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sexta-feira, 7 de junho de 2019

Tópicos Especiais em Filosofia Contemporânea – Valdinei Caes

Editora: InterSaberes
ISBN: 978-85-5972-509-4
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 214 

“Conforme Melani (Diálogo, 2013, p. 178), “Marx dedicou sua vida a organizar a luta dos trabalhadores e a refletir teoricamente sobre a política, a economia e a filosofia da época em que viveu, período em que o capitalismo se estabelecia plenamente”. O capitalismo no século XIX já estava consolidado e a exploração era seu sinal mais vigoroso. No entendimento de Marx, “capitalismo significa não apenas um sistema de produção de mercadorias, como também um determinado sistema no qual a força de trabalho se transforma em mercadoria e se coloca no mercado como qualquer objeto de troca” (Catani, O que é capitalismo, 2011, p. 8), privilegiando um pequeno grupo e extorquindo a maioria da população. É contra esse sistema que supervaloriza o ter em relação ao ser que Marx dedicou sua vida. Transformar ou até mesmo abolir essa realidade de exploração constitui um dos fundamentos do pensamento marxista.
O capitalismo, como forma de exploração do homem pelo próprio homem, só existe porque aqueles que detêm a concentração da propriedade dos meios de produção exploram a classe para a qual a venda da força de trabalho é a única fonte de subsistência. O sistema capitalista, na visão de Marx, estrutura-se de tal forma que aquele que vende sua força de trabalho na condição de mercadoria não tem como não se submeter à lógica do sistema, uma vez que precisa do necessário para sobreviver, nem que para isso tenha de trabalhar sob condições inadequadas e em troca de ordenados injustos. (...)
Nesse sentido, a fim de esclarecermos a crítica de Marx ao capitalismo, julgamos necessário recorrer ao entendimento de Huberman (História da riqueza do homem, 1986, p. 212) a respeito do assunto:
Talvez o princípio básico mais importante para todos os sonhadores de utopias fosse a abolição do capitalismo. [...] No sistema capitalista viam apenas males. Era desperdiçado, injusto, sem plano. Desejavam uma sociedade planificada, que fosse eficiente e justa. [...] Surgiu então Karl Marx. Também ele era socialista. Também ele desejava melhorar as condições da classe trabalhadora. Também ele desejava uma sociedade planificada. Também ele desejava que os meios de produção fossem propriedade de todo o povo. Mas — isso é muito importante — não planejou nenhuma utopia. Praticamente nada escreveu sobre a sociedade do futuro. Estava tremendamente interessado na sociedade do passado, em como evoluiu, desenvolveu-se e decaiu, até se tornar a sociedade do presente. Estava tremendamente interessado na sociedade do presente porque desejava descobrir as forças que nela provocariam a modificação para a sociedade do futuro. Mas não gastou seu tempo nem se preocupou com as instituições econômicas do amanhã. Passou quase todo o seu tempo estudando as instituições econômicas de hoje. Desejava saber o que movimentava as rodas da sociedade capitalista onde vivia.
Para Marx, esse capitalismo em que “o trabalhador é forçado a bastar-se com o mínimo vital, para não perder o emprego” (Catani, 2011, p. 30) não surgiu do nada, ele se desenvolveu historicamente, considerando-se as quatro grandes fases (primitiva, escravista, feudal e capitalista). O fator comum que permeia todas essas fases é o trabalho. O homem não trabalha porque quer trabalhar, ele trabalha porque tem necessidades básicas que devem ser supridas, como alimentar-se, ter uma moradia, dormir e vestir-se. Nesse sentido, a comunidade primitiva trabalhava pouco, indubitavelmente, porque tinha poucas necessidades, isto é, não se preocupava em acumular bens, vivia com o mínimo necessário.
As necessidades básicas evoluíram com a evolução do homem e da vida complexa em sociedade. Com essa evolução, que perpassa todas as fases, as necessidades básicas cederam lugar às necessidades sofisticadas. Assim, o homem passou a não se satisfazer mais com qualquer tipo de alimento. Surgiu certo refinamento e ele começou a fazer uma seleção daquilo que ingeria. Dessa forma, gosto, textura e sabor, por exemplo, passaram a ocupar lugar privilegiado nesse cenário.
Outro aspecto que podemos citar para exemplificar essa ideia diz respeito ao vestuário. Na sociedade primitiva, o homem vestia-se com peles de outros animais para se proteger do frio e usava poucas roupas. Com a evolução e a sofisticação, as peles rústicas foram substituídas por tecidos confeccionados pelo homem, variando de época para época e de cultura para cultura, segundo o poder aquisitivo de cada classe social. Além disso, os tecidos, que antes serviam apenas para encobrir os corpos, aquecê-los e protegê-los das intempéries, passaram a ter um valor simbólico, pois meramente vestir-se não era mais suficiente, tornou-se fundamental ostentar uma marca específica. O status social passou a ser determinado por aquilo que se possuía e pelas vestes que se usavam. A vaidade passou a ocupar um lugar de destaque na sofisticada vida em sociedade.
A propriedade privada, inexistente na fase primitiva, porém presente nas demais fases, sobretudo na capitalista, tornou-se um fator de extrema relevância, porque demonstrava a importância e a posição social que o indivíduo ocupava em determinada sociedade. Para Marx, “a propriedade privada não é dado absoluto que se deva pressupor em toda argumentação. Ela é muito mais “o produto, o resultado e a consequência necessária do trabalho do trabalhador expropriado” (Antiseri; Reale, História da filosofia, 2005, p. 174), fruto das relações entre os homens marcadas pela exploração.
Das relações entre os homens nasceram a riqueza, a pobreza e muitos males que assolam a humanidade até hoje. Marx entendia que à “máxima produção de riqueza corresponde o empobrecimento máximo do operário” (Antiseri; Reale, 2005, p. 174). Como esclarece Herculano (Em busca da sociedade, 2006, p. 6), “para sobreviverem, os homens entram em relação com a natureza, transformando-a, e em relação com os outros. Assim, ao mesmo tempo em que produzem a sua sobrevivência, produzem também a sociedade”, que, historicamente, dada a sua evolução, foi valorizando o ter e menosprezando o ser.
Esse sistema no qual tudo se torna válido em nome da riqueza, inclusive o empobrecimento máximo, representa o capitalista, que Marx condena. “No capitalismo, os poucos que não trabalhavam viviam com conforto e luxo, graças à propriedade dos meios de produção” (Huberman, História da riqueza do homem, 1986, p. 212). Na lógica do sistema capitalista, muitos perdem e poucos ganham. O acúmulo de capital não deve ser acessível a todos, pois, se assim fosse, não haveria a concentração de capital nas mãos de poucos. O capital é, para Marx, “a propriedade privada dos produtos do trabalho alheio” (Antiseri; Reale, 2005, p. 174, grifo nosso). É essa realidade que deve sofrer interferência e ser transformada, pois todo homem tem direito de desfrutar daquilo que seu trabalho produz.
Marx buscava entender os meandros do capitalismo para poder transformar a realidade capitalista, diminuindo ou erradicando a exploração. Fica claro que Marx compreendia bem o sistema, mas não conseguiu, contudo, transformá-lo. Os mecanismos de exploração foram ficando cada vez mais sofisticados. As pessoas se mostram cada vez menos conscientes da exploração que sofrem, e a educação está a serviço do sistema, reproduzindo e legitimando a desigualdade social. Para Marx, não é a educação que transforma a sociedade: a educação transforma as pessoas e elas é que podem transformar a sociedade, desde que não sejam vítimas de uma educação a serviço das finalidades do sistema.
Nas Teses sobre Feuerbach, mais precisamente na terceira tese, Marx (1999, p. 5) afirma:
A teoria materialista de que os homens são produto das circunstâncias e da educação e de que, portanto, homens modificados são produtos de circunstâncias diferentes e de educação modificada esquece que as circunstâncias são modificadas precisamente pelos homens e que o próprio educador precisa ser educado. Leva, pois, forçosamente, à divisão da sociedade em duas partes, uma das quais se sobrepõe à sociedade [...]. A coincidência da modificação das circunstâncias e da atividade humana só pode ser apreendida e racionalmente compreendida como prática transformadora.
É importante ressaltar, com base no exposto, que Marx nunca apostou que a educação seria o instrumento que iria pôr fim à realidade capitalista. Sem dúvida, trata-se de um instrumento significativo no processo de conscientização da exploração, mas não é o fator que gera o fim da exploração. O que poderia barrar a exploração gerada pelo sistema capitalista é a conscientização da classe trabalhadora quanto à exploração sofrida, a união e o uso da força para expropriar das mãos da classe dominante os meios de produção.
O ideal marxista, que consistia na supressão da exploração de um indivíduo por outro, bem como da exploração de uma nação por outra (Marx; Engels, Manifesto do Partido Comunista, 2015, p. 86), não vigorou, não se fortaleceu, e a exploração continua: o homem está explorando cada vez mais o próprio homem, assim como fazem as nações entre si.
Nessa realidade hostil à vida – em que o menos favorecido é explorado e ganha apenas o essencial para a própria subsistência, enquanto o mais favorecido enriquece e usufrui dos benefícios do lucro acumulado e da riqueza produzida à custa do suor e do sangue alheio –, a igualdade não conquista espaço, porque há uma fissura longa e profunda que separa a sociedade em classes: aquela que detém o capital e os meios de produção e aquela que possui apenas a força de trabalho e deve vendê-la para sobreviver aos efeitos do sistema.
No mundo capitalista, o detentor dos meios de produção não se contenta em explorar ao extremo; ele cria mecanismos para retirar do explorado o pouco que lhe foi concedido, em forma de pagamento, por seus serviços prestados, muitas vezes em condições insalubres. Nesse sentido, Marx e Engels (2015, p. 72) ressaltam que, “terminada temporariamente a exploração do operário pelo fabricante, na medida em que recebe o seu salário em dinheiro, logo lhe caem em cima os outros setores da burguesia, o senhorio, o varejista, o agiota etc”,
Em outros termos, a exploração é incessante. O capitalista não enxerga limites, o que significa que será tirado daquele que quase não tem até o que ele possui. Isso, para Marx, é inadmissível, pois é preciso que cada indivíduo tenha acesso ao que for necessário, segundo sua capacidade e suas necessidades, a fim de construir uma vida digna. Esse sistema que explora a maioria para garantir uma vida de opulência, conforto e luxúria para uma minoria deve ser transformado com base na conscientização acerca da exploração e da luta para evitá-la. Desse modo, seria possível construir uma sociedade em que todos os cidadãos tivessem uma vida digna.”


“Não há história sem conflitos, assim como não há conflitos que estejam fora da história. Na maioria das vezes, a consciência gera o conflito, o conflito gera a revolta, e a revolta conflitante, dados os interesses inconciliáveis, é o fator gerador de mudanças na sociedade.”


“Com Marx, o capitalismo é entendido como uma consequência histórica relacionada ao homem, ao trabalho, ao produto do trabalho e à economia. Com o advento do capitalismo e da exploração do homem pelo próprio homem, Marx intentou a edificação de uma sociedade em que o produto do trabalho não fosse mais valorizado do que o sujeito histórico que o produziu.”


“Ao tomarmos como base a Grécia antiga, podemos ressaltar que as origens do pensamento predominante no Ocidente surgiram com a filosofia de Platão. Sua proposta estava vinculada a uma racionalização da vida, o que a distanciava de toda visão cosmológica adotada por seus antecessores. Ele deslocou a primeira motivação da filosofia, que estava centrada na noção de arché (com ênfase na natureza), para a segunda perspectiva, segundo a qual o homem ocupa uma posição privilegiada, com destaque para a alma. Assim, Platão elabora, no interior da história da filosofia, a dicotomia corpo versus alma. Platão via o corpo como uma prisão da alma, aquilo que impedia o homem de alcançar o conhecimento do bem e da verdade. Ele valorizava a alma em detrimento do corpo, pois queria destacar uma sobreposição de um “eu”, um sujeito, um ser racional, ou seja, a essência humana.
Friedrich Nietzsche (1844-1900), ao contrário de Platão, via no corpo aquilo que é o homem, o fio condutor* da própria vida. Além disso, o filósofo alemão entendia as configurações platônicas como apenas uma interpretação humana, mas advinda de um erro, de uma ficção. (...)
A única realidade existente é a física em detrimento de todas as causas mentais ou espirituais.
O corpo passou a ser visto, então, como o labirinto no qual o indivíduo se confronta. Para Nietzsche (2005b, Humano, demasiado humano, p. 119), “se quiséssemos e ousássemos uma arquitetura conforme a natureza de nossa alma (somos covardes demais para isso!) – então o labirinto seria o nosso modelo”. O pensador lança mão da metáfora do labirinto para demonstrar que a vida não tem essa racionalidade pensada por Platão. Isto é, se nos encontrássemos em um lugar com muitos obstáculos e pensássemos como Platão, possivelmente desejaríamos sair, mas, para o filósofo alemão, a intenção é não racionalizar a vida, não mensurá-la, e a meta aqui apresentada “é não ter meta, mas oportunizar o experimento e a vida” (Lacerda, 2015, p. 127), ou simplesmente vivê-la, não fugir dela e do incremento de prazer que carrega consigo. (...)
Em A gaia ciência, Nietzsche (2004a, p. 10) se questiona “se até hoje a filosofia, de modo geral, não teria sido apenas uma interpretação do corpo e uma má-compreensão do corpo”, que foi apresentada de forma dogmática levando o homem a eximir-se de qualquer explicação ou questionamento sobre si mesmo. Podemos afirmar que Nietzsche vai apontar o corpo para expressar um rompimento do dualismo entre corpo e alma. O que Nietzsche pretende com sua crítica é desmistificar as crenças que nascem no âmago da metafísica desde Platão e “em contraposição a este, mostrar que a sabedoria não está em conquistar o conhecimento sobre o que é fixo (aos moldes da ideia e do conceito), mas no que é, justamente, passageiro como se apresenta a ideia do andarilho” (Lacerda, A noção de metafísica a partir do arcabouço teórico do segundo período da obra nietzschiana, 2014, p. 157, grifo do original).
Seu escopo é valorizar o devir, o fluir de todas as coisas, e mostrar que elas têm uma história e não são dadas como miraculosas, como propõe a filosofia metafísica.
Conforme Nietzsche, em sua obra O nascimento da tragédia, o grego era aquele que, na época trágica, experimentava a vida em sua forma natural, vivendo intensamente os valores inerentes à sua natureza. A dicotomia de um mundo aparente e outro verdadeiro não passa de um sintoma de decadência, associada à ideia de não saber valorizar a vida com alegria. “Pois ‘a aparência’ significa, nesse caso, novamente a realidade, mas numa seleção, correção, reforço... O artista trágico não é um pessimista — ele diz justamente Sim a tudo questionável e mesmo terrível, ele é dionisíaco...” (Nietzsche, Crepúsculo dos ídolos, 2006, p. 19, grifo do original). Assim, ele pode experimentar a si mesmo e reconhecer-se com base na “satisfação consigo” (Nietzsche, 2004a, p. 173), o que o levará a ter um novo olhar sobre tudo o que é humano.
*: O corpo deve ser tomado como “fio condutor” (KSA 11, 40 [15], p. 634) porque é através dele que se exprime tudo aquilo que caracteriza a vida e todas as suas relações de força.


 “A proposta fundamental da fenomenologia é que o filósofo se volte para as próprias coisas. Para além de construções e teorizações aparentemente justificadas, o fenomenólogo deve construir uma filosofia que se fundamente sobre dados indubitáveis, isto é, sobre evidências estáveis. Sem evidências, não há ciência, como afirma Husserl em suas Pesquisas lógicas. Os limites das evidências apodíticas revelam as limitações do saber. Assim, é preciso buscar fenômenos tão evidentes que não se possa negá-los.
Esse, portanto, é o pano de fundo da fenomenologia: a epoché fenomenológica, isto é, pôr em parênteses as percepções filosóficas, os resultados da ciência e as certezas embotadas das crenças naturais que se impõem em determinada visão de mundo e das coisas.
Em outras palavras, é essencial suspender os juízos sobre tudo o que não é apodítico nem controverso até que se consiga encontrar aqueles dados que resistem aos assaltos da epoché.”


“Para Kierkegaard, o “esteta”, a rigor, não tem como meta “possuir” todas as vítimas de suas conquistas; seu deleite mais profundo consiste em conquistar e logo em seguida abandonar a jovem conquistada. Dessa forma, talvez seja necessário nos perguntarmos: Por que o esteta tem mais prazer em conquistar do que em possuir o objeto de sua conquista? Por que a conquista é mais importante do que usufruir daquilo que foi conquistado? Talvez porque o esteta é demasiadamente cauteloso e ciente de sua posição, pois seu escopo consiste em fazer-se amar antes de amar.
Eu sou um esteta, um erótico, que apreendeu a natureza do amor, a sua essência, que crê no amor e o conhece a fundo, e apenas me reservo a opinião muito pessoal de que uma aventura galante só dura, quando muito, seis meses, e que tudo chegou ao fim quando se alcançam os últimos favores. Sei tudo isto, mas sei também que o supremo prazer imaginável é ser amado, ser amado acima de tudo. Introduzir-se como um sonho na imaginação de uma jovem é uma arte, sair dela, uma obra-prima. Mas esta depende essencialmente daquela. (Kierkegaard, Diário de um sedutor – Temor e tremor – O desespero humano, 1979, p. 51)
Percebe-se, portanto, que a satisfação do esteta não atinge seu ápice no momento de se apropriar do objeto de sua conquista, mas na hora de seu abandono, sem lhe dar direito a palavras, razões ou justificativas para deixar aquilo que se empenhara em conquistar. O esteta, ao ter a certeza de que a jovem é “capaz de tudo lhe sacrificar”, chega ao momento mais sublime para ele: o instante em que tudo se rompe sem que tenha feito sequer uma declaração ou uma promessa. Prevalece apenas o silêncio.
Embora o esteta esteja envolvido com suas afecções, é por demais racionalista. Isso o impede de se envolver para além daquilo que tinha sido arquitetado para suas vítimas. “No entanto, algo ficara impresso nela, como uma marca, ou seja, o rompimento sem direito a satisfações”. (...)
O esteta está em paz consigo, pois tudo não passa de “uma conduta simulada” na qual as promessas e as juras não são mais do que meras palavras desprezíveis, desprovidas de sentido, verdade e compromisso. Por outro lado, para a pobre jovem rejeitada, as promessas são verdadeiras e, por isso,
difícil será reencontrar a paz. Ela perdoa-lhe, do mais fundo do seu coração, mas não encontra repouso porque a dívida regressa; foi ela quem acabou o noivado, foi ela a culpada da desgraça, foi o seu orgulho que aspirou ao que foge ao banal. Ela arrependeu-se, mas não encontra repouso, porque os pensamentos acusadores a desculpam; foi ele quem, pela sua astúcia, lhe introduziu na alma tal projeto. E então odeia-o, o seu coração alivia-se em maldições, mas, uma vez mais, não encontra repouso; censura-se por tê-lo odiado, ela, que é afinal uma pecadora; censura-se porque, apesar de todas as perfídias por ele praticadas, sempre será culpada. (Kierkegaard, 1979, p. 7)
No uso de sua liberdade irrestrita, o esteta, sob o invólucro do desejo da conquista pela conquista, desperta no âmago do alvo a ser conquistado um dos mais nobres sentimentos que o ser humano pode nutrir: o amor. Ele se realiza no “fato de entregar-se ao gozo das sensações imediatas” (Farago, Compreender Kierkegaard, 2006, p. 121). O esteta, ao perceber que esse sentimento que “habita no secreto, ou se acha escondido no mais profundo do coração” (Kierkegaard, citado por Farago, 2006, p. 73) do ser humano está se fortalecendo no interior de sua vítima, deixa-a desamparada. Nesse momento, o sentimento de culpa aloja-se no interior da jovem e não a abandona. Enquanto isso, o esteta está continuamente distanciando-se do objeto de sua conquista sem remorso algum.
No estádio estético, o homem da sensualidade, isto é, o esteta, o Don Juan, encontra-se tão voltado para si próprio que se torna incapaz de se abrir para a relação com o outro. Nesse estádio, o esteta não se compreende como alguém capaz de partilhar sua existência com outrem. Desse modo, após a conquista, o abandono torna-se iminente.
Por um lado, o grande objeto de conquista do esteta não é apenas uma ou outra bela e bem-educada jovem, mas a própria vida: uma razão pela qual possa lutar, viver e morrer. Por outro lado, ainda falta ao esteta, mesmo depois de ter colecionado uma série de conquistas, um sentido para seu existir, o que o coloca diante do vazio, de dúvidas e, sobretudo, do desespero. Isso ocorre porque,
cortado de si mesmo, ele se isola cada momento do tempo para dele fazer uma totalidade intensiva que lhe serve de eternidade. Esta vida, feita de uma série de momentos contraditórios, cada um dos quais pretende realizar um absoluto gozo, corresponde a esta fuga do homem para frente procurando separar-se de sua sombra, sem conseguir jamais. (Farago, 2006, p. 120)
Na fuga incessante de si mesmo, o esteta, o homem de extremos e insensível, esconde o desespero e sacrifica tudo “à busca do prazer imediato” (Farago, 2006, p. 122), que o leva ao encontro com o outro, mas não à realização de si mesmo. Essa situação “condena-o ao desespero” (Farago, 2006, p. 122). E, uma vez mais, o esteta, tentando fugir do desespero que o envolve, depara-se com a esfera estética da existência. Assim, cada conquista consumada na esfera estética se resume a uma atualização do presente, que visa “restaurar a imediatez do instante vivido sendo ao mesmo tempo um ato refletido” (Farago, 2006, p. 122). Mesmo se tratando de um ato refletido a cada conquista, o esteta olha para si próprio e diz: “Minha vida está totalmente nua de sentido [...]. Assim comigo, diante de mim, [há] sempre um espaço vazio; [...] é cruel e insuportável... ” (Farago, 2006, p. 122).
A consciência do vazio e da angústia experimentados pelo esteta acentua o limite da esfera estética da existência, o que exige um novo modo de vida, a fim de que o fardo da existência se torne suportável. O vazio culmina no desespero da existência do esteta, caracterizado pela falta de sentido com a qual se depara em seu existir, envolvido pela angústia, que “é a realidade da liberdade enquanto possibilidade para a possibilidade” (Kierkegaard, O conceito de angústia, 2010, p. 45), ou, ainda, “como o mostrar-se da liberdade para si mesma na possibilidade” (Kierkegaard, 2010, p. 119). Essa realidade da liberdade, que Kierkegaard denomina angústia, coloca o homem diante do nada quando ele valoriza apenas o prazer, o efêmero, o fugaz, enquanto atualização do instante. A possibilidade consiste em ser capaz de se tornar o que se almeja ser. Assim, o indivíduo, sob a ótica kierkegaardiana, é mais do que a imediatez do prazer; ele é aquilo que faz de si na realidade da liberdade enquanto possibilidade de ser capaz de ser o que deseja ser.
O vazio e a angústia que envolvem o esteta abrem espaço para a vivência do estádio ético da existência. “O instante tem sempre uma importância capital, pois o que lhe diz respeito é sempre uma aparência. [...] O instante é tudo” (Kierkegaard, 1979, p. 96). É nele que o homem se deleita de sua conquista, mas é nele também que ele se depara com o vazio em sua existência e percebe “como a vida é cheia de mistérios” (Kierkegaard, 1979, p. 93). Então, esse estilo de vida não se sustenta mais. Para continuar a viver, torna-se fundamental realizar a passagem do estádio estético para o estádio ético e, assim, apaziguar o desespero que o invade. A existência no modo estético chega ao fim quando o esteta esgota todas as possibilidades de significar sua existência, ao apostar em suas conquistas, mas sem encontrar o verdadeiro sentido de existir nelas, dada a fugacidade do prazer.”


“Se no estádio estético o homem vivia segundo suas paixões, em busca de uma nova vítima para conquistar, no estádio ético o que o conduz não são seus desejos, mas, sobretudo, a razão. Isso não significa que as paixões não existam — elas existem, mas estão subordinadas ao intelecto.
Como se sabe, na dimensão estética o indivíduo atua de acordo com seu instinto à procura desinibida pelo prazer, pela beleza e pela felicidade. Antagonicamente, na dimensão ética ele deixa de agir sem refletir, pois suas ações visam um fim com perspectivas de futuro; fato que no primeiro estádio não se é pensado devido à ação sem ter em vista algo de futuro, no entanto, almejando, em suma, uma conquista presente. (Caes, O indivíduo segundo a caracterização kierkegaardiana em contraposição ao indivíduo hegeliano, 2012, p. 92)
Nesse estádio, o homem não está mais apenas preocupado ou comprometido com o presente. Ele já compreendeu que as ações no presente podem comprometer o futuro. Por esse motivo, antes de tomar quaisquer decisões, a reflexão precede os sentimentos e os controla, uma vez que a escolha realizada acarretará consequências, sejam elas positivas, sejam negativas.”


“Para Sartre, o homem, quando compreende que sua escolha não é apenas para si, mas envolve a humanidade inteira, assimila e assume essa responsabilidade e, por isso, angustia-se. A angústia, por sua vez, sendo oriunda do sentimento de responsabilidade que todo homem tem para com a humanidade, não coloca o sujeito em estado de inércia – ao contrário, exige dele uma escolha que o leva a agir. E a consequência dessa ação é o próprio homem quem deve decidir e julgar como boa ou má.
No caso do chefe militar, Sartre (2014, O existencialismo é um humanismo, p. 30) ressalta:
Quando, por exemplo, um chefe militar assume a responsabilidade de atacar e envia um certo número de homens à morte, ele faz uma escolha, e a faz, no fundo, totalmente só. Sem dúvida há ordens que vêm de cima, mas elas são amplas e precisam de uma interpretação, que será dada por ele, e dessa interpretação depende a vida de dez, quatorze ou vinte homens. É inevitável que ele tenha, ao tomar essa decisão, uma certa angústia. Todo chefe militar conhece essa angústia. Isso não os impede de agir, pelo contrário, é a condição mesma de sua ação, pois supõe que eles vislumbrem diversas possibilidades e, quando optam por uma delas, percebem que ela só tem valor por ter sido escolhida. E essa espécie de angústia, que é a que descreve o existencialismo, [...] não é uma cortina a nos separar da ação, mas antes, faz parte da ação em si.
O chefe militar, ao decidir atacar o inimigo, envia seus soldados à batalha. Em combate, alguns perecerão, enquanto outros viverão a glória da conquista pela destruição do inimigo. O chefe militar tinha consciência das vidas que seriam perdidas e assumiu a responsabilidade por elas, pois não havia como se esquivar das exigências da escolha realizada. “O que quer que ele faça, não tem como não assumir a total responsabilidade diante dessa situação” (Sartre, 2014, p. 51). Isso acontece porque “fazemos escolhas perante os outros” (Sartre, 2014, p. 54, grifo nosso), embora as escolhas sejam nossas. A escolha foi de Abraão pelo sacrifício de seu filho, ao ouvir a suposta voz do anjo que lhe exigia tal feito; a escolha foi do chefe militar pelo envio de seus soldados ao combate, mesmo sabendo que muitos não retornariam vivos, depois de receber a mensagem de instância superior.
O que Sartre almeja demonstrar, em ambas as situações, é que o homem não pode eximir-se da responsabilidade pela consequência da escolha, que faz parte da ação. Toda ação é precedida por uma escolha, que nunca será impedimento para a ação, mas condição para sua concretização.
Nesse ponto, havendo clareza de que a angústia surge do sentimento de total e profunda responsabilidade sobre a humanidade, o sujeito da ação, isto é, o homem, depara-se com a necessidade de decidir, sendo, portanto, livre para escolher da maneira que quiser. A escolha pela não escolha, assim como a procrastinação da decisão, a incapacidade ou a recusa de assumir os riscos que estiverem aliados à escolha, coloca, por sua vez, em estreita relação a angústia e a má-fé.
A má-fé, segundo Sartre (A idade da razão, 1996, p. 95), está relacionada à indecisão e à contradição: talvez uma das melhores definições de má-fé apresentadas por Sartre é aquela segundo a qual o homem sabe, mas, ao mesmo tempo, não quer saber – ou seja, é uma contradição interna do sujeito, algo que se manifesta como aquilo que ele sabe que é, mas que não gostaria de saber. Por isso, não se decide e passa a viver de forma indecisa e contraditória – não em relação aos outros, mas em relação a si próprio. Quando Sartre ressalta que a má-fé é, também, mentira, é no sentido de uma mentira que se conta para si mesmo, e não para outra pessoa, numa tentativa de fugir de si próprio.
Além disso, a ocultação da verdade, as desculpas e a ação descomprometida com o outro, associada à incapacidade de admitir a angústia ou à tentativa de evitá-la mesmo sabendo que é iminente, não deixam de ser facetas da má-fé – especialmente quando vinculadas ao ingênuo pensamento de que é possível, ao agir, comprometer apenas a si próprio. E o principal desses pontos é o erro. “Ao definirmos a situação humana como sendo de uma escolha livre, sem escusas e sem auxílios, todo homem que se refugia por trás da desculpa de suas paixões, todo homem que inventa um determinismo, é um homem de má-fé. [...] A má-fé é, evidentemente, uma mentira [...], um erro” (Sartre, 2014, p. 54).
Enquanto, de um lado, a angústia se apresenta como expressão autêntica da liberdade do homem na busca pela realização última da própria liberdade em cada circunstância concreta, a má-fé, de outro lado, manifesta-se como uma rejeição que o sujeito faz de sua liberdade ao se refugiar em suas paixões e desculpas, numa tentativa de evitar ou mascarar a angústia que o insere imediatamente na vida, em função de sua liberdade.”


“Na primeira fase de Wittgenstein, mais influenciada pelo pensamento de Russell e representada pelo Tractatus Logico-Philosophicus, Wittgenstein se dedica à busca por uma estrutura lógica que caracterize o funcionamento da linguagem, que é concebida como o espelho do mundo, de tudo aquilo que existe. O que não pudesse ser dito pela linguagem de forma clara cairia no campo metafísico, isto é, no campo do indizível, restando apenas à filosofia criticar esses equívocos. Em termos teóricos, só haveria a possibilidade de conhecer o mundo por meio da linguagem. Portanto, “toda filosofia é crítica da linguagem” (Wittgenstein, Tratado lógico-filosófico, 1987b, § 4.0031). Por isso, o filósofo remete à seguinte asserção: “Os limites da minha linguagem significam os limites do meu mundo” (Wittgenstein, 1987b, § 5.6).
Em sua segunda fase, Wittgenstein deu o chamado giro de 180º e distanciou-se do entendimento de que a proposição e sua verdade devem ser verificadas na experiência do mundo real. Nesse período, passou a afirmar que há uma impossibilidade legítima entre um conceito lógico (da linguagem) e um conceito empírico (da realidade).
Em outros termos, a linguagem não se limitaria a uma capacidade conceitual da realidade, isto é, não seria a reprodução fiel do objeto, o espelho do mundo, mas uma atividade, um jogo, e os jogos de linguagem adquirem seu significado no social, na intersubjetividade, nos diferentes modos de ser e de viver nos quais a fala está inserida. Dessa forma, de certa maneira, é a linguagem que passa a determinar a concepção que adquirimos acerca da realidade.”


“Ao longo da história, a humanidade criou maneiras para aprender a lidar com suas perguntas. Tais formas surgiram das necessidades impostas pelos problemas cotidianos, por dificuldades que se apresentavam em determinado contexto ou época.
O próprio surgimento da filosofia ocorreu dessa maneira, como tentativa de situar o homem no mundo, de compreender os fenômenos da natureza, de encontrar respostas para as perguntas que pareciam não ter solução ou aquelas que o pensamento mítico já não conseguia responder satisfatoriamente.
A razão humana, considerada no período do surgimento da filosofia, era capaz de agir sobre o próprio ser humano e suas formas de organização, mas não sobre a natureza, com a qual o homem precisa se entender, uma vez que não dispõe de meios para transformá-la. Por esse motivo, no surgimento da filosofia, conhecer a natureza, seus limites e suas possibilidades era fundamental para contextualizar as questões humanas.
Diante disso, é possível afirmar que a filosofia, desde o seu surgimento, é uma forma de pensamento sistemático, organizado, que exige profundidade e que busca uma compreensão dos contextos nos quais se insere. Assim, não é possível dissociá-la do mundo, tampouco da vida. A filosofia, para Jaspers, deve retirar o homem da zona de conforto, isto é, levá-lo a uma inquietação profunda, distanciando-o da situação de anestesia perante os problemas do mundo. Ela, portanto, deve questionar essa postura e obrigar cada um a olhar o processo a partir do qual constrói seu pensamento e que lhe serve de base para concluir o que conclui.
A filosofia, portanto, não é um pensar descontextualizado, uma viagem ao mundo de ideias fantasiosas. Ela se constrói a partir de conceitos que têm uma gênese e um contexto. Pressupõe que se tenha um profundo conhecimento de si e da realidade para que se possa pensar com fundamentos sólidos acerca de questões e problemas fundamentais que envolvem a existência humana.”

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