. Elas
estavam ligadas como o vir-a-ser e o parecer, a vida e a morte, o verão e o
inverno. No mundo luminoso da religião grega perdura a obscura indivisão do
princípio religioso venerado sob o nome de “mana” nos mais antigos estágios que
se conhecem da humanidade. Primário, indiferenciado, ele é tudo o que é
desconhecido, estranho: aquilo que transcende o âmbito da experiência, aquilo
que nas coisas é mais do que sua realidade já conhecida. O que o primitivo aí
sente como algo de sobrenatural não é uma substância espiritual oposta à substância
material, mas o emaranhado da natureza em face do elemento individual. O grito
de terror com que é vivido o insólito torna-se seu nome. Ele fixa a
transcendência do desconhecido em face do conhecido e, assim, o horror como
sacralidade. A duplicação da natureza como aparência e essência, ação e força,
que torna possível tanto o mito quanto a ciência, provém do medo do homem, cuja
expressão se converte na explicação. Não é a alma que é transposta para a
natureza, como o psicologismo faz crer. O mana, o espírito que move, não é uma
projeção, mas o eco da real supremacia da natureza nas almas fracas dos
selvagens. A separação do animado e do inanimado, a ocupação de lugares
determinados por demônios e divindades, tem origem nesse pré-animismo. Nele já
está virtualmente contida até mesmo a separação do sujeito e do objeto. Quando
uma árvore é considerada não mais simplesmente como árvore, mas como testemunho
de uma outra coisa, como sede do mana, a linguagem exprime a contradição de que
uma coisa seria ao mesmo tempo ela mesma e outra coisa diferente dela, idêntica
e não idêntica.20 Através da divindade, a linguagem passa da
tautologia à linguagem. O conceito, que se costuma definir como a unidade
característica do que está nele subsumido, já era desde o início o produto do
pensamento dialético, no qual cada coisa só é o que ela é tornando-se aquilo
que ela não é. Eis aí a forma primitiva da determinação objetivadora na qual se
separavam o conceito e a coisa, determinação essa que já está amplamente desenvolvida
na epopeia homérica e que se acelera na ciência positiva moderna. Mas essa
dialética permanece impotente na medida em que se desenvolve a partir do grito
de terror que é a própria duplicação, a tautologia do terror. Os deuses não
podem livrar os homens do medo, pois são as vozes petrificadas do medo que eles
trazem como nome. Do medo o homem presume estar livre quando não há nada mais
de desconhecido. É isso que determina o trajeto da desmitologização e do
esclarecimento, que identifica o animado ao inanimado, assim como o mito
identifica o inanimado ao animado. O esclarecimento é a radicalização da
angústia mítica. A pura imanência do positivismo, seu derradeiro produto, nada
mais é do que um tabu, por assim dizer, universal. Nada mais pode ficar de
fora, porque a simples ideia do “fora” é a verdadeira fonte da angústia… Se o
primitivo apaziguava, às vezes, seu desejo de vingar o assassinato de um dos
seus acolhendo o assassino na própria família,21 isso significava,
tanto quanto a vingança, a infusão do sangue alheio no próprio sangue, a
restauração da imanência. O dualismo mítico não ultrapassa o âmbito da
existência. O mundo totalmente dominado pelo mana, bem como o mundo do mito
indiano e grego, são, ao mesmo tempo, sem saída e eternamente iguais. Todo
nascimento se paga com a morte, toda ventura com a desventura. Homens e deuses
podem tentar, no prazo que lhes cabe, distribuir a sorte de cada um segundo
critérios diferentes do curso cego do destino; ao fim e ao cabo, a realidade
triunfa sobre eles. Até mesmo sua justiça, arrancada que foi à fatalidade,
exibe ainda os seus traços. Ela corresponde ao olhar que os homens, tanto os
primitivos quanto os gregos e os bárbaros, lançam sobre o mundo a partir de uma
sociedade da opressão e da miséria. Por isso, tanto a justiça mítica como a
esclarecida consideram a culpa e a expiação, a ventura e a desventura como os
dois lados de uma única equação. A justiça se absorve no direito. O xamã
esconjura o perigo com a imagem do perigo. A igualdade é o seu instrumento. É
ela que, na civilização, regula o castigo e o mérito. As representações míticas
também podem se reduzir integralmente a relações naturais. Assim como a
constelação de Gêmeos remete, como todos os outros símbolos da dualidade, ao
ciclo inescapável da natureza; assim como este mesmo ciclo tem, no símbolo do
ovo, do qual provêm os demais, seu símbolo mais remoto; assim também a balança
nas mãos de Zeus, que simboliza a justiça de todo o mundo patriarcal, remete à
mera natureza. A passagem do caos para a civilização, onde as condições
naturais não mais exercem seu poder de maneira imediata, mas através da
consciência dos homens, nada modificou no princípio da igualdade. Aliás, os
homens expiaram essa passagem justamente com a adoração daquilo a que estavam
outrora submetidos como as demais criaturas. Antes, os fetiches estavam sob a
lei da igualdade. Agora, a própria igualdade torna-se fetiche. A venda sobre os
olhos da Justiça não significa apenas que não se deve interferir no direito,
mas que ele não nasceu da liberdade.”
20. Hubert e Mauss descrevem da seguinte
maneira o conteúdo ideacional da “simpatia”, da mimese: “L’un est le tout,
tout est dans l’un, la nature triomphe de la nature.” (“O uno é o todo,
tudo está no uno, a natureza triunfa sobre a natureza.”) H. Hubert e M. Mauss, Théorie
générale de la magie, in L’Année Sociologique, 1902-3, p.100.
21. Cf. Westermack, Ursprung der Moralbegriffe. Leipzig, 1913, vol. I, p.402.
“Com o progresso do esclarecimento, só as
obras de arte autênticas conseguiram escapar à mera imitação daquilo que, de um
modo qualquer, já é.”
“O esclarecimento é totalitário como qualquer
outro sistema. Sua inverdade não está naquilo que seus inimigos românticos
sempre lhe censuraram: o método analítico, o retorno aos elementos, a
decomposição pela reflexão, mas sim no fato de que para ele o processo está
decidido de antemão. Quando, no procedimento matemático, o desconhecido se
torna a incógnita de uma equação, ele se vê caracterizado por isso mesmo como algo
de há muito conhecido, antes mesmo que se introduza qualquer valor. A natureza
é, antes e depois da teoria quântica, o que deve ser apreendido
matematicamente. Até mesmo aquilo que não se deixa compreender, a
indissolubilidade e a irracionalidade, é cercado por teoremas matemáticos.
Através da identificação antecipatória do mundo totalmente matematizado com a
verdade, o esclarecimento acredita estar a salvo do retorno do mítico. Ele
confunde o pensamento e a matemática. Desse modo, esta se vê por assim dizer
solta, transformada na instância absoluta. “Um mundo infinito, no caso um mundo
de idealidades, é concebido como um mundo cujos objetos não se tornam
acessíveis ao nosso conhecimento um por um, de maneira imperfeita e como que
por acaso; mas, ao contrário, um método racional, dotado de uma unidade
sistemática, acaba por alcançar – numa progressão infinita – todo o objeto tal
como ele é em si mesmo… Na matematização galileana da natureza, a natureza ela própria é agora idealizada sob a
égide da nova matemática, ou, para exprimi-lo de uma maneira moderna, ela se
torna ela própria uma multiplicidade matemática.”30 O pensar
reifica-se num processo automático e autônomo, emulando a máquina que ele
próprio produz para que ela possa finalmente substituí-lo. O esclarecimento31
pôs de lado a exigência clássica de pensar o pensamento – a filosofia de Fichte
é o seu desdobramento radical – porque ela desviaria do imperativo de comandar
a práxis, que o próprio Fichte no entanto queria obedecer. O procedimento
matemático tornou-se, por assim dizer, o ritual do pensamento. Apesar da
autolimitação axiomática, ele se instaura como necessário e objetivo: ele
transforma o pensamento em coisa, em instrumento, como ele próprio o denomina.
Mas, com essa mimese, na qual o pensamento se iguala ao mundo, o factual
tornou-se agora a tal ponto a única referência, que até mesmo a negação de Deus
sucumbe ao juízo sobre a metafísica. Para o positivismo que assumiu a
magistratura da razão esclarecida, extravagar em mundos inteligíveis é não
apenas proibido, mas é tido como um palavreado sem sentido. Ele não precisa –
para sorte sua – ser ateu, porque o pensamento coisificado não pode sequer
colocar a questão. De bom grado o censor positivista deixa passar o culto
oficial, do mesmo modo que a arte, como um domínio particular da atividade
social nada tendo a ver com o conhecimento; mas a negação que se apresenta ela
própria com a pretensão de ser conhecimento, jamais. Para a mentalidade
científica, o desinteresse do pensamento pela tarefa de preparar o factual, a
transgressão da esfera da realidade é desvario e autodestruição, do mesmo modo
que, para o feiticeiro do mundo primitivo, a transgressão do círculo mágico
traçado para a invocação, e nos dois casos tomam-se providências para que a infração
do tabu acabe realmente em desgraça para o sacrílego. A dominação da natureza
traça o círculo dentro do qual a Crítica da razão pura baniu o pensamento. Kant combinou a doutrina da incessante e laboriosa
progressão do pensamento ao infinito com a insistência em sua insuficiência e
eterna limitação. Sua lição é um oráculo. Não há nenhum ser no mundo que a
ciência não possa penetrar, mas o que pode ser penetrado pela ciência não é o
ser. É o novo, segundo Kant, que o juízo filosófico visa e, no entanto, ele não
conhece nada de novo, porque repete tão somente o que a razão já colocou no
objeto. Mas este pensamento, resguardado dos sonhos de um visionário nas
diversas disciplinas da ciência, recebe a conta: a dominação universal da
natureza volta-se contra o próprio sujeito pensante; nada sobra dele senão
justamente esse eu penso eternamente
igual que tem que poder acompanhar todas as minhas representações. Sujeito e
objeto tornam-se ambos nulos. O eu abstrato, o título que dá o direito a
protocolar e sistematizar, não tem diante de si outra coisa senão o material
abstrato, que nenhuma outra propriedade possui além da de ser um substrato para
semelhante posse. A equação do espírito e do mundo acaba por se resolver, mas
apenas com a mútua redução de seus dois lados. Na redução do pensamento a uma
aparelhagem matemática está implícita a ratificação do mundo como sua própria
medida. O que aparece como triunfo da racionalidade objetiva, a submissão de
todo ente ao formalismo lógico, tem por preço a subordinação obediente da razão
ao imediatamente dado. Compreender o dado enquanto tal, descobrir nos dados não
apenas suas relações espaço-temporais abstratas, com as quais se possa então
agarrá-las, mas ao contrário pensá-las como a superfície, como aspectos
mediatizados do conceito, que só se realizam no desdobramento de seu sentido
social, histórico, humano – toda a pretensão do conhecimento é abandonada. Ela
não consiste no mero perceber, classificar e calcular, mas precisamente na
negação determinante de cada dado imediato. Ora, ao invés disso, o formalismo
matemático, cujo instrumento é o número, a figura mais abstrata do imediato,
mantém o pensamento firmemente preso à mera imediatidade. O factual tem a
última palavra, o conhecimento restringe-se à sua repetição, o pensamento
transforma-se na mera tautologia. Quanto mais a maquinaria do pensamento
subjuga o que existe, tanto mais cegamente ela se contenta com essa reprodução.
Desse modo, o esclarecimento regride à mitologia da qual jamais soube escapar.
Pois, em suas figuras, a mitologia refletira a essência da ordem existente – o
processo cíclico, o destino, a dominação do mundo – como a verdade e abdicara
da esperança. Na pregnância da imagem mítica, bem como na clareza da fórmula
científica, a eternidade do factual se vê confirmada e a mera existência
expressa como o sentido que ela obstrui. O mundo como um gigantesco juízo
analítico, o único sonho que restou de todos os sonhos da ciência, é da mesma
espécie que o mito cósmico que associava a mudança da primavera e do outono ao
rapto da Perséfone. A singularidade do evento mítico, que deve legitimar o
evento factual, é ilusão. Originariamente, o rapto da deusa identificava-se
imediatamente à morte da natureza. Ele se repetia em cada outono, e mesmo a
repetição não era uma sequência de ocorrências separadas, mas a mesma cada vez.
Com o enrijecimento da consciência do tempo, o evento foi fixado como tendo
ocorrido uma única vez no passado, e tentou-se apaziguar ritualmente o medo da
morte em cada novo ciclo das estações com o recurso a algo ocorrido há muito
tempo. Mas a separação é impotente. Em virtude da colocação dessa ocorrência
única do passado, o ciclo assume o caráter do inevitável, e o medo irradia-se
desse acontecimento antigo para todos os demais como sua mera repetição. A
subsunção do factual, seja sob a pré-história lendária, mítica, seja sob o
formalismo matemático, o relacionamento simbólico do presente ao evento mítico
no rito ou à categoria abstrata na ciência, faz com que o novo apareça como
algo predeterminado, que é assim na verdade o antigo. Quem fica privado da
esperança não é a existência, mas o saber que no símbolo figurativo ou matemático
se apropria da existência enquanto esquema e a perpetua como tal.
No mundo esclarecido, a mitologia invadiu a
esfera profana. A existência expurgada dos demônios e de seus descendentes
conceituais assume em sua pura naturalidade o caráter numinoso que o mundo de
outrora atribuía aos demônios. Sob o título dos fatos brutos, a injustiça
social da qual esses provêm é sacramentada hoje como algo eternamente
intangível e isso com a mesma segurança com que o curandeiro se fazia
sacrossanto sob a proteção de seus deuses. O preço da dominação não é meramente
a alienação dos homens com relação aos objetos dominados; com a coisificação do
espírito, as próprias relações dos homens foram enfeitiçadas, inclusive as
relações de cada indivíduo consigo mesmo. Ele se reduz a um ponto nodal das
reações e funções convencionais que se esperam dele como algo objetivo. O
animismo havia dotado a coisa de uma alma, o industrialismo coisifica as almas.
O aparelho econômico, antes mesmo do planejamento total, já provê espontaneamente
as mercadorias dos valores que decidem sobre o comportamento dos homens. A
partir do momento em que as mercadorias, com o fim do livre intercâmbio,
perderam todas suas qualidades econômicas salvo seu caráter de fetiche, este se
espalhou como uma paralisia sobre a vida da sociedade em todos os seus
aspectos. As inúmeras agências da produção em massa e da cultura por ela criada
servem para inculcar no indivíduo os comportamentos normalizados como os únicos
naturais, decentes, racionais. De agora em diante, ele só se determina como
coisa, como elemento estatístico, como success
or failure (sucesso ou fracasso). Seu padrão é a autoconservação, a
assemelhação bem ou malsucedida à objetividade da sua função e aos modelos
colocados para ela. Tudo o mais, Ideia e criminalidade, experimenta a força da
coletividade que tudo vigia, da sala de aula ao sindicato. Contudo, mesmo essa
coletividade ameaçadora pertence tão somente à superfície ilusória, sob a qual
se abrigam as potências que a manipulam como algo de violento. A brutalidade
com que enquadra o indivíduo é tão pouco representativa da verdadeira qualidade
dos homens quanto o valor o é dos objetos de uso. A figura demoniacamente
distorcida, que as coisas e os homens assumiram sob a luz do conhecimento isento
de preconceitos, remete de volta à dominação, ao princípio que já operava a
especificação do mana nos espíritos e divindades e fascinava o olhar nas
fantasmagorias dos feiticeiros e curandeiros. A fatalidade com que os tempos
pré-históricos sancionavam a morte ininteligível passa a caracterizar a
realidade integralmente inteligível. O pânico meridiano com que os homens de
repente se deram conta da natureza como totalidade encontrou sua
correspondência no pânico que hoje está pronto a irromper a qualquer instante:
os homens aguardam que este mundo sem saída seja incendiado por uma totalidade
que eles próprios constituem e sobre a qual nada podem.
O horror mítico do esclarecimento tem por
objeto o mito. Ele não o descobre meramente em conceitos e palavras não
aclarados, como presume a crítica da linguagem, mas em toda manifestação humana
que não se situe no quadro teleológico da autoconservação. A frase de Spinoza:
“Conatus sese conservandi primum et
unicum virtutis est fundamentum”32 contém a verdadeira máxima de
toda a civilização ocidental, onde vêm se aquietar as diferenças religiosas e
filosóficas da burguesia. O eu que, após o extermínio metódico de todos os
vestígios naturais como algo de mitológico, não queria mais ser nem corpo, nem
sangue, nem alma e nem mesmo um eu natural, constituiu, sublimado num sujeito
transcendental ou lógico, o ponto de referência da razão, a instância
legisladora da ação. Segundo o juízo do esclarecimento, bem como o do
protestantismo, quem se abandona imediatamente à vida sem relação racional com
a autoconservação regride à pré-história. O instinto enquanto tal seria tão
mítico quanto a superstição; servir a um Deus não postulado pelo eu, tão insano
quanto o alcoolismo. O progresso reservou a mesma sorte tanto para a adoração
quanto para a queda no ser natural imediato: ele amaldiçoou do mesmo modo
aquele que, esquecido de si, se abandona tanto ao pensamento quanto ao prazer.
O trabalho social de todo indivíduo está mediatizado pelo princípio do eu na
economia burguesa; a um ele deve restituir o capital aumentado, a outro a força
para um excedente de trabalho. Mas quanto mais o processo da autoconservação é
assegurado pela divisão burguesa do trabalho, tanto mais ele força a
autoalienação dos indivíduos, que têm de se formar no corpo e na alma segundo a
aparelhagem técnica. Mas isso, mais uma vez, é levado em conta pelo pensamento
esclarecido: aparentemente, o próprio sujeito transcendental do conhecimento
acaba por ser suprimido como a última reminiscência da subjetividade e é
substituído pelo trabalho tanto mais suave dos mecanismos automáticos de
controle. A subjetividade volatizou-se na lógica de regras de jogo
pretensamente indeterminadas, a fim de dispor de uma maneira ainda mais
desembaraçada. O positivismo – que afinal não recuou nem mesmo diante do
pensamento, essa quimera tecida pelo cérebro no sentido mais liberal do termo –
eliminou a última instância intermediária entre a ação individual e a norma
social. O processo técnico, no qual o sujeito se coisificou após sua eliminação
da consciência, está livre da plurivocidade do pensamento mítico bem como de
toda significação em geral, porque a própria razão se tornou um mero adminículo
da aparelhagem econômica que a tudo engloba. Ela é usada como um instrumento
universal servindo para a fabricação de todos os demais instrumentos.
Rigidamente funcionalizada, ela é tão fatal quanto a manipulação calculada com
exatidão na produção material e cujos resultados para os homens escapam a todo
cálculo. Cumpriu-se afinal sua velha ambição de ser um órgão puro dos fins. A
exclusividade das leis lógicas tem origem nessa univocidade da função, em
última análise no caráter coercitivo da autoconservação. Esta culmina sempre na
escolha entre a sobrevivência ou a morte, escolha essa na qual se pode perceber
ainda um reflexo no princípio de que, entre duas proposições contraditórias, só
uma pode ser verdadeira e só uma falsa. O formalismo desse princípio e de toda
a lógica, que é o modo como ele se estabelece, deriva da opacidade e do entrelaçamento
de interesses numa sociedade na qual só por acaso coincidem a conservação das
formas e a dos indivíduos. A expulsão do pensamento da lógica ratifica na sala
de aula a coisificação do homem na fábrica e no escritório. Assim, o tabu
estende-se ao próprio poder de impor tabus, o esclarecimento ao espírito em que
ele próprio consiste. Mas, desse modo, a natureza enquanto verdadeira
autoconservação é atiçada pelo processo que prometia exorcizá-la, tanto no
indivíduo quanto no destino coletivo da crise e da guerra. Se a única norma que
resta para a teoria é o ideal da ciência unificada, então a práxis tem de
sucumbir ao processo irreprimível da história universal. O eu integralmente
capturado pela civilização se reduz a um elemento dessa inumanidade, à qual a
civilização desde o início procurou escapar. Concretiza-se assim o mais antigo
medo, o medo da perda do próprio nome. Para a civilização, a vida no estado
natural puro, a vida animal e vegetativa, constituía o perigo absoluto. Um após
o outro, os comportamentos mimético, mítico e metafísico foram considerados
como eras superadas, de tal sorte que a ideia de recair neles estava associada
ao pavor de que o eu revertesse à mera natureza, da qual havia se alienado com
esforço indizível e que por isso mesmo infundia nele indizível terror. A
lembrança viva dos tempos pretéritos – do nomadismo e, com muito mais razão,
dos estágios propriamente pré-patriarcais – fora extirpada da consciência dos
homens ao longo dos milênios com as penas mais terríveis. O espírito
esclarecido substituiu a roda e o fogo pelo estigma que imprimiu em toda
irracionalidade, já que esta leva à ruína. O hedonismo era moderado, os
extremos não lhe eram menos odiosos do que para Aristóteles. O ideal burguês da
naturalidade não visa a natureza amorfa, mas a virtude do meio. A promiscuidade
e a ascese, a abundância e a fome são, apesar de opostas, imediatamente
idênticas enquanto potências da dissolução. Ao subordinar a vida inteira às
exigências de sua conservação, a minoria que detém o poder garante, justamente
com sua própria segurança, a perpetuação do todo. De Homero aos tempos
modernos, o espírito dominante quer navegar entre a Cila da regressão à simples
reprodução e a Caribde da satisfação desenfreada; ele sempre desconfiou de
qualquer outra estrela guia que não fosse a do mal menor. Os neopagãos e
belicistas alemães querem liberar de novo o prazer. Mas como o prazer, sob a
pressão milenar do trabalho, aprendeu a se odiar, ele permanece, na emancipação
totalitária, vulgar e mutilado, em virtude de seu autodesprezo. Ele permanece
preso à autoconservação, para a qual o educara a razão entrementes deposta. Nos
momentos decisivos da civilização ocidental, da transição para a religião
olímpica ao renascimento, à reforma e ao ateísmo burguês, todas as vezes que
novos povos e camadas sociais recalcavam o mito, de maneira mais decidida, o
medo da natureza não compreendida e ameaçadora – consequência da sua própria
materialização e objetualização – era degradado em superstição animista, e a
dominação da natureza interna e externa tornava-se o fim absoluto da vida.
Quando afinal a autoconservação se automatiza, a razão é abandonada por aqueles
que assumiram sua herança a título de organizadores da produção e agora a temem
nos deserdados. A essência do esclarecimento é a alternativa que torna
inevitável a dominação. Os homens sempre tiveram de escolher entre submeter-se
à natureza ou submeter a natureza ao eu. Com a difusão da economia mercantil
burguesa, o horizonte sombrio do mito é aclarado pelo sol da razão calculadora,
sob cujos raios gelados amadurece a sementeira da nova barbárie. Forçado pela
dominação, o trabalho humano tendeu sempre a se afastar do mito, voltando a
cair sob o seu influxo, levado pela mesma dominação.”
30. E. Husserl, Die Krisis der europäischen Wissenschaften und die
transzendentale Phänomenologie, in Philosophia. Belgrado, 1936,
p.95s.
31. Cf. Schopenhauer, Parerga und Paralipomena, vol. II, §356, in
Werke, ed. Deussen, vol. V, p.671.
32. “O esforço para se conservar a si mesmo é
o primeiro e único fundamento da virtude”, Ethica,
pars IV. Propos. XXII. Coroll.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirPara que houvesse viabilidade na publicação dos trechos, tive de excluir a enorme seleção que se daria entre as páginas 115 (“A indústria cultural não cessa de lograr...) até a página 135 (“distraído ou relutante”).
ResponderExcluirFica o destaque, bem como, em especial, do capítulo “A indústria cultural” como um todo, que é o melhor — e, inclusive, talvez deveria ser o primeiro do livro.