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sexta-feira, 7 de julho de 2017

A Sociedade do Espetáculo (Parte III) – Guy Debord

Editora: Contraponto
ISBN: 978-85-8591-017-4
Tradução: Estela dos Santos Abreu
Opinião: ★★★★★
Páginas: 240
Sinopse: Ver Parte I
  


“A mercadoria já não pode ser criticada por ninguém: nem enquanto sistema geral, nem mesmo como essa embalagem determinada que terá sido conveniente aos empresários pôr nesse momento no mercado. Em todo o lado onde reina o espetáculo, as únicas forças organizadas são aquelas que querem o espetáculo. Portanto, nenhuma pode ser inimiga do que existe, nem infringir a omertá que diz respeito a tudo. Acabou-se com esta inquietante concepção que dominou durante mais de duzentos anos, segundo a qual uma sociedade podia ser criticável e transformável, reformada ou revolucionada. E isto não foi obtido pelo aparecimento de argumentos novos, mas muito simplesmente porque os argumentos se tornaram inúteis. Perante este resultado medir-se-á, em vez da felicidade geral, a força terrível das redes da tirania.
Jamais a censura foi tão perfeita. Jamais a opinião daqueles a quem se faz crer ainda, em certos países, que são cidadãos livres, foi tão pouco autorizada a tornar-se conhecida, cada vez que se trata duma escolha que afetará a sua vida real. Jamais foi permitido mentir-lhes com uma tão perfeita ausência de consequência. O espectador é suposto ignorar tudo, não merecer nada. Quem olha sempre, para saber a continuação, jamais agirá: e tal deve ser o espectador. Tudo aquilo que nunca é sancionado é verdadeiramente permitido. É pois arcaico falar de escândalo. Atribui-se a um homem de Estado italiano de primeiro plano, tendo exercido funções simultaneamente no ministério e no governo paralelo chamado P.2, Potere due, uma divisa que resume profundamente o período em que entrou o mundo inteiro, um pouco depois da Itália e dos Estados Unidos: “Havia escândalos, mas já não há”.
Na obra O 18 Brumário de Louis Bonaparte, Marx descrevia o papel invasor do Estado na França do Segundo Império, que dispunha então de meio milhão de funcionários: “Tudo se transforma assim em objeto da atividade governamental, desde a ponte, à escola, à propriedade comunal de uma aldeia até às linhas do caminho de ferro, às propriedades nacionais e às universidades de província.” A famosa questão do financiamento dos partidos políticos punha-se já nessa época, pois Marx nota que “os partidos que, à vez, lutavam pela supremacia, viam na tomada de posse deste edifício enorme a principal presa do vencedor”. Eis como isto soa um pouco bucólico e, como se diz, ultrapassado, já que as especulações do Estado de hoje dizem respeito preferencialmente às novas cidades e autoestradas, à circulação subterrânea e à produção de energia eletronuclear, à exploração petrolífera e aos computadores, à administração dos bancos e dos centros socioculturais, às modificações da “paisagem audiovisual” e às exportações clandestinas de armas, à promoção imobiliária e à indústria farmacêutica, à agroalimentar e à gestão dos hospitais, aos créditos militares e aos fundos secretos do departamento, em contínuo crescimento, que deve gerir os numerosos serviços de proteção da sociedade. E, contudo, Marx continua sendo infelizmente demasiado atual, quando evoca, no mesmo livro, este governo “que não toma de noite as decisões que quer executar de dia, mas decide o dia e executa à noite”.”


“Esta democracia tão perfeita fabrica ela mesma o seu inconcebível inimigo: o terrorismo. Ela quer, com efeito, antes ser julgada pelos seus inimigos que pelos seus resultados. A história do terrorismo é escrita pelo Estado. É, portanto, educativa. As populações espectadoras não podem certamente saber tudo sobre o terrorismo, mas podem sempre saber a esse respeito o suficiente para ser persuadidas de que, comparado ao terrorismo, tudo o resto deverá parecer-lhes mais aceitável, em todo o caso mais racional e mais democrático.”


“A dissolução da lógica foi prosseguida, segundo os interesses fundamentais do novo sistema de dominação, por diferentes meios que operaram prestando sempre um apoio recíproco. Vários destes meios estão ligados à instrumentação técnica, que experimentou e popularizou o espetáculo, mas alguns deles estão preferencialmente ligados à psicologia de massas da submissão.
De acordo com as técnicas, quando a imagem construída e escolhida por algum outro se torna na principal relação do indivíduo com o mundo que antes olhava por si mesmo, de cada lugar onde podia ir, não se ignora evidentemente que a imagem vai suportar tudo; porque no interior de uma mesma imagem pode justapor-se sem contradição seja o que for. O fluxo de imagens domina tudo, e é igualmente qualquer outro que governa a seu gosto este resumo simplificado do mundo sensível; que escolhe aonde irá esta corrente, e também o ritmo daquilo que deverá manifestar-se nela, como perpétua surpresa arbitrária, não deixando nenhum tempo para a reflexão, e em absoluto, independentemente do que o espectador possa compreender ou pensar. Nesta experiência concreta da submissão permanente, encontra-se a raiz psicológica da adesão tão generalizada àquilo que lá está, que vem a reconhecer-lhe ipso fato um valor suficiente. O discurso espetacular cala evidentemente, além de tudo aquilo que é propriamente secreto, tudo aquilo que não lhe convém. Daquilo que mostra ele isola sempre o meio, o passado, as intenções, as consequências. É, portanto, totalmente ilógico. Já que ninguém pode contradize-lo, o espetáculo tem o direito de contradizer-se a si mesmo, de ratificar o seu passado. A altiva atitude dos seus servidores quando têm de fazer saber uma versão nova, por ventura mais mentirosa ainda, de certos fatos, é de ratificar rudemente a ignorância e as más interpretações atribuídas ao seu público, ainda que sejam os mesmos que na véspera se apressavam a difundir esse erro, com a sua habitual certeza. Assim, o ensino do espetáculo e a ignorância do espectador passam indevidamente por fatores antagônicos quando nascem um do outro. A linguagem binária do computador é igualmente uma irresistível incitação a admitir em cada instante, sem reservas, aquilo que foi programado como muito bem quis qualquer outro, e que se faz passar pela fonte intemporal duma lógica superior, imparcial e total. Que ganho de rapidez, e de vocabulário, para julgar de tudo! Político? Social? É preciso escolher. O que é um não pode ser o outro. A minha escolha impõe-se. Sopram-nos, e sabe-se para que são estas estruturas. Não é pois surpreendente que, desde a infância, os alunos facilmente comecem, e com entusiasmo, pelo Saber Absoluto da informática: enquanto ignoram cada vez mais a leitura, que exige um verdadeiro julgamento a cada linha; e que só ela pode dar acesso à vasta experiência humana anti-espetacular. Já que a conversação está quase morta e em breve também estarão muitos daqueles que sabiam falar.
De acordo com os meios do pensamento das populações contemporâneas, a primeira causa da decadência está ligada claramente ao fato de que todo o discurso mostrado no espetáculo não deixa nenhum lugar para a resposta; e a lógica não se formava socialmente senão no diálogo. Mas também quando se propagou o respeito por aquele que fala no espetáculo, que é considerado ser importante, rico, prestigiado, que é a autoridade mesma, a tendência espalha-se também entre os espectadores, de quererem ser tão ilógicos como o espetáculo, para alardear um reflexo individual dessa autoridade. Enfim, a lógica não é fácil, e ninguém deseja ensiná-la. Nenhum drogado estuda lógica; porque não tem dela necessidade e porque não tem sequer essa possibilidade. Esta preguiça do espectador é também a de qualquer quadro intelectual, do especialista formado à pressa, que tentará em todos os casos esconder os estreitos limites dos seus conhecimentos pela repetição dogmática de qualquer argumento de autoridade ilógica.”


“O apagamento da personalidade acompanha fatalmente as condições da existência concretamente submetida às normas espetaculares, e também cada vez mais separada das possibilidades de conhecer experiências que sejam autênticas e, através delas, descobrir as suas preferências individuais. O indivíduo, paradoxalmente, deverá negar-se permanentemente se pretende ser um pouco considerado nesta sociedade. Esta existência postula com efeito uma fidelidade sempre variável, uma série de adesões constantemente enganosas a produtos falaciosos. Trata-se de correr rapidamente atrás da inflação dos sinais depreciados da vida. A droga ajuda a conformar-se com esta organização das coisas; a loucura ajuda a fugir dela.”


“O espetáculo não esconde que alguns perigos cercam a ordem maravilhosa que estabeleceu. A poluição dos oceanos e a destruição das florestas equatoriais ameaçam a renovação de oxigênio da Terra; a sua capa de ozone resiste mal ao progresso industrial; as radiações de origem nuclear acumulam-se irreversivelmente. O espetáculo conclui somente que isso não tem importância. Não quer discutir senão as datas e as doses. E somente com isto consegue tranquilizar; o que para um espirito pré-espetacular seria tido por impossível.
Os métodos da democracia espetacular são de uma grande flexibilidade, contrariamente à simples brutalidade do diktat totalitário. Pode manter-se o nome quando a coisa foi secretamente transformada (da cerveja ao bife, passando por um filósofo). Também pode mudar-se o nome, quando a coisa foi secretamente continuada: por exemplo, em lnglaterra, a unidade de tratamento de resíduos nucleares de Windscale levou a fazer chamar Sellafield a sua localidade, a fim de melhor desviar as suspeitas, depois de um desastroso incêndio em 1957; mas este rebatismo toponímico não impediu o aumento da mortalidade por câncer e leucemia nos seus arredores. O governo britânico, viemos a sabê-lo democraticamente trinta anos mais tarde, tinha decidido, então, manter secreto um relatório sobre a catástrofe que julgava, e não sem razão, de natureza a abalar a confiança que o público depositava no nuclear.
As práticas nucleares, militares ou civis, necessitam de uma dose de segredo mais forte que quaisquer outras – ainda que, como se sabe, nestas matérias o segredo nunca é demais. Para facilitar a vida, quer dizer, as mentiras, os sábios escolhidos pelos senhores deste sistema descobriram a utilidade de mudar também as unidades de medida, diversificá-las segundo um maior número de pontos de vista, refiná-las para, conforme as circunstâncias, poder aldrabar com várias dessas cifras dificilmente convertíveis. É assim que para avaliar a radioatividade, pode dispor-se das seguintes unidades de medida: o curie, o becquerel, a rontgen, o rad, aliás centigray, o rem, sem esquecer o fácil milirad e o sivert, que é o mesmo que uma porção de 100 rems. Isto evoca a recordação das subdivisões da moeda inglesa cuja complexidade dificultava o rápido domínio para os estrangeiros, no tempo em que Sellafield ainda se chamava Windscale.
Imagina-se o rigor e a precisão que teriam podido alcançar no século XIX, a história das guerras e, por consequência, os teóricos da estratégia se – com o objetivo de não fornecer informações demasiado confidenciais aos comentadores neutros ou aos historiadores inimigos tivessem habitualmente de ser prestadas contas de uma campanha nestes termos: “A fase preliminar comporta uma série de confrontos onde, do nosso lado, uma sólida vanguarda, constituída por quatro generais e pelas unidades colocadas sob o seu comando, se confronta com um corpo inimigo contando 13.000 baionetas. Na fase posterior desenrola-se uma batalha campal longamente disputada onde se usou a totalidade do nosso exército, com os seus 290 canhões e a sua poderosa cavalaria de 18.000 sabres; enquanto que o adversário lhe opôs tropas que não contavam com menos de 3.600 tenentes de infantaria, quarenta capitães de cavalaria ligeira e vinte e quatro de cavalaria pesada. Depois de alternâncias de reveses e de êxitos de parte a parte, a batalha pôde ser considerada finalmente coma indecisa. As nossas perdas, muito abaixo da cifra média habitualmente verificada em combates com uma duração e intensidade comparáveis, são sensivelmente superiores às dos Gregos em Maratona, mas inferiores às dos Prussianos em Yena.” Depois deste exemplo, não é impossível a um especialista fazer uma ideia vaga das forças envolvidas. Mas a condução das operações tem a segurança de ficar acima de qualquer julgamento.
É certamente uma pena que a sociedade humana enfrente problemas tão abrasadores no momento em que se tornou materialmente impossível fazer ouvir a mínima objeção ao discurso mercantil; no momento em que a dominação, precisamente porque está protegida pelo espetáculo de toda a réplica às suas decisões e justificações fragmentárias ou delirantes, crê que já não tem necessidade de pensar; e verdadeiramente já não sabe pensar. Por inabalável que seja o democrata, não preferiria que lhe tivessem escolhido senhores mais inteligentes?
Na conferência internacional de experts realizada em Genebra, em Dezembro de 1986, colocava-se simplesmente a questão duma interdição mundial da produção de clorofluorcarbonetos, o gás que faz desaparecer desde há pouco, mas a passos largos, a fina camada de ozônio que protegia este planeta – havemos de recordá-lo... – contra as efeitos nocivos da radiação cósmica. Daniel Verilhe, representante da filial de produtos químicos da ELF-Aquitaine, e integrando a este título uma delegação francesa firmemente oposta a esta interdição, fazia uma observação plena de sentido: “são necessários pelo menos três anos para pôr em estado de funcionamento eventuais substitutos e os custos podem ser multiplicados por quatro.” Sabe-se que esta fugitiva capa de ozônio, a uma tal altitude, não pertence a ninguém nem tem nenhum valor comercial. Portanto, o estrategista industrial pôde fazer avaliar aos seus contraditores toda a sua inexplicável indiferença econômica, através deste chamamento à realidade: “É muito arriscado basear uma estratégia industrial segundo imperativas de matéria ambiental.”
Aqueles que, há muito tempo, começaram a criticar a economia política definindo-a como “a negação acabada do homem”, não se enganavam. Poder-se-á reconhecê-la neste episódio.”


“A ciência da justificação mentirosa apareceu naturalmente depois dos primeiros sintomas de decadência da sociedade burguesa, com a proliferação cancerosa das pseudo-ciências ditas “do homem”; mas, por exemplo, a medicina moderna pôde fazer-se passar por útil durante algum tempo, e os que venceram a varíola ou a lepra eram diferentes destes que, com baixeza, capitularam perante as radiações nucleares ou a química agro-alimentar. Nota-se rapidamente que a medicina, hoje, indubitavelmente, já não tem o direito de defender a saúde da população contra o ambiente patogênico, visto que isto seria opor-se ao Estado, ou pelo menos à indústria farmacêutica. Mas não é somente por aquilo que é obrigada a calar, que a atividade científica presente confessa aquilo em que se tornou. É também por aquilo que, muitas vezes, tem a simplicidade de dizer. Anunciando em Novembro de 1985, depois de uma experimentação de oito dias com quatro doentes, que talvez tivessem descoberto um remédio eficaz contra o AIDS, os professores Even e Andrieu, do hospital de Laennec, viam morrer os seus doentes dois dias depois e suscitavam algumas reservas por parte de vários médicos, menos avançados ou talvez ciumentos, pela sua maneira precipitada de correr a registar, algumas horas antes da derrocada, o que não era mais que uma enganadora aparência de vitória. Aqueles professores defenderam- se sem se perturbar, afirmando que “apesar de tudo, mais valem falsas esperanças do que não haver esperança nenhuma”. Eram mesmo demasiado ignorantes para reconhecer que este argumento, por si só, era uma completa negação do espírito científico e que tinha historicamente sempre servido para encobrir as proveitosas fantasias dos charlatães e dos feiticeiros, nos tempos em que não se lhes confiava a direção dos hospitais.
Quando a ciência oficial vem sendo conduzida deste modo, como todo o resto do espetáculo social que, sob uma apresentação materialmente modernizada e enriquecida, não fez mais que retomar as antiquíssimas técnicas do teatro de feira – ilusionistas, vendedores da banha da cobra e vigaristas –, não pode surpreender ver que grande autoridade retomam paralelamente, um pouco por todo o lado, os bruxos e as seitas, o zen embalado em vácuo, ou a teologia dos Mórmons.”


“Invertendo uma fórmula famosa de Hegel, já em 1967 notava eu que “num mundo realmente invertido, o verdadeiro é um momento do falso”.


“Os terroristas conhecidos, ou considerados como tais, são combatidos abertamente duma maneira terrorista.”


“O poder tornou-se tão misterioso que, depois do assunto das vendas ilegais de armas ao Irã pela Presidência dos Estados Unidos, pode perguntar-se quem governa verdadeiramente nos Estados Unidos, a mais forte potência do mundo dito democrático? E, portanto, que diabo pode comandar o mundo democrático?”


“O general Noriega tornou-se num instante conhecido mundialmente no princípio do ano de 1988. Era ditador sem título do Panamá, país sem exército, onde comandava a Guarda Nacional. Pois o Panamá não é verdadeiramente um Estado soberano: foi escavado pelo seu canal e não o contrário. O dólar é a sua moeda, e o verdadeiro exército ali estacionado é igualmente estrangeiro. Noriega tinha feito toda a sua carreira, nisto perfeitamente idêntica à de Jaruzelski na Polônia, como general-polícia ao serviço do ocupante. Era importador de droga para os Estados Unidos, pois o Panamá não produz o suficiente, e exportava para a Suíça os seus capitais “panamenhos”. Tinha trabalhado com a C.I.A. contra Cuba e, para ter a cobertura adequada às suas atividades econômicas, tinha também denunciado às autoridades americanas, tão obcecadas por este problema, um certo número dos seus rivais na importação. O seu principal conselheiro em matéria de segurança, que provocava inveja em Washington, era o melhor do mercado, Michael Harari, antigo oficial da Mossad, o serviço secreto de Israel. Quando os americanos quiseram desfazer-se do personagem, porque alguns dos seus tribunais o tinham imprudentemente condenado, Noriega declarou-se disposto a defender-se durante mil anos, por patriotismo panamiano, simultaneamente contra o seu povo em revolta e contra o estrangeiro, e rapidamente recebeu a aprovação pública dos ditadores burocráticos mais austeros de Cuba e da Nicarágua, em nome do anti-imperialismo.
Longe de ser uma estranheza estritamente panamiana, este general Noriega, que vende tudo e simula tudo num mundo que por todo o lado faz o mesmo, era, ao mesmo tempo, como espécie de homem duma espécie de Estado, como espécie de general, como capitalista, perfeitamente representativo do espetacular integrado; e dos êxitos que este permite nas direções mais variadas da sua política interior e internacional. É um modelo do príncipe do nosso tempo; e entre aqueles que se destinam a chegar e a ficar no poder, em qualquer sítio onde este possa estar, os mais capazes assemelham-se lhe bastante. Não é o Panamá que produz tais maravilhas, é esta época.”


“O segredo domina este mundo, e em primeiro lugar como segredo da dominação. Segundo o espetáculo, o segredo não seria mais que uma necessária exceção à regra da informação abundantemente oferecida por toda a superfície da sociedade, do mesmo modo que a dominação, neste “mundo livre” do espetacular integrado, se reduziria a não ser mais que um Departamento executivo ao serviço da democracia. Mas ninguém acredita verdadeiramente no espetáculo. Como aceitariam os espectadores a existência do segredo que garante, por si só, que não podem gerir um mundo do qual ignoram as principais realidades, se a título extraordinário se lhes pedisse verdadeiramente a sua opinião sobre a maneira de preceder? É um fato que o segredo não aparece a quase ninguém na sua pureza inacessível, e na sua generalidade funcional. Todos admitem que exista uma pequena zona de segredo reservada aos especialistas; e para a generalidade das coisas, muitos acreditam estar no segredo.
La Boétie demonstrou, no Discurso sobre a servidão voluntária, como o poder de um tirano deve encontrar numerosos apoios entre os círculos concêntricos dos indivíduos que nele encontram, ou creem encontrar, o seu proveito. Da mesma maneira muitos, entre os políticos ou midiáticos que estão convencidos de que não se pode suspeitar deles como sendo irresponsáveis, conhecem muitas coisas pelas relações e pelas confidências. Aquele que se contenta com estar dentro da confidência, não é muito impelido a criticá-la; nem portanto a reparar que, em todas as confidências, a parte principal da realidade ser-lhe-á sempre escondida. Pela benevolente proteção dos trapaceiros, conhece umas poucas cartas mais, mas que podem ser falsas; e nunca o método que dirige e explica o jogo. Identifica-se, assim, em seguida com os manipuladores e despreza a ignorância que no fundo partilha. Pois as migalhas da informação oferecidas a estes familiares da tirania mentirosa estão normalmente infectadas de mentira, incontroláveis, manipuladas: Contudo, satisfazem aqueles que a elas acedem, porque se sentem superiores a todos os que não sabem nada. De resto, não valem senão para melhor fazer aceitar a dominação, e nunca para a compreender efetivamente. Elas constituem o privilégio dos espectadores de primeira classe: aqueles que têm a palermice de acreditar que podem compreender algo, não servindo-se daquilo que se lhes esconde, mas acreditando naquilo que se lhes revela!


“Em Janeiro de 1988, a Máfia colombiana da droga publicava um comunicado destinado a retificar a opinião pública sobre a sua pretendida existência. A maior exigência duma Máfia, onde quer que possa estar constituída, é naturalmente estabelecer que não existe, ou que foi vítima de calúnias pouco científicas; esta é a primeira semelhança com o capitalismo. Mas na circunstância, esta Máfia irritada por ser a única posta em evidência chegou a evocar os outros agrupamentos que queriam fazer-se esquecer, tornando-a abusivamente por bode expiatório. Declarava: “Nós não pertencemos à Máfia burocrática e política, nem à dos banqueiros e financeiros, nem à dos milionários, nem à Máfia dos grandes contratos fraudulentos, à dos monopólios ou à do petróleo, nem à dos grandes meios de comunicação.”
Pode seguramente considerar-se que os autores desta declaração, como os outros, têm interesse em verter as suas práticas no vasto rio de águas turvas da criminalidade e das ilegalidades banais, que inunda em toda a sua extensão a sociedade atual; mas também é justo reconhecer que se trata de pessoas que, por profissão, sabem melhor que ninguém do que falam.”


“Só se fala continuamente de “Estado de Direito”, a partir do momento em que o Estado moderno dito democrático deixou em geral de o ser. Não é de modo nenhum por acaso que a expressão só foi popularizada pouco depois de 1970 e, em primeiro lugar, justamente na Itália. Em muitos domínios, fazem-se mesmo leis precisamente para que sejam contornadas, por aqueles que justamente possuirão todos os meios para isso. A ilegalidade em certas circunstâncias, por exemplo, à volta do comércio mundial de todo o tipo de armamentos, e mais frequentemente envolvendo produtos da mais alta tecnologia, não é mais que uma espécie de força de apoio da operação econômica, que se encontrará muito mais rentável. Hoje muitos negócios são necessariamente desonestos como o século, e não como eram outrora aqueles que praticavam, em séries claramente delimitadas, os homens que tinham escolhido os caminhos da desonestidade.”


“As verdadeiras influências permanecem escondidas e as últimas intenções não podem ser senão muito dificilmente percebidas, quase nunca compreendidas. De modo que ninguém pode dizer que não é enganado ou manipulado, mas é só em raros instantes que o próprio manipulador pode saber se foi vencedor. E, por outro lado, encontrar-se do lado ganhador da manipulação não quer dizer que se tenha escolhido com justeza a perspectiva estratégica. É assim que êxitos táticos podem atolar grandes forças em maus caminhos.
Numa mesma rede, perseguindo aparentemente um mesmo fim, aqueles que não constituem senão uma parte da rede são obrigados a ignorar todas as hipóteses e conclusões das outras partes, e sobretudo do seu núcleo dirigente. O fato bastante notório de que todas as informações sobre qualquer assunto observado podem ser também completamente imaginárias, ou gravemente falseadas, ou interpretadas muito inadequadamente, complica e torna pouco seguros, numa vasta medida, os cálculos dos inquisidores; pois aquilo que é suficiente para condenar alguém não é tão seguro quando se trata de o conhecer ou de o utilizar. Já que as fontes de informação são rivais, as falsificações o são também.”


“O espetáculo é uma miséria, mais que uma conspiração. E os que escrevem nos jornais do nosso tempo não nos escondem nada da sua inteligência.”

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