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quarta-feira, 3 de outubro de 2018

A Farsa do Neoliberalismo (Parte I), de Nelson Werneck Sodré

Editora: Graphia

ISBN: 978-85-8527-714-7

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 132

Sinopse: Em estilo claro, em que traduz o ‘economês’ para a linguagem comum e a mesma argumentação consistente de “Formação Histórica do Brasil”, “Síntese de História da Cultura Brasileira”, “História da Imprensa no Brasil” e “História da Literatura Brasileira”, entre outras obras fundamentais para a compreensão do passado e dos problemas atuais do país, Nelson Werneck Sodré analisa e denuncia um dos grandes embustes ideológicos deste final de milênio. Apropriando-se de conceitos sedutores – ‘modernidade’, ‘globalização’ – disfarçam-se as mais antigas formas de espoliação de um pequeno grupo de nações sobre as demais, ampliando, em escala sem precedentes, a miséria e a violência no mundo.



“Há dois aspectos do nosso desenvolvimento, ao longo dos decênios e desde pelo menos o início do século XX, que sempre têm sido omitidos e propositadamente esquecidos: o primeiro deles é o processo como, ao longo do tempo e em fases históricas diversas, realizou-se a transferência dos efeitos das crises cíclicas do capitalismo às áreas menos desenvolvidas, ao Brasil em particular; o segundo é o processo como foi transferida a renda oriunda do nosso trabalho ao exterior, seu dimensionamento. Certos conceitos, como o de subdesenvolvimento (tendo em contrapartida o de desenvolvimento), como o de atraso, como o de dependência, na verdade, mais escondem do que revelam a verdade da exploração colonialista a que se segue a exploração imperialista. Um arsenal imenso de conceitos e de disfarces vem servindo para esconder a verdade histórica. Do ponto de vista dos julgamentos de pessoas, como no nível dos processos, o real se apresenta desfigurado por simulações que vivem da mera repetição. No conjunto, esse arsenal conceitual configura, essencialmente, uma ideologia. Os seus formuladores originais empreendem, sempre, a gigantesca tarefa, em que têm obtido sucesso, de confundir as coisas e de, em última análise, fazer com que as vítimas se conformem. Isto significa, realmente, a necessidade dos exploradores convencerem os explorados de que a exploração de que estes são vítimas é legítima, fatal, natural. As técnicas de transmissão do pensamento, extraordinariamente ampliadas nos últimos lustros, têm servido para essa tarefa. A seu serviço, a serviço de exploradores, técnicas complexas de convencimento são utilizadas, quase sempre com sucesso. O último produto ideológico intensamente trabalhado e propagado, o último entorpecente das mentes, vem sendo o conceito de globalização, com tudo o que ele encerra e mais tudo o que pretende alcançar. É o produto de uma época histórica de transição, quando uma época entra em crise e os modelos, padrões e significações sofrem distorção inevitável. É preciso, para assegurar a continuidade da exploração, convencer que determinadas nações têm direito a comandar o desenvolvimento, enquanto outras devem submeter-se a esse desenvolvimento, como tudo o que convém às primeiras, tidas como desenvolvidas, avançadas etc. O produto novo no arsenal conceitual da época de transição é o de globalização. Estamos num mundo só e, em consequência, os que já estão desenvolvidos, os que já são ricos, devem continuar assim, e os demais devem conformar-se em continuar pobres, ou menos desenvolvidos. A globalização é o fim da História. A sua consagração.”

 

 

“Para o neoliberalismo, o grande inimigo do progresso, ou do desenvolvimento, era o Estado. O Estado era por definição mau gestor, não deveria operar na área em que as empresas privadas operavam, não deveria, de forma alguma, ocupar-se de tarefas que deveriam ser próprias da área privada. Assim, tratava-se, antes de mais nada, de enxugar o Estado, de despojá-lo de empresas que criara em muitos casos por força da incapacidade financeira ou pelo puro desinteresse da área privada. Os serviços públicos que eram, ao tempo da economia colonial, e ao largo da economia dependente, geridos por empresas estrangeiras, as ferrovias que os ingleses construíram, com contratos privilegiados com um século de duração e garantia de juros, toda estrutura econômica que o desenvolvimento material e o processo de urbanização exigiram, e que haviam passado à gestão do Estado, deveriam ser postos em hasta pública e privatizados.

Privatizar, eis a solução para o neoliberalismo. As empresas estatais, surgidas a partir da ruína da estrutura de serviços gerados pelos investimentos estrangeiros, que largamente e secularmente as exploraram, deveriam passar à área privada. E havia, finalmente, que romper o movimento pendular que nos forçara, por exemplo, a aturar e engordar a Light & Power por tantos anos, para depois comprá-la, quando se aproximavam do fim os seus contratos de exploração. Deveríamos voltar a entregá-lo a uma multinacional, e que, agora, aproveitaria dos grandes investimentos que o Estado realizara para transformá-la em entidade apta a prestar serviços. Nesse vai-e-vem de compra e venda, como é fácil deduzir, quem paga é o povo, que, entre outras mazelas, comprou caro e pretende vender barato, nesse tipo de negócio em que o imperialismo se especializou e que o tornou no que é. Lutamos arduamente para convencer os meios políticos de que o Brasil tinha petróleo, porque a ciência estrangeira afirmava positivamente que não tínhamos. Adiante, assumimos os riscos de procurar petróleo quando a “ciência” estrangeira e os chicago-boys da época afirmavam de pés juntos que não dispúnhamos de capitais e só eles, que dispunham de capitais, poderiam enfrentar a tarefa gigantesca dessa prospecção difícil. Acabamos encontrando petróleo e o Estado, uma vez que a iniciativa privada não tinha envergadura para isto, assumiu o risco do investimento. Passaram a afirmar que não dispúnhamos de técnica para a prospecção e eles, que dispunham da técnica, deveriam ser encarregados disso. Criamos ou aprendemos a técnica petrolífera e somos hoje mestres nela. Pois bem, o neoliberalismo quer que entreguemos a empresa petrolífera aqui montada pelo Estado à iniciativa privada, isto é, às multinacionais do ramo. Mas entregar a empresa já pronta, em funcionamento, uma empresa vitoriosa e próspera. Em que, aliás, o Estado não coloca um real, para empregar uma moeda envilecida.

Trata-se, no fim das contas, de passar recibo de nossa pretensa incapacidade, desta incapacidade que os chicago-boys afirmam, com ênfase singular, que é um traço nacional. A ideologia do colonialismo, antes, em velhos tempos, pretendia nos convencer, e convenceu a muitos, principalmente governantes, recrutados numa classe dominante retrógrada e inepta, de que estávamos condenados ao atraso, porque grande parte de nossa força de trabalho era negra e o negro é racialmente inferior; a nos convencer de que jamais poderíamos atingir alto nível de civilização porque vivíamos nos trópicos e a civilização é privativa, segundo eles, dos climas frios. Era moda, ao tempo da vigência triunfal da ideologia do colonialismo, que os nossos credores, aqueles que auferiram lucros prodigiosos com o nosso endividamento, enviassem para cá, para ensinar a esses sauvages de la bas, como diziam os colonialistas franceses, elementos de economia, esclarecendo sempre que não poderíamos gerir senão segundo os princípios que eles adotavam. O último desses financistas, não muito antes do movimento de 1930, deixou um relatório, em que propunha as normas que deveriam presidir a reforma da nossa economia, um relatório que Normano, um dos poucos economistas que entenderam a especificidade do nosso desenvolvimento material, bem qualificou e com rigor como modelo de alienação. Aquele precursor dos chicago-boys era cego para a realidade, mas com uma diferença: ele era inglês e nada tinha conosco, a não ser o fato de estar aqui para servir aos nossos credores externos, então predominantemente ingleses; e os nossos grotescos chicago-boys nasceram no Brasil. Não cometerei a injúria de dizer que são brasileiros.”

 

 

“A concentração da renda é um fenômeno mundial e assinala apenas a crise do capitalismo que, por isso mesmo, procura reordenar o mundo de acordo com os interesses dos que detêm a maior parcela do capital. É o mundo a que estamos assistindo, com as populações famintas caminhando desesperadamente em busca do trabalho, com ondas de migração caminhando desesperadamente em busca do trabalho, com ondas de migração inéditas na história, gerando conflitos por toda a parte. O chamado primeiro mundo não apresenta cenário invejável pelo contrário, nele, o que se vê é um quadro de pobreza e de degradação, inclusive de costumes, flagrante no desespero dos jovens, que sentem a degradação desse mundo e a ausência de perspectivas para eles mesmos, que mal conseguem ingressar no mercado de trabalho. Por toda a parte, o mundo assiste, em meio à incerteza e à perplexidade, o renascimento da violência, ainda a violência política, geradora das novas ondas de fascismo e de nazismo e de propostas de solução dos problemas da sociedade pela exclusão e pelo uso da força. Estamos longe do paraíso. O neoliberalismo tem sido a fórmula mágica com que um mundo, o primeiro, afundado em crise, tenta transferir ao terceiro, a nós que nele vivemos, os seus problemas.”

 

 

“Bem sabemos que, por força de sua formação colonial e de uma estrutura de produção que passou apenas da fase colonial para a fase de dependência, apresentamos uma sociedade historicamente fundada na exclusão, sem o mínimo do que se conhece como justiça social, tudo coroado pela secular tendência à concentração de renda, levada, no Brasil, ao auge. Ora, as privatizações, que o neoliberalismo em curso no nosso país apresenta como solução, aprofundam esse processo porque gravitam para instituições financeiras e grupos privados já amplamente beneficiados. Por outro lado, o modelo adotado aqui acompanha o modelo externo e serve ao capital estrangeiro já existente e ao capital que se espera vir, atraído por uma política de destruição e sucateamento do patrimônio público. Se não bastasse isto, a onda de importações de bens duráveis de luxo não apenas denuncia a profunda e esterilizante desigualdade que reina entre nós e se mostra como extravagante acinte à nossa miséria, mas agrava a paisagem de crise. A crise do primeiro mundo, no qual o desemprego é índice alarmante, é transferida ao terceiro mundo e a países como o Brasil, em particular. Desemprego em massa e crescente, criminalidade gerando um quadro de incerteza na sociedade, prostituição em aumento acelerado, enfermidades antigas, algumas já em processo de desaparecimento, e outras, novas, acompanhadas da derrocada da estrutura de saúde, do desmantelamento da rede hospitalar, são mazelas que o neoliberalismo gera ou fomenta, com uma insensibilidade que não toca nem de longe e nem constitui preocupação dos responsáveis por tais receitas importadas, que correspondem ao que funcionou, em priscas eras, como a ideologia do colonialismo. Agora transformada, com alta tecnologia, na ideologia da exploração “moderna”.

É interessante insistir em coisas elementares como, por exemplo, que uma economia eficiente não depende apenas de tecnologia e de investimentos: ela deve ser fruto de uma sociedade justa. O que a fúria neoliberal que se apoderou do poder, em nosso país, agora, esquece, e não por falta de inteligência, é outro dado fundamental, lembrado, há pouco, por eminente estudioso dos problemas sociais e políticos: uma estrutura política geradora de pauperismo, como a referida, não tem condições, pela sua própria natureza, de curar ou reduzir os males do pauperismo. O desemprego, que acompanha, indivisivelmente, as medidas defendidas e praticadas pelos adeptos do neoliberalismo, que resulta de cada uma das mudanças operadas, particularmente das privatizações, faz crescer desmedidamente, de forma absolutamente antissocial, o exército de reserva que é acólito do avanço capitalista e que, para ele, funciona como espécie de seguro de força de trabalho, sempre disponível para as rápidas fases de euforia e disponível, de forma terrível, para as fases de crise e de penúria, que pontilham o desenvolvimento capitalista e que, com o neoliberalismo, são levadas às últimas consequências.

A sociedade brasileira conserva desigualdades históricas, como já foi referido. As mudanças apresentadas pelo neoliberalismo, entretanto, e apresentadas como sendo progressistas, propiciadoras do desenvolvimento, contribuem, na verdade, para reforçar a paisagem histórica das desigualdades, o quadro de uma sociedade injusta. Elas não visam de forma alguma alterar as estruturas arcaicas que herdamos. Pelo contrário, com alterações formais, contribuem de maneira acentuada para reforçar a referida estrutura.”

 

 

“A busca de capitais estrangeiros, levada ao extremo, como se neles estivesse a nossa salvação, tem apresentado apenas a paisagem tormentosa de entrada de capitais flutuantes especulativos, que constituem, em bilhões de moeda forte, uma das mais virulentas e sintomáticas demonstrações de um mundo em crise. Esses capitais migrantes, que ora se voltam para um país, ora se voltam para outro, de preferência para aqueles, como o Brasil, onde uma política econômica fundada no neoliberalismo denuncia o grau de decomposição do país, representam mais ameaça do que realização e nada deixam de positivo em sua passagem meteórica, que as bolsas comemoram como fatos importantes, esquecidas de que a economia nacional nada lhes deve e que os prejuízos que causam não justificam a euforia ingênua de incautos, de olhos postos em índices falsos, enganados pelas aparências e esquecidos do essencial. Não basta crescer em índices de importância meramente quantitativa. E nem se trata, por outro lado, do sempre mencionado, no discurso dos partidários do neoliberalismo “desenvolvimento sustentado”. Sustentado por quem, de que forma? O neoliberalismo, aliás, embriaga-se com palavras e expressões que não têm nada de comum com a realidade e constituem apenas formas de propaganda que só convence ingênuos.”

 

 

“A pretensa globalização escamoteia que é o processo de assegurar as vantagens de que os países mais desenvolvidos já usufruem, em detrimento dos menos desenvolvidos. É a colonização em suas novas formas e disfarces. Por outro lado, certas ficções, como a da existência de um mercado livre, em que todos podem se apresentar em igualdade de condições, dispensando a intervenção reguladora do Estado, ignoram deliberadamente o desnível entre desenvolvidos e subdesenvolvidos. A pregação em torno desse fictício mercado livre, que não existiu em tempo algum e que o mundo moderno, nas condições que agora apresenta, não tem a mínima condição de fazer funcionar, esconde o conteúdo do problema. As relações do Estado com a sociedade e as relações do Estado com o indivíduo são propositadamente esquecidas, dadas como inexistentes ou aceitas como constantes e imutáveis, quando são, na realidade, relações complexas, historicamente condicionadas. São, principal e essencialmente, relações de natureza política. O Estado não é um ente abstrato, neutro, acima das classes e dos indivíduos. O Estado nasceu, precisamente, do processo de desenvolvimento social quando apareceram as classes. Não há Estado neutro. É uma entidade política, sujeita ao jogo político, inclusive, para chegar aos detalhes, ao jogo eleitoral. Ora, é este aspecto de entidade política, inerente ao Estado, que os tecnocratas do neoliberalismo pretendem destruir, quando pregam a sua ausência, em benefício de uma entidade fictícia, a do mercado livre. O Estado ideal, para o neoliberalismo, é um Estado mínimo, sem nenhuma interferência na estrutura econômica, na esfera da produção, e sem nenhuma função reguladora. Como neoliberais, esses tecnocratas admitem e aceitam como dogma que a economia é uma técnica e não uma política. Daí odiarem a presença de uma entidade política, que poderia, pelas contingências políticas, romper a estabilidade de uma forma estabelecida como se fosse eterna, a forma ideal de dominação, a forma de dominação com que sonham os dominadores. Mas, ao contrário do que prega essa propaganda danosa, as relações do Estado com a sociedade são flexíveis justamente porque a sociedade é dividida em classes e estas classes têm interesses contraditórios.

O neoliberalismo não passa de uma farsa, o disfarce com que se apresenta uma forma de política que pretende, justamente, o “fim da História”, isto é, os ricos ficarão mais ricos, os pobres ficarão mais pobres, e tudo será como no país das maravilhas. A realidade não importa, as características nacionais não importam, os interesses do povo não importam. Ideias arroladas como obsoletas, não por serem antigas, mas por se oporem a essa visão simplista e unilateral da realidade, – a ideia de nação, a ideia de soberania, a ideia de pátria – são esquecidas ou negadas, como se não existissem. Mas o fato é que elas existem, traduzem relações sociais e estão longe de funcionarem como técnicas, quando o receituário dita as regras. Regras e receituário que obedecem a interesses muito poderosos.

Porque as ideias não surgem do nada. Elas não podem ser extraídas do ar, como o azoto. Elas traduzem relações sociais. No conjunto, constituem as ideologias. Conhecemos, no Brasil, as diversas e variáveis ideologias. A do colonialismo, nos tempos mais recuados, que pretendeu nos convencer de que não poderíamos jamais atingir os níveis de desenvolvimento material alcançados pelos países que hoje se intitulam do primeiro mundo; depois a ideologia da dependência, que serviu ao modelo de economia dependente, exposta, nesses tempos, com espalhafatosa desenvoltura por seus porta-vozes mais perniciosos. A chamada globalização, dogma em que se apoia o neoliberalismo desenfreado que ocupa o palco, entre nós, agora, é uma ideologia de submissão, de desconhecimento do que existe em nós de nacional, de brasileiro, de popular. É claro que se trata de mais uma aventura, de mais um estratagema da dominação secular. E, também, uma ideologia peculiar a um mundo que conhece e sofre a transição de uma época histórica para outra. O neoliberalismo é um elemento de época histórica em agonia, o pressentimento de final próximo, de extinção. Nós, no Brasil, não pretendemos, e o povo logo dirá como, participar desse funeral.”

 

 

“Uma das questões fundamentais que se colocam, atualmente, para a reestruturação da economia brasileira é a da dívida externa. No complexo conjunto da crise brasileira, o seu interesse avulta e vem provocando, de um lado, agudas polêmicas, nem sempre bem colocadas, e, de outro lado, uma análise cuja tendenciosidade transparece à simples vista O fato é que, a partir dos anos 70, o peso da dívida externa denunciou um nível perigoso, uma grave ameaça no nosso desenvolvimento. Isso decorreu, precisamente, da elevação das taxas de juros internacionais e do caráter unilateral dessa elevação que, assim, escapava inteiramente ao nosso controle. (...)

Seguindo excelente análise de Celso Furtado, a nossa situação foi a de ‘“um país que houvesse perdido a guerra”. A elevação das taxas de juros, desde o final dos anos 70, o corte abrupto dos créditos externos, no início dos anos 80, “assemelharam-se a uma agressão externa”, reafirmou aquele economista. Os ajustamentos internos decorrentes foram drásticos e levaram à aceleração da taxa de inflação, ao crescimento do desemprego e à concentração da renda. Isto é: os custos sociais foram imensos. Mas a propaganda, insidiosamente, atribuía ao Estado a culpa dessas mazelas, omitindo, rigorosamente, a responsabilidade do setor financeiro internacional que, em aparente paradoxo, estava facilitando ao máximo o nosso endividamento enquanto se locupletava ao máximo com as elevações da taxa de juros. Como definiu Celso Furtado, foi, na realidade, “um processo de desmantelamento do sistema econômico sob pretexto de aumentar o seu grau de integração na economia internacional”. Objetivamente tratava-se da agudização de um processo secular de transferência de renda, em benefício da economia norte-americana em desequilíbrio, quando mais da metade da poupança internacional foi drenada para os Estados unidos. No Brasil, entretanto, a propaganda dirigida responsabilizava o Estado quando este absorveu imensa parcela da poupança privada, assegurando a esta elevadas taxas de juros, na chamada “ciranda financeira” desatinada, que aprofundou a concentração da renda e desviou para a especulação tudo o que deveria ser destinado às atividades produtivas. Assim, ao mesmo passo que se acelerava a transferência de renda para o exterior, internamente entrava em vertiginoso processo a transferência de renda do trabalho à propriedade, dos trabalhadores e classe média aos que especulam em vez de produzir.

A abrupta elevação das taxas de juros, decorrente da crise na economia norte-americana, acarretou a insolvência da dívida da América Latina, dívida que já absorveu cerca de 80% do valor de sua exportação. Na verdade, entre 1982 e 1991, os países latino-americanos transferiram ao exterior cerca de 200 bilhões de dólares. Só para dar ideia da grandeza de tal sangria, é interessante lembrar que correspondia ao dobro da doação dos Estados Unidos à Europa Ocidental, pelo Plano Marshall. A América Latim, na verdade, financiou essa doação, que obedecia ao propósito político de dominação mundo, no esforço para deter a influência soviética, crescente após o fim da Segunda Guerra Mundial.”

 

 

“Em novembro de 1989 reunia-se, em Washington, convocada pelo Institute for International Economics, um grupo de interessados no assunto: Latin American Adjustment: How Much Happened? O citado Instituto já definira os seus propósitos no documento Towards Economic Growth in Latin America. No mesmo de 1989, o Banco Mundial baixava as curiosas postulações colocadas no estudo Trade Policy in Brazil: the Case for Reform.

Uma delas prescrevia, sem meias medidas que “a inserção internacional de nosso país fosse feita pela revalorização da agricultura de exportação. Era, nada mais, nada menos que impor uma violenta volta ao passado, ao famigerado refrão do “essencialmente agrícola”, tabuleta que nos foi pregada pela república oligárquica e que, a partir de 1930, foi naturalmente atirada ao lixo. Pois era esse o processo de regressão que os nossos amigos do Banco Mundial, já em 1989, pretendiam nos impor. Mas isso não era o pior. O pior é que a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, a FIESP, logo em 1990, como eco da voz do dono, divulgava uma publicação intitulada Livre para Crescer. Proposta para Brasil Moderno, em que aceita e perfilha o receituário do Banco Mundial. Isto é, a Federação das Indústrias pregava a volta ao predomínio da agricultura, o triste regresso ao “essencialmente agrícola”. Isso apenas mostra, de forma contristadora e contundente, como a doutrina do neoliberalismo estava sendo rapidamente absorvida por importantes áreas das nossas ditas elites políticas, empresariais e intelectuais, a título de modernidade, e se incorporava, como peça essencial ao discurso dessas elites e à sua ação. Isto é, tomavam como de seu interesse, e até de sua criação original, de sua iniciativa, justamente aquilo que feria frontalmente esses interesses, para não mencionar, e isso seria sacrilégio, os interesses nacionais. Pois o nacional passava a ser o inimigo, o atraso, o oposto à “modernidade”.”

 

 

“De que se trata a proposta neoliberal, em suma? Trata-se, em primeiro lugar, de uma drástica redução do Estado como instrumento de gestão política e econômica. (...)

Essa paranoia, fundada em sólidas razões antinacionais, gerou o primado técnico de um tipo de economista, o chicago-boy, formado e marcado por essencial alienação, por um tranquilo e soberano desprezo por tudo aquilo ligado ao povo e pela realidade do nosso país, cujos gritantes problemas, em agravamento progressivo, escapava inteiramente à cogitação desses exilados em sua própria terra de nascimento. Crentes de uma nova religião – a religião cartaginesa de que o lucro justifica tudo – o chicago-boy coloca a economia tão simplesmente como uma técnica que deve obedecer friamente determinadas regras, tidas como universais e absolutas. A história, particularmente a republicana, ensinou-nos que o prestígio de brasileiros no exterior – e no Brasil – tem o traço desmoralizante da alienação. Eles são tidos como bons fora porque são ruins dentro. O chicago-boy é exemplar neste sentido. Com o primado do neoliberalismo, que ele conheceu nas fontes, passou a ser personagem destacada e típica de uma época triste.”

 

 

“A aceitação do neoliberalismo importa, realmente, na destruição da soberania brasileira. Desmantelando o Estado, privando-o das empresas que lhe permitem preservar a estrutura econômica do país, estabelecendo a franquia máxima do mercado interno, em decisão não negociada, aos fornecimentos externos, estabelecendo a regressão a um padrão econômico pré-industrial, como pregou o Consenso de Washington, deixaríamos de existir como nação. E foi este o caminho aceito aqui pelos círculos políticos, empresariais e intelectuais que esposaram as teses levantadas pelo neoliberalismo. Mais do que isto: obedeceram efetivamente ao que dispunham essas teses. As privatizações em curso vinculam-se diretamente à tarefa de debilitamento do Estado. A contenção dos preços públicos e as tarifas dos serviços estatais, além de constituírem ações demagógicas, visando popularizar o fim escondido, são outra forma de enfraquecer o Estado. As ameaças e, agora, a efetivação das franquias ao mercado interno – outra maneira demagógica de popularizar o fim real – somam-se às privatizações em efeitos destruidores sobre a economia nacional. Privatização e desnacionalização estão sendo, naturalmente, sinônimos de desemprego e recessão.”

 

 

“A destruição do Estado no país, meta inequívoca e proclamada do neoliberalismo, não só busca desconhecer o seu papel e sua possibilidade de intervir no mercado, desde que dispondo de vontade política e de instrumentos, que são as grandes empresas que detêm, omite o seu importante papel de grande comprador, inclusive e principalmente através das grandes empresas estatais, no mercado interno. É curioso observar como a intervenção do Estado, nos países mais avançados no desenvolvimento capitalista, é sonegada ao conhecimento dos brasileiros na monolítica, altamente financiada e antinacional campanha da mídia brasileira – aceito aqui o eufemismo. A simples estatística mostraria como as despesas do setor público, neles, estão em crescimento. Nos Estados Unidos, passaram de menos de 10%, no início do século, para 37%, em 1980. Nos últimos vinte anos, nos citados países, eles se elevaram de 31 para 40%. Cresceram na Inglaterra da sra. Thatcher, como nos Estados Unidos de mr. Reagan. Na Alemanha, é mantido o monopólio estatal em setores tradicionais, como as ferrovias, mas também em áreas de ponta, como as telecomunicações. Mas aqui, na área dominada, prega-se o Estado mínimo, destinado apenas a reduzir despesas, aumentar impostos e gerir um orçamento voltado, unilateralmente, ao financiamento de atividades como as de saúde, segurança e educação, quando muito e de acordo com modelos pautados por receituário importado. Receituário, aliás, único, como fórmula sem exceção, aplicado a todos os países e desconhecendo as suas peculiaridades e diversidades. A nossa política macroeconômica não pode ser ditada de fora. O Brasil não é apenas imenso, mas diverso. Na continentalidade de suas dimensões territoriais. Sua estrutura econômica, por isso mesmo e por motivos culturais, é extremamente complexa. Não pode ser atendido por um receituário único, uniforme e ditado por interesses externos. Esse receituário, ultimamente, sob domínio do neoliberalismo, nos tem levado à carestia, pobreza, desemprego, depressão, emissões e altas taxas de juros. Um receituário suicida, no fim de contas.”

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