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domingo, 1 de março de 2020

Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos (Parte II) – Theodor Adorno e Max Horkheimer

Editora: Jorge Zahar
ISBN: 978-85-7110-414-3
Tradução: Guido Antonio de Almeida
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 224
Sinopse: Ver Parte I



“Hoje a maquinaria mutila os homens mesmo quando os alimenta.”


“Enquanto nos abstrairmos de quem emprega a razão, ela terá tanta afinidade com a força quanto com a mediação; conforme a situação do indivíduo e dos grupos, ela faz com que a paz ou a guerra, a tolerância ou a repressão, apareçam como o melhor. Como ela desmascara nos objetivos materialmente determinados o poderio da natureza sobre o espírito, como ameaça à integridade de sua autolegislação, a razão se encontra, formal como é, à disposição de todo interesse natural. O pensamento torna-se um puro e simples órgão e se vê rebaixado à natureza. Para os governantes, porém, os homens tornam-se uma espécie de material, como o é a natureza inteira para a sociedade. Após o breve interlúdio do liberalismo, quando os burgueses mantiveram uns aos outros em xeque, a dominação revela-se como um terror arcaico sob a forma racionalizada do fascismo. “Então”, diz o príncipe de Franca-villa durante um sarau na corte do rei Ferdinando de Nápoles, “é pelo mais extremo terror que é preciso substituir as quimeras religiosas. Liberte-se o povo do temor a um inferno futuro, e ele se entregará em seguida, destruído o medo, a tudo. Em vez disso, substitua-se esse pavor quimérico por leis penais de uma severidade prodigiosa e que atinjam a ele apenas. Pois só ele perturba o Estado: é em sua classe apenas que nascem os descontentes. Que importa ao rico a ideia de um freio que não cai jamais sobre sua cabeça, se ele compra com essa vã aparência o direito de atormentar todos os que vivem sob seu jugo? Não encontraremos ninguém nessa classe que não permita que se imponha a ele a mais densa sombra da tirania, desde que sua realidade recaia sobre os outros.”13 A razão é o órgão do cálculo, do plano, ela é neutra com respeito a objetivos, seu elemento é a coordenação.”
13. Histoire de Juliette, vol. V. Holanda, 1797, p.319s.


“Como a razão não estabelece objetivos materiais, todos os aspectos estão igualmente distantes dela. Eles são puramente naturais. O princípio segundo o qual a razão está simplesmente oposta a tudo o que é irracional fundamenta a verdadeira oposição entre a mitologia e o esclarecimento. A mitologia só conhece o espírito na medida em que este está imerso na natureza, como potência natural. Assim como as forças exteriores, os impulsos internos são para ela potências vivas de origem divina ou demoníaca. O esclarecimento, ao contrário, repõe toda coerência, sentido, vida, dentro da subjetividade que só vem a se constituir propriamente nesse processo de reposição. A razão é para ele o agente químico que absorve a própria substância das coisas e a volatiza na pura autonomia da própria razão. Para escapar ao medo supersticioso da natureza, ela pôs a nu todas as figuras e entidades objetivas, sem exceção, como disfarces de um material caótico, amaldiçoando sua influência sobre a humanidade como escravidão, até que o sujeito se convertesse – em conformidade com sua Ideia – na única autoridade irrestrita e vazia. Toda força da natureza reduziu-se a uma simples e indiferenciada resistência ao poder abstrato do sujeito. A mitologia particular de que o esclarecimento ocidental (até mesmo sob a forma do calvinismo) teve de se desembaraçar era a doutrina católica da ordo e a religião popular pagã que continuava a viajar à sua sombra. Liberar os homens de sua influência, tal era o objetivo da filosofia burguesa. A liberação, porém, foi mais longe do que esperavam seus autores humanos. A economia de mercado que se viu desencadeada era ao mesmo tempo a forma atual da razão e a potência na qual a razão se destroçou. Os reacionários românticos nada mais fizeram do que exprimir a experiência dos próprios burgueses, a saber, que em seu mundo a liberdade tendia à anarquia organizada. A crítica da contrarrevolução católica provou que tinha razão contra o esclarecimento, assim como este tinha razão contra o catolicismo. O esclarecimento comprometera-se com o liberalismo. Se todos os afetos se valem, a autoconservação – que domina de qualquer modo a figura do sistema – parece constituir a fonte mais provável das máximas de ação. É ela que viria a ser liberada no mercado livre. Os escritores sombrios dos primórdios da burguesia, como Maquiavel, Hobbes, Mandeville, que foram os porta-vozes do egoísmo do eu, reconheceram por isso mesmo a sociedade como o princípio destruidor e denunciaram a harmonia, antes que ela fosse erigida em doutrina oficial pelos autores luminosos, os clássicos. Aqueles louvaram a totalidade da ordem burguesa porque viam nela o horror que, ao fim e ao cabo, tragava a ambos, o universal e o particular, a sociedade e o eu. Com o desenvolvimento do sistema econômico, no qual o domínio do aparelho econômico por grupos privados divide os homens, a autoconservação confirmada pela razão, que é o instinto objetualizado do indivíduo burguês, revelou-se como um poder destrutivo da natureza, inseparável da autodestruição. Estes dois poderes passaram a se confundir turvamente. A razão pura tornou-se irrazão, o procedimento sem erro e sem conteúdo. Mas a utopia que anunciava a reconciliação da natureza e do eu surgiu com a vanguarda revolucionária de seu esconderijo na filosofia alemã, e se apresentou, de um modo ao mesmo tempo racional e irracional, como a Ideia de uma associação de homens livres, atraindo para si toda a fúria da ratio (razão). Na sociedade tal como ela é, a autoconservação permanece livre da utopia denunciada como mito, apesar das pobres tentativas moralistas de propagar a humanidade como o mais racional dos meios. Para os dirigentes, a forma astuciosa da autoconservação é a luta pelo poder fascista e, para os indivíduos, é a adaptação a qualquer preço à injustiça. A razão esclarecida é tão incapaz de encontrar uma medida para graduar um instinto em si mesmo e relativamente aos demais, como para ordenar o universo em esferas. Muito acertadamente, ela desmascarou a concepção de uma hierarquia na natureza como um reflexo da sociedade medieval, e as tentativas posteriores de comprovar uma hierarquia de valores nova e objetiva trazem na testa o estigma da mentira. O irracionalismo que se denuncia nessas reconstruções vazias está muito longe de resistir à ratio industrial. Se a grande filosofia, representada por Leibniz e Hegel, descobrira também uma pretensão de verdade nas manifestações subjetivas e objetivas que ainda não são pensamentos (ou seja, em sentimentos, instituições, obras de arte), o irracionalismo, de seu lado, isola o sentimento, assim como a religião e a arte, de tudo o que merece o nome de conhecimento, e nisso como em outras coisas revela seu parentesco com o positivismo moderno, a escória do esclarecimento. Ele limita, é verdade, a fria razão em proveito da vida imediata, convertendo, porém, a vida num princípio hostil ao pensamento. Sob a aparência dessa hostilidade, o sentimento e, no final das contas, toda expressão humana e, inclusive, a cultura em geral são subtraídos à responsabilidade perante o pensamento, mas por isso mesmo se transformam no elemento neutralizado da ratio universal do sistema econômico que há muito se tornou irracional. Desde o início, ela não pôde se fiar unicamente em sua força de atração e teve que complementá-la com o culto dos sentimentos. Mas quando ela conclama aos sentimentos, ela se volta contra seu próprio meio, o pensamento, que também foi sempre suspeito para ela, a razão autoalienada. A efusão que os ternos amantes exibem no filme já tem o efeito de um golpe assestado contra a teoria impassível, mas ela se prolonga na argumentação sentimental contra o pensamento que ataca a injustiça. Quando os sentimentos são erigidos assim em ideologia, o desprezo a que estão submetidos na realidade não fica superado. O fato de que, comparados à altura sideral a que a ideologia os transporta, apareçam sempre como demasiado vulgares ajuda também a proscrevê-los. O veredicto sobre os sentimentos já estava implícito na formalização da razão. A autoconservação continua a ter, enquanto instinto natural e como os demais impulsos, uma má consciência. Só a atividade industriosa e as instituições que devem servir a ela – isto é, a mediação que conquistou autonomia, o aparelho, a organização, o sistemático – gozam, tanto no conhecimento quanto na prática, da reputação de serem racionais. As emoções estão inseridas nisso.
O esclarecimento dos tempos modernos esteve desde o começo sob o signo da radicalidade: é isso que o distingue de toda etapa anterior da desmitologização. Quando uma nova forma de vida social surgia na história universal juntamente com uma nova religião e uma nova mentalidade, derrubavam-se os velhos deuses, juntamente com as velhas classes, tribos e povos. Mas é sobretudo quando um povo, os judeus por exemplo, era arrastado por seu próprio destino para uma nova forma de vida social, que os antigos e amados costumes, as ações sagradas e os objetos de veneração, se viam como que por encanto transformados em crimes nefandos e espectros medonhos. Os medos e as idiossincrasias atuais, os traços do caráter escarnecidos e detestados, podem ser interpretados como marcas de progressos violentos ao longo do desenvolvimento humano. Do nojo dos excrementos e da carne humana até o desprezo do fanatismo, da preguiça, da pobreza material e espiritual, vemos desenrolar-se uma linha de comportamentos que, de adequados e necessários, se converteram em condutas execráveis. Essa linha é ao mesmo tempo a da destruição e a da civilização. Cada passo foi um progresso, uma etapa do esclarecimento. Mas, enquanto todas as mudanças anteriores (do pré-animismo à magia, da cultura matriarcal à patriarcal, do politeísmo dos escravocratas à hierarquia católica) colocavam novas mitologias, ainda que esclarecidas, no lugar das antigas (o deus dos exércitos no lugar da Grande Mãe, a adoração do cordeiro no lugar do totem), toda forma de devotamento que se considerava objetiva, fundamentada na coisa, dissipava-se à luz da razão esclarecida. Todos os vínculos dados previamente sucumbiam assim ao veredicto que impunha o tabu, sem excluir aqueles que eram necessários para a existência da própria ordem burguesa. O instrumento com o qual a burguesia chegou ao poder – o desencadeamento das forças, a liberdade universal, a autodeterminação, em suma, o esclarecimento – voltava-se contra a burguesia tão logo era forçado, enquanto sistema da dominação, a recorrer à opressão. Obedecendo a seu próprio princípio, o esclarecimento não se detém nem mesmo diante do mínimo de fé sem o qual o mundo burguês não pode subsistir. Ele não presta à dominação os serviços confiáveis que as antigas ideologias sempre lhe prestaram. Sua tendência antiautoritária – que apenas subterraneamente, é verdade, se comunica com a utopia implícita no conceito de razão – acaba por torná-la tão hostil à burguesia estabelecida quanto à aristocracia, da qual aliás logo se tornou também uma aliada. O princípio antiautoritário acaba tendo que se converter em seu próprio contrário, numa instância hostil à própria razão: ele elimina tudo aquilo que é intrinsecamente obrigatório, e essa eliminação permite à dominação decretar e manipular soberanamente as obrigações que lhe são adequadas em cada caso. Depois de proclamar a virtude burguesa e a filantropia, para as quais já não tinha boas razões, a filosofia também proclamou como virtudes a autoridade e a hierarquia, quando estas há muito já haviam se convertido em mentiras graças ao esclarecimento. Mas o esclarecimento não possuía argumentos nem mesmo contra semelhante perversão de si mesmo, pois a pura verdade não goza de nenhum privilégio em face da distorção, a racionalização em face da ratio, se não tem nenhum privilégio prático a exibir em seu favor. Com a formalização da razão, a própria teoria, na medida em que pretende ser mais que um símbolo para procedimentos neutros, converte-se num conceito ininteligível, e o pensamento só é aceito como dotado de sentido após o abandono do sentido. Atrelado ao modo de produção dominante, o esclarecimento, que se empenha em solapar a ordem tornada repressiva, dissolve-se a si mesmo. Isso ficou manifesto já nos primeiros ataques que o esclarecimento corrente empreendeu contra Kant, o “triturador universal”. Do mesmo modo que a filosofia moral de Kant limitou sua crítica esclarecedora para salvar a possibilidade da razão, assim também, inversamente, o pensamento esclarecido mas irrefletido empenhou-se sempre, por uma questão de autoconservação, em superar-se a si mesmo no ceticismo, a fim de abrir espaço suficiente para a ordem existente.”


“Todo gozo, porém, deixa transparecer uma idolatria: ele é o abandono de si mesmo a uma outra coisa. A natureza não conhece propriamente o gozo: ela não o prolonga além do que é preciso para a satisfação da necessidade. Todo prazer é social, quer nas emoções não sublimadas quer nas sublimadas, e tem origem na alienação. Mesmo quando o gozo ignora a proibição que transgride, ele tem sempre por origem a civilização, a ordem fixa, a partir da qual aspira retornar à natureza, da qual aquela o protege. Os homens só sentem a magia do gozo quando o sonho, liberando-os da compulsão ao trabalho, da ligação do indivíduo a uma determinada função social e finalmente a um eu, leva-os de volta a um passado pré-histórico sem dominação e sem disciplina. É a nostalgia dos indivíduos presos na civilização, o “desespero objetivo” daqueles que tiveram de se tornar em elementos da ordem social, que alimenta o amor pelos deuses e demônios; era para estes, enquanto natureza transfigurada, que eles se voltavam na adoração. O pensamento tem origem no processo de liberação dessa natureza terrível, que acabou por ser inteiramente dominada. O gozo é por assim dizer sua vingança. Nele os homens se livram do pensamento, escapam à civilização. Nas sociedades mais antigas, os festivais possibilitavam este retorno à natureza como um retorno em comum. As orgias primitivas são a origem coletiva do gozo. “Esse intervalo de universal confusão que constitui a festa”, diz Roger Caillois, “aparece assim como o espaço de tempo em que a ordem do mundo está suspensa. Eis por que todos os excessos são então permitidos. O que importa é agir contra as regras. Tudo deve ser feito ao contrário. Na época mítica, o curso do tempo estava invertido: nascia-se velho, morria-se criança… Assim, todas as prescrições que protegem a boa ordenação natural e social são então sistematicamente violadas.”60 As pessoas se abandonam às potências transfiguradas da origem; mas, do ponto de vista da suspensão da proibição, esse modo de agir tem o caráter do excesso e do desvario61. É só com o progresso da civilização e do esclarecimento que o eu fortalecido e a dominação consolidada transformam o festival em simples farsa. Os dominadores apresentam o gozo como algo racional, como tributo à natureza não inteiramente domada; ao mesmo tempo procuram torná-lo inócuo para seu uso e conservá-lo na cultura superior; e finalmente, na impossibilidade de eliminá-lo totalmente, tentam dosá-lo para os dominados. O gozo torna-se objeto da manipulação até desaparecer inteiramente nos divertimentos organizados. O processo se desenvolve do festival primitivo até as férias. “Quanto mais se acentua a complexidade do organismo social, menos ela tolera a interrupção do curso ordinário da vida. É preciso que tudo continue hoje como ontem e amanhã como hoje. A efervescência geral não é mais possível. O período de turbulência individualizou-se. As férias sucedem à festa.”62 No regime fascista, elas são complementadas pela falsa euforia coletiva produzida pelo rádio, pelos slogans e pela benzedrina.
60. Théorie de la Fête, Nouvelle Revue Française, jan 1940, p.49.
61. Cf. Caillois, op.cit.
62. Ibid., p.58s.


“No amor, o gozo estava associado à divinização da pessoa que o concedia, ele era a paixão propriamente humana. Mas acaba por ser revogado como um juízo de valor condicionado pelo sexo. Na adoração exaltada do amante, assim como na admiração irrestrita que lhe devia a amada, o que se repetia sempre era a transfigura da efetiva servidão da mulher. Com base no reconhecimento dessa servidão, os sexos voltavam sempre a se reconciliar: a mulher parecia assumir livremente a derrota, o homem conceder-lhe a vitória. O cristianismo transfigurou no casamento, como união dos corações, a hierarquia dos sexos e o jugo imposto ao caráter feminino pela ordenação masculina da propriedade, aplacando assim a lembrança de um passado mais feliz desfrutado pelo sexo feminino na era pré-patriarcal. Na sociedade industrial, o amor é faturado. A ruína da propriedade média e o desaparecimento do sujeito econômico livre afetam a família: ela não é mais a célula da sociedade, outrora tão celebrada, já que não constitui mais a base da vida econômica do burguês. Os adolescentes não têm mais a família como seu horizonte, a autonomia do pai desaparece e com ela a resistência a sua autoridade. Antes, a servidão na casa paterna acendia na moça a paixão que parecia levar à liberdade, ainda que esta não se realizasse nem no casamento nem em nenhum outro lugar. Mas, ao mesmo tempo que se abre para a moça a possibilidade do jobd( fecham-se para ela as perspectivas do amor. Quanto mais universalmente o sistema industrial moderno exige de cada um que se deixe assalariar, mais se acentua a tendência a transformar os que não foram engolfados neste mar do white trashe, em que se converteu o trabalho e o desemprego não qualificados, no pequeno especialista, obrigado a cuidar de sua própria vida. Sob a forma do trabalho qualificado, a autonomia do empresário – que já pertence ao passado – torna-se característica de todos os que são admitidos no processo de produção e assim também da mulher “profissional”. O respeito próprio das pessoas cresce proporcionalmente a sua fungibilidade. A oposição à família não é mais uma audácia, do mesmo modo que o namoro com o boyfriendf tampouco é o paraíso na terra. As pessoas assumem em face das outras aquela relação racional, calculadora, que há muito fora proclamada como uma antiga sabedoria no círculo esclarecido de Juliette. O espírito e o corpo são separados na realidade, como haviam exigido aqueles libertinos, que não passavam de burgueses indiscretos. “De novo, parece-me” – decreta Noirceuil como bom racionalista64 – “que é uma coisa muito diferente amar e gozar… Pois os sentimentos de ternura correspondem às relações de humor e de conveniências, mas não se devem de modo algum à beleza de um colo ou ao bonito torneado dos quadris; e esses objetos que, segundo o gosto de cada um, podem excitar vivamente as afecções físicas, não têm, porém, parece-me, o mesmo direito às afecções morais. Para completar minha comparação, Bélize é feia, tem 40 anos, sua pessoa não tem a menor graça, não tem um só traço regular, um único atrativo; mas Bélize tem espírito, um caráter delicioso, um milhão de coisas que se encadeiam com meus sentimentos e meus gostos; não tenho nenhum desejo de me deitar com Bélize, mas nem por isso eu a amarei menos loucamente; desejarei fortemente ter Araminthe, mas eu a detestarei cordialmente tão logo a febre do desejo houver passado…” A consequência inevitável, implicitamente colocada com a divisão cartesiana do homem na substância pensante e na substância extensa, é proferida com toda clareza como a destruição do amor romântico. Este é considerado como disfarce, racionalização do instinto físico, “uma falsa e sempre perigosa metafísica”65, como explica o conde de Belmor em seu grande discurso sobre o amor. Apesar de toda a libertinagem, os amigos de Juliette atribuem à sexualidade em oposição à ternura, ao amor terreno em oposição ao celestial, não apenas um poder um pouquinho excessivo, mas também um caráter excessivamente inócuo. A beleza do colo e o torneado dos quadris agem sobre a sexualidade não como fatos a-históricos, puramente naturais, mas como imagens que encerram toda a experiência social. Nesta experiência está viva a intenção de algo diverso da natureza, o amor não limitado ao sexo. Mas a ternura, até mesmo a mais incorpórea, é a sexualidade metamorfoseada. A mão acariciando os cabelos e o beijo na fronte, que exprimem o desvario do amor espiritual, são formas apaziguadas de golpes e mordidas que acompanham, por exemplo, o ato sexual dos selvagens australianos. A separação é abstrata. A metafísica falsifica, ensina Belmor, os fatos, ela impede de ver o amado como ele é, ela nasce da magia, ela é um véu. “E eu não o arranco! É fraqueza… pusilanimidade. Vamos analisar, após o gozo, esta deusa que me cegava antes.”66 O próprio amor é um conceito não científico: “… as definições errôneas nos induzem sempre em erro”, explica Dolmance no memorável 5º diálogo da Philosophie dans le Boudoir, “não sei o que é isto, o coração. Este é um nome que dou apenas à fraqueza do espírito”67. “Passemos um momento, como Lucrécio diz aos ‘bastidores da vida”’68, isto é, à análise “e veremos que nem a exaltação da amante nem o sentimento romântico resiste à análise… é o corpo apenas que amo e é o corpo apenas que lamento embora possa reencontrá-lo a qualquer instante.” O que é verdadeiro nisso tudo é o discernimento da dissociação do amor, obra do progresso. Através dessa dissociação, que mecaniza o prazer e distorce o anseio em trapaça, o amor é atacado em seu núcleo. Quando Juliette faz do louvor da sexualidade genital e perversa uma crítica do não natural, do imaterial, do ilusório, a libertina já passou ela própria para o lado dessa normalidade que deprecia não somente o arrebatamento utópico do amor, mas também o gozo físico, não somente a felicidade mais celestial, mas também a mais terrena. O devasso sem ilusões que Juliette defende transforma-se, graças à pedagogia sexual, à psicanálise e à terapêutica hormonal, no homem prático e aberto que estende à vida sexual sua fé no esporte e na higiene. A crítica de Juliette é dividida como o próprio esclarecimento. Na medida em que a destruição sacrílega do tabu, que se aliou em certa época à revolução burguesa, não levou a um novo senso de realidade, ela continua a conviver com o amor sublime no sentido da fidelidade a uma utopia agora mais próxima e que põe o gozo físico ao alcance de todos.”
64. Juliette, vol. II, op.cit., p.81s.
65. Ibid., vol. III, p.172s.
66. Ibid., vol. III, p.176s.
67. Edição particular Helpey, p.267.
68. Juliette, loc. cit.
d: Emprego. (N.T.)
e: A ralé, o zé-povinho branco. (N.T.)
f: Namorado. (N.T.)


“É na violência, por mais que ela se esconda sob os véus da legalidade, que repousa afinal a hierarquia social. A dominação da natureza se reproduz no interior da humanidade. A civilização cristã – que permitiu que a ideia de proteger os fisicamente fracos revertesse em proveito da exploração do servo forte – jamais conseguiu conquistar inteiramente os corações dos povos convertidos.”


“Sob o poder do monopólio, toda cultura de massas é idêntica, e seu esqueleto, a ossatura conceitual fabricada por aquele, começa a se delinear. Os dirigentes não estão mais sequer muito interessados em encobri-lo, seu poder se fortalece quanto mais brutalmente ele se confessa de público. O cinema e o rádio não precisam mais se apresentar como arte. A verdade de que não passam de um negócio, eles a utilizam como uma ideologia destinada a legitimar o lixo que propositalmente produzem. Eles se definem a si mesmos como indústrias, e as cifras publicadas dos rendimentos de seus diretores gerais suprimem toda dúvida quanto à necessidade social de seus produtos.
Os interessados inclinam-se a dar uma explicação tecnológica da indústria cultural. O fato de que milhões de pessoas participam dessa indústria imporia métodos de reprodução que, por sua vez, tornam inevitável a disseminação de bens padronizados para a satisfação de necessidades iguais. O contraste técnico entre poucos centros de produção e uma recepção dispersa condicionaria a organização e o planejamento pela direção. Os padrões teriam resultado originariamente das necessidades dos consumidores: eis por que são aceitos sem resistência. De fato, o que o explica é o círculo da manipulação e da necessidade retroativa, no qual a unidade do sistema se torna cada vez mais coesa. O que não se diz é que o terreno no qual a técnica conquista seu poder sobre a sociedade é o poder que os economicamente mais fortes exercem sobre a sociedade. A racionalidade técnica hoje é a racionalidade da própria dominação. Ela é o caráter compulsivo da sociedade alienada de si mesma. Os automóveis, as bombas e o cinema mantêm coeso o todo e chega o momento em que seu elemento nivelador mostra sua força na própria injustiça à qual servia. Por enquanto, a técnica da indústria cultural levou apenas à padronização e à produção em série, sacrificando o que fazia a diferença entre a lógica da obra e a do sistema social. Isso, porém, não deve ser atribuído a uma lei evolutiva da técnica enquanto tal, mas à sua função na economia atual. A necessidade que talvez pudesse escapar ao controle central já é recalcada pelo controle da consciência individual. A passagem do telefone ao rádio separou claramente os papéis. Liberal, o telefone permitia que os participantes ainda desempenhassem o papel do sujeito. Democrático, o rádio transforma-os a todos igualmente em ouvintes, para entregá-los autoritariamente aos programas, iguais uns aos outros, das diferentes estações. Não se desenvolveu qualquer dispositivo de réplica e as emissões privadas são submetidas ao controle. Elas limitam-se ao domínio apócrifo dos “amadores”, que ainda por cima são organizados de cima para baixo. No quadro da rádio oficial, porém, todo traço de espontaneidade no público é dirigido e absorvido, numa seleção profissional, por caçadores de talentos, competições diante do microfone e toda espécie de programas patrocinados. Os talentos já pertencem à indústria muito antes de serem apresentados por ela: de outro modo não se integrariam tão fervorosamente. A atitude do público que, pretensamente e de fato, favorece o sistema da indústria cultural é uma parte do sistema, não sua desculpa. Quando um ramo artístico segue a mesma receita usada por outro muito afastado dele quanto aos recursos e ao conteúdo; quando, finalmente, os conflitos dramáticos das novelas radiofônicas tornam-se o exemplo pedagógico para a solução de dificuldades técnicas, que à maneira do jamb, são dominadas do mesmo modo que nos pontos culminantes da vida jazzística; ou quando a “adaptação” deturpadora de um movimento de Beethoven se efetua do mesmo modo que a adaptação de um romance de Tolstoi pelo cinema, o recurso aos desejos espontâneos do público torna-se uma desculpa esfarrapada. Uma explicação que se aproxima mais da realidade é a explicação a partir do peso específico do aparelho técnico e do pessoal, que devem todavia ser compreendidos, em seus menores detalhes, como partes do mecanismo econômico de seleção. Acresce a isso o acordo, ou pelo menos a determinação comum dos poderosos executivos, de nada produzir ou deixar passar que não corresponda a suas tabelas, à ideia que fazem dos consumidores e, sobretudo, que não se assemelha a eles próprios. (...)
A unidade implacável da indústria cultural atesta a unidade em formação da política. As distinções enfáticas que se fazem entre os filmes das categorias A e B, ou entre as histórias publicadas em revistas de diferentes preços, têm menos a ver com seu conteúdo do que com sua utilidade para a classificação, organização e computação estatística dos consumidores. Para todos algo está previsto; para que ninguém escape, as distinções são acentuadas e difundidas. O fornecimento ao público de uma hierarquia de qualidades serve apenas para uma quantificação ainda mais completa. Cada qual deve se comportar, como que espontaneamente, em conformidade com seu levelc, previamente caracterizado por certos sinais, e escolher a categoria dos produtos de massa fabricada para seu tipo. Reduzidos a um simples material estatístico, os consumidores são distribuídos nos mapas dos institutos de pesquisa (que não se distinguem mais dos de propaganda) em grupos de rendimentos assinalados por zonas vermelhas, verdes e azuis.
O esquematismo do procedimento mostra-se no fato de que os produtos mecanicamente diferenciados acabam por se revelar sempre como a mesma coisa. A diferença entre a série Chrysler e a série General Motors é no fundo uma distinção ilusória, como já sabe toda criança interessada em modelos de automóveis. As vantagens e desvantagens que os conhecedores discutem servem apenas para perpetuar a ilusão da concorrência e da possibilidade de escolha. O mesmo se passa com as produções da Warner Brothers e da Metro Goldwyn Mayer. Até mesmo as diferenças entre os modelos mais caros e mais baratos da mesma firma se reduzem cada vez mais: nos automóveis, elas se reduzem ao número de cilindros, capacidade, novidade dos gadgetsd, nos filmes ao número de estrelas, à exuberância da técnica, do trabalho e do equipamento, e ao emprego de fórmulas psicológicas mais recentes. O critério unitário de valor consiste na dosagem da conspicuous productione, do investimento ostensivo. Os valores orçamentários da indústria cultural nada têm a ver com os valores objetivos, com o sentido dos produtos. Os próprios meios técnicos tendem cada vez mais a se uniformizar. A televisão visa uma síntese do rádio e do cinema, que é retardada enquanto os interessados não se põem de acordo, mas cujas possibilidades ilimitadas prometem aumentar o empobrecimento dos materiais estéticos a tal ponto que a identidade mal disfarçada dos produtos da indústria cultural pode vir a triunfar abertamente já amanhã – numa realização escarninha do sonho wagneriano da obra de arte total. A harmonização da palavra, da imagem e da música logra um êxito ainda mais perfeito que no Tristão, porque os elementos sensíveis – que registram sem protestos, todos eles, a superfície da realidade social – são em princípio produzidos pelo mesmo processo técnico e exprimem sua unidade como seu verdadeiro conteúdo. Esse processo de elaboração integra todos os elementos da produção, desde a concepção do romance (que já tinha um olho voltado para o cinema) até o último efeito sonoro. Ele é o triunfo do capital investido. Gravar sua onipotência no coração dos esbulhados que se tornaram candidatos a jobs como a onipotência de seu senhor, eis aí o que constitui o sentido de todos os filmes, não importa o plotf escolhido em cada caso pela direção de produção.”
c Nível. (N.T.)
d Todo aparelho mecânico pequeno, acessório. (N.T.)
e Produção ostensiva. (N.T.)
f Enredo. (N.T.)

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