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quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Textos clássicos da filosofia antiga: uma introdução a Platão e Aristóteles (Parte II) – Renata Tavares e Samon Noyama

Editora: InterSaberes
ISBN: 978-85-5972-585-8
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 270 

Platão defende que qualquer realização no contexto ético (ethos, para os gregos, significava “hábito” e considerava a relação intrínseca de copertença entre o sujeito e a pólis) precisa ser pautada por um conhecimento fundamentado, objetivo e necessariamente válido.
O critério de necessidade que caracteriza um princípio racional nunca havia sido pensado como parâmetro absoluto para as ações. Pensá-lo não deixa de ser ousado, mas também controverso.”


“Filosofar é aprender a morrer.” (Sócrates)


“(O diálogo platônico Fédon) faz parte de todo um contexto em que a relação com a palavra é diferente da nossa, que, muito marcados já pela perspectiva moderna do conhecimento, estamos acostumados a ver na palavra escrita mais verdade do que na falada, O leitor pode verificar que, em diversas obras, Platão desconfia da palavra escrita, chegando a registrar no Fedro que a palavra é um phármakon: tanto pode ser um remédio quanto um veneno. Você pode perceber aí mais uma vez o efetivo teor de diálogo do texto de Platão, em que a filosofia é viva e se constrói no pensamento ativo dos participantes, perspectiva que coaduna com a ideia mesma de filosofia daquele que foi o inventor da razão ocidental.”
“Para Platão, as virtudes não podem ser bem exercidas senão com base em uma perspectiva racional; por isso, a sabedoria é uma virtude imprescindível. E por ser o filósofo detentor da virtude mais verdadeira, ele deve ter a certeza de que ao morrer se unirá aos bem-aventurados.”


“Sócrates, de forma bastante amável, os tranquiliza, mas não sem antes fazer uma advertência:
Para não ficarmos misólogos, disse, como outros ficam misantropos. O que de pior pode acontecer a qualquer pessoa é ficar inimigo da palavra. A misologia e a misantropia têm a mesma origem. O ódio aos homens nasce do excesso de confiança sem razão de ser, quando consideramos alguém fiel, sincero e verdadeiro, e logo depois descobrimos que se trata de pessoa corrupta e desleal, e depois outra mais nas mesmas condições. (Platão, Fédon, 2011a, passo 89-d)
Um pouco adiante, explica a semelhança afirmada: “A semelhança consiste no seguinte: quando se admite a exatidão de um argumento, sem ser-se versado na arte da dialética, pode acontecer que logo depois ele nos pareça falso, às vezes com fundamento, outras vezes sem nenhum, e depois mais outro e mais outro da mesma natureza” (Platão, 2011a, passo 90-b).
Sócrates procura, com isso, assegurar a confiança no modo de proceder da filosofia, o que, em última instância, delimita aquilo que é válido ou não, como dúvida ou como afirmação. E em seguida pede que “concedam pouca atenção a Sócrates e muita à verdade” (Platão, 2011a, passo 91-c).”


“De toda maneira, a racionalidade inaugurada por Platão é fruto dessa constatação de uma espécie de conhecimento que ultrapassa a empiria. E ainda que se corrija todo o excesso que o filósofo comete ao tornar as ideias entes subsistentes por si próprios, apenas invisíveis, ainda assim permanece correta a constatação de que há certezas fundamentadas que não se alcançam por uma soma de dados oriundos dos sentidos.
Podemos desconfiar de que a resposta platônica é, em certa medida, ingênua, pois considera um mundo invisível onde estão entidades sem corpo, os quais são denominadas ideias. Contudo, essa resposta tinha sua razão de ser. Conhecemos as ideias e as esquecemos mesmo antes de nascer, dessa forma, todo o conhecimento racional, em vida, é uma reminiscência. De que outra forma, senão por meio de uma imagem como essa, poderia Platão falar da certeza inerente ao conhecimento racional? A noção de inatismo nasce, portanto, como maneira de sustentar a possibilidade de um conhecimento que pretende ultrapassar o domínio da experiência subjetiva e sensorial.
Sobre esse conceito, é claro, ergueu-se um edifício contestável. As apropriações medievais da teoria platônica tendem a uma interpretação distante do problema do conhecimento, que lança a noção de alma imortal em um paradigma exclusivamente religioso, que não foi o que Platão pensou, ou melhor, não foi o problema central que levou Platão a escrever o que escreveu.
A filosofia levaria quase dois milênios para questionar essa maneira de pensar. Apenas nos primórdios da modernidade, ao lado das profundas transformações do Renascimento, é que se colocou em xeque a noção de conhecimento inato. Os empiristas modernos são responsáveis por esse questionamento, defendendo que não há, absolutamente, relações de pensamento com caráter de necessidade, nem nada mais que justifique a ideia de um conhecimento para além da experiência. E Kant dá a ela uma nova perspectiva quando propõe que esse “além da experiência” significa tão somente o que chama deformas puras de nossa racionalidade, isto é, relações inerentes à nossa própria capacidade cognitiva.”


“É muito importante que você não se esqueça, portanto, de duas ideias que consideramos essenciais para seguir o pensamento de Aristóteles, sobretudo para evitar alguns equívocos interpretativos e para tornar a leitura mais segura, interligando as questões que surgem a qualquer momento nos estudos com os princípios fundamentais de seu pensamento.
A primeira é a ideia de que todo homem é político por natureza, e isso quer dizer que é natural ao humano buscar a organização social e a vida em comunidade, não uma mera convenção ou uma circunstância acidental. É por isso, pois, que o homem é um zoon politikós. A segunda é que o Estado ou a pólis, como tudo o que existe na terra, é suscetível à corrupção e ao perecimento. Toda grande ideia e toda grande virtude, portanto, podem ter suas versões corrompidas.”


“(Para Aristóteles) O objetivo da vida política, sob a qual apenas a espécie humana está organizada, é dedicar todos os esforços para que os cidadãos sejam capazes de ações nobres cujo benefício extrapola suas vidas individuais.”


“A virtude, nesses casos, aproxima-se do meio-termo. São os vícios, seja pelo excesso ou pela escassez, que nos direcionam para uma reação desmedida. Por isso, Aristóteles (Ética a Nicômaco; Poética, 1991, p. 33) afirma: “senti-los na ocasião apropriada, com referência a objetos apropriados, pelo motivo e da maneira conveniente, nisso consistem o meio-termo e a excelência característicos da virtude”.
Dado que é muito mais fácil errar do que acertar, “pois os homens são bons de um modo só, e maus de muitos modos” (Aristóteles, 1991, p. 33), o filósofo formula a ideia de que a virtude é uma disposição de caráter que se relaciona com as escolhas que os homens fazem. Cada escolha e decisão, por sua vez, deve visar a mediania, tendo o próprio homem como referência, isto é, deve ser determinada por um princípio racional e apresentar-se como uma sabedoria prática. Observe na seguinte passagem como o filósofo argumenta:
Está, pois, suficientemente esclarecido que a virtude moral é um meio-termo, e em que sentido devemos entender esta expressão; e que é um meio-termo entre dois vícios, um dos quais envolve o excesso e o outro deficiência, e isso porque a sua natureza é visar à mediania nas paixões e nos atos. (Aristóteles,1991, p, 37). (...)

Quadro 5.3 – Virtudes morais
Sentimento ou paixão
Gatilho
Vício por excesso
Vício por escassez
Virtude ou justa
medida
Prazer
Tocar, ter, ingerir
Libertinagem
Insensibilidade
Temperança
Medo
Perigo, dor
Covardia
Temeridade
Coragem
Confiança
Perigo, dor
Temeridade
Covardia
Coragem
Riqueza
Dinheiro, bens
Prodigalidade
Avareza
Liberalidade
Fama
Opinião Alheia
Vaidade
Humildade
Magnificência
Honra
Opinião alheia
Vulgaridade
Vileza
Respeito próprio
Cólera
Relação com os outros
Irascibilidade
Indiferença
Gentileza
Convívio
Relação com os outros
Zombaria
Grosseria
Agudeza de
espírito
Concessão de prazer
Relação com os próximos
Condescendên-
cia
Tédio
Amizade
Vergonha
Relação de si com os outros
Sem-vergonhice
Timidez
Modéstia
Boa sorte
Relação dos outros consigo
Inveja
Malevolência
Justa apreciação
Má sorte
Relação dos outros consigo
Malevolência
Inveja
Justa indignação
Fonte: Elaborado com base em Aristóteles, 1991.

Visto que a virtude moral é uma disposição de caráter ligada a uma escolha (desejo deliberado), esta só pode ser acertada quando é verdadeira e reto é o desejo. A escolha deve, portanto, buscar o que afirma a razão, pelo menos quando se trata de uma razão prática. Quando se trata apenas do intelecto, sem produção ou ação, a verdade é o bastante. A escolha é um raciocínio desejante ou um desejo racional.


“(Para Aristóteles) amigo é aquele que deseja e faz o bem para seus amigos, o que mostra, portanto, que tem interesse em viver na companhia do outro, além de compartilhar os mesmos valores, gostos, tristezas e alegrias.
Dito isso, não podemos supor que amizade e benevolência sejam a mesma coisa, pois enquanto a primeira implica em conhecimento e intimidade, a segunda pode surgir a qualquer momento. Ambas implicam em uma cooperação, mas apenas a amizade exige intensidade e desejo. E mesmo que alguém possa apontar a benevolência como um impulso para a amizade, devemos lembrar que agir com benevolência não é nada além de um sinal de justiça, e, por isso, não representa qualquer estima por determinada pessoa.
É mais nobre o homem que faz algo do que aquele que é passivo diante de uma obra realizada. Para o primeiro, ela é duradoura; para o segundo, passageira. A lembrança das coisas nobres é mais agradável do que das coisas úteis. Como o amor é uma espécie de atividade, todos os homens têm maior amor ao que ganharam como fruto de seu trabalho. Nesse ponto, você poderia questionar: Se a verdadeira amizade se assemelha a uma espécie de amor próprio, é recomendável amar mais a si mesmo do que ao outro?
Para amar o melhor amigo, é fundamental que esse amor seja igual ao amor que temos por nós mesmos. Porém, o ególatra, aquele que ama a si mesmo mais que aos demais, costuma agir apenas em causa própria. Como sair desse paradoxo? A saída encontrada por Aristóteles é criticar a autofilia e louvar o homem que toma como amor de si o amor pela razão, e pela moderação: amigo da razão ou filósofo. É por isso que ele diz que só é possível ser feliz tendo amigos virtuosos. Afinal, ao desejar o bem a nossos amigos, o fazemos em relação a nós mesmos. Isso engendra uma igualdade entre os amigos virtuosos, legitimando a colaboração mútua como exigência para a felicidade. Em outras palavras, só é possível ser feliz entre amigos verdadeiros e virtuosos.”


“Considerando que em alguns momentos afirmamos que a felicidade é o bem supremo, almejado pelos homens, nessa concepção ética de Aristóteles, nada mais adequado do que imaginar que o filósofo deseja entregar uma definição de felicidade para quem acompanhou a leitura de sua obra.
Em primeiro lugar, para o filósofo, a felicidade não deve ser pensada como uma disposição, porque assim poderia pertencer a quem não se move ou nada faz. Além disso, sabemos que nada completa a felicidade porque nela não há falta ou escassez, visto que é autossuficiente. Não seria de bom tom confundi-la com a recreação ou o entretenimento: a diversão não pode ser o fim último de todo o sofrimento e o conjunto das ações dos homens, porque para isso elas não precisariam ser necessariamente virtuosas.
Sem dúvida, o que podemos dizer é que a felicidade reside nas atividades virtuosas. A natureza da felicidade é contemplativa e, por isso, seria mais correto dizer que ela é conforme a virtude do que afirma que seja ela mesma uma atividade virtuosa. Como as atividades contemplativas são, em geral, autossuficientes, a felicidade também guarda essa característica e, como tal, não depende de outras atividades para efetivar-se. Nas palavras do próprio filósofo, “essa atividade parece ser a única que é amada por si mesma, pois dela nada decorre além da própria contemplação, ao passo que das atividades práticas sempre tiramos maior ou menor proveito” (Aristóteles, 1991, p. 188).”


“Aristóteles abre a Metafísica com a frase: “todos os homens têm naturalmente o desejo de conhecer”, e isso por si já suscita uma série de reflexões. Assim como Platão faz em A República, Aristóteles faz da filosofia um tema central dessa obra. Esta é uma postura bastante específica da filosofia clássica grega, que é fazer do tema do conhecimento um tema filosófico pela primeira vez. Elas não buscavam apenas a sabedoria ou as respostas sobre o universo como fizeram os filósofos pré-socráticos, interessava a eles também saber o que é a sabedoria e entender como ela pode ser alcançada, além de diferenciar formas de saber; É importante notar que foi esse sustentáculo que permitiu à filosofia tornar-se o que é, ou seja, algo à parte de uma sabedoria religiosa ou cultural, uma proposta de método estabelecido e embasado na constatação das possibilidades do próprio raciocínio humano.”


“Dado todo esse contexto, Aristóteles afirma, então, que a filosofia é o estudo das primeiras causas e primeiros princípios. E adiciona: porque uma das causas é o bem, a razão final. Mais adiante, Aristóteles diferencia as causas, e isso nos chega como uma doutrina das mais bem estabelecidas na filosofia. Entretanto, nesse ponto, ele elenca apenas uma delas, que é o bem ou a causa final. Ele está se referindo ao télos, palavra que significa “concretude de uma realidade”, isto é, a realidade se realiza cumprindo tal sentido. Assim, o télos do martelo é martelar; o do homem é realizar-se racionalmente. Aristóteles pergunta então: Qual é a causa final da realidade como um todo? Disso se trata a palavra metafísica, que em Aristóteles não tinha esse nome, mas o de “filosofia primeira”.”

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