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quarta-feira, 18 de setembro de 2019

O que é Ideologia (Parte I) — Marilena Chauí

Editora: Brasiliense
ISBN: 978-85-2950-042-3
Opinião★★★★☆
Páginas: 120



 “Frequentemente, ouvimos expressões do tipo “partido político ideológico”, é preciso ter uma “ideologia”, “falsidade ideológica”.
Essas expressões tomam a palavra ideologia para com ela significar “conjunto sistemático e encadeado de ideias”. Ou seja, confundem ideologia com ideário.
Nossa tarefa, aqui, será desfazer a suposição de que a ideologia é um ideário qualquer ou qualquer conjunto encadeado de ideias e, ao contrário, mostrar que a ideologia é um ideário histórico, social e político que oculta a realidade, e que esse ocultamento é uma forma de assegurar e manter a exploração econômica, a desigualdade social e a dominação política.”


“Uma das preocupações principais do pensamento ocidental nasce com a filosofia, na Grécia antiga: por que as coisas permanecem e por que as coisas mudam e desaparecem? Em outras palavras, quais as causas do aparecimento, da permanência, da mudança e do desaparecimento das coisas? Ou, como diziam os gregos, por que as coisas se movem? Por movimento, os gregos entendiam:
1) toda mudança qualitativa de um corpo qualquer (por exemplo, uma semente que se torna árvore, um objeto branco que amarelece, um animal que adoece etc.);
2) toda mudança quantitativa de um corpo qualquer (por exemplo, um corpo que aumenta de volume ou diminui, um corpo que se divide em outros menores etc.);
3) toda mudança de lugar ou locomoção de um corpo qualquer (por exemplo, a trajetória de uma flecha, o deslocamento de um barco, a queda de uma pedra, o levitar de uma pluma etc.);
4) toda geração e corrupção dos corpos, isto é, o nascimento e o perecimento das coisas e dos homens.
Movimento, portanto, significa para um grego toda e qualquer alteração de uma realidade, seja ela qual for.
O filósofo Aristóteles afirmou que só há conhecimento da realidade (portanto, da permanência e do movimento dos seres) quando há conhecimento da causa — “conhecer é conhecer pela causa”. Para tornar possível o conhecimento, elaborou então uma teoria da causalidade que ficou conhecida como teoria das quatro causas.
Uma causa é o que responde ou se responsabiliza por algum aspecto da realidade, e as quatro causas são responsáveis por todos os aspectos de um ser. Haveria, assim, a causa material (responsável pela matéria de alguma coisa), a causa formal (responsável pela essência ou natureza da coisa), a causa motriz ou eficiente (responsável pela presença de uma forma em uma matéria) e a causa final (responsável pelo motivo e pelo sentido da existência da coisa).
Tomemos uma coisa qualquer, por exemplo, uma mesa de madeira. Diremos que a causa material da mesa é a madeira; a causa formal é o que faz esse pedaço de madeira ser uma mesa (ter as propriedades e características de uma mesa, e não de outra coisa); a causa motriz ou eficiente é o artesão, que coloca na madeira a forma da mesa; a causa final é o uso da mesa, o motivo ou a razão pela qual ela foi fabricada.
As quatro causas permitem explicar a permanência e o movimento (ou mudança): uma coisa permanece enquanto permanecerem sua forma (sua causa formal) e sua finalidade (sua causa final); uma coisa muda ou move-se porque a matéria está sujeita à mudança (a causa material está em movimento) e quando uma causa eficiente altera a matéria, mudando a forma que ela possuía (a causa eficiente é o agente da mudança).
Um aspecto fundamental dessa teoria da causalidade consiste no fato de que as quatro causas não possuem o mesmo valor, isto é, são concebidas como hierarquizadas, indo da causa mais inferior à causa superior. Nessa hierarquia, a causa menos valiosa ou menos importante é a causa eficiente (a operação de fazer a causa material receber a causa formal, ou seja, o fabricar natural ou humano), e as causas mais valiosas ou mais importantes são a causa formal (a essência da coisa) e a causa final (o motivo ou finalidade da existência de alguma coisa). Por isso, a causa material e a eficiente são ditas causas externas, enquanto a formal e a final são ditas causas internas. Percebe-se que são mais importantes as causas da permanência e menos importantes as causas da mudança ou do movimento.
Se examinarmos as ações humanas, veremos que a teoria das quatro causas leva a uma distinção entre dois tipos de atividades: a atividade técnica (ou o que os gregos chamam de poiésis) e a atividade ética e política (ou o que os gregos chamam de práxis). A primeira é considerada uma rotina mecânica, em que um trabalhador é uma causa eficiente que introduz uma forma numa matéria e fabrica um objeto para alguém. Esse alguém é o usuário e a causa final da fabricação. A práxis, porém, é a atividade própria dos homens livres, dotados de razão e de vontade para deliberar e escolher uma ação. Na práxis, o agente, a ação e a finalidade são idênticos e dependem apenas da força interior ou mental daquele que age. Por isso, a práxis (ética e política) é superior à poiésis (o trabalho).
A teoria das quatro causas consolida-se no pensamento ocidental graças à filosofia e à teologia medievais, pois o pensamento medieval interpreta e dá continuidade à herança aristotélica.”


“Em outras palavras, uma teoria exprime, por meio de ideias, uma realidade social e histórica determinada, e o pensador pode ou não estar consciente disso. Quando sabe que suas ideias estão enraizadas na história, pode esperar que elas ajudem a compreender a realidade de onde surgiram. Quando, porém, não percebe a raiz histórica de suas ideias e imagina que elas serão verdadeiras para todos os tempos e todos os lugares, corre o risco de estar, simplesmente, produzindo uma ideologia. De fato, um dos traços fundamentais da ideologia consiste, justamente, em tomar as ideias como independentes da realidade histórica e social, quando na verdade é essa realidade que torna compreensíveis as ideias elaboradas e a capacidade ou não que elas possuem para explicar a realidade que as provocou.”


“Estamos, pois, diante do que se convencionou chamar de homem livre moderno. Notamos, porém, que esse “homem” é dois tipos diferentes de homens: há o burguês, proprietário privado dos meios de produção ou das condições do trabalho, e há o trabalhador, despojado desses meios e dessas condições, “liberado” da servidão, mas também despojado dos meios de trabalhar livremente, só podendo trabalhar como assalariado. Ora, visto que o capital não pode se acumular nem se reproduzir sem a exploração do trabalho, que é sua fonte, é preciso distinguir duas faces do trabalho, embora tidas como igualmente dignas: de um lado, o trabalho como expressão de uma vontade livre e dotada de fins próprios (isto é, o trabalho visto pelo burguês), e, de outro lado, o trabalho como relação da máquina corporal com as máquinas sem vida, isto é, com as coisas naturais e fabricadas (isto é, o trabalho realizado pelo trabalhador). Ora, essas duas faces do trabalho também estarão divididas em duas figuras diferentes: o lado livre e espiritual do trabalho é o burguês, que determina os fins, enquanto o lado mecânico e corpóreo do trabalho é o trabalhador, simples meio para fins que lhe são estranhos. De um lado, a liberdade. De outro, a “necessidade”, isto é, o autômato.
Assim, a concepção mecânica da Natureza como causalidade eficiente necessária a ser dominada e transformada pela ciência e técnica e a concepção da liberdade da vontade, que atua na ética e na política, pressupõem a separação entre matéria (corpos) e espírito (almas), separação que exprime a divisão social entre os corpos que trabalham e as almas que mandam, decidem, vigiam, punem e usam os frutos produzidos pelos corpos. Os trabalhadores “livres” fazem parte da Natureza, enquanto os burgueses constituem a sociedade.
Vemos, novamente, como ideias que parecem resultar do puro esforço intelectual, de uma elaboração teórica objetiva e neutra, de puros conceitos nascidos da observação científica e da especulação metafísica, sem qualquer laço de dependência às condições sociais e históricas, são, na verdade, expressões dessas condições reais. Com tais ideias pretende-se explicar a realidade, sem se perceber que são elas que precisam ser explicadas pela realidade social e histórica.”


“O empirismo (do grego empeiria, que significa: experiência dos sentidos) considera que o real são fatos ou coisas observáveis e que o conhecimento da realidade se reduz à experiência sensorial que temos dos objetos, cujas sensações se associam e formam ideias em nosso cérebro. O idealista, por sua vez, considera que o real são ideias ou representações e que o conhecimento da realidade se reduz ao exame dos dados e das operações de nossa consciência ou do intelecto, como atividade produtora de ideias que dão sentido ao real e o fazem existir para nós.
Tanto num caso como no outro, a realidade é considerada um puro dado imediato: um dado dos sentidos, para o empirista, ou um dado da consciência, para o idealista. Ora, o real não é um dado sensível nem um dado intelectual, mas é um processo, um movimento temporal de constituição dos seres e de suas significações, e esse processo depende fundamentalmente do modo como os homens se relacionam entre si e com a natureza. Essas relações entre os homens e deles com a natureza constituem as relações sociais como algo produzido pelos próprios homens, ainda que estes não tenham consciência de serem seus únicos autores.
É, portanto, das relações sociais que precisamos partir para compreender os conteúdos e as causas dos pensamentos e das ações dos homens e por que eles agem e pensam de maneiras determinadas, sendo capazes de atribuir sentido a tais relações, de conservá-las ou de transformá-las. Porém, novamente, não se trata de tomar essas relações como um dado ou como um fato observável, pois nesse caso estaríamos em plena ideologia. Trata-se, pelo contrário, de compreender a própria origem das relações sociais e de suas diferenças temporais, em uma palavra, de encará-las como processos históricos.
Mas, ainda uma vez, não se trata de tomar a história como sucessão de acontecimentos factuais, nem como evolução temporal das coisas e dos homens, nem como um progresso de suas ideias e realizações, nem como formas sucessivas e cada vez melhores das relações sociais. A história não é sucessão de fatos no tempo, não é progresso das ideias, mas o modo como homens determinados em condições determinadas criam os meios e as formas de sua existência social, reproduzem ou transformam essa existência social que é econômica, política e cultural.
A história é práxis (como vimos, práxis significa um modo de agir no qual o agente, sua ação e o produto de sua ação são termos intrinsecamente ligados e dependentes uns dos outros, não sendo possível separá-los).
Nessa perspectiva, a história é o real, e o real é o movimento incessante pelo qual os homens, em condições que nem sempre foram escolhidas por eles, instauram um modo de sociabilidade e procuram fixá-lo em instituições determinadas (família, condições de trabalho, relações políticas, instituições religiosas, tipos de educação, formas de arte, transmissão dos costumes, língua etc.). Além de procurar fixar seu modo de sociabilidade através de instituições determinadas, os homens produzem ideias ou representações pelas quais procuram explicar e compreender sua própria vida individual, social, suas relações com a natureza e com o sobrenatural. Em sociedades divididas em classes (e também em castas), nas quais uma das classes explora e domina as outras, essas explicações ou essas ideias e representações serão produzidas e difundidas pela classe dominante para legitimar e assegurar seu poder econômico, social e político. Por esse motivo, essas ideias ou representações tenderão a esconder dos homens o modo real como suas relações sociais foram produzidas e a origem das formas sociais de exploração econômica e de dominação política. Esse ocultamento da realidade social chama-se ideologia. Por seu intermédio, os dominantes legitimam as condições sociais de exploração e de dominação, fazendo com que pareçam verdadeiras e justas. Enfim, também é um aspecto fundamental da existência histórica dos homens a ação pela qual podem ou reproduzir as relações sociais existentes, ou transformá-las, seja de maneira radical (quando fazem uma revolução), seja de maneira parcial (quando fazem reformas). Em outras palavras, uma ideologia não possui um poder absoluto que não possa ser quebrado e destruído. Quando uma classe social compreende sua própria realidade, pode organizar-se para quebrar uma ideologia e transformar a sociedade. Os burgueses destruíram a ideologia aristocrática (nos séculos XVI, XVII e XVIII), e os trabalhadores podem destruir a ideologia burguesa (como propôs Marx).
Nossa tarefa será, pois, compreender por que a ideologia é possível: qual sua origem, quais seus fins, quais seus mecanismos e quais seus efeitos históricos, isto é, sociais, econômicos, políticos e culturais.”


“Embora Marx tenha escrito sobre a “ideologia em geral”, o texto em que realiza a caracterização da ideologia tem por título: A ldeologia Alemã. Isso significa que a análise de Marx tem como objetivo privilegiado um pensamento historicamente determinado, qual seja, o dos pensadores alemães posteriores ao filósofo alemão Hegel.
Essa observação é importante por dois motivos. Em primeiro lugar, porque, como veremos, Marx não separa a produção das ideias e as condições sociais e históricas nas quais são produzidas (tal separação, aliás, é o que caracteriza a ideologia). Em segundo lugar, porque para entendermos as críticas de Marx precisamos ter presente o tipo de pensamento determinado que ele examina e que, no caso, pressupõe a filosofia de Hegel. Assim, embora Marx coloque na categoria de ideólogos os pensadores franceses e ingleses, procura distinguir o tipo de ideologia que produzem: entre os franceses, a ideologia é sobretudo política e jurídica, entre os ingleses é sobretudo econômica. Os ideólogos alemães são, antes de tudo, filósofos. Se, portanto, podemos falar em ideologia em geral e na ideologia burguesa em geral, no entanto, as formas ou modalidades dessa ideologia encontram-se determinadas pelas condições sociais particulares em que se encontram os diferentes pensadores burgueses.
Sabemos que Marx dirige duas críticas principais aos ideólogos alemães (Feuerbach, F. Strauss, Max Stirner, Bruno Bauer, entre os principais). A primeira diz que esses filósofos tiveram a pretensão de demolir o sistema hegeliano imaginando que bastaria criticar apenas um aspecto da filosofia de Hegel, em lugar de abarcá-la como um todo. Com isso, os chamados críticos hegelianos apenas substituíram a dialética hegeliana por uma fraseologia sem sentido e sem consistência (com exceção de Feuerbach, respeitado por Marx, apesar das críticas que lhe faz).
A segunda crítica diz que cada um desses ideólogos tomou um aspecto da realidade humana, converteu esse aspecto numa ideia universal e passou a deduzir todo o real a partir desse aspecto idealizado. Com isso, os ideólogos alemães, além de fazerem o que todo ideólogo faz (isto é, deduzir o real das ideias), ainda imaginaram estar criticando Hegel e a realidade alemã simplesmente por terem escolhido novas ideias, que, como demonstrará Marx, não criticam coisa alguma, ignoram a filosofia hegeliana e, sobretudo, ignoram a realidade histórica alemã.
No restante da Europa, escreve Marx, ocorrem verdadeiras revoluções, mas na Alemanha a única revolução que parece ocorrer é a do pensamento, e ironiza: “uma revolução frente à qual a Revolução Francesa não foi senão um brinquedo de crianças”.
Marx afirma que para compreendermos a pequeneza e limitação mesquinha da ideologia alemã é preciso sair da Alemanha, ou seja, fazer algumas considerações gerais sobre o fenômeno da ideologia. Essas considerações, embora tenham como solo a sociedade capitalista europeia do século XIX, tem como pano de fundo a questão do conhecimento histórico ou a ciência da história, pois, escreve Marx, “conhecemos apenas uma única ciência, a ciência da história. A história pode ser examinada sob dois aspectos: história da natureza e história dos homens. Os dois aspectos, contudo, são inseparáveis, enquanto existirem homens, a história da natureza e a história dos homens se condicionarão mutuamente. A história da natureza, ou ciência natural, não nos interessa aqui, mas teremos de examinar a história dos homens, pois quase toda ideologia se reduz ou a uma concepção distorcida dessa história ou a uma abstração completa dela. A própria ideologia não é senão um dos aspectos dessa história”.
Sabemos que Marx concebe a história como um conhecimento dialético e materialista da realidade social. Sabemos também que dentre as várias fontes dessa concepção encontra-se a filosofia hegeliana, criticada por Marx, mas conservada em aspectos essenciais por ele. Para que a concepção marxista de história, da qual depende sua formulação de ideologia, fique um pouco mais clara para nós, vale a pena lembrarmos aqui alguns aspectos da concepção hegeliana.
De maneira esquemática (e, portanto, muito grosseira), podemos caracterizar a obra hegeliana como:
1) um trabalho filosófico para compreender a origem e o sentido da realidade como Cultura. A Cultura representa as relações dos homens com a Natureza pelo desejo, pelo trabalho e pela linguagem, as instituições sociais, o Estado, a religião, a arte, a ciência, a filosofia. E o real enquanto manifestação do Espírito. Não se trata, segundo Hegel, de dizer que o Espírito simplesmente produz a Cultura, mas, sim, de dizer que ele é a Cultura, pois ele existe encarnado nela;
2) um trabalho filosófico que define o real pela Cultura e esta pelos movimentos de exteriorização e de interiorização do Espírito. Ou seja, o Espírito manifesta-se nas obras que produz (é isto sua exteriorização), e quando sabe ou reconhece que é o produtor delas, interioriza (compreende) essas obras porque sabe que elas são ele próprio. Por isso o real é histórico. Ele não tem história, nem está na história, mas é história;
3) um trabalho filosófico que revoluciona o conceito de história por três motivos:
— em primeiro lugar, porque não pensa a história como uma sucessão contínua de fatos no tempo, pois o tempo não é uma sucessão de instantes (antes, agora, depois; passado, presente, futuro) nem é um recipiente vazio onde se alojariam os acontecimentos, mas é um movimento dotado de força interna, criador dos acontecimentos. Os acontecimentos não estão no tempo, mas são o tempo;
— em segundo lugar, porque não pensa a história como uma sucessão de causas e efeitos, mas como um processo dotado de uma força ou de um motor interno que produz os acontecimentos. Esse motor interno é a contradição. Em geral, confundimos contradição e oposição, mas ambos são conceitos muito diferentes. Na oposição existem dois termos, cada qual dotado de suas próprias características e de sua própria existência, que se opõem quando, por algum motivo, se encontram. Isso significa que, na oposição, podemos tomar os dois termos separadamente, entender cada um deles, entender por que se oporão se se encontrarem e, sobretudo, podemos perceber que eles existem e se conservam, quer haja ou não haja a oposição. Assim, por exemplo, poderíamos imaginar que os termos “senhor” e “escravo” são opostos, mas isso não nos impede de tomar cada um desses conceitos separadamente, verificar suas características e compreender por que se opõem. A contradição, porém, não é isso. Formulado, pela primeira vez, pelos gregos, o principio lógico de contradição enuncia que: “É impossível que A seja A e não-A ao mesmo tempo e na mesma relação”. A grande inovação hegeliana consiste em mostrar que isso não é impossível, é sim o movimento da própria realidade. Diversamente da oposição, em que os termos podem ser pensados fora da relação em que se opõem, na contradição só existe a relação, isto é, não podemos tomar os termos antagônicos fora dessa relação, pois, como assegura o princípio, trata-se de tomar os termos ao mesmo tempo e na mesma relação, criados por essa relação e transformados nela e por ela. Além disso, a contradição opera com uma forma muito determinada de negação, a negação interna. Ou seja, se dissermos “O caderno não é o livro”, essa negação é externa, pois, além de não definir qualquer relação interna entre os dois termos, qualquer um deles pode aparecer em outras negações, visto que podemos dizer: o caderno não é o livro, não é a pedra, não é a casa, não é o homem etc. A negação é interna quando o que é negado é a própria realidade de um dos termos, por exemplo, quando dizemos: “A é não-A”. Ou seja, quando digo “A não é B”, a negação é externa, mas quando digo “A é não-A”, a negação é interna. Na primeira, digo que algo não é outra coisa (ou qualquer outra coisa), mas na segunda digo que algo é ele mesmo e a negação dele mesmo, ao mesmo tempo. Só há contradição quando a negação é interna e quando ela for a relação que define uma realidade que é em si mesma dividida num polo positivo e num polo negativo, polo este que é o negativo daquele positivo e de nenhum outro. Por exemplo, quando dizemos “a canoa é a não-canoa”, definimos a canoa por sua negação interna, ela é a não-canoa porque ela é a madeira ou a árvore negadas, suprimidas como madeira ou árvore pelo trabalho do canoeiro. O trabalho do canoeiro consiste em negar a árvore como uma coisa natural, transformando-a em coisa humana ou cultural, isto é, na canoa, e o ser da canoa é ser a não-canoa, isto é, a árvore trabalhada. A árvore, por sua vez, é não-árvore, pois é a canoa ou árvore negada. Numa relação de contradição, portanto, os termos que se negam um ao outro só existem nessa negação. Assim, o escravo é o não-senhor e o senhor é o não-escravo, e só haverá escravo onde houver senhor, e só haverá senhor onde houver escravo. Podemos dizer que o escravo não é a pedra e que o senhor não é o cavalo, mas essas negações externas não nos dizem o que são um senhor e um escravo.
O que é um senhor? Um não-escravo.
O que é um escravo? Um não-senhor.
Para haver um senhor é necessário haver um escravo; para haver um escravo é necessário haver um senhor.
Ambos só existem como relação. Mas onde está a contradição? Que é, verdadeiramente, um senhor? Aquele que sobrevive graças ao trabalho do escravo, portanto um senhor é aquele cujo ser depende da ação de um outro que é sua negação. Que é, verdadeiramente, um escravo? Aquele que julga o senhor como único ser humano existente e vê a si mesmo como não-humano porque é não-senhor. Assim, o senhor vive graças ao não-senhor e o escravo vive para o seu senhor e não para si mesmo. Somente quando o senhor afirma que o escravo não é homem, mas um instrumento de trabalho, e somente quando o escravo afirma sua não-humanidade, dizendo que só o senhor é homem, temos contradição.
Porém, o aspecto mais fundamental da contradição é que ela é um motor temporal: ou seja, as contradições não existem como fatos dados no mundo, mas são produzidas. A produção e a superação das contradições são o movimento da história. A produção e a superação das contradições revelam que o real se realiza como luta. Nesta luta, uma realidade é produzida já dividida, já fraturada num polo positivo e num polo que nega o primeiro, essa negação sendo a luta mortal dos contrários, que só termina quando os dois termos se negam inteiramente um ao outro e engendram uma síntese. Essa é uma realidade nova, nascida da luta interna da realidade anterior. Mas essa síntese ou realidade nova também surgirá fraturada e reabre a luta dos contraditórios, de sua negação recíproca e da criação de uma nova síntese que, por seu turno, já é, em si mesma, uma nova divisão interna;
— em terceiro lugar, portanto, porque não pensa a história como sucessão de fatos dispersos que seriam unificados pela consciência do historiador, mas, sim, pensa a história como processo contraditório unificado em si mesmo e por si mesmo, plenamente compreensível e racional. Por isso Hegel afirma que o real é racional e o racional é real. A racionalidade não expulsa a contradição (não diz que ela é impossível), mas é o movimento da própria contradição, movimento que é o tempo.”

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