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quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Textos clássicos da filosofia antiga: uma introdução a Platão e Aristóteles (Parte I) – Renata Tavares e Samon Noyama

Editora: InterSaberes
ISBN: 978-85-5972-585-8
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 270 


“O filósofo britânico Alfred North Whitehead (1861-1947) cunhou uma das citações mais repetidas em salas de aula de filosofia do mundo inteiro, ao dizer: “a caracterização geral mais segura da tradição filosófica europeia é a de que ela consiste em uma série de notas de pé de página à filosofia de Platão” (Whitehead, Process and Reality, 1979, p. 39).


“A forma dialogal da escrita de Platão não é inocente ou mero recurso de convencimento. Ela está profundamente ligada ao que o autor entende como filosofia, isto é, um caminho dialético, em que os argumentos vão sendo depurados até que se chegue a um ponto em que não estamos nos movendo nem pelas tradições nem por valores subjetivos, e sim de forma exclusivamente racional.”


“Gilles Deleuze (1925-1995) e Felix Guattari (1930-1992), no livro O que é a filosofia? (1993), trabalham com a ideia de que a filosofia, ao longo de seus milhares de anos, criou inúmeros “personagens conceituais”, que põem em movimento os conceitos dentro do que chamam de “plano de imanência” do autor. São como forças motrizes que nos fazem pensar, e o guardião de Platão é uma das maiores potências de toda a história da filosofia.
O guardião é pensado como um soldado. A cidade cresce, fica cada vez mais complexa e é necessário protegê-la. Entretanto, não se trata de proteger apenas suas fronteiras, mas principalmente seu pensamento. Por isso, esse soldado será o modelo de um homem educado pela filosofia, que defende, sobretudo, os princípios éticos pautados na racionalidade.
Deste ponto em diante, Platão foca sua atenção em como deve ser educado esse guardião, referindo-nos, então, à paideia platônica, isto é, um modelo de formação para o ser humano que Platão considerava estar em acordo com a natureza racional que nos define.
Werner Jaeger (1888-1961), com sua famosa obra Paideia (2001), ficou conhecido por defender a tese de que Platão queria substituir Homero como educador da Grécia. E, de fato, A República é a defesa de que a poesia e a religião, principais fontes da cultura grega, não eram suficientes para formar o cidadão. Como você pode imaginar, essa era uma afirmação bastante forte, que a grande maioria da população rechaçaria ainda hoje, mas que, ao mesmo tempo, resume uma proposta de vida que é filosófica do início ao fim. Além disso, é uma afirmação que pode ser justificada pela constatação de que apenas o pensamento racional é um parâmetro adequado para a tomada de decisões em conjunto, superando-se as diferenças culturais, individuais, e tornando iguais todos os homens. Filosofia e justiça, nesse raciocínio, praticamente se equivalem.”


“Depois de empreender toda uma longa discussão a respeito da poesia como paideia, detalhando-se que tipos de poesia devem existir ou não na cidade, surge a contestação de Adimanto de que, daquela forma, os guardiões não seriam felizes. Sócrates argumenta – e o faz mais de uma vez ao longo do livro – que ele está buscando aquilo que faça feliz a toda a cidade, e não a cada indivíduo. Aqui podemos notar outra vez como Platão se atém à proposta de buscar princípios éticos que transcendam a subjetividade, ou seja, que ele trata a ética de forma exclusivamente filosófica. Em continuação, Sócrates declara fundada a cidade e diz que, agora sim, nela se podem ver as virtudes que a tornam justa. Toda essa imagem, portanto, foi construída com o objetivo de encontrar os princípios filosóficos da cidade justa, surgindo daí, no Livro IV, as virtudes cardeais que levarão à definição de justiça (dikaiosyne).
Platão utiliza uma ideia um pouco incomum para nós, hoje, mas que é primordial em seu pensamento: a “natureza” das coisas. O filósofo afirma que a natureza da alma é ser composta por três elementos, que se costumam traduzir por “apetitivo”, “emocional” e “racional”, da mesma forma que a cidade é composta por três classes às quais estas correspondem: os artífices, os militares, e os guardiões. A cada um desses elementos da alma cabe uma função, a saber: ao apetite, obedecer; às emoções, assistir; e à razão, governar. As mesmas funções corresponderiam às classes da cidade. A toda essa organização tripartida da alma e da cidade, Platão faz corresponder as virtudes.
Cada uma dessas virtudes guia uma das partes da alma: a sabedoria (sophía) é a virtude que domina a racionalidade, a coragem (andreía) guia as emoções, e a temperança (sóphrosyne) incide sobre os apetites, amansando-os.
Cada uma dessas virtudes corresponderia a certa classe de cidadãos. E da harmonia de todas essas virtudes se dá a definição de justiça, ou seja, a dikaiosýne buscada por Platão desde o início da obra consiste em um equilíbrio em que cada elemento cumpra bem sua função para que o todo funcione em harmonia. A injustiça, consequentemente, é a desarmonia entre os elementos.”


“O philosophós, amigo da sabedoria, é definido em contraposição ao philodóxos, amigo da opinião. E aqui se percebe que o cerne da justificativa platônica para sua proposta ética radica-se num novo pensamento sobre o conhecimento. Trata-se da teoria das ideias, que é apresentada em duas imagens: (1) a linha dividida e a (2) alegoria da caverna, nos livros VI e VII, respectivamente. Esse é, sem dúvida, o ponto central de A República. A cidade justa só é realizável se governada pela inspiração filosófica. E para que isso aconteça, é preciso determinar exatamente o que é filosofia.
Platão diz especificamente que a imagem que está construindo na alegoria da caverna refere-se à natureza humana conforme ela é ou não submetida à paidéia (Platão, A República, 1987, passo 514a), portanto, esses argumentos relativos à filosofia correspondem diretamente ao que Platão propõe como formação para o homem. Para ser justo, o homem precisa alcançar um conhecimento de certo tipo, não mais aquele valorizado pela tradição. Esse tipo de conhecimento preconiza a possibilidade de se compreender a realidade em apreensões unívocas, e isso é uma grande revolução para o pensamento e é, mais especificamente, o que denominamos metafísica.”


“Uma das características da metafísica inaugurada por Platão é justamente a possibilidade de um pensamento que é, ao mesmo tempo, racional e teleológico, e isso se torna de fato uma proposta ética de outro teor, ainda que se possa dizer, irrealizável.”


“Assim como Whitehead, citado no início deste texto, outros filósofos enxergam em Platão a raiz cultural do Ocidente. Para esses pensadores, os propósitos fundamentais platônicos, como a noção de que o homem é dotado de um pensamento racional, capaz de se livrar das obscuridades do mundo dos sentidos, a proposta de que a temperança (sophrosýne) poderia impor-se sobre todas as desmedidas (a hýbris grega) e a noção de que a alma é imortal, e tantos outros conceitos e valores são fundamentais em todas as culturas cujo berço é reconhecidamente grego, isto é, a Europa e o mundo por ela conquistado.
Nietzsche (1844-1900), por exemplo, critica esse fato:
Esse pensamento desrespeitoso, de que os grandes sábios são tipos da decadência, ocorreu-me primeiramente num caso em que o preconceito dos doutos e indoutos se opõe a ele de modo mais intenso: eu percebi Sócrates e Platão como sintomas de declínio, como instrumentos da dissolução grega, como antigregos. (Nietzsche, Crepúsculo dos ídolos, 2006, p. 17)
Também Heidegger aponta: “toda a filosofia ocidental é um platonismo. Metafísica, idealismo e platonismo significam essencialmente a mesma coisa” (Heidegger, Nietzsche, 2007, p. 221). E isso não é propriamente um elogio do filósofo.”


“A maneira como o homem compreende o mundo sensível é o que Platão denomina dóxa, ou opinião. Aqui, é preciso compreender que na medida em que as coisas se dão a nós por meio dos sentidos, não se pode superar a multiplicidade das sensações, não se pode unificar as sensações sob uma “percepção” (termo moderno que aqui usamos apenas para aproximar o entendimento). Nisso consiste a crítica de Platão à dóxa. É um tipo de conhecimento que não alcança a unidade. Para a sensação, cada objeto — por exemplo, uma caneta — é um objeto diferente, interpretado individualmente numa soma de sensações humanas. Racionalmente, porém, é possível pensar que tantas e tantas canetas correspondem a uma mesma ideia, a uma unidade que as define, embora cada uma delas diferenças tenha particularidades.
Dessa maneira, aquilo que Platão entende como objetos do mundo inteligível são as abstrações que ultrapassam essa individualidade, que atingem uma unidade inteligível. Esse tipo muito específico de conhecimento se chama epistéme. E só ele; em oposição à dóxa, pode ser o conhecimento verdadeiro. Essa unidade, como se pode perceber, é racional e Platão entende que ela “ultrapassa” o mundo sensível, propondo a noção de forma, ou ideia, à qual atribui um estatuto isto é, entende que elas “existam” de alguma maneira.
Quando Platão busca “a justiça em si” em detrimento das coisas justas, ou “a beleza em si”, está propondo que se busque a ideia da justiça ou da beleza. Só a epistéme pode alcançá-las; por isso, antes de tudo, é preciso entender a necessidade de uma mudança de mentalidade em relação ao que seja conhecimento, e é disso primordialmente que A República se ocupa.”


“Note que aqui entra também outro pressuposto característico da filosofia de Platão (assumida também por Aristóteles), que é o da diferença entre os tipos de ciência. Essas ciências em que não cabe uma justificativa ontológica ainda não são a forma última de se perguntar pelas coisas. Apenas a filosofia é a ciência que pergunta o que justifica a realidade, ou como compreendê-la em uma perspectiva de totalidade. (...)Trata-se de buscar as coisas em suas últimas justificações e de chegar a uma espécie de intuição intelectual — o termo, mais uma vez, é anacrônico e só pretende facilitar a compreensão. Trata-se mais exatamente de uma “visão” da verdade inteligível.”


“O philosophós, ou seja, aquele que ama o saber, ama-o de um modo completo e sabe que tipo muito específico de saber está buscando. A filosofia é a única maneira de percorrer essa linha ascendente do conhecimento, deixando para trás o “espetáculo do múltiplo” e a “opinião da maioria”. Esse é o objetivo da paidéia à qual o guardião — que nada mais é do que o filósofo — deve estar submetido. Ele aprenderá, por intermédio dela, a enxergar com os olhos da alma em detrimento dos do corpo, a relacionar-se com a realidade de uma forma nova, filosófica, que para Platão é a única capaz de levar a uma vida mais ética e a uma sociedade mais justa.”


É preciso compreender que Platão se movimenta em um cenário em que as questões são metafisicas, ontológicas. Ao conhecer a ideia, conhece-se para além da experiência individual e com um caráter absoluto, mas estamos sempre falando de algo que vai além do campo das palavras.
Toda a história da filosofia não passaria de notas de pé de página, como disse Vhitehead, justamente pelo fato de Platão haver sido o criador da metafísica, palavra que parece definir a totalidade do pensamento ocidental. Por isso o legado de Platão é incalculável.
A metafísica é, dentro de todo o amplo espectro de estudos da filosofia, uma das áreas mais férteis para confusões conceituais. Primeiro pela própria dificuldade de tradução da palavra, pois o prefixo grego metá significa “ao longo dê”, mas é entendido pela tradição filosófica ora com o sentido de “depois” ora por “para além de” ou “ao longo de”.
Se a palavra for traduzida com base no primeiro sentido, ela fala de um conhecimento que ultrapassa o domínio da experiência humana, e nisso se confunde com o sobrenatural e todas as afirmações da teologia. Se for tomada no segundo, porém, faz pensar num conhecimento que ultrapassa o domínio da phýsis, indo além dela para explicá-la em leis racionais e isso não está necessariamente ligado a uma ideia de transcendência divina propriamente dita. Portanto, a metafisica está inscrita em intensas e graves disputas de interpretação, e cada momento de sua história teve consequências de grande importância no pensamento e no desenvolvimento das sociedades ocidentais.
A mais óbvia delas foi a cristianização dos pensadores gregos, Platão e Aristóteles. No caso de Platão, isso se deu graças ao neoplatonismo de Plotino (204 d. C.-270 d.C.) e de Santo Agostinho (354 d.C.-430 d.C.) e no caso de Aristóteles via São Tomás de Aquino (1225-1274). Crenças como a de que o mundo das ideias existe na mente divina ou de que o primeiro motor aristotélico corresponde exatamente ao Deus cristão são, no mínimo, arbitrárias. Uma longa tradição repetiu essas ideias, que se perdiam em larga medida das buscas originais de seus autores helenos.
Caso você não se recorde, leia (ou releia) Meditações Metafísicas, de René Descartes (1596-1650), e atente para o argumento da cera proposto pelo filósofo na terceira meditação. Nele, Descartes nos faz acreditar que, ao nos isentarmos dos sentidos, podemos captar de uma forma totalmente pura, pela razão, a ideia da cera. E mais adiante, ele nos convence de que isso só é assim porque Deus existe e nos dotou com a capacidade de “ver” racionalmente. Com isso, podemos perceber que não apenas o cristianismo propriamente dito emprestou as ideias de Platão incluindo-as em seu sistema, mas o próprio modo de pensar dentro da filosofia se ateve a raízes platônicas já transformadas pela tradição cristã.
Acreditamos que um dos pontos mais importantes do ensinar filosofia é conduzir qualquer pessoa à consciência de que o pensamento tem uma história e de que somos constituídos por ela. Esse ponto é primordial, seja o leitor aluno de filosofia, seja apenas interessado no assunto, é preciso compreender bem os gregos, e isso significa, em grande medida, compreendê-los para além da sua interpretação canônica, instituída pelo cristianismo medieval. Metafísica, ou ontologia, para os pensadores gregos, significou algo muito distante do que disseram os intérpretes cristãos, ou seja, tratava-se de uma busca muito concreta do conhecimento da realidade, em uma perspectiva geral.
Como diz Kant (Crítica da Razão Pura, 1996, p. 37):
Ao primeiro a demonstrar o triângulo equilátero (tenha se chamado Tales ou como se queira) acendeu-se uma luz, pois achou que não tinha de rastear o que via na figura ou o simples conceito da mesma e como que aprender disso as suas propriedades, mas que tinha de produzir (por construção) o que segundo conceitos ele mesmo introduziu pensando e se apresentando a priori.
O que Kant aponta nessa passagem é que no pensamento grego pela primeira vez se seguiu o caminho de uma demonstração baseada apenas nas regras do pensamento humano, sem recurso à fantasia ou ao sobrenatural, e sem reduzir-se à experiência como ela se dá em cada caso individual. Regras lógicas, de acordo com as quais o pensamento atinge caráter de necessário, sem juiz exterior, dão a esse pensamento validade para além da experiência individual, e à razão, o lugar de sede do julgamento sobre a realidade, por direito, sem necessidade de outros parâmetros.
A forma como Platão entende a ontologia provocou uma grande mudança no pensamento grego, pois instituiu a atitude de quem se vê capaz de alcançar racionalmente verdades gerais, ou universais.
Talvez devêssemos fazer jus ao que Kant (1996, p. 241) disse sobre Platão, que ele “bem enxergou a necessidade da capacidade cognitiva humana”, que, não se contentando em “soletrar fenômenos segundo uma unidade sintética para poder lê-los como experiência”, sente que precisa ir até o fim em suas conjecturas, ainda que isso atinja objetos que não se dão à experiência sensorial. A motivação para a verdade, que Kant também atribui ao homem, parece ter feito sentido para os gregos, por decorrer da própria ideia de razão, ou seja, em termos kantianos, do homem como um ente capaz de espontaneidade e não simples receptividade, um ente que ativamente conhece a realidade e o faz baseando-se nos parâmetros de sua própria capacidade.
Examinando as possibilidades do pensamento, Platão percebe que há diferentes níveis de relacionamento do homem com o real: o que considera apenas as aparências (em termos mais atuais: a multiplicidade fenomenológica como se a ela não subsistisse uma lei ou organização primordial) e o que se preocupa fundamentalmente com o verdadeiro, com aquilo que define e impera em cada objeto. Essa essência tem o sentido de algo que se pode conhecer para além da experiência, pois, de fato, alguns conhecimentos são possíveis pela via racional, independentemente da experiência e sobre eles sempre se pautou a filosofia.
E com isso estamos falando da elaboração mais original da metafísica, fonte de todos os mal-entendidos entre Platão e a tradição platônica. Como assinala Kant, Platão apesar de ter percebido o importante valor do conhecimento necessário e independente da experiência, deduziu as ideias de maneira mística, ignorando as condições do sensível e atribuindo realidade ontológica a tais formas. Nesse ponto se baseia a ideia de metafisica como o conhecimento de um fundamento suprassensível da realidade, um sobrenatural que dá estrutura e verdade a todo o real.
Quando Heidegger funde as ideias de metafísica, platonismo e idealismo, ele o faz justamente de maneira a criticar que somos fruto de uma tradição de pensamento que desconhece suas origens. A filosofia ocidental, com determinada forma de compreender a verdade, teria procedido a cisões que Platão, a rigor, não fez. Basta que o leitor volte à obra A República para perceber que as ideias funcionam como um paradigma para o conhecimento das coisas reais, e o peso dado à cisão entre os dois mundos é mais cristão que platônico.”

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