Lista de Livros no YouTube

Lista Completa

quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Método Dialético e Teoria Política (Parte I) — Michael Lowy

Editora: Paz e Terra
ISBN: 978-85-2190-618-6
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 144 


“A verdade é sempre revolucionária.” (Antonio Gramsci)


“É possível a objetividade nas ciências sociais? Trata-se de uma objetividade do mesmo tipo que a das ciências naturais, como afirmam os positivistas? Não é a ciência social necessariamente “engajada”, quer dizer, ligada ao ponto de vista de uma classe social? Como conciliar esse caráter “partidário” com o conhecimento objetivo da verdade?
Essas questões se encontram no centro do debate metodológico na sociologia, na história, na economia política, na antropologia, na ciência política e na epistemologia há mais de um século. Tentaremos mostrar porque somente o marxismo é capaz de trazer uma solução radical e coerente a esse problema (mesmo se nos é necessário reconhecer, que nesse sentido, os textos dos autores marxistas só nos oferecem os elementos iniciais), solução, cuja primeira condição para que ela seja possível, é a ruptura epistemológica total com o positivismo.
I — O positivismo
A ideia central da corrente positivista é de uma simplicidade evangélica: nas ciências sociais, como nas ciências da natureza, é necessário afastar os preconceitos e as pressuposições, separar os julgamentos de fato dos julgamentos de valor, a ciência da ideologia. A finalidade do sociólogo ou do historiador deve ser a de atingir a mesma neutralidade serena, imparcial e objetiva do físico, do químico e do biólogo. Deixemos a palavra com o “Grand Ancêtre”, Augusto Comte:
“Eu entendo por física social a ciência que tem por objeto próprio o estudo dos fenômenos sociais, considerados dentro do mesmo espírito que o dos fenômenos astronômicos, físicos, químicos e fisiológicos, quer dizer, sujeitos a leis naturais invariáveis, cuja descoberta é a finalidade especial dessas pesquisas” (1). “Sem admirar nem maldizer os fatos políticos e vendo neles essencialmente, como em toda outra ciência, simples sujeitos de observação, a física social considera cada fenômeno sob o duplo ponto de vista elementar de sua harmonia com os fenômenos coexistentes e do seu encadeamento com o estado anterior...” (2).
O positivismo comtiano está, portanto, fundamentado sobre duas premissas essenciais, estreitamente ligadas:
1) A sociedade pode ser epistemologicamente assimilada à natureza (o que nós chamaremos de “naturalismo positivista”); na vida social reina uma harmonia natural.
2) A sociedade é regida por leis naturais, quer dizer, leis invariáveis, independentes da vontade e da ação humana.
Por essas premissas se conclui que o método nas ciências sociais pode e deve ser o mesmo que o das ciências da natureza, com os mesmos métodos de pesquisa e sobretudo com o mesmo caráter de observação “'neutra” objetiva e desligada dos fenômenos.
As implicações ideológicas conservadoras, reacionárias e contrarrevolucionárias dessa concepção são evidentes e aliás explicitamente formuladas por Comte, cuja franqueza não é um dos seus méritos menores: posto que as leis sociais são leis naturais, a sociedade não pode ser transformada: contra os sonhos revolucionários utópicos e negativos, o positivismo enaltece a aceitação passiva do status quo social:
“(O positivismo) tende profundamente, por sua natureza, a consolidar a ordem pública, pelo desenvolvimento de uma sábia resignação (...). Evidentemente, não pode existir verdadeira resignação, quer dizer disposição permanente para suportar com constância, e sem nenhuma esperança de compensação, quaisquer males inevitáveis a não ser como consequência de um profundo sentimento das leis invariáveis que regem todos os diversos gêneros dos fenômenos naturais. Portanto é exclusivamente à filosofia positiva que se relaciona uma tal disposição, a qualquer assunto que ela se aplique, e por conseguinte, com relação também aos males políticos”. (3)
Esse trecho, verdadeira joia do naturalismo positivista, é um dos raros momentos onde o discurso sociológico burguês se manifesta em toda a sua pureza, por assim dizer em seu estado selvagem. Baseado nele, podemos apreender melhor o sentido verdadeiro da palavra “positivo”, empregada por Comte para distinguir, ou melhor, opor sua doutrina às perigosas teorias negativas, críticas, destrutivas, dissolventes, subversivas, em uma palavra, revolucionárias, da filosofia das Luzes, da Revolução Francesa e do socialismo. (4)”
1. A. Comte. “Considérations philosophiques sur les sciences et les savants”, in Politique d'Auguste Comte, Colin, Paris, p. 71.
2. Cours de Philosophie Positive, Schleicher Fréres Editeurs, Paris, 1908, tomo IV, p. 214.
3. idem, p. 100.
4. cf. Comte, Discours sur l’esprit positif, 10/ 18, p. 73.


“O erro fundamental do positivismo é, pois, a incompreensão da especificidade metodológica das ciências sociais com relação às ciências naturais, especificidade cujas causas principais são:
1. O caráter histórico dos fenômenos sociais, transitórios, perecíveis, susceptíveis de transformação pela ação dos homens.
2. A identidade parcial entre o sujeito e o objeto do conhecimento.
3. O fato de que os problemas sociais suscitam a entrada em jogo de concepções antagônicas das diferentes classes sociais.
4. As implicações político-ideológicas da teoria social: o conhecimento da verdade pode ter consequências diretas sobre a luta de classes.
Essas razões (estreitamente ligadas entre si) fazem com que o método das ciências sociais se distinga do científico-naturalista não somente no nível dos modelos teóricos, técnicas de pesquisa e processos de análise, mas também e principalmente no nível da relação com as classes sociais. As visões do mundo, as “ideologias” (no sentido amplo de sistemas coerentes de ideias e de valores) das classes sociais modelam de maneira decisiva (direta ou indireta, consciente ou inconsciente) as ciências sociais, colocando assim o problema de sua objetividade em termos totalmente distintos das ciências da natureza.
A realidade social, como toda realidade, é infinita. Toda ciência implica uma escolha, e nas ciências históricas essa escolha não é um produto do acaso, mas está em relação orgânica com uma certa perspectiva global. As visões do mundo das classes sociais condicionam, pois, não somente a última etapa da pesquisa científica social, a interpretação dos fatos, a formulação das teorias, mas a escolha mesma do objeto de estudo, a definição do que é essencial e do que é acessório, as questões que colocamos à realidade, numa palavra, a problemática da pesquisa.”


“Numa passagem bem conhecida da Miséria da Filosofia, Marx constata que a burguesia tinha proclamado com razão que as instituições da feudalidade eram históricas, ultrapassadas, arcaicas; enquanto essa mesma burguesia se obstina em apresentar as instituições da ordem capitalista como naturais e eternas. “Assim, houve história, mas não há mais”, acrescenta ironicamente Marx. A burguesia revolucionária tinha percebido e denunciado o caráter histórico e transitório do sistema feudal; é somente o proletariado que é capaz de perceber e denunciar a historicidade do sistema burguês.”


“A tese defendida por Schaff subestima a especificidade do ponto de vista do proletariado com relação ao das classes revolucionárias do passado (essencialmente a burguesia ascendente):
1. A burguesia revolucionária tinha interesses particulares a defender, diferentes do interesse geral das massas populares: ela queria ao mesmo tempo a revolução antifeudal e sua dominação como classe exploradora; o que torna necessária a ocultação ideológica (consciente ou não) de seus verdadeiros fins e do verdadeiro sentido do processo histórico.
O proletariado, em compensação, classe universal cujo interesse coincide com o da grande maioria e cuja finalidade é a abolição de toda dominação de classe, não é obrigado a ocultar o conteúdo histórico de sua luta; ele é, por conseguinte, a primeira classe revolucionária cuja ideologia tem a possibilidade objetiva de ser transparente.
Não é, pois, absolutamente um acaso se o proletariado — ao contrário da burguesia revolucionária — apresenta abertamente sua revolução como sendo realizada, não em nome de pretensos “direitos naturais” ou de supostos “princípios eternos da Liberdade e da Justiça”, mas em nome de seus interesses de classe. Uma comparação entre o Manifesto Comunista e a Declaração dos Direitos do Homem de 1789 é altamente instrutiva a esse respeito!
2. A burguesia pôde alcançar o poder sem uma compreensão clara do processo histórico, sem uma consciência precisa do sentido dos acontecimentos, levada pela “astúcia da razão” do desenvolvimento econômico-social. O conhecimento científico do movimento de liberação não era uma condição de sua vitória, e a automistificação ideológica caracterizou em geral seu comportamento como classe revolucionária.
O proletariado, em compensação, só pode tomar o poder e transformar a sociedade por um ato deliberado e consciente. O conhecimento objetivo da realidade, da estrutura social, da conjuntura politica, é por conseguinte uma condição necessária de sua prática revolucionária; ele corresponde pois a seu interesse de classe. O socialismo será científico ou não o será! (42)”
41. Schaff. A., Histoire et Vérité, Ed. Anthropos, Paris, 1971, p. 314.
42. Ver a esse respeito Lukács, G., Geschichte und Klassenbewusstein, Luchterand, 1968, p. 246, 243, 399.


“O ponto de vista do proletariado não é uma condição suficiente para o conhecimento da verdade objetiva, mas é o que oferece maior possibilidade de acesso a essa verdade. Isso porque a verdade é para o proletariado um meio de luta, uma arma indispensável para a revolução. As classes dominantes, a burguesia (e também os burocratas, num outro contexto) têm necessidade de mentiras para manter seu poder. O proletariado revolucionário tem necessidade da verdade...”


“Mesmo que um pensador ou político não pertença, pessoalmente, a uma determinada camada social — e seja desvinculado a ponto de se incluir realmente naquilo que Mannheim denominava “intelligenzia flutuante” — as suas concepções sociais e políticas inserem-se de forma mais ou menos orgânica em uma das visões do mundo que corresponde às classes sociais de sua época, inserção essa que obedece a condicionamentos objetivos (vínculos profissionais, dependência econômica, contiguidade social) ou subjetivos.”


“O capitalismo é um sistema onde “o processo de produção domina os homens, e não os homens o processo de produção”; é um modo de produção onde “o trabalhador não existe senão para as necessidades de valorização da riqueza dada, e não, pelo contrário, a riqueza objetiva para as necessidades de desenvolvimento do trabalhador. Assim como, na religião, o homem é dominado pela obra de seu cérebro, ele é, na produção capitalista, dominado pela obra de sua própria mão”. Marx mostra como o comportamento atomístico dos homens na economia mercantil tem como resultado necessário a forma “alienada” (entfremdete), “autônoma” (Verselbstandigte) e independente de sua ação consciente que tomam as relações sociais de produção, os meios de produção e os produtos em geral; graças à anarquia do mercado capitalista, o movimento social dos homens toma a forma de um movimento de coisas, que controla os homens em vez de ser controlado por eles (24).”
24. “Kapital I”. Werke 23. pp. 89, 95, 108, 455, 649: “Kapital III”. Werke 25, pp. 247, 838, etc.


“Ocorre o mesmo para o valor (“clássico”, se o for) da liberdade. Para o humanismo burguês, ela é a liberdade do indivíduo como átomo isolado, o que significa, no nível econômico, o livre jogo das forças do mercado. Para Marx, “liberdade” significa essencialmente duas coisas:
— o desenvolvimento das faculdades humanas: desenvolvimento limitado, deformado e mutilado pela economia capitalista;
— o controle racional e consciente dos homens sobre a natureza, a produção e a vida social em geral, o que implica, bem entendido, a abolição do mercado capitalista.”


“O socialismo é para Marx a possibilidade objetiva de uma sociedade onde os valores humanistas são realizados, uma sociedade de “homens livres” — quer dizer uma sociedade onde os homens livremente associados controlem, segundo um plano concebido de forma consciente, o processo da vida social (29).
O modo de produção socialista é pois o que abole o fetichismo e a alienação, na qual as relações dos homens com os produtos de seu trabalho são transparentes, e onde a produção é racionalmente planificada pela comunidade dos produtores. Ele é também o modo de produção que permite aos homens o desenvolvimento livre, pleno e “múltiplo” (Vollseitig) de suas capacidades e, em seu estágio superior — cuja redução da jornada de trabalho é a primeira condição — o desenvolvimento e o enriquecimento das faculdades humanas como finalidade em si (30).


“A acusação de fatalismo que se levantou algumas vezes contra Rosa Luxemburgo não é justificada, pois um dos leitmotivs de seus escritos é justamente a recusa “de esperar com os braços cruzados que a história nos traga seus frutos maduros”. Mas a formulação teórica rigorosa do problema aparece em seus escritos durante a guerra, principalmente a “brochura Junius”. Quero falar da célebre fórmula “socialismo ou barbárie” que aparece numa passagem absolutamente notável, um dos raros textos marxistas no século XX onde a dialética histórica é posta em seus verdadeiros termos: “os homens não fazem arbitrariamente sua história, mas são eles que a fazem. O proletariado depende para sua ação do grau de maturidade atingido pelo desenvolvimento social, mas o desenvolvimento social não pode passar sem o proletariado: o proletariado é ao mesmo tempo sua energia e sua causa, como seu produto e consequência. (...) A vitória final do proletariado socialista... não pode se realizar se de toda a massa das condições materiais acumuladas pela história não jorrasse a faísca animadora da vontade consciente da grande massa popular. (...) Friedrich Engels disse uma vez: a sociedade burguesa se encontra diante de um dilema: ou o progresso para o socialismo ou a regressão para a barbárie... Encontramo-nos atualmente exatamente como Friedrich Engels havia previsto. Há uma geração, há 40 anos, diante da escolha: ou triunfo do imperialismo e queda de toda civilização como na antiga Roma, despovoamento, destruição, degenerescência, um vasto cemitério, ou a vitória do socialismo, quer dizer a ação consciente de luta do proletariado internacional contra o imperialismo e seu método — a guerra. Eis o dilema da história mundial, uma alternativa na qual os pratos da balança oscilam diante da decisão do proletariado consciente” (16).
O que é importante aqui não é a exatidão ou não da profecia — aliás terrivelmente confirmada na Alemanha: o malogro da revolução socialista em 1919 conduziu diretamente ao triunfo da barbárie nazista — mas o princípio metodológico que o socialismo não é um resultado fatal e automático do desenvolvimento histórico, mas sim uma possibilidade objetiva. As condições econômico-sociais traçam os limites do campo do possível (p. ex. o socialismo não é uma possibilidade objetiva no século XVI); mas a decisão entre as diversas possibilidades objetivas depende da consciência, da vontade e da ação dos homens.
Para falar a verdade, Engels não escreveu “socialismo ou barbárie”; mas se encontra em Anti-Duhring uma passagem (a qual se referia provavelmente Rosa Luxemburgo) onde aparece essa ideia crucial do socialismo como possibilidade a qual se opõem outras possibilidades: “as forças produtivas engendradas pelo modo de produção capitalista moderno, assim como o sistema e repartição dos bens que ele criou, entraram em contradição flagrante com o modo de produção mesmo, e isto a um tal grau que se torna necessária uma mudança do modo de produção e de repartição eliminando todas as diferenças de classes, se não quisermos ver toda sociedade moderna perecer” (17). O mérito de Rosa Luxemburgo foi o de apanhar essa problemática, presente mas não desenvolvida em Marx e Engels, e lhe dar toda sua significação teórica.
Como transformar a possibilidade objetiva em ato? A resposta de Rosa Luxemburgo é explicativa nessa mesma passagem da “brochura Junius”: a práxis revolucionária. A práxis é o elo dialético entre o passado e o futuro, entre as possibilidades abertas pelo processo histórico e sua realização. Os homens fazem sua história, em limites impostos pelo desenvolvimento econômico e social, numa situação dada, em condições determinadas, mas são eles que a fazem — por sua práxis revolucionária, ao mesmo tempo causa e consequência do processo histórico.
Por outro lado, pela teoria da práxis como unidade dialética do objetivo e do subjetivo, das condições econômicas e da vontade consciente, como mediação pela qual a classe em si se torna para si, Rosa Luxemburgo pode ultrapassar (Aufheben) o dilema fixo e metafísico entre o moralismo abstrato de Bernstein e o economicismo mecânico de Kautski. Enquanto para o primeiro, a mudança “subjetiva”, moral e espiritual dos homens (do povo) é a condição do advento da “justiça social”, para o segundo é a evolução econômica objetiva que conduz fatalmente ao socialismo. A posição dialética de Rosa Luxemburgo é a de Marx na terceira tese sobre Feuerbach: na práxis revolucionária a mudança das circunstâncias coincide com a mudança (subjetiva) dos homens. Em seu célebre panfleto sobre a revolução russa de 1905, Rosa Luxemburgo mostra a significação política concreta dessa tese: foi durante a greve de massa contra o absolutismo, através da prática direta da luta de classes, que se despertou pela primeira vez, “como por uma corrente elétrica”, o sentimento e a consciência de classe em milhões e milhões de trabalhadores.”
16. La crise de la social-démocratie (1916), in Scritti Scelti, pp. 446-448.
17. Engels. Anti-Duhring, Ed. Sociates, Paris, 1950, p. 189, sublinhado por nós. M.L.

Nenhum comentário:

Postar um comentário