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segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Dialética e Cultura (Parte II), de Lucien Goldmann

Editora: Paz e Terra

Tradução: Luiz Fernando Cardoso, Carlos Nelson Coutinho e Giseh Vianna Konder

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 198


“O que nos interessa, para compreender o fenômeno da reificação, é o mecanismo psíquico através do qual se desenvolve todo o processo.

Comecemos esse trabalho por uma constatação tanto mais importante por constituir uma das chaves-mestras da economia liberal clássica. Numa sociedade capitalista ideal, na qual nada entravaria o livre jogo da concorrência, as coisas iriam da melhor maneira possível — segundo os grandes economistas liberais — pois cada empreendedor, tentando obter um lucro tão grande quanto possível, seria obrigado a baixar os preços para enfrentar eficazmente os concorrentes. Ele agiria assim ainda mais e sem desejá-lo conscientemente, no interesse dos consumidores, que obteriam as mercadorias aos mais baixos preços.

Se bem que essa opinião seja inexata, como explicação da formação dos preços, nós nos prenderemos aqui somente à análise rigorosa dos mecanismos psicológicos pelos quais se manifestam equilíbrios e também valores humanos de solidariedade — quando se manifestam — no mundo capitalista. Os próprios teóricos do capitalismo liberal nos dizem que isso acontece implicitamente, sem que os homens o desejem, apesar e contra a vontade dos indivíduos. No mundo fictício dos economistas clássicos, mundo que não passa de uma extrapolação esquemática e idealista do mundo capitalista real, os homens seriam perfeitos egoístas, indiferentes e insensíveis aos sofrimentos, aspirações e necessidades de seus semelhantes, mas que passariam (é nisso que consiste a idealização) seu tempo a ajudar os semelhantes, sem querer.”

 

 

“Uma das características fundamentais da sociedade capitalista é a de mascarar as relações sociais entre os homens e as realidades espirituais e psíquicas, dando-lhes o aspecto de atributos naturais das coisas ou de leis naturais. É por isso que as relações de troca entre os diferentes membros da sociedade — transparentes e claros em todas as demais formas de organização social — tomam aqui a forma de um atributo de coisas mortas: o preço.

“Um par de sapatos custa cinco mil francos”. É a expressão de uma relação social e implicitamente humana entre o criador de gado, o curtidor de couro, seus operários, seus empregados, o revendedor, o negociante de sapatos e, finalmente, o último, consumidor. Mas nada disso é visível; a maioria desses personagens não se conhece e até ignoram sua existência mutuamente. Ficariam todos espantados de saber da existência de um laço que os une. Tudo isso se exprime por um só fato: “um par de sapatos custa cinco mil francos”.

Ora, isto não é um fato isolado; é, pelo contrário, o fenômeno social fundamental da sociedade capitalista: a transformação das relações humanas qualitativas em atributo quantitativo das coisas inertes, a manifestação do trabalho social necessário empregado para produzir certos bens como valor, como qualidade objetiva desses bens; a reificação que consequentemente se estende progressivamente ao conjunto da vida psíquica dos homens, onde ela faz predominar o abstrato e o quantitativo sobre o concreto e o qualitativo.”

 

 

“Em resumo, a economia mercantil, e em particular a economia capitalista, tende a substituir na consciência dos produtores o valor de uso pelo valor de troca e as relações humanas concretas e significativas por relações abstratas e universais entre vendedores e compradores; tende, assim, a substituir no conjunto da vida humana, o qualitativo pelo quantitativo.

Além disso, separa o produto do produtor e fortalece, por isso mesmo, a autonomia da coisa em relação à ação dos homens e à mutação.

Faz, enfim, da força de trabalho uma mercadoria que tem um valor — e isso significa que também aí transforma uma realidade humana em coisa — e aumenta durante um período histórico muito longo o peso do trabalho não qualificado ou pouco qualificado, em relação ao trabalho qualificado, substituindo mesmo, no plano da realidade imediata, as diferenças qualitativas por simples diferenças de quantidade.”

 

 

“Através da reificação, naturalmente, as relações fundamentais continuam a existir e a desempenhar sua função: o padeiro assa o pão que o sapateiro comerá e este faz sapatos que serão usados, entre outros, pelo padeiro; o juiz, por suas sentenças, assegura a manutenção e o funcionamento da ordem existente. Mas essas funções só são desempenhadas implicitamente; elas se enfraquecem e muitas vezes desaparecem totalmente da consciência dos homens, e mesmo os poucos vestígios que ainda permanecem não mais têm contato imediato com a vida e a ação cotidianas. De modo imediato, o juiz aplica a lei, o padeiro faz pão para vendê-lo e obter dinheiro. Para o juiz, o inculpado não passa de um ser abstrato; para o padeiro, o comprador não passa de uma espécie de autômato que entra na padaria, pega a mercadoria e põe o dinheiro sobre o balcão. Aliás, o próprio padeiro, na maior parte de sua vida, também não passa de um autômato que pratica a ação inversa. É verdade que esses dois autômatos são homens que devem entrar em contato, falar-se mutuamente, às vezes, na grande burguesia intelectual e financeira, manter relações sociais, encontrar-se nos mesmos lugares, etc. Mas isso não é essencial, não passa de um cenário inevitável para o fato fundamental: uma coisa inerte — a mercadoria — é trocada por outra coisa inerte, o dinheiro. De um lado e de outro, a vida psíquica do homem nada mais é que um prolongamento, um acessório da única realidade ativa e agente: as coisas inertes. Para os rentistas, o dinheiro aumenta e se reproduz dele próprio, como um ser vivo. A linguagem reflete essa situação. Diz-se “o dinheiro trabalha”, “o capital produz”, “a renda da terra”, etc.

É por isso que tudo que as pessoas ainda se dizem quando não se trata de seus interesses imediatos se torna falso, convencional e artificial. É a psicologia do vendedor que louva profissionalmente sua mercadoria — ainda que saiba tratar-se da pior das quinquilharias —, que é sempre amável com o freguês — ainda que no fundo desejasse mandá-lo ao diabo. A frase, o palavrório, a mentira convencional, a demagogia política e social tornam-se o fenômeno geral que invade quase toda a existência da maioria dos homens e penetra às vezes até às raízes mais defesas de sua vida pessoal ou mesmo de suas relações eróticas, pois o amor se transforma, também ele, muitas vezes, em cenário exterior e convencional do casamento de interesse — ou seja, de negócios — assim como as relações entre pais e filhos, irmãos e irmãs se tornam muitas vezes, elas também, problemas de ordem social ou de herança.

Assim o homem se transforma cada vez mais em autômato, sofrendo passivamente a ação de leis sociais que lhe são totalmente exteriores.

Implicitamente sua vida psíquica, sua “pessoa”, seu “espírito” perdem todo contato essencial com uma matéria que lhe aparece seja como estranha, seja, em última instância, como irreal. (As duas posições correspondem ao dualismo cartesiano e ao idealismo fichteano).

Na esfera “privada” das relações familiares e da amizade — esfera mais distante de toda atividade econômica e mesmo de toda atividade pública —os valores humanos de solidariedade permanecem no entanto menos alterados e a empresa da reificação, ainda que real, é menos acentuada. Isso engendra um dualismo psíquico que se torna uma das estruturas fundamentais do homem no mundo capitalista. A rigor, o homem pode continuar humano nas suas relações com sua mulher, seus filhos, seus amigos. No resto de sua atividade social ele deve conformar-se com a ordem existente, com suas leis escritas ou não escritas, a ordem do mercado estabelecida sobre o jogo dos egoísmos racionais, se ele é industrial ou comerciante, as ordens do patrão, se é operário ou empregado, as ordens dos superiores e os regulamentos gerais se é funcionário. E isso sob pena de ruína e morte social ou econômica.

O homem se torna, assim, escravo de leis abstratas e de coisas inertes e isso até nos mais altos escalões. “o rei é o primeiro servidor de seu Estado”, dizia o grande Frederico e o pequeno empreendedor se torna servidor de sua empresa. Esse dualismo que se exprime inclusive na contabilidade, onde todas as despesas pessoais do industrial são inscritas no débito como “despesas” que se opõem aos “lucros” positivos da empresa, contém em si consideráveis perigos de barbárie, perigos que o capitalismo liberal e reificado atenuara pela anarquia e pelo individualismo que implicava, mas que não eram menos reais e ameaçadores. (...)

Infelizmente, é preciso não criar ilusões, enquanto a sociedade burguesa e capitalista continuar a existir, semelhantes estados de espírito continuarão sendo a expressão de uma situação excepcional que não sobrevive muito tempo. Basta que o equilíbrio se restabeleça para que o mecanismo (a palavra não está aí por acaso) da vida social cotidiana restabeleça a reificação e que se recaia no antigo estado de coisas.”

 

 

“A reificação — que consiste essencialmente na substituição do qualitativo pelo quantitativo, do concreto pelo abstrato e que está estreitamente ligada à produção para o mercado, principalmente à produção capitalista — tende, paralelamente ao desenvolvimento dessa produção, a apoderar-se progressivamente de todos os domínios da vida social e a substituir as outras diferentes formas de consciência.”

 

 

“O operário, na realidade, só tem coisa a vender: sua força de trabalho e — salvo algumas raras exceções sempre possíveis — ele não poderia aceitar inteiramente e sem uma resistência real ou virtual sua própria transformação em mercadoria assimilada às demais mercadorias. É por isso que, ao contrário das outras classes sociais onde vemos a reificação invadir progressivamente até mesmo o setor privado da vida dos indivíduos, o operário alienado na fábrica onde trabalha para outro e onde toda ligação consciente com seu produto o faz ver de maneira mediata que o produto de seu trabalho não lhe pertence e que, de maneira imediata, ele trabalha não para produzi-lo mas para receber seu salário, é por isso, dizemos, que ele só se reencontra quando deixa a vida econômica, o trabalho, para voltar ao setor privado de sua vida cotidiana.

A isso se acrescenta o fato de que mesmo em sua atividade econômica, em seu trabalho, a relação reificada e antagonista com o patrão ao qual ele vende sua força de trabalho é em grande parte contrabalançada pela relação humana e não reificada que ele mantém com seus colegas.

Não há dúvida de que o pensamento reificado, que é uma realidade social, age através de mil canais diferentes também sobre o pensamento dos operários e essa influência é considerável. Trata-se, porém, de um fenômeno sociológico e não econômico, uma influência exterior e não uma reificação espontânea, pois o operário não poderia tirar nenhuma vantagem da “reificação”. Ele não tem uma fortuna a fazer frutificar, situação social privilegiada a defender; para ele os objetos não são “mercadorias”, pois ele os vê unicamente pelo prisma do consumidor, pelo qual eles mantêm toda sua riqueza e sua verdade concretas; os homens não perdem, para ele, suas qualidades vivas na abstração geral de “compradores”, pois ele nada tem a vender-lhes e, o que é mais importante, ele pertence à única categoria social na qual os homens, mesmo para defender seus interesses mais imediatos, devem unir-se em vez de opor-se uns aos outros. A solidariedade tem, para a vida social e para o pensamento dos operários, importância tão grande quanto o egoísmo e a concorrência para os burgueses e para as camas médias.

Do mesmo modo, os interesses do operário não são reificados, ou, em todo caso, o são muito menos. Ele não tem capital do qual seja necessário zelar pelo rendimento, loja ou empresa a administrar; para ele se trata sempre e imediatamente de realidades puramente humanas pois, em seu nível de vida, as reduções de tempo de trabalho ou os aumentos salariais afetam de imediato não só seu “poder” virtual como também toda sua existência cotidiana e concreta.

São coisas inteiramente diferentes se um lucro suplementar aumenta a conta bancária de um industrial ou um comerciante e figura em sua contabilidade, ou se um aumento de salário permite a um operário comer melhor, comprar uma lambreta, fazer uma viagem há muito desejada ou ensinar um ofício a seu filho. Por outro lado, mesmo a relação do operário com o setor econômico e reificado de sua vida é muito diferente da que existe entre os burgueses e camadas médias. Isso porque, exercendo sua profissão, o artesão, o negociante, o comerciante, o industrial ou o banqueiro defendem todos qualquer coisa que lhes pertence e implicitamente se identificam cada vez mais com essa atividade e com essa coisa. O operário, pelo contrário, durante todo o tempo em que exerce sua atividade econômica trabalha “para outro”, para seu patrão, ao qual não o liga nenhuma relação de solidariedade concreta. Durante o tempo de trabalho, o operário não mais se pertence; não é mais ele mesmo, transformado não só em objeto, mas em objeto pertencente a outro, ele é, ao mesmo tempo, “reificado” e “alienado”.

Por isso Marx escreveu que, na sociedade capitalista, há uma esfera que é a da “perda completa da característica humana, que ela só pode recuperar através de uma restauração completa do homem. Essa decomposição da sociedade representada por uma categoria social particular é o proletariado”. “Se o proletariado anuncia a dissolução da ordem atual do mundo, nada mais faz do que exprimir o segredo de sua própria existência; pois ele constitui a dissolução efetiva dessa ordem do mundo”1.

Assim é que por sua posição social, ainda que muito menos culto e dispondo de muito menos conhecimentos do que os intelectuais burgueses, o proletariado, na sociedade capitalista clássica, é o único que pode, numa situação de conjunto, rejeitar a reificação e devolver a todos os problemas espirituais sua verdadeira característica humana: e foi dentro da classe operária, numa época em que sua situação econômica era particularmente má, que nasceu a forma mais elevada do humanismo moderno: o materialismo dialético.

Isso não quer dizer, evidentemente, que alguns indivíduos ou mesmo grupos de indivíduos não pertencentes a essa classe não poderiam compreender o pensamento dialético. Pelo contrário, no mundo capitalista, onde os conhecimentos são monopólio de uma camada limitada, os próprios teóricos do materialismo dialético foram — à época do capitalismo liberal — intelectuais de origem burguesa; mas eles encontraram o ponto de vista da classe operária e aí se integraram e tiveram público, um público talvez carente da cultura necessária para segui-los em todos os detalhes do pensamento, mas dotado de uma qualidade extremamente importante, a atitude geral, a situação social e psíquica que lhe permite compreender esse pensamento e personificá-lo na realidade prática2. Pois “como a filosofia encontra no proletariado suas armas materiais, o proletariado encontra na filosofia suas armas espirituais”3 e, se “a filosofia não se pode realizar sem suprimir o proletariado, o proletariado não se pode suprimir (aufheben) sem realizar a filosofia”4.

Compreende-se, depois de todas essas considerações, por que, enquanto fica na superfície e se contenta em registrar o aspecto imediato das coisas, mesmo o pensamento dos intelectuais mais sinceros na sociedade burguesa tende ou para o subjetivismo idealista, ou para o objetivismo mecânico.

A reificação rompe a unidade entre sujeito e objeto, produtor e produto, espírito e matéria e o pensador apenas constata essa ruptura, tomando-a por um fenômeno fundamental e natural da vida humana. Por isso é que é necessário um grande esforço para resistir a todas essas tentações e conseguir não só ir além das aparências e compreender o pensamento dos grandes dialéticos do passado, mas ainda aplicar esse pensamento aos problemas novos como um guia vivo e seguro diante dos acontecimentos sempre inesperados que constituem a vida histórica.”

1 Introdução à Crítica da Filosofia Hegeliana do Direito.

2 Falamos aqui, consciente e voluntariamente, no passado, pois, desde a era stalinista, as relações entre os intelectuais socialistas e o movimento operário se tornaram extremamente complexas e problemáticas. Quer o deploremos, quer o louvemos, este é um ato que nos parece incontestável e do qual se deveria fazer um estudo sociológico profundo.

O fenômeno comum e natural até 1925-1928 do pensador importante que desempenha um papel de primeiro plano no movimento operário (Marx, Engels, Lassalle, Bakounin, Kautsky, Bernstein, Plekhanov, Jaurés, Lênin, Rosa de Luxemburgo, Trotski, Boukarin, Gramsci, etc.) desapareceu totalmente para dar lugar ao fenômeno contrário, do teórico socialista isolado do movimento operário, ou que, se ele é membro de um partido, desempenha aí um papel secundário e periférico.

O caso típico é Georg Lukács, que desempenhou um papel político de primeiro plano no movimento húngaro de 1917 a 1925, para tornar-se em seguida, até 1956, um pensador isolado cujo raio de ação se limitava ao mundo intelectual e que não tinha mais nenhuma ação política no estrito sentido do termo.

3 Crítica da Filosofia Hegeliana do Direito.

4 L. c.

 

 

“Acabamos de dizer que numa sociedade capitalista anárquica o proletariado e os teóricos que julgam o mundo de seu ponto de vista — o ponto de vista humano contra o mecanicista — estão virtualmente mais do que os outros, e talvez com exclusividade, em condições de rejeitar a reificação, devolver a todos os problemas filosóficos, religiosos, morais etc., seu caráter humano e continuar assim o esforço dos grandes pensadores clássicos, a herança espiritual que a burguesia deixou cair de suas mãos.

Ora, isso significa apenas que no mundo capitalista os assalariados poderiam ter um nível espiritual mais elevado do que a burguesia e as classes médias, mas não que o tenham realmente. É o problema da consciência de classe e de seu papel na história, magistralmente apresentado por Georg Lukács.

Mesmo numa sociedade capitalista próxima da sociedade esquemática analisada por Marx (à qual se acrescentaria apenas a existência das camadas médias), é necessário lembrar que se, por sua situação econômica e social, a classe operária é virtualmente um protesto vivo contra a mentira e a reificação da sociedade capitalista, nem por isso ela deixa de ser também um elemento constitutivo dessa sociedade. Não há compartimentos estanques separando os operários das demais classes sociais, sobretudo entre os operários e a pequena burguesia; ao contrário, a simbiose, as relações cotidianas, o intercâmbio de pensamento são permanentes e acarretam, por eles próprios, uma distorção da “consciência máxima de classe” ou da “consciência possível do proletariado”.

Deve-se acrescentar a isso toda a pressão das classes dirigentes, com os enormes meios de influência ideológica de que dispõem e que empregam, para impedir o desenvolvimento da consciência da classe operária.

É por isso que, na medida em que o objeto real do pensamento e da ação, o mundo tal como ele é, constitui um dos fatores determinantes de todo pensamento e de toda consciência, deveria haver, mesmo em semelhante sociedade, uma forte tendência de a reificação apoderar-se também do espírito dos operários, como o faz com o dos membros das demais classes sociais .

Junta-se a isso, nos casos históricos concretos dos países capitalistas desenvolvidos de hoje, o fato de que essa penetração foi consideravelmente favorecida pelas profundas modificações que acarretaram na consciência operária:

a) o aumento quase contínuo do padrão de vida adquirido a partir do fim do século XIX, graças à luta sindical, mas tornado possível em primeiro lugar pela existência do imperialismo e da penetração colonial, e em decorrência das modificações de estrutura do capitalismo contemporâneo (principalmente a intervenção estatal e o armamento maciço),

e

b) o desenvolvimento e a influência do stalinismo devidos à existência e ao prestígio de um estado de caráter proletário.

De modo que são as condições concretas, econômicas, sociais e políticas de um país e de uma época, e também os fatores internacionais, que decidem qual dessas duas forças antagônicas — a solidariedade espontânea e a consciência de classe “possível”, ou a reificação que penetra sobretudo através da influência ideológica das outras classes sociais — agirá mais fortemente e predominará na consciência real da classe operária. E somente análises concretas, focalizando tanto o passado e o presente como as tendências do futuro, poderão explicar o grau concreto de desenvolvimento da consciência operária num determinado instante e num determinado lugar.

É também por isso que toda sociologia séria que pretende compreender a sociedade atual deve trabalhar com duas categorias fundamentais:

a) A consciência possível. O máximo de realidade que poderia conhecer uma classe social sem chocar-se contra os interesses econômicos e sociais ligados à sua existência como classe;

b) A consciência real. O que ela conhece, de fato, dessa realidade durante certo período num determinado país. Sem essa distinção, que corresponde à oposição entre “a classe para si” e “a classe em si” em terminologia hegeliana e marxista, a sociologia corre o risco de ficar na superfície e compreender muito pouco a realidade social concreta e viva.

Finalmente, todas essas considerações explicam também por que as duas concepções filosóficas unilaterais que são o subjetivismo e o objetivismo se encontram sempre em suas consequências práticas, não só entre os pensadores burgueses, mas também entre os teóricos e os militantes do proletariado, onde elas se exprimem sobretudo através de dois grandes grupos de correntes políticas:

a) o blanquismo, o anarquismo e o trotskismo que são a forma operária do subjetivismo idealista da superestimação do homem e da subestimação das condições objetivas;

b) o stalinismo, o reformismo, o economicismo e os teóricos da espontaneidade que são a expressão operária do materialismo objetivista da superestimação das condições objetivas e da subestimação do homem.

E poder-se-ia acrescentar que são os intelectuais e certas camadas operárias radicalizadas que favorecem o primeiro grupo, enquanto as burocracias dos grandes organismos operários, partidos, sindicatos, organismos de Estado na URSS, ou a participação operária nos Estados capitalistas que, ao contrário, favorecem o segundo.

Por isso, na vida e na obra de todos os grandes teóricos e chefes políticos do proletariado, desde Marx até Lênin e o jovem Lukács, encontramos essa luta em duas frentes: contra as ilusões de esquerda e os oportunismos de direita, luta pela qual eles se esforçam para estabelecer, cada vez, novamente o pensamento dialético, condição necessária e indispensável para uma transformação do mundo e para a realização dessa verdade e grande fraternidade humana que será um dia, se se realizar, o socialismo.”

 

 

“As análises de Marx, de Lukács e, implicitamente, mesmo não se referindo à reificação, as dos demais pensadores marxistas, supunham que nas sociedades socialistas o desaparecimento da reificação devia acarretar um retorno ao concreto e ao significativo que permitiria — uma vez desaparecida a exploração de classe — a construção de um mundo humano cristalino. Supunham, com efeito, que a nova sociedade conservaria de um lado as aquisições humanamente positivas da sociedade reificada — a universalidade dos valores e o respeito às liberdades individuais — e substituiria, por outro lado, os setores institucionais e burocratizados da vida social por uma comunidade humana mais autêntica, estendendo-se a todos os domínios da vida e abarcando realmente todos os indivíduos.

Além disso, se é verdade que nem Marx nem nenhum outro pensador marxista consideraram, que saibamos, a perspectiva que se está realizando de uma diminuição da reificação dentro de uma sociedade que continua a basear-se na exploração de classe e que mantém, ao menos em grande parte, a propriedade privada dos meios de produção, tem-se que, prolongando simplesmente em letra e espírito as análises marxistas da reificação, chegar à conclusão de que semelhante evolução devia implicar no perigo de um retorno a uma barbárie medieval reforçada pelos meios da técnica moderna; pois, uma vez enfraquecidas ou desaparecidas as garantias à liberdade individual numa sociedade que conservasse a exploração capitalista da classe operária e na qual o enorme desenvolvimento industrial moderno criasse necessariamente um imenso e poderoso aparelho burocrático, os riscos de uma evolução que mantivesse os elementos negativos da reificação levando-os às últimas consequências e, ao contrário, eliminasse seus elementos positivos se tornariam extremamente grandes.

A experiência dos últimos anos — e dentro dela em primeiríssimo lugar a experiência hitlerista que representou nesse plano uma mutação qualitativa — prova que a análise de Marx era justa.1 Levado ao extremo, o dualismo da reificação capitalista clássica tornou-se — no hitlerismo — o do chefe de campo de concentração ou do torturador que em casa é incapaz de matar uma mosca, gosta da música de Bach e é o melhor dos chefes de família. A assimilação dos homens a unidades intercambiáveis que são tratadas como objetos estendeu-se da fábrica ao campo de concentração, a mentira cotidiana tornou-se instituição oficial no ministério da propaganda.

Pois bem, em 1917 na Rússia, e em seguida nas Democracias Populares, nasceu uma sociedade que se diz proletária, que nacionalizou os meios de produção, realizando assim, no plano econômico, o que todos os teóricos socialistas sempre consideraram como a primeira condição indispensável a uma sociedade verdadeiramente humana.

Ora, a experiência dos últimos vinte e cinco anos mostrou que a supressão da reificação e a nacionalização dos meios de produção não são suficientes, elas apenas, para atingir esse objetivo.

A universalidade dos valores e sobretudo o respeito à liberdade individual não se conservam, numa sociedade socialista, de modo mais automático do que numa sociedade capitalista.

Associada à esterilização das estruturas sociais intermediárias e ao desenvolvimento de uma racionalidade e de uma burocracia inevitáveis em toda sociedade industrial moderna, a supressão da reificação acarreta em toda parte perigos análogos.

Não há dúvida de que nenhum pensador sério poderia, nem por um instante, identificar o hitlerismo ao stalinismo, fenômeno cujo conteúdo — apesar de certas aparências comuns — é rigorosamente diferente e mesmo oposto.

Não há dúvida de que qualquer pensador socialista sincero sente uma real admiração pela rapidez do desenvolvimento das forças produtivas na URSS e no mundo socialista.

Não há dúvida de que o fenômeno do stalinismo tem causas históricas concretas, que precisam ser analisadas de modo preciso, e não constitui um aspecto necessário de toda organização socialista, nem uma etapa necessária desta.

(É preciso, no entanto, não esquecer que o fascismo também não se identifica com o capitalismo moderno, do qual ele constitui apenas uma das formas possíveis e sempre ameaçadoras.)

Deve-se também dizer que desde os campos de internamento até à execução dos adversários e ao conformismo generalizado do pensamento, a maioria das sociedades socialistas contemporâneas apresenta inúmeras características altamente inquietantes que nenhum socialista poderia ignorar e que a existência de uma indústria moderna nacionalizada que fortalece consideravelmente a potência do Estado, numa sociedade onde se acaba exatamente de realizar as condições de um primado do fator político, faz surgir toda uma série de graves problemas sociais. Em particular o das garantias da dignidade dos indivíduos frente ao poder do aparelho burocrático, que nem Marx nem nenhum dos grandes teóricos marxistas posteriores havia previsto, problemas cujo estudo e resolução constituem a tarefa mais importante dos pensadores socialistas de nossa geração e que não poderíamos nem mesmo abordar nessa conferência; problemas, porém, para cujo estudo é evidente que o aparelho conceitual do pensamento marxista tradicional está longe de ser suficiente e que poderiam e deveriam, por isso mesmo, ser o principal ponto de partida para um progresso e uma renovação do pensamento dialético.”

1 Antes de 1933 poucas pessoas teriam admitido a possibilidade de tal retorno à barbárie nas sociedades evoluídas contemporâneas que, na verdade, implicavam no imperialismo e, com ele, na iniquidade e na barbárie cotidianas nas colônias. Hoje sabemos que tais fenômenos constituem um perigo permanente das sociedades industriais modernas, enquanto que nessas mesmas sociedades entre 1880 e 1914 eles eram estruturalmente impossíveis.

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