Editora: InterSaberes
ISBN: 978-85-5972-120-1
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 272
Sinopse: Parte
I
“A
filosofia política de Maquiavel
Nicolau Maquiavel desenvolveu um tipo de
pensamento político que se diferenciava do praticado na era medieval,
encarregando-se de reformular a política do seu tempo, sua aliança com a ética
e com os valores cristãos.
Enquanto, para os cristãos, o bom governante
era aquele indivíduo que apresentasse virtudes cristãs e agisse de acordo com
elas, o bom governante (o príncipe) de Maquiavel é aquele que faz o que for
necessário para chegar ao poder e nele se manter, incluindo, se for preciso,
violar os valores cristãos pregados em seu tempo. Ele criticou o direito divino de governar de seus
predecessores e valorizou o desenvolvimento de algumas qualidades
indispensáveis para aqueles que pretendiam ocupar o cargo de líder político:
qualidades como a virtú e a
capacidade de lidar com a fortuna.
O objetivo da política para Maquiavel é
realizar a manutenção do poder com vistas ao bem comum e, para manter esse
poder, o príncipe deve lutar com todas as suas forças. Justamente por conta
disso é que os valores morais cristãos, tão apregoados em seu tempo, tornam-se
obstáculos ao alcance desse propósito, isto é, cedo ou tarde, para não deixar
de lado seu objetivo fundamental, o príncipe tem de abrir mão daqueles valores.
Um príncipe não pode manter sua palavra (princípio moral cristão), por exemplo,
se ela se voltar contra ele em suas decisões políticas ou forçar o surgimento
de situações que o obriguem a tomar uma atitude contrária ao seu desejo. Se
assim ocorrer, ele deve abrir mão de tal valor, como meio para a realização dos
fins propostos. Da mesma forma, o príncipe deve, quando necessário, mentir para
o povo, utilizar a força para repreendê-lo, enganá-lo (se não for possível
dizer a verdade em determinados momentos) e fazer tudo o que for preciso para
manter a ordem e o poder.
A manutenção da ordem e do poder é necessária
para que o bem comum seja preservado. Os meios empregados serão honrosos e
louvados se os fins forem alcançados por parte dos líderes políticos. Nesse
sentido, vale ressaltar aqui que, para Maquiavel, o importante não é que o
príncipe seja bom, basta que pareça bom; ele não precisa falar a verdade, basta
que pareça estar dizendo a verdade; ele não precisa agir realmente de maneira
justa, basta que pareça ao povo que sua atitude é justa. Essa diferença entre a
essência (ser) e a aparência (parecer) é um elemento indispensável para um
líder que queira manter o bem comum acima de tudo.
Essa nova forma de fazer política mostra que
Maquiavel foi um pensador muito além do seu tempo e responsável por realizar a
cisão entre o “ser” e o “dever ser” na política (Reale, História da
filosofia, 2005, p. 93-94). Ele procurou pautar-se especificamente por um
realismo político que procurava excluir toda e qualquer característica
especulativa do dever ser, pois o príncipe (líder político de
seu tempo) alcançaria sua ruína no momento em que deixasse de fazer aquilo que
fazia para fazer aquilo que deveria fazer: um homem que quer em todo o lugar ser bom atrai ruína entre tantos que
não são bons. Decorre disso que o príncipe que quer se manter no poder deve
aprender os meios de não ser bom
(apenas parecer bom já é suficiente)
para, quando foi necessário, utilizar-se deles. Segundo Maquiavel, o líder
ainda deve adotar remédios extremos para males extremos, ou seja, não deve
fazer sempre o mal — deve fazer o bem quando possível e o mal apenas quando
realmente for necessário.
A ética maquiavélica
No tocante à ética, vale destacar que
Maquiavel reformula o conceito de virtude cristã vigente em sua época, baseada
em princípios. Enquanto para os cristãos medievais o príncipe deveria ser
portador das virtudes cristãs, ser bom, praticar sempre a temperança, falar a
verdade aos seus súditos etc., a virtude a que Maquiavel se refere é exatamente
a qualidade que o príncipe deve ter para chegar ao poder e nele se manter, o
que ele chama de virtú. Ela é
apreendida por Maquiavel em um sentido grego de “força, vontade, habilidade,
astúcia e capacidade de dominar a situação” (Reale, 2005, p, 94). A virtú é a capacidade de derrotar a sorte e o acaso: segundo o autor italiano, metade das coisas que acontecem ao
ser humano é proveniente da sorte, e a outra metade é de responsabilidade de
cada indivíduo.
Diante dessa nova concepção de virtude,
Maquiavel cria também uma nova ética, específica para todos aqueles que
desejarem entrar para a vida política. Essa nova ética se preocupa não com os
princípios (cristãos), mas com as consequências que as ações dos líderes
políticos (os príncipes) terão sobre o povo, é uma ética de consequências que visa sempre à ação que beneficie o bem comum e o coletivo. Sempre que houver situações que fogem dos objetivos
definidos pela República, o príncipe deve pensar quais serão as consequências
que melhor atenderão ao bem comum e ao coletivo. Se as atitudes do príncipe não
forem condizentes com os princípios dos indivíduos — no tempo de Maquiavel,
eles eram os princípios cristãos da bondade, da verdade, da honra etc. — ele
não deve deixar de realizá-las, pois é a consequência
da ação que deve ser levada em conta. Portanto, se, para alcançar seus
objetivos, o príncipe precisar matar, roubar, saquear, destruir, mentir,
manipular, explorar, entre outras ações, ele deve fazê-lo, contanto que a
consequência da ação seja para o bem comum de seu povo e a manutenção da ordem.
Justamente por isso é que pensadores posteriores procuraram resumir todo o seu
pensamento político com a seguinte frase: “Os fins justificam os meios”. Se a
finalidade é o bem comum, não importa de quais meios o príncipe se utilize,
assim ele deve fazer. O príncipe não pode se dar ao luxo, para conquistar seus
objetivos, de agir politicamente tomando como base princípios (o homem comum,
na vida privada, pode se dar ao luxo disso); deve agir levando em conta as
consequências que suas ações trarão ao seu país. Desse modo, contra todos
aqueles que consideram Maquiavel um sujeito sem ética (os que afirmam isso o
fazem considerando que a ética cristã é a ética válida universalmente), um de
seus intérpretes, o filósofo Isaiah Berlin, no livro Estudos sobre humanidade: uma antologia de ensaios (2002), mais especificamente no
ensaio intitulado “A originalidade de Maquiavel”, afirma que existem duas
éticas: uma baseada em princípios (a ética cristã), que prega a salvação da
alma, e outra baseada nas consequências, que valoriza a cidade, o mundo e as
ações dos políticos que estão na organização desse mundo (é a ética criada por
Maquiavel).”
“Todavia, no início do que chamamos de contemporaneidade, Nietzsche
revolucionou a forma como compreendemos o papel da razão na formulação de
nossas concepções e valores morais, entendendo-a como algo que nos conduz a uma
vida de valorização do nada (niilismo), de negação de nossos impulsos vitais,
que é nossa vontade de poder, e, portanto, nos faz viver uma vida ética própria
da classe dos escravos e ressentidos.
A razão, portanto, na concepção
contemporânea, deve ser deixada de lado por não favorecer nossa liberdade, ou
melhor, nossa vontade livre, pois, ao contrário, ela coloca limites e
proibições a nossa conduta em vista de princípios metafísicos (niilistas). Com
efeito, o fato de entendermos a razão sem a hipocrisia iluminista nos faz
compreender que uma vida ética excelente é aquela que nos permite maior grau de
liberdade e, por consequência, de responsabilidade pelos nossos atos,
valorizando os impulsos vitais inerentes ao homem, contrariamente ao que
pensavam os cristãos, que negavam esses impulsos, trocando-os pela promessa do
paraíso, do céu, ou seja, de valores válidos universalmente e que são impostos
a todos como deveres.”
“Id,
ego e superego
Em sua obra O ego e o id (1976a, p.
14), que é o último dos seus grandes trabalhos teóricos, Freud “oferece uma
descrição da mente e de seu funcionamento que, à primeira vista, parece nova e
até mesmo revolucionária”. Ele elabora uma teoria da mente mais sofisticada em
comparação com as anteriormente propostas, aprimorando e clarificando sua
grande descoberta teórica — que o lançou ao hall
dos grandes pensadores de todos os tempos a saber, que nós não somos senhores
de nossa própria casa, mas governados por nossos impulsos e desejos que ficam
guardados no inconsciente*.
Formamos a ideia de que em
cada indivíduo existe uma organização coerente de processos mentais e chamamos
a isso o seu ego. É a esse ego que a consciência se acha ligada: o ego controla
as abordagens à motilidade — isto é, à descarga de excitações para o mundo
externo. Ele é a instância mental que supervisiona todos os seus próprios
processos constituintes e que vai dormir à noite, embora ainda exerça a censura
sobre os sonhos. (Freud, 1976a, p. 28)
Freud relaciona o ego com a parte do aparelho
mental que é consciente. No aprofundando a análise, ele percebe que há no
próprio ego algo que é também inconsciente, “que se comporta exatamente como o reprimido — isto é, que produz efeitos
poderosos sem ele próprio ser consciente e que exige um trabalho especial antes
de poder ser tornado consciente” (1976a, p. 30, grifo do original). É com base
nisso que Freud passa a caracterizar o aparelho mental e suas divisões com
outras denominações mais sofisticadas, preservando a originalidade principal.
Nesse contexto, surgem os termos id, ego e superego.
Wilson Castello de Almeida (Defesas do ego,
1996, p. 15) explica de forma clara e didática esses conceitos.
O chamado Id (Isso) nomeia a
instância virtual da personalidade correspondente à carga instintiva radicada
na estrutura constitucional da espécie humana, exigindo respostas imediatas
para suas necessidades básicas, elementares e vitais: pulsões de
autoconservação, por exemplo. [...] Do Id sairiam os impulsos, passíveis de
serem modificados pelo Ego, tarefa que este consegue através dos mecanismos de
defesa. [...] O Ego (Eu) formar-se-ia do Id, seria mesmo uma parte dele,
surgindo através de um processo de diferenciação. Se fosse possível situá-lo
espacialmente, ocuparia uma zona entre o Id e a realidade do mundo externo. O
Ego poderá inibir ou modificar o Id e também permitir-lhe transformar-se
diretamente em ação; e registraria os impulsos do Id projetando-os sobre os
objetos externos em forma de sentimentos e afetos.”
Em relação ao superego, Almeida (1996, p, 16)
nos mostra que se formaria a partir do processo de identificação das figuras
parentais que se inicia durante a fase de alimentação dos recém-nascidos. A
partir dessa fase de desenvolvimento da criança, surge o superego, o qual tem a
função de representar internamente as exigências normativas que a sociedade
impõe a todos os sujeitos por meio dos códigos morais e éticos, que cumprem o
papel de disciplinar, coagir e punir aqueles que não se enquadram no sistema
social.
*: Esse foi o terceiro grande
golpe que a humanidade sofreu em seu narcisismo. O primeiro golpe foi a criação
da teoria do heliocentrismo por Nicolau Copérnico, que tirou a Terra do centro
do Universo (e, consequentemente, 0 homem). O segundo golpe foi dado por
Charles Darwin com sua teoria do evolucionismo: com ela, o homem passou a estar
no mesmo nível dos outros animais, deixou de ser uma criatura especial, criada
imagem e semelhança de Deus, e passou a ser uma criatura que provém de um
processo evolutivo de outras criaturas, de outros animais.
Ética e psicanálise
O superego cria nossa consciência moral e nos
leva a seguir as regras e normas sociais. Ele procura introjetar os valores
morais em nós e nos obriga a cumpri-los sob pena de punição.
Claro que esse cumprimento nem sempre é feito
de maneira pacífica pelo aparelho psíquico do indivíduo, e o superego, por
vezes, é tomado como a instância que pune o próprio sujeito por não conseguir
se adequar às regras e aos valores sociais. Como efeito dessa punição, surge o
que Freud designa como culpa. Foi
observado por Freud (1976a, p. 65) que, em muitos casos, a culpa era o mais
poderoso obstáculo à cura de uma enfermidade. (...)
Uma das questões éticas que Freud procura
resolver durante essa análise é o porquê de o superego desenvolver tanta
rigidez para com o ego, introjetando neste valores e ideias morais que exigem a
repressão dos instintos vitais de maneira radical. Segundo Freud, isso ocorre
porque existem no ser humano basicamente dois impulsos básicos: os instintos de
vida, ou instintos sexuais (de amor), Eros, e os instintos de morte, ou de
agressividade, Thanatos.
Freud compreende que o objetivo primário de
todo homem é a satisfação integral de suas necessidades. A partir do momento em
que isso não ocorre, acontece um fenômeno interessante: os instintos voltam-se
para trás, para o interior, para dentro do próprio homem. É aí que residem as
doenças estudadas por Freud, é nessa repressão dos instintos básicos do homem,
por meio da introjeção dos ideais e dos valores morais pelo superego ao ego,
que surge a culpa e, como efeito desse poderoso sentimento, surgem a neurose e
outras doenças psíquicas.
Freud, em sua obra O mal estar na civilização (1974b, p, 146), afirma que a agressividade que o ego gostaria de ter
descarregado sobre outros indivíduos — sobre o pai, no caso do complexo de
Édipo — é introjetada, internalizada, mandada de volta para o lugar de onde
proveio, no sentido de seu próprio ego, sob a forma do superego.
A tensão entre o severo
superego o ego, que a ele se acha sujeito, é por nós chamada de sentimento de
culpa; expressa-se como uma necessidade de punição. A civilização, portanto,
consegue dominar o perigoso desejo de agressão do indivíduo, enfraquecendo-o,
desarmando-o e estabelecendo no seu interior um agente para cuidar dele, como
uma guarnição numa cidade conquistada. (Freud, 1974b,
p. 147)
O sentimento de culpa seria, portanto, fruto
da ação desse guardião da moral internalizado em nós na forma de superego. Este
tem a função de formar nossa consciência moral e fazer com que nossas ações
estejam em concordância com as leis sociais. Com efeito, vemos que, na concepção
formulada por Freud, nós somos impulsos e desejos inconscientes, não somos
senhores de nós mesmos se nossa razão não consegue nos governar. Para a ética,
isso tem consequências graves, pois, se não somos senhores de nossas ações,
como podemos ser responsáveis por elas? Nesse caso, não somos livres, pois não
conseguimos manter uma vontade livre que aja em conformidade com os deveres
sociais.
Quando descrevemos as reflexões éticas
elaboradas ao longo de toda a história, procuramos demonstrar como cada pensador,
em seu tempo histórico, buscou contribuir com esse estudo e apresentar soluções
para conflitos de ordem moral, mostrando-nos o caminho para uma vida virtuosa —
a qual anseia pelo bem, pela verdade — e que, de certa forma, foi cristalizado
em forma de leis, que devem ser seguidas por todos, leis que são frutos da
autonomia moral e de uma liberdade que visa a trazer benefícios para os seres
humanos como um todo. Todavia, diante da proposta de reflexão apresentada por
Freud, vemos alguns problemas surgirem: o que produzimos é fruto do nosso
inconsciente ou de nossos impulsos e instintos, mas a razão não tem autonomia
sobre eles e muito menos consegue controlá-los. A razão, nesse caso, seria uma
ficção moderna criada para iludir os indivíduos.
Da mesma forma, ao entendermos que a
repressão dos impulsos vitais causa uma série de prejuízos ao homem (como a
culpa ou as doenças de ordem psíquica), não podemos falar de autonomia moral
que seja capaz de criar regras e deveres possíveis de serem cumpridos na prática,
possíveis de serem realizados: a moral seria apenas um elemento criador de
doenças e nunca um elemento virtuoso que visa à construção de uma sociedade
harmoniosa e à felicidade.
Justamente por isso é que a psicanálise
fundada por Freud nos mostra que praticar atos que ao longo da história foram
considerados delitos ou violações de regras morais não podem ser tomados como
tal:
Do ponto de vista do
inconsciente, mentir, matar, roubar, seduzir, destruir, temer, ambicionar são
simplesmente amorais, pois o inconsciente desconhece valores morais. Inúmeras
vezes, comportamentos que a moralidade julga imorais são realizados como
autodefesa do sujeito, que os emprega para defender sua integridade psíquica
ameaçada (real ou fantasmagoricamente). Se são atos moralmente condenáveis,
podem, porém, ser psicologicamente necessários. (Chaui, 2000, p. 458)”
“Aparentemente, a concepção dos direitos
humanos apoia sua ideia de dignidade humana sobre a própria noção antropológica
que indica, ou seja, sobre a afirmação de que nós, como seres racionais e
autoconscientes, detemos uma condição única no mundo. Tal entendimento nos deve
permitir constatar que a condição humana se determina como sendo digna na
medida em que efetiva o seu ser no mundo, ou seja, por meio das experiências
vivenciadas que possam humanizá-la. Se assim for, devemos compreender
eticamente o ser humano mediante seu caráter volitivo, que sempre busca
aperfeiçoar as condições de sua existência.
Os direitos humanos têm como objetivo
sintetizar os mais variados referenciais éticos desenvolvidos ao longo da
história para nos ajudar a compreender a existência humana como um processo, ou
seja, para nos mostrar que o homem é um ser que está em constante transformação
e que, por isso, precisamos estar atentos para que, em meio a essas mudanças,
não percamos de vista alguns elementos essenciais que nos tornam humanos. Em
outras palavras, mesmo que as sociedades produzam transformações inimagináveis
para a espécie humana, devemos sempre preservar o que nos humaniza. Assim, a
ética que ancora os direitos do indivíduo em transformação adota o existir da
espécie humana sob desenvolvimento constante. Dá-se então que, humanamente,
existimos sobre um solo axiológico, para o qual servem de base os direitos
humanos como cabedal teórico/prático, impelindo nossa vontade — como capacidade
de escolha racional — a superar nossos instintos de amor próprio, por vezes
prejudiciais à vivência comunitária.”