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quarta-feira, 3 de outubro de 2018

O neoliberalismo: história e implicações (Parte II) – David Harvey

Editora: Loyola
ISBN: 978-85-15-03536-6
Tradução: Adail Sobral e Maria Stela Gonçalves
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 256
Sinopse: Ver Parte I


“Isso nos leva, finalmente, à problemática questão da abordagem seguida por Estados neoliberais quanto aos mercados de trabalho. No plano doméstico, o Estado neoliberal é necessariamente hostil a toda forma de solidariedade social que imponha restrições à acumulação do capital. (...) O resultado geral se traduz em baixos salários, crescente insegurança no emprego e, em muitos casos, perdas de benefícios e de proteções ao trabalho. Podemos discernir prontamente essas tendências em Estados que seguiram o caminho neoliberal. Dado o violento ataque a todas as formas de organização do trabalho e aos direitos do trabalhador, a que se adiciona o amplo recurso a reservas de mão-de-obra numerosas mas altamente desorganizadas em países como a China, a Indonésia, a Índia, o México e Bangladesh, tem-se a impressão de que o controle do trabalho e a manutenção de um elevado grau de exploração do trabalho têm se constituído desde o começo num componente essencial da neoliberalização. A formação ou a restauração do poder de classe ocorrem, como sempre, à custa dos trabalhadores.
É justo nesse contexto de redução de recursos pessoais advinda do mercado de trabalho que a determinação neoliberal de devolver toda responsabilidade por seu bem-estar ao indivíduo tem efeitos duplamente deletérios. À medida que reduz os recursos dedicados ao bem-estar social e reduz o seu papel em áreas como a assistência à saúde, o ensino público e a assistência social, que um dia foram tão fundamentais para o liberalismo embutido, o Estado vai deixando segmentos sempre crescentes da população expostos ao empobrecimento10. A rede de seguridade social é reduzida ao mínimo indispensável em favor de um sistema que acentua a responsabilidade individual. Em geral se atribuem os fracassos pessoais a falhas individuais, e com demasiada frequência a vítima é quem leva a culpa!”
10. V. NAVARRO (Ed.), The Political Economy of Social lnequalities: Consequences for Health and the Quality of life, Arnityville, NY, Baywood, 2002.


“O Estado produz tipicamente legislação e estruturas regulatórias que privilegiam as corporações e, em alguns casos, interesses específicos, como energia, produtos farmacêuticos, agronegócios etc. Em muitos casos das parcerias público-privadas, em especial no nível dos municípios, o governo assume boa parte do risco enquanto o setor privado fica com a maior parte dos lucros. Se necessário, o Estado neoliberal além disso recorre a legislações coercivas e táticas de policiamento (por exemplo, regras antipiquete) para dispersar ou reprimir formas coletivas de oposição ao poder corporativo. As maneiras de vigiar e policiar se multiplicam: nos Estados Unidos, a prisão se tornou uma estratégia-chave do Estado para resolver problemas que surgem entre trabalhadores descartados e populações marginalizadas. O braço coercivo do Estado é fortalecido para proteger interesses corporativos e, se necessário, reprimir a dissensão. Nada disso parece compatível com a teoria neoliberal. O temor neoliberal de que grupos de interesses pervertam e subvertam o Estado em nenhum lugar se realiza melhor do que em Washington, em que exércitos de lobistas corporativos (muitos dos quais se aproveitaram da “porta móvel” que lhes permite deixar o emprego no Estado e buscar empregos bem mais lucrativos nas corporações) ditam na prática a legislação mais adequada a seus interesses. Embora alguns Estados continuem a respeitar a tradicional independência do serviço público, esta condição tem estado em toda parte ameaçada no curso da neoliberalização. A fronteira entre o Estado e o poder corporativo tornou-se cada vez mais porosa. O que resta da democracia representativa é sufocado, quando não, como no caso dos Estados Unidos, totalmente, ainda que legalmente, corrompido pelo poder do dinheiro.”


“O enfraquecimento (como na, Grã-Bretanha e nos Estados Unidos), a superação (como na Suécia) ou a destruição violenta (como no Chile) das forças do trabalho organizado é uma precondição necessária da neoliberalização. Da mesma maneira, esta tem dependido com frequência do poder, da autonomia e da coesão crescentes dos negócios e corporações e de sua capacidade como classe de pressionar o poder do Estado (como nos Estados Unidos e na Suécia). Essa capacidade é exercida com maior facilidade, de maneira direta, por meio das instituições financeiras, dos comportamentos de mercado, da interrupção de investimentos ou da fuga de capitais, e, indiretamente, influenciando o resultado de eleições, fazendo lobby, subornando e corrompendo, ou, de forma mais sutil, obtendo o poder sobre as ideias econômicas. O grau em que a neoliberalização foi incorporada às compreensões de senso comum da população em geral tem exibido amplas variações, a depender da força da crença no poder das solidariedades sociais e na importância das tradições de responsabilidade e provisão sociais coletivas. Tradições políticas e culturais que estão na base do senso comum popular tiveram por conseguinte participação na diferenciação do grau de aceitação política dos ideais da liberdade individual e das determinações do livre mercado, em oposição a outras formas de sociabilidade.
Contudo, o aspecto mais digno de nota da neoliberalização vem da complexa interação entre dinâmica interna e forças externas. Embora em certos casos se possa conceber com certo grau de racionalidade que estas últimas foram dominantes, na maioria dos exemplos as relações são bem mais intricadas. Afinal, no Chile, foram as classes altas que procuraram a ajuda dos Estados Unidos para arquitetar o golpe, e foram elas que aceitaram a reestruturação neoliberal como o caminho a seguir, ainda que com base nos conselhos de tecnocratas treinados nos Estados Unidos. E na Suécia foram os patrões que buscaram a integração europeia como recurso para estabelecer um programa doméstico neoliberal para uma economia em dificuldades. É improvável que mesmo o mais draconiano programa de reestruturação do FMI possa ir adiante sem ao menos algum apoio interno da parte de alguém. Tem-se por vezes a impressão de que o FMI apenas assume a responsabilidade por fazer coisas que alguma força de classe interna quer fazer de qualquer maneira. E há um número suficiente de casos bem-sucedidos de rejeição de conselhos do FMI para sugerir que o complexo Tesouro dos Estados Unidos-Wall Street-FMI não é tão poderoso quanto por vezes se afirma. Só quando a estrutura interna de poder foi reduzida a uma casca oca e os arranjos institucionais internos estão num total caos, seja em função de um colapso (como na União Soviética e na Europa Central), por causa de guerras civis (como em Moçambique, no Senegal ou na Nicarágua) ou em razão de fraquezas degenerativas (como nas Filipinas), vemos forças externas orquestrando livremente reestruturações neoliberais. (...)
Se a neoliberalização produz descontentamento social e instabilidade política do tipo que a Indonésia ou a Argentina vivenciaram em época recente, ou se resulta em depressão e restrições ao crescimento dos mercados internos, então seria possível com a mesma facilidade dizer que ela antes repele do que estimula investimentos46. Mesmo quando algum aspecto da política neoliberal com relação a, digamos, mercados de trabalho flexibilizados ou liberalização financeira foi solidamente implantado, não fica claro que isso seja por si só bastante para atrair capitais móveis. E há, além disso, o problema bem mais sério de que tipo de capital é atraído. O capital de portfólio é atraído com a mesma facilidade por uma expansão especulativa e por sólidos arranjos institucionais e infraestruturais que poderiam atrair indústrias de alto valor adicionado. Atrair “capital predador” dificilmente parece ser um empreendimento benéfico, mas isso é o que na realidade a neoliberalização conseguiu na maioria das vezes (como o admitem declaradamente críticos como Stiglitz). (...)
E o fato de os Estados Unidos já não precisarem se defender da ameaça do comunismo implica que o país já não tem necessidade de preocupar-se excessivamente com o fato de reestruturações neoliberais desencadearem desemprego em massa e descontentamento social aqui ou ali. Os Estados Unidos, para grande tristeza dos leais tailandeses, que apoiaram o país durante toda a Guerra do Vietnã, não se deu ao trabalho de resgatar a Tailândia no momento da aflição. Na verdade, instituições financeiras norte-americanas e de outras procedências se deliciaram consideravelmente com o papel de capital predador.
Mas um fato persistente no âmbito dessa complexa história da neoliberalização desigual tem sido a tendência universal a aumentar a desigualdade social e a expor os membros menos afortunados de toda e qualquer sociedade – seja na Indonésia, no México ou na Inglaterra – ao frio glacial da austeridade e ao destino tenebroso da crescente marginalidade. Embora essa tendência tenha sido minorada aqui e ali por políticas sociais, os efeitos na outra extremidade do espectro social têm sido deveras espetaculares. Não se viam desde a década de 1920 as incríveis concentrações de riqueza e de poder hoje existentes nas altas esferas capitalistas. Têm sido espantosos os fluxos de tributos em favor dos principais centros financeiros mundiais. No entanto, o que é ainda mais surpreendente é o hábito de tratar tudo isso como um mero e, em alguns casos, até feliz subproduto da neoliberalização. Parece inconcebível a própria ideia de que isso possa ser – apenas possa ser – o cerne fundamental do que a neoliberalização sempre foi. Tem constituído um talento especial da teoria neoliberal a capacidade de oferecer uma máscara benevolente, plena de palavras que soam prodigiosamente positivas, como liberdade de ação, liberdade de pensamento, escolha e direitos, para ocultar as realidades extremamente desagradáveis da restauração ou reconstituição do poder de classe nu e cru, tanto no plano local como no transnacional, porém mais especificamente nos principais centros financeiros do capitalismo global.”
46. STIGLITZ. Globalization and its Discontents, New York, Norton, 2002, p. 43.


“As duas máquinas econômicas que vêm alimentando o mundo desde a recessão global instaurada a partir de 2001 são os Estados Unidos e a China. A ironia é que esses dois países têm se comportado como Estados keynesianos num mundo supostamente governado por regras neoliberais. Os Estados Unidos têm recorrido a amplos financiamentos via dívida de seu militarismo e seu consumismo, enquanto a China tem financiado via dívida empréstimos bancários de difícil recebimento, amplos investimentos em infraestruturas e capital fixo. Os neoliberais ortodoxos dirão sem dúvida que a recessão é indício de neoliberalização insuficiente ou imperfeita, e podem muito bem destacar as operações do FMI e do exército de bem pagos lobistas em Washington que pervertem regularmente o processo orçamentário norte-americano para atender a seus próprios interesses especiais como prova de sua tese. Mas não há como verificar suas alegações, e ao fazê-las eles apenas seguem os passos de uma longa linhagem de eminentes teóricos da economia de acordo com as quais tudo correria bem no mundo se todos se comportassem de acordo com os preceitos dos manuais por eles escritos1.
Há no entanto uma interpretação mais sinistra desse paradoxo. Se deixarmos de lado, como creio que devamos fazer, o argumento de que a neoliberalização é apenas um exemplo de teoria errônea que saiu do controle (com a permissão do economista Stiglitz) ou um caso de busca sem sentido de uma falsa utopia (com a permissão do filósofo político conservador John Gray2), resta-nos a tensão entre, de um lado, a sustentação do capitalismo e, de outro, a restauração/ reconstituição do poder de classe. Se nos encontramos num ponto de contradição absoluta entre esses dois objetivos, não pode haver dúvida quanto o lado para o qual se inclina o atual governo Bush, dado seu ávido esforço de redução de impostos que incidem sobre as corporações e os ricos. Além disso, uma crise financeira global provocada em parte por suas próprias políticas irresponsáveis permitiria que o governo dos Estados Unidos finalmente se livrasse de toda e qualquer obrigação de prover o bem-estar dos cidadãos a não ser no sentido de mobilizar o poder militar e policial capaz de conter a revolta social e impor a disciplina global. Vozes mais sensatas no âmbito da classe capitalista escutaram com cuidado advertências do tipo feito por Paul Volcker quanto à alta probabilidade de haver uma grave crise financeira nos próximos cinco anos3. Mas isso teria como implicação reduzir alguns dos privilégios e o poder que nos últimos trinta anos vêm se acumulando nas altas esferas da classe capitalista. Fases anteriores da história do capitalismo – penso em 1973 ou nos anos 1920 –, quando havia uma opção sombria parecida, não são um bom augúrio. As classes altas, insistindo em seu sacrossanto direito de propriedade, preferiram fazer o sistema vir abaixo a renunciar a algum privilégio ou ao poder. Ao agir assim, não estariam se esquecendo de seus próprios interesses, pois caso se posicionem bem, como bons advogados de falências, poderão lucrar com o colapso enquanto o resto de nós será horrivelmente atingido pelo dilúvio. Alguns membros seus poderão ser apanhados e acabar se jogando de alguma janela de Wall Street, mas essa não seria a norma. O único temor que têm é de movimentos políticos que os ameacem de expropriação ou de violência revolucionária. Embora possam ter a expectativa de que o sofisticado aparato militar com o qual contam hoje (graças ao complexo industrial militar) proteja sua riqueza e seu poder, o fracasso desse aparato quanto à fácil pacificação do Iraque em terra deveria levá-los a fazer uma pausa. Mas classes dirigentes raramente renunciam voluntariamente (se é que o fazem) a seus poderes, e não vejo motivos para crer que o fuçam agora. Paradoxalmente, um forte e vigoroso movimento socialdemocrata e da classe trabalhadora tem mais condições de favorecer o capitalismo do que o próprio poder de classe capitalista. Embora possa parecer uma conclusão contrarrevolucionária para a extrema esquerda, isso não deixa de implicar certa dose de autopreservação, já que são as pessoas comuns que sofrem, padecem inanição e mesmo morrem durante crises do capitalismo (lembremos da Indonésia e da Argentina). Se a política preferida das elites dirigentes é aprés moi le déluge (depois de mim o dilúvio), então o dilúvio leva de roldão em ampla medida os impotentes e os crédulos, enquanto as elites já preparam arcas em que poderão, ao menos por algum tempo, sobreviver muito bem.”
1. MARX, Theories of Surplus Value, London. Lawrence & Wishan 1969, parte 2, 200.
2. J. GRAY, False Damn: The Ilusions of Global Capitalism, London, Granta Press, 1998.
3. P. BOND, US and Global Economy Volatility: Theoretical, Empirical and Political Considerations. Comunicação apresentada ao Empire Seminar, York University, nov. 2004.


“Até que ponto a neoliberalização conseguiu estimular a acumulação do capital? Os dados concretos mostram ser nada menos que decepcionantes. As taxas agregadas de crescimento global ficaram em mais ou menos 3,5% nos anos 1960 e mesmo no curso da conturbada década de 1970 caíram apenas para 2,4%. Mas as taxas subsequentes de crescimento de 1,4% e 1,1% nos anos 1980 e 1990 (e uma taxa que mal alcança 1% a partir de 2000) indicam que a neoliberalização em larga medida não conseguiu estimular o crescimento mundial (ver a figura 6.1)4. Em alguns casos, como nos territórios da ex-União Soviética e nos países da Europa Central que se submeteram à “terapia de choque” neoliberal, houve perdas catastróficas. Nos anos 1990, a renda per capita russa caiu a uma taxa anual de 3,5%. Uma grande parcela da população caiu na pobreza, e a expectativa de vida das pessoas do sexo masculino sofreu por isso uma redução de cinco anos. A experiência da Ucrânia foi parecida. Só a Polônia, que desprezou o conselho do FMI, mostrou algum aumento pronunciado. Em boa parte da América Latina, a neoliberalização produziu ou estagnação (na “década perdida” de 1980) ou surtos de crescimento seguidos por colapso econômico (como na Argentina). Na África, a neoliberalização não fez coisa alguma que gerasse resultados positivos. Só no leste e no sudeste da Ásia, seguidos agora em certa medida pela Índia, ela foi associada a algum registro positivo de crescimento, e, nessa região, os Estados desenvolvimentistas não muito neoliberais tiveram um papel bem importante. É flagrante o contraste entre o crescimento da China (cerca de 10% ao ano) e o declínio da Rússia (– 3,5% ao ano). A economia informal disparou em todo o mundo (estima-se que tenha passado de 29% nos anos 1980 para 44% da população economicamente ativa da América Latina na década de 1990), e quase todos os indicadores globais de saúde, expectativa de vida, moralidade infantil etc. mostram perdas e não ganhos em bem-estar a partir dos anos 1960. A parcela da população mundial em estado de pobreza teve contudo uma redução, mas isso se deve quase por completo a melhorias ocorridas apenas na Índia e na China5. A redução e o controle da inflação são o único sucesso sistemático que a neoliberalização pode reivindicar.
Se esses fossem tipos de fatos amplamente conhecidos, boa parte dos louvores à neoliberalização e à sua forma peculiar de globalização sem dúvida não seria pronunciada. Por que então tantos estão convencidos de que a globalização via neoliberalização é a “única alternativa” e que ela obteve grande sucesso? Destacam-se dois motivos. Em primeiro lugar, a volatilidade dos desenvolvimentos geográficos desiguais se acelerou, permitindo que certos territórios avançassem espetacularmente (ao menos por algum tempo) a expensas de outros. Se, por exemplo, os anos 1980 foram dominados amplamente pelo Japão, pelos “tigres” asiáticos e pela Alemanha Ocidental, e se a década de 1990 o foi pelos Estados Unidos e pelo Reino Unido, então o fato de que algum lugar teria de ter “sucesso” obscurece o fato de que a neoliberalização em geral fracassou em estimular o crescimento ou promover o bem-estar. Em segundo lugar, a neoliberalização, o processo, não a teoria, foi um enorme sucesso do ponto de vista das classes altas. Ou promoveu a restauração do poder de classe das elites dirigentes (como nos Estados Unidos e até certo ponto no Reino Unido), ou criou condições para a formação de uma classe capitalista (como na China, na Índia, na Rússia e em outros lugares). Sendo a mídia dominada pelos interesses da classe dominante, pôde-se propagar o mito de que Estados fracassaram economicamente por não serem competitivos (criando assim a demanda por ainda mais reformas neoliberais). A crescente desigualdade social num dado território foi concebida como necessária para estimular o risco dos empreendedores e a inovação que conferissem poder competitivo e estimulassem o crescimento. Se as condições entre as classes inferiores pioraram, é que elas fracassaram, em geral por razões pessoais e culturais, na tarefa de aprimorar seu capital humano (por meio da dedicação à educação, da aquisição de uma ética de trabalho protestante, da submissão à disciplina do trabalho, da flexibilidade e de outras coisas desse tipo). Em suma, surgiram problemas particulares por causa da falta de vigor competitivo ou por deficiências pessoais, culturais e políticas. Num mundo neoliberal darwiniano, dizia o argumento, só os mais aptos devem sobreviver e de fato sobrevivem.”

Figura 6.1 Taxas globais de crescimento, anualmente e por década, 1960-2003.
Fonte: World Commision on the Social Dimension of Globolization. A Fair Globolization
4. As duas melhores avaliações oficiais estão em WORLD COMMISSION ON THE SOCIAL DIMENSION OF GLOBALIZATION, A fair Globalization: Creating Üpportunities for All, Geneve, lnternational Labour Office, 2004; UNITED NATIONS DEVELOPMENT PROGRAM, Human Development Report, 1999; Human Development Report, 2003.
5. M. WEISBROT, D. BAKER, E. KRAEV, J. CHEN, The Scorecard on Globalization 1980-2000: lts Consequences for Economic and Social Well-Being, in V. NAVARRO, C. MUNTANER, Political and Economic Determinants of Population Health and Well-Being, Amityville, NY, Baywood, 2004, 91-114.


“A principal realização substantiva da neoliberalização foi no entanto redistribuir, em vez de criar, riqueza e renda. Fiz em outra obra uma descrição dos mecanismos dessa distribuição sob a rubrica “acumulação por espoliação”9. Pretendi designar com isso a continuidade e a proliferação de práticas de acumulação que Marx tratara como “primitivas” ou “originais” durante a ascensão do capitalismo. Incluem-se aí: a mercadificação e a privatização da terra, bem como a expulsão pela força de populações camponesas (comparem-se os casos acima descritos do México e da China, em que se avalia que 70 milhões de camponeses foram expulsos em época recente); a conversão de várias formas de direitos de propriedade (comuns, coletivas, estatais etc.) em direitos de propriedade exclusiva (cujo exemplo mais extraordinário é o da China); a supressão dos direitos aos bens comuns; a mercadificação da força de trabalho e a supressão de formas alternativas (nativas) de produção e consumo; processos coloniais, neocoloniais e imperiais de apropriação privada de ativos (incluindo recursos naturais); a monetização do câmbio e a taxação, principalmente da terra; o comércio de escravos (que continua de modo especial na indústria do sexo); e a usura, a dívida nacional e o aspecto mais devastador de todos: o uso do sistema de crédito como meio radical de acumulação por espoliação. O Estado, com seu monopólio da violência e definições de legalidade, desempenha um papel vital tanto no apoio como na promoção desses processos. A essa relação de mecanismos, podemos adicionar agora uma pletora de técnicas como a extração de renda a partir de patentes e direitos de propriedade intelectual e a redução ou eliminação de várias formas de direitos de propriedade comum (como benefícios de seguridade social, férias remuneradas e acesso à educação e à atenção médica) conquistadas durante uma geração ou mais de lutas de classes. A proposta de privatização de todos os benefícios de seguridade social (que teve o Chile durante a ditadura como pioneiro) é, por exemplo, um dos objetivos preferidos dos republicanos nos Estados Unidos.”
9. D. Harvey, Espaços de esperança, cap. 4.


“A neoliberalização busca acabar com as capas protetoras que o liberalismo embutido permitia e por vezes alimentava. O ataque geral à força de trabalho opera em duas frentes. O poder dos sindicatos e de outras instituições da classe trabalhadora é restringido ou desmantelado no interior de um Estado particular (se necessário por meio da violência). Estabelecem-se mercados de trabalho flexíveis. O Estado deixa de proporcionar o bem-estar social, e mudanças tecnologicamente induzidas das estruturas do emprego que tornam amplos segmentos da força de trabalho redundantes completam a dominação do capital sobre o trabalho no mercado. O trabalhador individualizado e relativamente impotente vê-se assim diante de um mercado de trabalho em que só se oferecem contratos de curto prazo personalizados. A estabilidade no emprego se torna uma coisa do passado (por exemplo, Thatcher a aboliu nas universidades). Um “sistema de responsabilidade pessoal” (que precisão tinha a linguagem de Deng!) substitui as proteções sociais (pensões, assistência à saúde, proteções contra acidentes) que foram antes responsabilidade dos empregadores e do Estado. Os indivíduos compram produtos nos mercados, que passam a ser os novos fornecedores de proteções sociais. A segurança individual se torna assim uma questão de escolha individual vinculada à capacidade de pagamento por produtos financeiros inseridos em mercados financeiros arriscados.
A segunda frente de ataque envolve transformações das coordenadas espaciais e temporais do mercado de trabalho. Embora muito se possa fazer com a “corrida para o fundo” destinada a conseguir os estoques de mão-de-obra mais baratos e dóceis, a mobilidade geográfica do capital permite-lhe o domínio de uma força de trabalho global cuja própria mobilidade geográfica é restringida. Como a imigração é limitada, são abundantes as forças de trabalho cativas. Só se pode fugir a essas barreiras através da imigração ilegal (que cria uma força de trabalho facilmente explorável) ou de contratos de curto prazo que permitem, por exemplo, que trabalhadores mexicanos trabalhem em agronegócios da Califórnia e sejam vergonhosamente repatriados quando adoecem ou mesmo morrem por causa dos pesticidas a que estão expostos.”


“Infelizmente, essa cultura, por mais espetacular, glamourosa e atraente, joga perpetuamente com desejos sem nunca oferecer satisfações além da limitada identidade do centro de compras e das ansiedades do status por meio da boa aparência (no caso das mulheres) ou das posses materiais. O “compro, logo existo” e o individualismo possessivo constroem juntos um mundo de pseudosatisfações estimulante na superfície, mas no fundo vazio. Mas para quem perdeu o emprego ou nunca conseguiu sair das extensivas economias informais que hoje oferecem um arriscado refúgio à maioria dos trabalhadores descartáveis do mundo a história é completamente diferente. Com cerca de 2 bilhões de pessoas condenadas a viver com menos de 2 dólares por dia, o cruel mundo da cultura consumista capitalista, as fenomenais gratificações obtidas pelos serviços financeiros e a polêmica auto-satisfeita quanto ao potencial emancipador da neoliberalização, da privatização e da responsabilidade social têm de ser uma piada macabra.
A neoliberalização transformou a posição do trabalho, das mulheres e dos povos indígenas na ordem social ao enfatizar na ordem social ao enfatizar a ideia do trabalho como uma mercadoria qualquer. Privada da capa protetora de instituições democráticas vivas e ameaçada por todo tipo de desarticulação social, uma força de trabalho descartável se volta inevitavelmente para outras formas institucionais por meio das quais construir solidariedades sociais e exprimir a vontade coletiva. Tudo prolifera – de gangues e cartéis criminosos a redes de narcotráfico, minimáfias, chefes de favelas, cultos seculares e seitas religiosas, passando por organizações comunitárias, organizações de defesa das tradições e organizações não-governamentais. Essas são as formas sociais alternativas que preenchem o vazio deixado pelos poderes do Estado, por partidos políticos e outras formas institucionais, que ou se desmantelaram ativamente ou simplesmente se deixaram esgotar como centros de empreendimento coletivo e de relacionamento social. O marcado recurso atual à religião é relevante quanto a isso.”


“A ascensão desses grupos e de ONGs (o chamado “terceiro setor”) acompanhou, como os discursos sobre direitos de modo mais geral, a virada neoliberal, tendo passado por um aumento espetacular a partir de mais ou menos 1980. As ONGs em muitos casos vieram preencher o vácuo de benefícios sociais deixado pela saída do Estado dessas atividades. Isso equivale a uma privatização via ONGs. Em alguns casos, isso ajudou a acelerar o afastamento ainda maior do Estado dos benefícios sociais. Assim, as ONGs funcionam como “cavalos de Tróia do neoliberalismo global”37. Além disso, as ONGs não são organizações inerentemente democráticas. Tendem a ser elitistas, a não dar satisfação a ninguém (a não ser a quem as financia) e, por definição, são distantes daqueles a quem buscam ajudar ou proteger, por mais bem-intencionadas ou progressistas que possam ser. Costumam esconder sua pauta de interesses e preferem a negociação direta com o Estado e o poder de classe, ou a influência sobre eles, costumando antes controlar sua clientela do que representá-la. Alegam e presumem falar em favor daqueles que não podem falar por si mesmos, e até definem os interesses daqueles em cujo nome falam – como se as pessoas não pudessem elas mesmas fazê-lo. Mas a legitimidade de seu estatuto está sempre aberta a dúvida. (...)
O universalismo parece funcionar particularmente bem com questões globais como a mudança climática, o buraco na camada de ozônio, a perda de biodiversidade pela destruição de habitats e coisas desse tipo. Porém seus resultados no campo dos direitos humanos são mais problemáticos, dada a diversidade de circunstâncias político-econômicas e de práticas culturais que há no mundo. Ademais, tem sido muito fácil cooptar questões de direitos humanos como “espadas do império” (para usar a cortante caracterização de Bartholomew e Breaskpear39). Os chamados “falcões liberais” nos Estados Unidos, por exemplo, apelaram a essas questões para justificar intervenções imperialistas em Kosovo, no Timor Leste, no Haiti e, sobretudo, no Afeganistão e no Iraque. Eles justificam o humanismo militar “em nome da proteção da liberdade, dos direitos humanos e da democracia mesmo quando esta é buscada unilateralmente por uma potência imperialista autonomeada” como os Estados Unidos40.”
37. T. WALLACE, NGO Dilemmas: Trojan Horses for Global Neoliberalism?, Socialist Register (2003), 202-219. Para um levantamento geral do papel das ONGs, cf M. EDWARDS. D. HULME (Orgs.), Non-Governmental Organizations, Performance and Accountability, London. Earthscan, 1995.
39. A. BARTHOLOMEW, J. BREAKSPEAR, Human Rights as Swords of Empire, Socialist Register, London, Merlin Press (2003) 124-145.
40. lbid., 126.


“Objetivos desse tipo não podem ser realizados sem a contestação das bases de poder fundamentais sobre as quais foi assentado o neoliberalismo e para as quais os processos de neoliberalização contribuíram tão fortemente. Isso significa não só reverter o abandono pelo Estado dos benefícios sociais, mas também enfrentar os poderes avassaladores do capital financeiro. Keynes desprezava os “usurários” detentores de títulos, que viviam parasiticamente de dividendos e juros, e esperava ansiosamente o evento que chamou de “eutanásia dos rentistas” como condição necessária não apenas para se chegar a um mínimo de justiça social, mas também para evitar a devastação das crises periódicas que o capitalismo é propenso a ter. A virtude do compromisso keynesiano e do liberalismo embutido construído a partir de 1945 residia no fato de aproximar-se de alguma maneira da realização dessas metas. Em contraste com isso, o advento da neoliberalização celebrou o papel do rentista, cortou os impostos pagos pelos ricos, privilegiou os dividendos e ganhos especulativos em detrimento dos salários e da renda e desencadeou crises financeiras inéditas, ainda que geograficamente contidas, que trouxeram imenso desemprego e tiveram um efeito devastador sobre as oportunidades de vida em país após país. A única maneira de realizar as tais metas pias dos chefes de Estado é enfrentar o poder da finança e reverter os privilégios de classe que se estabeleceram a partir desse poder. Mas não há entre as potências o mínimo indício de fazer alguma coisa parecida com isso.
Quanto ao retorno ao keynesianismo, contudo, o governo Bush, como já indiquei, é um campeão sem rivais, mostrando-se pronto a tolerar uma espiral de déficits públicos que se estendem interminavelmente no futuro. Não obstante, ao contrário das prescrições keynesianas tradicionais, as redistribuições no caso dele são de baixo para cima, para as grandes corporações, seus ricos chefes executivos e seus conselheiros financeiros/jurídicos, à custa dos pobres, da classe média e até de acionistas comuns (incluindo os fundos de pensão), para não mencionar as futuras gerações. Mas o fato de o keynesianismo poder ser deturpado e invertido dessa maneira não deveria nos surpreender, pois, como já demonstrei, há amplas provas de que a teoria e a retórica neoliberais (particularmente a retórica política referente à liberdade individual e coletiva) vêm funcionando desde o começo primordialmente como máscara para práticas que só têm como objetivo manter, reconstituir e restaurar o poder da classe de elite. Assim sendo, a exploração de alternativas tem de sair dos quadros de referência definidos por esse poder de classe e pela ética de mercado e ao mesmo tempo estar sobriamente ancorada nas realidades de nosso tempo e de nosso lugar. E essas realidades indicam a possibilidade de uma grande crise no próprio coração da ordem neoliberal.”


“Quase um terço das ações de Wall Street e quase metade dos títulos do Tesouro dos Estados Unidos já estão nas mãos de estrangeiros, e os dividendos e juros que são remetidos a proprietários estrangeiros aproximam-se hoje, se não superam, o tributo que corporações e operações financeiras norte-americanas extraem do exterior*. Esse balanço de benefícios vai ficar mais fortemente negativo quanto mais os Estados Unidos tomarem recursos, e o país hoje o faz a uma taxa próxima de 2 bilhões de dólares por dia. Além disso, se as taxas de juro dos Estados Unidos se elevarem (como têm de se elevar num dado momento), aquilo que aconteceu com o México depois que Volcker aumentou a taxa de juro em 1979 começará a pairar como um problema concreto. Os Estados Unidos logo estarão pagando bem mais pelo serviço da dívida com o resto do mundo do que estará entrando no país17. Essa extração de riqueza dos Estados Unidos não vai ser bem-aceita no plano interno. As perpétuas elevações do consumismo financiado por dívida, que têm sido o fundamento da paz social no país desde 1945, terão de parar.”
*: Duménil, Lévy. The Economics of US lmperialism.
17. Duménil, Lévy. Neoliberal Dynamics: Towards a New Phase?

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