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segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

Em busca do socialismo: últimos escritos & outros textos (Parte II) – Florestan Fernandes

Editora: Xamã
ISBN: 85-85833-10-6
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 270
Sinopse: Ver Parte I



“Quem não se aproxima corretamente de um problema, é claro, não está em condições de resolvê-lo.”


“O fator econômico, stricto sensu, determina a vida social e explica o processo histórico.”


“Depois de K. Marx e F. Engels coube a Lênin o papel mais importante na sistematização teórica do marxismo a partir de uma posição revolucionária exigente, firme, flexível em sua forma (em política revolucionária as fórmulas só possuem valor se correspondem ao concreto, às possibilidades reais de um avanço, da conquista de uma vitória, da consolidação e aproveitamento inteligente desse ponto de partida, etc.), mas inflexível em seus conteúdos (a política revolucionária obedece a princípios fundamentais, em torno dos quais não há transigência possível).”


“O socialismo só pode propagar-se e ser plenamente absorvido pelas classes trabalhadoras sob a atividade de um partido revolucionário capaz de reforçar as potencialidades de rebelião da classe operária e de lançá-la, nas menores oportunidades históricas, à luta política.”


“A vitalidade do movimento socialista não nasce de si mesmo, apenas, nasce da sociedade em que se constitui e na qual se expande. O requisito histórico e o patamar de um movimento dessa envergadura é a existência de uma sociedade que caminha inexoravelmente, pelas pressões de baixo para cima, pela insatisfação das massas e pelo inconformismo das classes trabalhadoras, na direção da desagregação da ordem existente e da revolução social. Nesses quadros históricos há um socialismo potencial (diria, mesmo, um socialismo revolucionário potencial). O marxismo como teoria e como práxis pode ser facilmente irradiado nas várias direções da sociedade: as tarefas dos militantes, dos “teóricos” e “publicistas” nem por isso é mais fácil. Porque essa potencialidade traz consigo uma repressão feroz, uma autodefesa cega e impiedosa. Contudo, a violência institucional da contrarrevolução não consolida a si própria. Ela fortalece as forças antagônicas, os inimigos da opressão e da contrarrevolução, ou seja, em um primeiro momento, a revolução democrática de base popular, em outro momento seguinte, o controle do Estado pelas forças da revolução democrática, e a transição para o socialismo.
Dadas certas dessas condições, o que depende dos próprios socialistas para que o seu movimento se consolide, se irradie e, através das massas populares e das classes trabalhadoras, se converta em força política revolucionária? Excluindo-se Cuba, a experiência chilena e algumas manifestações verdadeiramente políticas da guerrilha, a América Latina foi o paraíso da contrarrevolução (da contrarrevolução mais elementar e odiosa, a que impede até a implantação de uma democracia-burguesa autêntica). Hoje, mais do que nunca, ela continua a ser o paraíso da contrarrevolução, só que, agora, conjugando o “terrorismo burguês interno” com o “terrorismo burguês externo”. Os partidos que deveriam ser revolucionários (anarquistas, socialistas ou comunistas), devotaram-se à causa da consolidação da ordem, na esperança de que, dado o primeiro passo democrático, ter-se-ia uma situação histórica distinta. Em suma, bateram-se pela democracia-burguesa, como se fossem os campeões da liberdade. Trata-se de uma avaliação dura? Quanto tempo as burguesias nacionais ter-se-iam aguentado no poder se fossem atacadas de modo direto, organizado e eficiente? Ou estamos sujeitos a uma “fatalidade histórica”, que prolonga o período colonial e a tirania colonizadora depois da independência e da expansão do Estado nacional? O diagnóstico correto, embora terrível para todos nós, é que nunca fizemos o que deveríamos ter feito. Os “revolucionários” quiseram manter seus privilégios, ou os seus meio-privilégios, sintonizando-se com as elites no poder e com as classes dominantes. Formaram a sua ala radical, sempre pronta a esclarecer os donos do poder sobre o que certas reformas implicariam, para evitar uma aceleração da desagregação da ordem e os seus efeitos imprevisíveis... Não estou inventando. Voltamos as costas à organização da revolução e auxiliamos a contrarrevolução, uns mais outros menos, uns conscientemente, outros sem ter consciência disso. E a “massa” da esquerda tem os olhos fitos no desfrute das vantagens do status de classe média. O que ameaça esse status entra em conflito com o socialismo democrático...
Fomos paralisados pela ideia do gradualismo democrático-burguês e pelo poder de coação da ordem. O que quer dizer que, na era da polivalência no “campo socialista”, ainda não sabemos quais são os caminhos que nos levarão à desagregação do nosso capitalismo selvagem e a soluções socialistas apropriadas à presente situação histórica. Um atraso monumental. (...) Por conseguinte, fora de Cuba não se criou um pensamento socialista revolucionário original. A principal tarefa, teórica foi negligenciada até hoje, porque líderes, vanguardas e partidos da esquerda ou vivem a sua integridade socialista com extremo purismo ascético – e bem longe da atividade prática concreta – ou se concentram no “economismo” e, pior que isso, em táticas imediatistas, de composição dentro da ordem, como se o socialismo pudesse ser o último estágio, a Quinta essência da “democracia” burguesa. O reformismo pequeno-burguês como estilo de prática política. (...)
O avanço real só pode ser conquistado graças e através das massas populares e das classes trabalhadoras. A nossa tarefa urgente consiste em propagar o socialismo revolucionário nesses setores da sociedade e, com o amadurecimento da sua experiência política, tentar-se o equacionamento de “Por onde começar?” Nem uma coisa nem outra será possível se se mantiver a tática “economista”, o falso obreirismo e o populismo das classes dominantes, a submissão a burguesias pró-imperialistas e entranhadamente antidemocráticas e contrarrevolucionárias. (...) Não serão as classes possuidoras, especialmente os seus setores privilegiados nacionais e estrangeiros, que irão favorecer e levar a cabo a revolução democrática. E esta não pode ser pensada, por um socialista, como um desdobramento de etapas. Onde as massas populares e as classes trabalhadoras se afirmam como as únicas alavancas da revolução democrática, esta só poderá conter uma transição burguesa extremamente curta. Hoje, mais que no passado, a civilização de consumo de massas constitui um ópio do Povo. As massas populares e as classes trabalhadoras só podem ser educadas para o socialismo através de um forte movimento socialista, dentro do qual elas forneçam as bases, os quadros e as vanguardas, e através do qual elas disputem o poder das classes dominantes, deslocando-as do controle do Estado e do sistema de opressão institucional “democrático”.”


“O que pensaria Trótski, hoje, diante dos artifícios e traições intrínsecos ao debate sobre o “fim do socialismo” e a “morte do marxismo”? Ele, que apontou precocemente a necessidade de uma revolução política corretiva, seria certamente muito duro na condenação de um “revisionismo” cego e destrutivo/ que não busca a renovação do socialismo revolucionário, mas a sua transformação em joguete de uma guerra ideológica suja. Não deixaria de assinalar que há uma colheita desastrosa de erros acumulados, que poderiam ter sido evitados se a herança de Marx e Engels e o exemplo de Lênin tivessem sido postos em prática.
Mas ele seria implacável com os “fariseus”, que se proclamam socialistas ou ex-marxistas, mas cerram fileiras com as correntes intelectuais da moda, a partir dos centros de produção cultural e de propaganda das nações capitalistas centrais. A democracia que nasce do marxismo nada tem a ver com a democracia plutocrática e militarista, que combina promessas com repressão (no dizer de Miliband). Elas se alternam e se anulam, dentro de um sistema capitalista de poder que comporta regularmente manifestações assustadoras de fascismo potencial. Trótski converteria sua caneta em uma chibata, desmascarando os defensores inconsequentes de um social-democratismo que destina à periferia (e aos pobres “absolutos” ou “relativos” de seus próprios povos) a “mudança social conservadora”. Ou seja, a mudança social que reproduz a ordem existente e proscreve as alternativas radicais à civilização sem barbárie.”


“Tanto na Europa quanto nos demais continentes, a irradiação do capitalismo revelou a outra face: em escala internacional, nem todos os comensais podem ser iguais. Para que uns floresçam, outros crescem atrofiadamente. As burguesias dos países capitalistas atrofiados (ou subdesenvolvidos) defrontaram-se com os riscos da revolução nacional em verdadeiro estado de pânico, como se ela fosse uma catástrofe social. Como não podiam impedi-la (isso é impossível sob o capitalismo), movimentaram-se dentro da obscura selva da razão do “mundo moderno”, convertendo a dominação burguesa em si mesma numa força social totalitária e o Estado nacional em instrumento político institucionalizado dessa força. Temos aí, sem dúvida, uma forma prática de desmascaramento ideológico.”


“Esse desfecho mostra aonde leva a aceleração do desenvolvimento capitalista dependente, concebida e posta em prática pela dominação burguesa como um fim em si e para si, e em condições nas quais o resto da sociedade não pode impedir o monopólio exclusivo do poder do Estado por um conglomerado de classes privilegiadas. A democracia se equaciona, como realidade histórica viva, ao nível dos privilégios econômicos, sociais e políticos dessas classes, ou seja, como uma democracia restrita, da qual só participam efetivamente os membros de tais classes (ou, conforme as circunstâncias, só as suas elites).”


“A renda (na década de 70) sofreu oscilações que refletem o que ocorre em uma “sociedade nacional” quando interesses privados deslocam os interesses coletivos e se impõem no lugar deles (a renda se comprime ou deslancha no sentido inverso das probabilidades de acumulação capitalista das classes sociais em presença). Os hábitos alimentares, as normas de higiene e o padrão de vida, por sua vez, são também apanhados por essas determinações: numa era de crescimento e de mudança, as duas ou três nações coexistentes dentro da sociedade brasileira distanciam-se de modo acelerado, ainda mais que no passado, ao mesmo tempo em que um consumismo destrutivo impregna o topo e os setores intermediários, que passam a devastar recursos escassos como se aí estivesse a mola do desenvolvimento capitalista e da “institucionalização da revolução”. Por fim, a cultura é reprimida, industrializada e condicionada segundo um código egoísta e obscurantista, que repôs a imitação servil e a colonização cultural no centro das opções históricas. A dominação externa e a imperialização atinge, aí, o âmago de nossa vida e de nossa sociedade, levando a satelização ao fundo de nossas almas, de nosso horizonte intelectual e de nossas aspirações coletivas, porque absorvemos em massa o que nos impingem de fora para dentro. Que futuro pode restar a uma nação capitalista dependente que confunde “interdependência” com uma política irresponsável de repressão da cultura e de desenvolvimento cultural?”


“Portanto, é inócuo o apego a pequenas ou a grandes fórmulas, como “a salvação pelo desenvolvimento” ou, ainda, “a revolução pelo desenvolvimento”. Sob o capitalismo dependente, o neocolonialismo retira a eficácia econômica, sociocultural e política do próprio capitalismo. Ele já não é mais capaz de provocar grandes transformações niveladoras, de sentido nacionalista e revolucionário; não engendra qualquer modalidade de democratização da renda, do prestígio social e do poder, e muito menos qualquer realidade política que lembre uma autêntica democracia burguesa. Se provoca e acelera a descolonização, isso se dá dentro dos limites de uma necessidade econômica imperiosa, pois não se pode modernizar a produção e a circulação sem recorrer ao trabalho livre, à produção de escala e a mercados nacionais. Todavia, a descolonização é contida ao nível social, cultural e político, para que a imensa maioria possa continuar uma presa fácil de uma arregimentação fascista, que se inculca “racional”, “humana”, “cristã” e “democrática”. Uma hegemonia compósita de classe liga os interesses capitalistas dominantes externos e internos, colocando o Estado nacional no cerne mesmo da nova opressão colonial, pela qual a acumulação capitalista converte-se em realidade política e é garantida (e não limitada ou impedida) pelo emprego sistemático do poderio policial-militar dos governos.
Tudo isso faz com que a autonomização nacional e a revolução nacional se desloquem, deixando de ser um elemento ou um componente da transformação capitalista. Sem dúvida, esta preencheu tais funções em alguns países da Europa, nos Estados Unidos e no Japão. No entanto, as condições que tornaram tais funções possíveis não são inerentes ao próprio capitalismo, e, ao que parece, são incompatíveis com o capitalismo selvagem da periferia. Na América Latina, na África e na Ásia, em nossos dias, o verdadeiro desenvolvimento significa liberação revolucionária dirigida contra o capitalismo e suas sequelas. Ele implica em levar a descolonização até o âmago da economia, da sociedade, da cultura e da personalidade, de modo a não deixar vivo nenhum liame colonial de exploração do homem pelo homem (mesmo “impessoal e racional”, que é como se justifica a supremacia da acumulação capitalista sem qualquer influência contrabalançadora do poder assalariado ou do poder operário); e também a não deixar nenhuma via de restabelecimento às composições da opressão neocolonialista. Aí está o busílis da questão: impedir que a dominação burguesa imponha um neocolonialismo disfarçado e com uma racionalidade própria em nome da “revolução pelo desenvolvimento” e da “modernização” em si e para si.
O que acontece com o desenvolvimento capitalista quando as burguesias nacionais partem de uma situação basicamente dependente, estão destituídas de autonomia real no plano das estruturas internacionais de poder e não se defrontam (ou ainda não se defrontam) com um poder operário institucionalmente forte e organizado? Essa burguesia pode suportar o jogo democrático e a revolução nacional enquanto ela própria dirige todo o processo e não se vê, em nenhum ponto essencial, ameaçada quer pela pressão externa do capitalismo internacional, quer pela pressão interna de um Estado potencialmente dinâmico ou de uma força operária reivindicadora. No entanto, ela se toma facilmente totalitária quando esse frágil equilíbrio se rompe, e evolui depressa para formas de controle do Estado e de opressão política que só encontram paralelos em momentos de crise da evolução do capitalismo industrial na Europa e nos Estados Unidos. Militarização, poder e fascismo surgem como respostas alternativas, que podem facilmente encadear-se, engendrando um padrão de dominação burguesa rígido, “revolucionário” como mistificação ideológica (porque, de fato, o que se procede é a institucionalização da pressão contrarrevolucionária) e aberta à modernização da qual se constitui um veículo natural (porque ainda aqui a modernização só pode dar-se de fora para dentro e controlada a partir de fora). Todavia, bem ponderadas as coisas, é esse o papel da burguesia nacional em tal contexto da transformação capitalista e essa é a função da revolução burguesa em semelhante contexto histórico. Essa burguesia é a digna descendente da “burguesia clássica” e é tão útil para a continuidade e o aperfeiçoamento do capitalismo quanto o foi aquela.”


“Uma colônia só pode crescer indefinidamente, diferenciar-se (em termos de estruturas históricas) e alcançar algum grau significativo de desenvolvimento próprio quando ela alcança poder real para impor-se sobre e contra a metrópole, ignorar e esmagar seu absolutismo e caminhar sobre seus próprios pés. O estratagema das nações capitalistas mais dinâmicas e dominadoras sempre consistiu em imprimir à civilização ritmos muito rápidos de evolução: os laços coloniais se redefiniam em liames neocoloniais ou em uma pluralidade de relações de dependência sucessivas, o que provocou o inferno dos chamados “países pobres” ou “periféricos”. Sempre perto da utopia, da plenitude da fruição da civilização in flux; nunca dispondo de meios para superar a brecha comercial, o “atraso” e o “subdesenvolvimento”. Pois, quando logravam as condições para o salto decisivo, as cadeias da situação colonial, neocolonial ou dependente redefiniram-se em um nível mais alto e inatingível de desenvolvimento. Só os Estados Unidos e o Japão escaparam desse destino, cortando a partir de dentro a submissão existente ou possível. Os laços invisíveis da modernização como capitulação fundam-se no consentimento recíproco dos que lucram e retiram poder nos dois polos dessa relação podre, os privilegiados nativos e seus parceiros do exterior.
Avançando nessa discussão, há os que sustentam, nos países centrais e nos países periféricos, que a civilização “pós-moderna” derrubou todas as barreiras, forjando um mundo só. Essa é uma verdade de superfície e de extensão do conceito. A ideologia das nações dominantes converte-se na ideologia das nações dominadas. O imperialismo penetrou fundo em todos os recantos da terra: na razão e na percepção da realidade; nos padrões de vestuário e nos estilos de vida; nos hábitos de comer e de morar, etc. Isso para os que podem fazê-lo. Os excluídos das nações pobres e proletárias só se servem dos restos do banquete. Os de cima e as camadas intermediárias comungam, através da mídia televisiva e impressa, de uma supra-realidade que não é a dos seus torrões natais. A descolonização, onde ela varreu as cabeças e os pensamentos, algumas vezes derrotou essa universalidade postiça, que envolve uma dualidade ética chocante. Só revoluções nacionalistas, onde elas foram libertárias, conduzidas por valores religiosos arraigados, por ideais socialistas em crisálida ou firmes, forçaram a descolonização a limpar modos de ser, de agir e de pensar, apontando como referência a desalienação coletiva do cárcere de luxo do capitalismo avançado. Todavia, esse processo entrou em colapso. As revoluções na ciência pura, na ciência aplicada e na tecnologia de ponta conferiram ao capitalismo oligopolista da era atual um poder de sedução e de conquista jamais alcançado por qualquer civilização conhecida.
Não é o objeto deste escrito o estudo dessas revoluções. Mas é preciso mencionar o que elas representam para povos e nações que não são sujeitos da história em processo. É preciso insistir: capitalismo oligopolista da era atual. Por quê? Pela simples evidência de que o capital oligopolista em suas origens, quando realizou a “partilha do mundo” e alicerçou as tragédias dos dias que correm, não possuía a força vital capaz de virar o mundo de cabeça para baixo. Ele se entrelaçava com uma forma de imperialismo que brotou das conquistas e das riquezas obtidas nas colônias e voltava-se para a intensificação da produtividade do trabalho ou para a associação entre capital financeiro, industrial e comercial, que fariam subir a acumulação de capital a patamares nunca vistos. Redesenhava o mundo e punha o universo diante de outra realidade histórica, o poder das nações capitalistas avançadas, por cima das contradições de interesses e das guerras, erigiam-se paulatinamente, com a ajuda dos geógrafos e dos “heróis” da tragédia moderna, na constituição de um ordenamento jurídico internacional (ou na semente de um sistema capitalista mundial de poder). Essa foi a primeira etapa de uma evolução, que se exibe com o maior vigor possível em nossos dias, malgrado os obstáculos e os conflitos. Esse mundo universal alterou-se e contém dentro de si os germes de sua própria autodestruição. Mas a humanidade ainda não alcançou esse ápice alvissareiro. O capital oligopolista da era atual abate-se sobre as nações pobres e periféricas dentro de uma versão que oculta os elementos coloniais diretos e indiretos e esconde a dependência, minimizando-a como uma espécie de “transição de amadurecimento na comensalidade”.
A incorporação assume outro modelo, muito mais sutil — nem por isso dissimulável. Redefinem-se os laços e os alvos da dependência e o modo de concretizá-la. Não obstante, seus dois pré-requisitos são arrasadores. Primeiro, o imperialismo hoje quer a rendição total. Inventou-se uma lógica própria, a da privatização. Tudo o que foi laboriosamente montado nos países “em desenvolvimento” da periferia melhor aquinhoados deve ser privatizado, isto é, deve entrar numa partilha da riqueza, oculta por trás de operações financeiras espoliativas e de negócios de interesse mútuo e equivalente... Toda a infraestrutura do sistema de produção e de circulação da periferia passou a ser obsoleto. Os parceiros estrangeiros manejam, através de agências bancárias, de firmas gigantes e da diplomacia estatal quem pode entrar nesse jogo e como os que entram devem comportar-se. Não há meio termo. Primeiro, pôr a economia interna em ordem. Segundo, definir as prioridades das operações estratégicas (na economia, na sociedade, na cultura e no Estado). Terceiro, realizar o processo de sucessão como um trator, não poupando nada nem ninguém. No passado, cunhei o conceito de “capitalismo selvagem". O capitalismo oligopolista da era atual é “super-selvagem”: a barbárie em coexistência com a civilização, que contém uma modalidade explosiva comparável à da bomba de hidrogênio mais destrutiva. Negociantes, empresários, tecnocratas, governos dos países sucateados, para ganhar uma dimensão pós-moderna, são instrumentais para atingir esse fim, com a cooperação inteligente, organizada e despótica dos organismos internacionais competentes. Estamos vivendo essa experiência. Dispenso-me de descrevê-la.
A privatização é o símbolo mágico, a senha que abre as vias de acesso garantido ao primeiro mundo. Só que, ainda neste universo transfigurado pela ciência e pela tecnologia de ponta, a modernização permanece presa às cadeias de Prometeu. O “país hospedeiro” não recebe as descobertas, os capitais e os meios para se erigir em nação pós-moderna. O que nele se expande são os componentes do espaço para que a florescente civilização invasora atinja e incorpore a periferia a seu próprio desenvolvimento. Os parceiros periféricos são desiguais e ficam com um rateio de benesses que os promove em entidades desprezíveis. Há uma mancha em suas esperanças róseas: eles compartilham o que entra em vias de obsoletização. Podem criar muitos processos e produtos ultramodernos, mas nunca serão “competitivos”, em escala mundial, para fazer frente às corporações gigantes em suas cidadelas estratégicas e às nações centrais (e, por enquanto, à sua superpotência, os Estados Unidos). A privatização é o novo “negócio da China” para as grandes potências. E uma ilusão medíocre para os seus imitadores baratos, condenados a colher os restos do banquete (pela associação ou pela compra de patentes e a aquisição de empréstimos). Portanto, no contexto histórico de hoje, preserva-se como forte equívoco a ideia de “decolagem para o desenvolvimento avançado” mediante a privatização. O que esta provoca são dois processos translúcidos: transferência de riqueza nacional mais ou menos gratuitamente aos parceiros preferenciais estrangeiros. Transferência de parcelas da riqueza nacional de maneira compensatória para as empresas gigantes nacionais e o capital financeiro, como uma função de legitimação. O Estado recua covardemente de seus deveres de defesa nacional — em territórios, gente e riqueza acumulada. Cede-as ao usufruto da “iniciativa privada”.”


“Os sociólogos que se definem perante “as exigências práticas da situação”, como se diz, perderam a liberdade da omissão. Ao repudiar a “neutralidade científica”, eles se defrontam com um compromisso intelectual que se equaciona, de modo imediato e imperativo, como um dever de objetividade crítica, de responsabilidade política e de participação militante, que forçam o “mundo acadêmico” a romper com o isolamento intelectual e político, ao mesmo tempo que colocam um paradeiro à ritualização da investigação sociológica institucionalizada. As duas oscilações conduzem, pois, a um mesmo resultado, evidenciando que os critérios de verdade da ciência valem tanto para a explicação da realidade quanto para a sua alteração.”


“Se se considera que Marx investigou não só o capitalismo de sua época, mas as condições objetivas da produção e da reprodução da acumulação capitalista acelerada, só seria possível negar as “suas ideias” se o capitalismo se tivesse tornado o avesso de si próprio, ou seja, se a mais-valia relativa, a manipulação econômica, social e política do exército industrial de reserva, a concentração e a centralização do capital, as classes e a dominação de classe, etc., tivessem desaparecido. Ora, isso não ocorreu. As contradições do capitalismo monopolista e do imperialismo assumem dimensões aterradoras exatamente por isso.”


“Marx e Engels tinham em mira tendências que eram simultaneamente históricas e estruturais. A nova história, tanto na Europa quanto nos países de origem colonial, iria exprimir, em primeiro lugar, estas tendências estruturais, que se amoldou a modos de produção pré-capitalistas e, mais tarde, os transformou e os destruiu. Em toda a parte, ao constituir-se, a classe operária convertia-se em porta-voz natural dos oprimidos, qualquer que fosse a sua proporção no conjunto da população local, e da mensagem política do socialismo proletário. Segundo, se é importante recuperar o Manifesto do Partido Comunista como um “clássico das ciências sociais”, mais importante ainda é preservar a sua leitura política. Nesse ponto, o aparentemente incurável entusiasmo revolucionário de Marx e Engels batia na tecla certa: a sociedade de classes produz os seus coveiros e o fantasma que rondava a Europa soltou-se, com o correr do tempo, por todo o mundo. Lograda as condições de um desenvolvimento independente de classe, os operários têm de lançar-se à arena política por suas próprias causas, libertando-se do patrocínio burguês e da relação de cauda política com os interesses e as forças da ordem existente.
Essas tendências estruturais, que procedem da organização social do modo de produção capitalista, não terão as mesmas repercussões nos países-chave do capital industrial e financeiro e nos países “hospedeiros” da colonização capitalista. Naqueles, independentemente do atraso ou do avanço da burguesia, a revolução burguesa abriu caminhos reais à luta de classes. Os vários estratos da burguesia (e mesmo da aristocracia ativa no mundo dos negócios, em seus vários níveis) se aproveitaram da “causa do povo” e das grandes promessas que antecederam e acompanharam a conquista do poder por suas elites. A pressão proletária cavava, pois, sobre o sulco pós-revolucionário e existia espaço histórico para formas variadas de composição política. Quando essa pressão foi além da “revolução dentro da ordem”, ameaçando a segurança e o controle do poder pela burguesia, esta mostrou sua verdadeira face revolucionária: esmagou, primeiro na França e depois em toda a Europa, as rebeliões populares e proletárias, que pretendiam dar permanência ao aprofundamento da revolução. Ainda assim, o socialismo proletário (e, inclusive, outras correntes do socialismo) desempenhou uma função construtiva, obrigando as classes burguesas a constantes alterações da ordem econômica, social e política. Por isso, a revolução democrática de conteúdo burguês só é burguesa na contenção do impulso revolucionário das massas populares e proletárias. Em posições clara e firmemente contrarrevolucionárias, as classes burguesas absorveram seletivamente as reivindicações revolucionárias que vinham de baixo para cima, diluindo-as e anulando-as através de um reformismo de autodefesa, frequentemente complementado pela aplicação retificadora da força bruta ou de controles indiretos, mais ou menos eficientes. O capital procurou fortalecer-se, concentrando seus esforços no sentido de aburguesar a aristocracia sindical e operária, de manter os operários iludidos pela causa nacional (lembrem-se do caso irlandês), de fragmentar de todas as formas possíveis a solidariedade operária, de afogar o socialismo no descrédito político e na perseguição policial, etc. O que não impedia que a burguesia tivesse de continuar a aprofundar a revolução burguesa, sob um contexto histórico reacionário e contrarrevolucionário (às vezes com a guerra civil a quente ajudando as “reformas burguesas”...), concedendo aos movimentos proletários e socialistas posições estratégicas de contra-ataque militante e de interferência nos dinamismos do Estado representativo.”

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