Lista de Livros no YouTube

Lista Completa

segunda-feira, 28 de abril de 2025

Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro (Parte II), de Raymundo Faoro

Editora: Globo

ISBN: 978-85-2503-339-0

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 913

Link para compra: Clique aqui

Sinopse: Ver Parte I



“Eu quisera” – escreve o cético comparsa – “dar a esta data a denominação seguinte: 15 de novembro do primeiro ano da República; mas não posso, infelizmente, fazê-lo”.

“O que se fez é um degrau, talvez nem tanto, para o advento da grande era”.

“Como trabalho de saneamento, a obra é edificante”.

“Por ora, a cor do governo é puramente militar e deverá ser assim. O fato foi deles, deles só, porque a colaboração do elemento civil foi quase nula”.

“O povo assistiu aquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava. Muitos acreditavam sinceramente estar vendo (na proclamação da república) uma parada. Mas o que fazer?” (Aristides Lobo).”

 

 

“A insatisfação, já provada nas ruas com a despedida debaixo de vaia de Campos Sales, irrompe em 1904, no Rio de Janeiro, a pretexto da vacina obrigatória. “A revolta de novembro de 1904” – observa José Maria dos Santos – “foi um movimento de natureza essencialmente econômica, com as suas verdadeiras origens na absoluta indiferença dos meios políticos e governamentais ante o sofrimento geral da população. A vacinação obrigatória, por si só, não a explicaria. O pronunciamento militar Sodré-Travassos foi apenas um enxerto apressado e de última hora. A relativa indulgência reservada posteriormente aos seus diretos responsáveis, a contrastar com a dureza do tratamento usado para com os elementos populares, mostra bem que neste ponto o governo não tinha dúvidas. Foi mesmo a partir daquele momento que se tornaram correntes na nossa polícia os hábitos de grosseira e infinita brutalidade que especialmente a caracterizam, nas suas relações com a gente pobre”.”

 

 

“O cético não é só pessimista, senão sobretudo realista.”

 

 

“‘Entre as instituições militares e o militarismo vai,’ – dirá Rui Barbosa, em 1909, com a correção quase sociológica dos termos – ‘em substância, o mesmo abismo de uma contradição radical. O militarismo, governo da nação pela espada, arruína as instituições militares, subalternidade legal da espada à nação. As instituições militares organizam juridicamente a força. O militarismo a desorganiza. O militarismo está para o Exército, como o fanatismo para a religião, como o charlatanismo para a ciência, como o industrialismo para a indústria, como o mercantilismo para o comércio, como o cesarismo para a realeza, como o demagogismo para a democracia, como o absolutismo para a ordem, como o egoísmo para o eu’.”

 

 

“Hermes da Fonseca, diante da ameaça de perder o apoio civil, com a maioria no Congresso, incapaz de, com os elementos militares, resistir às unidades federadas em armas, cede para não perder tudo. Esta será a última manobra do senador e chefe: ‘Agarrando nas suas mãos potentes uma revolução militar, quebrou-a, fingindo que brincava com ela e a ela servia, entregando-a ao país aniquilada, destruída, sem sentir o que havia sido, submetida à lei e à Constituição. Sustentara-se assim mais uma vez por seu intermédio e aí, então, através do seu completo sacrifício, a República civil de que ele é, depois de Prudente, o verdadeiro consolidador’ (Gilberto Amado).

 

 

“E assim nos aparece este aspecto importantíssimo do coronelismo, que é o sistema de reciprocidade: de um lado, os chefes municipais e os coronéis, que conduzem magotes de eleitores como quem toca tropa de burros; de outro lado, a situação política dominante no Estado, que dispõe do erário, dos empregos, dos favores e da força policial, que possui, em suma, o cofre das graças e o poder da desgraça.” (Victor Nunes Leal)

 

 

“(No final do século XIX e início do século XX) As poucas oposições municipais, como a formada em Araras, contra o domínio do senador Lacerda Franco, eram combatidas ou pela violência, no nascedouro, ou pela fraude, nas farsas eleitorais. (...) ‘Houve um caso típico’ – conta um “borgista”, carregando sobre a fraude do outro lado – ‘na seção de Cachoeira, em que tomei assento como fiscal do meu Partido. A certa hora apresentou-se um cidadão, e ia depositar a cédula pró Assis Brasil, na urna, quando eu, sabendo sem dúvida que ele não era a pessoa cujo nome figurava no título, indaguei: ‘Como se chama?’ O homem titubeou. Terminou virando-se para trás e perguntando em voz alta aos que o tinham levado: ‘Como é mesmo o meu nome?’...

 

 

“As reações dos vencidos, por três vezes, sacodem a nação: em 1910, com menos intensidade, em 1922, abalando as instituições, em 1930, destruindo a ordem. Num crescendo, cada vez mais capaz de reagir, levanta-se o protesto, em nome da legitimidade democrática, talvez, na verdade, sem a maioria, atada está a interesses e tradições antigas. Sob a teia das eleições, mantidas por amor de preconceitos construídos sobre o liberalismo adulterado, agitavam-se grupos sociais autônomos, não atendidos nas respostas do sistema. As elites, presas às suas raízes de classe, não eram flexíveis, dúcteis para se sobrepor aos dissídios, ordenando e dirigindo os conflitos. Esta missão só o estamento preencherá, fundido em outros moldes, desde que, nos fins do século XIX, ele é escorraçado, perseguido nos seus resíduos ardentes, vivos sob a cinza. A plebe rural, abandonada e desajustada no quadro institucional, refugia-se no messianismo e no cangaceirismo, em protesto difuso e sem alvo. Nas cidades, as duas classes médias – a do pequeno comerciante e do pequeno industrial, bem como a dos empregados de colarinho branco – não se conformam ao afastamento da política, obra apenas de chefes. Contra esse fermento anarquizante, a República pune, vinga e reprime, com os instrumentos de suas oligarquias e de seus coronéis.”

 

 

“Os amigos da mocidade de Getúlio Vargas, os aliados políticos, os adversários descobrem, para surpresa de suas lembranças íntimas, que a nova encarnação do príncipe maquiavélico, marcado de domjuanismo sedutor, caminha sem direção e sem bússola, cavalgando todas as oportunidades. Flores da Cunha percebe, espantado, que o chefe revolucionário (Getúlio) não era apenas dúplice, mas multíplice. João Neves vê o timoneiro que zomba de compromissos, “sem plano preconcebido, sem rumos previamente traçados, sem persistência nas diretrizes que adota, marchando e contramarchando, entre vacilações habituais. “Uma vela em cada altar, até que os acontecimentos se encarregassem de situar o perfil da situação.”  “Hoje tudo, amanhã menos, no dia seguinte quase nada. Sempre a velha tática das concessões e recuos, a farmacopeia dos emolientes, aquelas murmurações monossilábicas, cedendo aqui para recuperar alhures. Política reptiliana, buscando tornar estável a instabilidade do equilíbrio. Especialmente, dilatando, adiando, dividindo, prometendo, no compromisso dos interesses e rivalidades.” (João Neves da Fontoura). Moysés Velhinho, um escritor, que o frequentou, diria, reproduzindo impressões antigas, que “Getúlio Vargas impusera ao país uma ditadura em nome de coisa nenhuma. O que se via e sentia era simplesmente o exercício vegetativo do poder”. Para o povo, o chefe do governo aparece como o não político que, em ágil golpe de capoeira, estatela no chão seus oponentes ou companheiros de jornadas. Na imagem ingênua das ruas, o quadro, antes de ser grotesco, satisfaz aspirações ocultas e vinga agravos anônimos: o homem de casaca, chapéu alto, solene, recebe um golpe certeiro, inesperadamente, chaplinianamente entre as gargalhadas do auditório. Na outra face, ou dentro dela, emerge o mito, personificado no protetor das classes desamparadas. No jogo inconsequente das manobras de cúpula, o “homem providencial”, formado nas entrelinhas da ideologia colorida de utopia do tenentismo, amalgamadas ao povo, o presidente encarna o condutor das transformações, em rumos novos. Muitos de seus seguidores lamentam, é verdade, a cautela dos seus passos, o temor de abrir as velas aos ventos, o que seria explicado por suas raízes oficiais. Ele será, na hora do trânsito, o agente da transformação de um sistema de poder tradicional, calcado no coronelismo e nas oligarquias, para o delírio manso da chefia carismática. A estrutura racional, de fundo liberal, tais as decepções e a incapacidade de operar nos fatos, perde-se, rapidamente, nas sombras de sonhos teóricos, obra de copiadores dos modelos norte-americanos. A urbanização tumultuaria, o desligamento dos vínculos rurais dos trabalhadores emigrados da lavoura, sugere que, de golpe, a sociedade de massas tumultua a ordem social. Os detentores do poder, oriundos das categorias socialmente superiores e das situações políticas dominantes, correm para o mito em gestação, rédea flexível para controlar o caos iminente. Dessa matriz gera-se o populismo, identificado com o líder, um líder hesitante e arguto, não entregue a si mesmo, mas enquadrado estamentalmente. Antecipando a hora decisiva, o teórico de 1937 sonda o futuro, armado com a lâmina fascista, temperada em leituras nacional-socialistas. Para a transição, a doutrina do mito soreliano, instrumento pragmático, salva os dedos sem sacrificar os anéis. No máximo, dar-se-á a sombra das coisas, guardando-as ao preço da violência policial. A contradição – repressão policial e concessões sociais – é de substância do esquema em preparo. Combina-se o irracionalismo romântico das massas com o ceticismo dos líderes, flutuando entre a mistificação e a verdade, materiais que forjam o César nativo. “Não tem sentido indagar,” – diz, catedraticamente, Francisco Campos – “a propósito de um mito, de seu valor de verdade. O seu valor é de ação. O seu valor prático, porém, depende, de certa maneira, da crença no seu valor teórico, pois um mito que se sabe não ser verdadeiro deixa de ser mito para ser mentira. Na medida, pois, em que o mito tem um valor de verdade, é que ele possui um valor de ação, ou um valor pragmático”.”

 

 

“Getúlio Vargas evitaria o comunismo, conciliando o operariado, e se afastaria do fascismo, oficializando os grupos de pressão capitalistas. O centro de equilíbrio, igualmente afastado dos extremismos, não se situa na democracia, nem no liberalismo. Não seria ele homem de, convidado por tantas oportunidades, afastar o poder, em nome de escrúpulos constitucionais, seja dos vigentes ou dos por ele próprio outorgados. “Somente os países economicamente fortes” – confidenciará mais tarde – “são realmente livres. E é essa a liberdade que eu desejaria dar ao meu país. A Constituição de 1937 [...] é apenas uma tentativa, uma experiência transitória, para atravessarmos a tempestade que se aproxima com o mínimo de sacrifícios possível. Digamos que é um meio para atingir um fim, e não um fim em si próprio”.  Não haveria, para legitimá-la, nem plebiscito, nem o chefe do governo se comunicaria com a nação por meio de partidos – ou do partido único –: entre o Povo e o ditador só a burocracia, sem coronelismo, sem oligarquias, mas num vínculo ardente com as massas, gerando o populismo autocrático, esteio hábil para evitar o predomínio de outros grupos.

(...) O perfil autoritário do sistema, que dispensa a participação popular, não logra dominar a sociedade, situando-se mais como árbitro de dissídios do que diretor de opinião. Por isso, não conseguiu oficializar nenhuma ideologia, disfarçando-se o poder sob a ditadura pessoal. O curso do sistema levaria, de acordo com suas inspirações iniciais, sugeridas pelo temor ao comunismo, ao tradicionalismo, não conservador, mas reformista, ao modelo de Salazar, de onde se buscou o nome da ordem nova. Mas, do caráter de conciliação pendular de contrários do regime, de ondulação dialética do comando, se condensaria a corrente capaz de, ao ativá-lo, provocar-lhe o abalo que o abateria.”

 

 

“O populismo, fenômeno político não especificamente brasileiro, funda-se no momento em que as populações rurais se deslocam para as cidades, educadas nos quadros autoritários do campo. O coronel cede o lugar aos agentes semi-oficiais, os pelegos, com o chefe do governo colocado no papel de protetor e pai, sempre autoritariamente, pai que distribui favores simbólicos e castigos reais. O número de operários, no Brasil, entre 1940 e 50 cresceu em sessenta por cento, enquanto a população aumentou em vinte e seis por cento. O preço desta transformação, na qual grupos errantes se integram numa sociedade diversa, quase traumaticamente, se processa no ambiente de tensões e crises. Daí o conteúdo do getulismo ou do “queremismo” dos meados da década de 40 – que se enreda no dilema de suas origens e evolução. Criado para substituir a participação política, controlá-la e canalizá-la, anulando-lhe a densidade reivindicatória, não conseguiu estruturar um programa de respostas, primeiro aos pedidos de ajuda e socorro, depois às exigências.”

 

 

“No clima de desabamento, o chefe do governo revolucionário (Getúlio) eleva a tônica ao extremo, acentuando que “problema máximo, pode dizer-se, básico da nossa economia, é o siderúrgico”, que se resolveria não mais pelo esquema capitalista internacional. “Completado, finalmente,” – afirma já em 23 de fevereiro de 1931 – “o meu pensamento, no tocante à solução do magno problema, julgo oportuno insistir ainda em um ponto: a necessidade de ser nacionalizada a exploração das riquezas naturais do país, sobretudo a do ferro. Não sou exclusivista, nem cometeria o erro de aconselhar o repúdio do capital estrangeiro a empregar-se no desenvolvimento da indústria brasileira, sob a forma de empréstimos, no arrendamento de serviços, concessões provisórias ou em outras múltiplas aplicações equivalentes.

“Mas quando se trata da indústria do ferro, com o qual havemos de forjar toda a aparelhagem dos nossos transportes e da nossa defesa; do aproveitamento das quedas d’água, transformadas na energia, que nos ilumina e alimenta as indústrias de paz e de guerra; das redes ferroviárias de comunicação interna, por onde se escoa a produção e se movimentam, em casos extremos, os nossos exércitos; quando se trata – repito – da exploração de serviços de tal natureza, de maneira tão íntima ligados ao amplo e complexo problema da defesa nacional, não podemos aliená-los, concedendo-os a estranhos, cumprindo-nos, previdentemente, manter sobre eles o direito de propriedade e de domínio.” Volvidos três meses da definição de princípios, o chefe do governo provisório torna mais claras suas palavras: “Dispomos de grandes possibilidades de expansão econômica. Somos país rico em matérias-primas, inexploradas e em produtos exóticos, e, simultaneamente, vasto mercado consumidor. Nestas condições, a política econômica brasileira deve, em parte, orientar-se no sentido de defender a posse e exploração das nossas fontes permanentes de energia e riqueza, como sejam as quedas d’água e as jazidas minerais. Julgo ainda aconselhável a nacionalização de certas indústrias e a socialização progressiva de outras, resultados possíveis de serem obtidos, mediante rigoroso controle dos serviços de utilidade pública e lenta penetração na gerência das empresas privadas, cujo desenvolvimento esteia na dependência de favores oficiais” (4 de maio de 1931). Essa orientação, depois de medidas provisórias de 1931, se cristaliza no Código de Águas e no Código de Minas de 1934. O movimento se prolonga nas iniciativas, mais tarde consagradas, da Cia. Siderúrgica Nacional, cujo esboço será a Comissão do Plano Siderúrgico Nacional (1940), a Petrobrás (1953) e a Eletrobrás, de criação recente, inspirada nos mesmos princípios. As águas e as minas ficavam, desta sorte, dependentes do governo, de sua orientação e estímulo, num complexo nacionalista que se extrema da socialização, embora a esta recorra numa conjuntura de escassez de capitais estrangeiros.”

 

 

“Será o tipo de Estado gerado pelas circunstâncias, mas moldado historicamente num leito permanente, embora transitoriamente obscurecido, que ensejará as reformas de maior profundidade, algumas alheias às diretas pressões da sociedade. Das peças lançadas, entre extravios e indecisões, formar-se-á o esquema autoritário de 1937. Obviamente, o modelo não será obra do capricho dos homens, da inspiração arbitrária dos governantes ou da fantasia dos utopistas. O poder estatal já se sentia em condições de comandar a economia – num regresso patrimonialista, insista-se –, com a formação de uma comunidade burocrática, agora mais marcadamente burocrática que aristocrática, mas de caráter estamental, superior e árbitro das classes. O primeiro passo dessa jornada será a disciplina social e jurídica do proletariado, com a fixação de seus direitos e seu capitaneamento governamental. As reivindicações operárias, antes de 1930, não conseguiram, apesar de leis votadas e não aplicadas, conquistar posição de barganha na sociedade, nem reconhecimento oficial. Perdidas entre o anarquismo e o comunismo, sofriam a hostilidade dos grupos dominantes, que as encaravam como ameaças à ordem pública. O Conselho Nacional do Trabalho, instituído em 1923, não chegou, na verdade, a funcionar. Na Câmara dos Deputados, em 1920, um congressista, ao advogar melhores salários aos empregados, é repelido como “agente do bolchevismo”. Um deputado traduz o pensamento dominante: “O trabalho, em sua origem, nos seus inícios foi escravo e só pela evolução natural da sociedade humana tornou-se livre. Que mais pode aspirar? [...] Com a capa de reivindicações o que se quer de fato é o gozo, o luxo [...]” (Brígido Tinoco). O problema, posto que colocado ao debate nacional por Rui Barbosa e Nilo Peçanha, esbarrara, na sua solução, na concepção liberal do Estado, correspondente aos interesses da República Velha. Washington Luís, candidato presidencial, declara que “a questão operária é uma questão que interessa mais à ordem pública que à ordem social”, expressões caricaturadas com a réplica de que “a questão social é uma questão de polícia”. A Aliança Liberal adotou outro rumo, no propósito inicial de aliciar às suas fileiras os descontentamentos sociais. No poder, cria o Ministério do Trabalho – Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio –, acenando, na pluralidade de tarefas, com a política conciliatória de classes, em repúdio implícito à linha contestatória dos frágeis movimentos operários anteriores. O chefe do governo provisório, aprovando a orientação do primeiro ocupante da nova pasta – a “conjugação dos interesses patronais e operários” –, mostra o sentido da reforma, que oficializa os sindicatos: “As leis, há pouco decretadas, reconhecendo essas organizações, tiveram em vista, principalmente, seu aspecto jurídico, para que, em vez de atuarem como força negativa, hostis ao poder público, se tornassem, na vida social, elemento proveitoso de cooperação no mecanismo dirigente do Estado. Explica-se, assim, a conveniência de fazê-las compartilhar da organização política, com personalidade própria, semelhante à dos partidos, que se representam de acordo com o coeficiente das suas forças eleitorais” (4 de maio de 1931). A sindicalização abrangia operários e patrões, com organismos próprios, para solverem seus dissídios sob a supervisão ministerial, ampliado largamente o campo dos direitos dos trabalhadores – lei dos dois terços de trabalhadores brasileiros, oito horas de trabalho, férias, etc. A conciliação legal não valida, entretanto, os reclamos operários, reprimidos severamente, como antes, se apelassem para a greve, assimilada à violência. Em São Paulo, o interventor João Alberto – nem ele, com seus antecedentes revolucionários, tolera o desafio à ordem. Não obstante, o governo federal não admite a suspensão, mesmo provisória, das leis trabalhistas. Sob a cor do amparo e proteção ao capital e ao trabalho, num esquema ainda liberal na pena do autor das medidas reformistas – liberal com tintas herdadas de Augusto Comte e emprestadas do uruguaio Battle y Ordóñez –, o alvo seria o controle estatal, para a eventual direção, do industrial e do operário. Protestam, contra o ambicioso plano, patrões e operários – somadas as críticas no“signo criminoso da incaracterística e da imperfeição. A sua [de Lindolfo Collor] obra era eclética, cinzenta, privada de seiva vital [...] S. Ex.ª, bom moço, vestindo boas roupas, desejava ardentemente a simpatia dos homens rudes do trabalho sem, contudo, ousar desgostar os magnatas da indústria e do comércio” (Virgínio Santa Rosa). O norte estava traçado, favorecido pelos acontecimentos: a oficialização dos sindicatos, transformado o líder operário em agente designado, o pelego, substituto urbano do coronel, e o líder industrial em cliente blandicioso e humilde do Tesouro e suas agências. A Constituição de 1934 reage, todavia, à ameaça de domesticação, com o sindicato livre, prometido pela lei. A pluralidade sindical, praticamente banida desde 1931 (Decreto 19770), volta a imperar, fruto extemporâneo do liberalismo, apesar dos temperos sub-reptícios opostos ao texto legal, que a subtraem à proliferação (José Alberto Rodrigues). Depois de outorgada a Carta de 1937, tudo volta à normalidade, com o desvanecimento do risco – agora grave risco – do liberalismo econômico, que conduz ao comunismo, por meio da anarquia, segundo o pontífice intelectual da ordem reformulada (Francisco Campos). O que não se poderia prever, no caos em dissipação, seria que a crisálida tentasse voar com asas libertas, para a aventura populista.”

 

 

“Nem a calculada firmeza de José Bonifácio, nem a astúcia flexível de dom Pedro II ou o maquiavelismo de Vargas explicam a realidade, a todos superior, condutora e não passivamente moldada.”

 

 

“Característico principal, o de maior relevância econômica e cultural, será o do predomínio, junto ao foco superior de poder, do quadro administrativo, o estamento que, de aristocrático (em tempos idos), se burocratiza progressivamente, em mudança de acomodação e não estrutural.”

 

 

“A burocracia, como burocracia, é um aparelhamento neutro, em qualquer tipo de Estado, ou sob qualquer forma de poder.”

 

 

“O estamento, por sobranceiro às classes, divorciado de uma sociedade cada vez mais por estas composta, desenvolve movimento pendular, que engana o observador, não raras vezes, supondo que ele se volta contra o fazendeiro, em favor da classe média, contra ou a favor do proletariado. Ilusões de óptica, sugeridas pela projeção de realidades e ideologias modernas num mundo antigo, historicamente consistente na fluidez de seus mecanismos. As formações sociais são, para a estrutura patrimonial estamental, pontos de apoio móveis, valorizados aqueles que mais a sustentam, sobretudo capazes de fornecer-lhe os recursos financeiros para a expansão – daí que, entre as classes, se alie as de caráter especulativo, lucrativo e não proprietário. O predomínio dos interesses estatais, capazes de conduzir e deformar a sociedade – realidade desconhecida na evolução anglo-americana –, condiciona o funcionamento das constituições, em regra escritos semânticos ou nominais sem correspondência com o mundo que regem.”

 

 

“A minoria governa sempre, em todos os tempos, em todos os sistemas políticos.”

 

 

“No governo estamental, tal como se estrutura neste ensaio, há necessariamente, como sistema político, a autocracia de caráter autoritário e não a autocracia de forma totalitária. “O conceito 'autoritário” – escreve Loewenstein – “caracteriza uma organização política na qual um único detentor do poder – uma só pessoa ou ‘ditador’, uma assembleia, um comitê, uma junta ou um partido – monopoliza o poder político sem que seja possível aos seus destinatários a participação real na formação da vontade estatal. O único detentor impõe à comunidade sua decisão política fundamental, isto é, dita-a aos destinatários do poder. O termo ‘autoritário’refere-se mais à estrutura governamental do que à ordem social. Em geral, o regime autoritário se satisfaz com o controle político do Estado sem pretender dominar a totalidade da vida socioeconômica da comunidade, ou determinar sua atitude espiritual de acordo com sua imagem.” (Karl Loewenstein). Este sistema é compatível, e ordinariamente se compatibiliza, com órgãos estatais separados, assembleias ou tribunais, numa ordenação formalmente jurídica. De outro lado, o regime autoritário convive com a vestimenta constitucional, sem que a lei maior tenha capacidade normativa, adulterando-se no aparente constitucionalismo – o constitucionalismo nominal, no qual a Carta Magna tem validade jurídica mas não se adapta ao processo político, ou o constitucionalismo semântico, no qual o ordenamento jurídico apenas reconhece a situação de poder dos detentores autoritários (Karl Loewenstein). A autocracia autoritária pode operar sem que o povo perceba seu caráter ditatorial, só emergente nos conflitos e nas tensões, quando os órgãos estatais e a carta constitucional cedem ao real, verdadeiro e atuante centro de poder político. Em última análise, a soberania popular não existe, senão como farsa, escamoteação ou engodo. Já na estrutura normativamente constitucional, democrática na essência, os detentores do poder participam na formação das decisões estatais, mediante mecanismos de controle que atuam na participação popular. Não importa que o encadeamento que vai da cúpula à base esteja enrijecido por minorias diretoras, contanto que o circuito percorra a escala vertical. Este último sistema – normativamente constitucional e democrático – se ajusta ao quadro das elites, mais ou menos sujeitas ao controle, necessariamente preocupadas com as agências de comando, sejam os círculos eleitorais, as oligarquias estaduais entrosadas às municipais, como na República Velha, ou os partidos. A soberania popular não se reduz à emanação da vontade de baixo para cima, cabendo às minorias as decisões e à maioria o controle, de acordo com a fórmula de Sieyès: “a autoridade vem de cima, a confiança vem de baixo”. A astúcia, a habilidade, a sagaz manipulação são qualidades psicológicas ajustadas ao comando elitário, enquanto nos estamentos prevalece a decisão de utilizar a violência, a direção voltada à eficiência, o cálculo nas intervenções sobre o mecanismo jurídico. ”

 

 

“O estamento burocrático desenvolve padrões típicos de conduta ante a mudança interna e no ajustamento à ordem internacional. Gravitando em órbita própria não atrai, para fundir-se, o elemento de baixo, vindo de todas as classes. Em lugar de integrar, comanda; não conduz, mas governa. Incorpora as gerações necessárias ao seu serviço, valorizando pedagógica e autoritariamente as reservas para seus quadros, cooptando-os, com a marca de seu cunho tradicional.”

 

 

“A nação e o Estado, nessa dissonância de ecos profundos, cindem-se em realidades diversas, estranhas, opostas, que mutuamente se desconhecem. Duas categorias justapostas convivem, uma cultivada e letrada, outra, primária, entregue aos seus deuses primitivos, entre os quais, vez ou outra, se encarna o bom príncipe. Onde a mobilização de ideais manipulados não consegue manter o domínio, a repressão toma o seu lugar, alternando o incentivo à compressão.”

 

 

“A pressão da ideologia liberal e democrática não quebrou, nem diluiu, nem desfez o patronato político sobre a nação, impenetrável ao poder majoritário, mesmo na transação aristocrático-plebeia do elitismo moderno. O patriciado, despido de brasões, de vestimentas ornamentais, de casacas ostensivas, governa e impera, tutela e curatela. O poder – a soberania nominalmente popular – tem donos, que não emanam da nação, da sociedade, da plebe ignara e pobre. O chefe não é um delegado, mas um gestor de negócios, gestor de negócios e não mandatário. O Estado, pela cooptação sempre que possível, pela violência se necessário, resiste a todos os assaltos, reduzido, nos seus conflitos, à conquista dos membros graduados de seu estado-maior. E o povo, palavra e não realidade dos contestatários, que quer ele? Este oscila entre o parasitismo, a mobilização das passeatas sem participação política, e a nacionalização do poder, mais preocupado com os novos senhores, filhos do dinheiro e da subversão, do que com os comandantes do alto, paternais e, como o bom príncipe, dispensados de justiça e proteção. A lei, retórica e elegante, não o interessa. A eleição, mesmo formalmente livre, lhe reserva a escolha entre opções que ele não formulou.

A cultura, que poderia ser brasileira, frustra-se ao abraço sufocante da carapaça administrativa, trazida pelas caravelas de Tomé de Sousa, reiterada na travessia de dom João VI, ainda o regente de dona Maria I, a louca, dementada pelos espectros da Revolução Francesa. A terra virgem e misteriosa, povoada de homens sem lei nem rei, não conseguiu desarticular a armadura dos cavaleiros de El-Rei, heróis oficiais de uma grande empresa, herdeiros da lealdade de Vasco da Gama – herói burocrata. A máquina estatal resistiu a todas as setas, a todas as investidas da voluptuosidade das índias, ao contato de um desafio novo – manteve-se portuguesa, hipocritamente casta, duramente administrativa, aristocraticamente superior. Em lugar da renovação, o abraço lusitano produziu uma social enormity (Arnold Toynbee), segundo a qual velhos quadros e instituições anacrônicas frustram o florescimento do mundo virgem. Deitou-se remendo de pano novo em vestido velho, vinho novo em odres velhos, sem que o vestido se rompesse nem o odre rebentasse. O fermento contido, a rasgadura evitada gerou uma civilização marcada pela veleidade, a fada que presidiu ao nascimento de certa personagem de Machado de Assis, claridade opaca, luz coada por um vidro fosco, figura vaga e transparente, trajada de névoas, toucada de reflexos, sem contornos, sombra que ambula entre as sombras, ser e não ser, ir e não ir, a indefinição das formas e da vontade criadora. Cobrindo-a, sobre o esqueleto de ar, a túnica rígida do passado inexaurível, pesado, sufocante.”

sábado, 5 de abril de 2025

Anne de Windy Poplars, de Lucy Maud Montgomery

Editora: Ciranda Cultural

ISBN: 978-65-550-0147-1

Tradução: Rafael Bonaldi

Opinião: ★★★★☆

Link para compra: Clique aqui

Páginas: 288

Sinopse: Anne agora é diretora da escola de Summerside. A nova cidade e posição preparam desafios, como a influente família Pringle, que não a quer a frente da escola. Gilbert Blythe está a três anos de concluir a faculdade de medicina e Anne se corresponde com o noivo por cartas, compartilhando sua rotina com as viúvas tia Kate e tia Chatty, a governanta Rebecca Dew, o gato Dusty e sua vizinha Elizabeth.


 

“Onde há boa vontade, há um caminho.”

 

 

“Estou triste com a situação, pois não é possível argumentar com o preconceito.”

 

 

A tia Chatty está muito aborrecida, pois, quando ela desdobrou um lençol limpo para colocar na minha cama, encontrou um vinco no formato de um diamante bem em seu centro e ela tem certeza de que isso é o prenúncio de uma morte na casa. A tia Kate está indignada com tamanha superstição, mas acho que prefiro as pessoas supersticiosas. Elas dão cores à vida. O mundo não seria um lugar sacal se todos fossem sábios e sensatos... E bons? Sobre o que conversaríamos?”

 

 

“As coisas sussurram umas com as outras durante a noite.”

 

 

“O ódio é apenas o amor que perdeu seu caminho.”

 

 

“Imitação é a forma mais sincera de elogio.” (Quintiliano)

 

 

“Mas temos o momento perdido, porque é muito bom poder encontrá-lo; algum momento, momento bom, momento rápido, momento vagaroso, momento de dar um beijo, momento de ir para casa, momento imemorial... Que é uma das frases mais lindas do mundo. Sei que Rebecca Dew me acha um tanto infantil. Mas, ah, Gilbert, não sejamos velhos e sábios demais...”

 

 

“Ora, um homem só traz problemas, a meu ver, e o casamento é a mais incerta de todas as incertezas, mas o que mais uma mulher pode fazer?”

 

 

Ninguém é velho demais para usar o que deseja.”

 

 

Suponho que o universo seguirá seu curso se o deixarmos em paz.”

 

 

“– Há sempre algo prazeroso para se ver ou ouvir.”

 

 

– Bebês são criaturas fascinantes – disse Anne, divagando. – Ouvi alguém dizer em Redmond que eles são “magníficos pacotinhos de potencialidades”. Pense, Katherine, Homero já foi um bebê, um bebê com covinhas e grandes olhos brilhantes. Ele não era cego desde a infância, claro.

– Que lástima a mãe dele não saber que ele iria se tornar “O” Homero – disse Katherine.

– Mas estou contente pela mãe de Judas não saber de antemão que ele seria um Judas. Espero que não tenha chegado a descobrir.”

 

 

“Nada que valha a pena vem fácil.”

 

 

“Gilbert, querido, não tenhamos nunca medo das coisas, pois é uma escravidão pavorosa. Dancemos para receber a vida e tudo que ela pode nos oferecer, mesmo que isso acabe em um monte de problemas.”

 

 

“Luar sem alguém com quem compartilhá-lo, é apenas um falso brilho.”

De Martí a Fidel: a Revolução Cubana e a América Latina (Parte IV), de Luiz Alberto Moniz Bandeira

Editora: Civilização Brasileira

ISBN: 978-85-200-0866-9

Opinião: ★★★★☆

Link para compra: Clique aqui

Páginas: 798

Sinopse: Ver Parte I



Se era problemático para um presidente dos Estados Unidos levantar o embargo e defrontar-se com a comunidade cubana de Miami, conforme Carter ponderou, também Fidel Castro não tinha condições de abrir o regime e convocar eleições livres, em pleno “state of belligerence” que os Estados Unidos, desde 1961, mantinham contra Cuba, configurado pelo embargo e pela guerra secreta — sabotagens, tentativas de assassinato e outras ações terroristas, empreendidas durante muitos anos pela CIA —, no âmbito da qual um colaborador e agente, Luís Posada Carriles, em 6 de outubro de 1976, fizera explodir em pleno voo, em frente à costa de Barbados, um avião da companhia Cubana de Aviación, matando 73 pessoas.12 Com efeito, Cuba, a partir de 1960, fora forçada pelos sucessivos governos dos Estados Unidos a viver em permanente estado de guerra, e ao longo de quase cinco décadas, i.e., de 1960 a 2008, ocorreram 713 atos de terrorismo na ilha, 56 dos quais a partir de 1990, organizados e financiados a partir do território americano, com um saldo de 3.478 mortos e 2.099 incapacitados.13 Em 1992, fora organizada, dentro da Fundación Nacional Cubano-Americana (FNCA), uma estrutura clandestina, denominada Comisión de Seguridad, constituída por um grupo paramilitar de caráter terrorista. Depois se formou a Coordinación de las Organizaciones Revolucionarias Unidas (CORU) e, entre 1994 e 1996, ocorreu uma escalada de atentados. Alguns grupos, provenientes de Miami, infiltraram-se em Palo Quemado, Caibarién e outras regiões, com a missão de realizar sabotagens, e o grupo Alfa 66 promoveu três ataques contra o Hotel Guitart, em Cayo Coco, enquanto o Partido Unidade Nacional Democrática (PUND) atacava o Hotel Meliá Las Americas, em Varadero. Outrossim, outros grupos terroristas — Comandos F-4 denominados Patria y Libertad, Gobierno Provisorio en el Exilio — infiltraram-se nas províncias de Matanzas e Villa Clara para executar atentados e chegar às montanhas de Ecambray, quando mataram Arcelio Rodríguez Garcia, um trabalhador de 34 anos, pai de dois filhos. O objetivo era criar um clima de terror, que prejudicasse o fluxo de turismo para Cuba.”

12. Luís Posada Carriles é um dos mais famosos terroristas cubano-americanos. Como agente e colaborador da CIA, treinou na Guatemala os exilados cubanos que participaram da invasão da Baía dos Porcos, em 1961. Intentou várias vezes matar Fidel Castro e, em 6 de outubro de 1976, fez explodir em pleno voo, em frente à costa de Barbados, um avião da companhia Cubana de Aviación, quando morreram 73 pessoas, além de outros inumeráveis atentados a bomba. Consta que estava na Plaza Dealey de Dallas, em Houston, quando ocorreu o atentado contra o presidente John Kennedy, em 22 de novembro de 1963. Em entrevistas ao New York Times, confessou que fora treinado pela CIA e que a Fundación Cubano Americana, dirigida por Jorge Mas Canosa (1939-1997), financiava suas operações terroristas. Luis Posada Carriles e Orlando Bosch foram fundadores da CORU, o grupo terrorista mais ativo, sediado em Miami. Esteve preso no Texas, acusado de entrada ilegal nos Estados Unidos, mas foi solto logo depois.

13. Discurso de Raúl Castro en el Comité Central del Partido Comunista en 3/5/08. Sierra Maestra — Diario digital. La Habana, 30 abr (Prensa -Latina).

 

 

“Por volta de 1938-39, Leon Trotski, teórico marxista e, juntamente com Lenin, um dos dois principais líderes da revolução russa, concedeu ao líder sindical argentino Matheo Fossa uma entrevista na qual observou que, no Brasil, àquele tempo, havia um regime “semifascista” que qualquer revolucionário só podia considerar com ódio.1 Porém, ponderou que, em caso de uma guerra contra a Grã-Bretanha “democrática”, por exemplo, ele pessoalmente estaria ao lado do Brasil “fascista”, porque, segundo sua percepção, não se trataria de um conflito entre a democracia e o fascismo. Segundo Trotski, se a Inglaterra “democrática” vencesse, colocaria outro fascista no governo do Rio de Janeiro, então capital do Brasil, e ataria o país a uma dupla cadeia de opressão, ao passo que, se o Brasil triunfasse, a consciência nacional e democrática tomaria impulso e acarretaria a derrubada da ditadura.2 Esta ponderação de Trotski, exposta antes da Segunda Guerra Mundial, já mostrava a necessidade de rever os conceitos ideológicos tanto do fascismo quanto do comunismo, à luz da realidade econômica, social e política da América Latina, bastante diversa daquela existente na Europa, onde o comunismo e o nazifascismo, como ideologias, surgiram e se desenvolveram.

O Estado Novo — regime vigente no Brasil em 1938 e a que Trotski se referiu — não teve essencialmente um caráter fascista, pois, na verdade, constituiu uma ditadura burocrática que, sustentada pela repressão militar-policial, permitiu a execução de um projeto nacional de desenvolvimento capitalista, sob a égide do Estado a despeito da oposição de vários segmentos da própria burguesia e do conjunto do grande capital, predominantemente estrangeiro. Essa característica já o diferenciava dos regimes existentes na Alemanha e na Itália, cujo nacionalismo exprimia os interesses do grande capital em seus esforços de expansão. O mesmo se pode dizer em relação a outros regimes instalados na América Latina durante a Segunda Guerra Mundial e que os Estados Unidos acusaram de servir aos objetivos políticos e militares do Eixo. Suas bases de sustentação econômica e social eram diferentes daquelas a que os regimes de Hitler e Mussoline serviram na Alemanha e na Itália. Embora a América Latina, devido às suas origens coloniais, fosse a região no mundo que mais copiou as políticas da Europa continental,3 as ideias nazistas ou fascistas lá se entrelaçaram e se mestiçaram com tendências comunistas ou socialistas e adquiriram conotação de esquerda, na medida em que se amoldavam a outra realidade, em distintas circunstâncias, e passaram a exprimir anseios de subversão e mudança do status quo, representado, sobretudo, pelo predomínio dos capitais estrangeiros. O Foreign Office, da Grã-Bretanha, percebeu claramente que os golpes militares na Argentina e na Bolívia, durante a Segunda Guerra Mundial, não representavam clara ameaça de introdução do nazismo e do fascismo, mas antes a reemergência, em forma aguda, do nacionalismo, “que era endêmico e às vezes epidêmico em todos ou quase todos os países da América Latina”.4 Segundo a percepção dos policy makers britânicos, quando Cordel Hull, secretário de Estado, bem como outras autoridades do governo dos Estados Unidos, referiam-se à Argentina ou à Bolívia com os qualificativos de nazi e fascista, o que talvez eles temessem, realmente, não era a ação da Alemanha e da Itália e, sim, o julgamento de todos os países da América Latina contra a influência dos Estados Unidos, com a admiração pela “atitude independente” de Buenos Aires, a espraiar o nacionalismo através do continente.5

O nacionalismo nos países da América Latina, com efeito, desenvolveu-se em oposição, fundamentalmente, aos Estados Unidos, para os quais, desde os primórdios do século XIX, a expansão de seus interesses econômicos na América Latina jamais respeitou qualquer fronteira. A guerra contra o México e a conquista do Texas e do Arizona, na década de 1840, constituíram a primeira grande diástole dos Estados Unidos, cujo enriquecimento material exacerbou-lhes o expansionismo e a belicosidade. A tendência para o messianismo nacional, a ideia de povo eleito por Deus que o judaísmo legou aos puritanos, atualizou-se, americanizou-se e assumiu o nome de destino manifesto, movimento com que os Estados Unidos, na metade do século XIX, expandiram suas fronteiras até o Oceano Pacífico e tentaram apoderar-se, mediante expedições de flibusteiros, da América Central, bem como das ilhas do Caribe e até mesmo da Amazônia. No início do século XX, com a política do big stick do presidente Theodore Roosevelt, os Estados Unidos continuaram a intervir nos países da América Central e no Caribe, onde consideravam Cuba sua fronteira natural e apoderaram-se, inclusive, do Canal do Panamá, o que criou profundas contradições com os países da América Latina. Tais contradições manifestaram-se, outrossim, no conflito com o México, em 1915, gerando tantos ressentimentos e desconfianças, que o presidente Franklin D. Roosevelt teve que promover a política de boa vizinhança, a partir dos anos 1930.

Entretanto, não obstante Roosevelt começasse, por volta de 1944, a induzir os países das Américas Central e do Sul a restabelecer o regime democrático, a preocupação dos Estados Unidos, após a Segunda Guerra Mundial, não foi propriamente defender as liberdades políticas na América Latina, mas assegurar um clima favorável aos seus negócios e investimentos privados, bem como o acesso às fontes de matérias-primas, sobretudo petróleo. A modalidade de suas relações com os países do continente não se distinguiu da modalidade que caracterizou as relações dos grandes impérios com suas colônias. E da mesma forma que a União Soviética não tolerava eleições livres nos países do Leste Europeu sob seu domínio, porque os anticomunistas poderiam vencê-las, os Estados Unidos passaram a fomentar golpes de Estado e sustentar, igualmente, ditaduras, de modo a conservar sua hegemonia na região, impedindo que eleições livres levassem ali forças nacionalistas e antinorte-americanas, percebidas como comunistas, ao poder. E o nacionalismo latino-americano, tanto na Argentina como no Brasil, na Bolívia ou em qualquer outro país do hemisfério, acusado de constituir uma variante latino-americana do nazifascismo e servir às potências do Eixo, antes e durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), assumiu, dentro do contexto da confrontação bipolar do poder internacional que caracterizou a Guerra Fria, um caráter cada vez mais à esquerda, na medida em que se contrapôs à hegemonia dos Estados Unidos e passou a ser identificado, já no início dos anos 1950, com o comunismo. A expressão comuno-peronismo tornou-se usual para denominar a ideologia — o justicialismo — que o general Juan Domingo Perón tratou de difundir desde Buenos Aires. O Departamento de Estado norte-americano, em 1953, exigiu que a Argentina, a fim de que pudesse receber qualquer auxílio econômico ou financeiro, cessasse de divulgar o justicialismo através de suas embaixadas e dos adidos sindicais, por percebê-lo como “propaganda de linha comunista”, e abandonasse, na política exterior, a terceira posição, opondo-se inequivocamente ao comunismo e aos desígnios da União Soviética. Assim, o nacionalismo latino-americano, mesmo as correntes originárias de movimentos inspirados pelo nazifascismo, pareceu cada vez mais, naquela conjuntura, uma manifestação do comunismo, na medida em que obstaculizou as políticas liberais — livre circulação de mercadorias e capitais, conversibilidade monetária e multilateralidade no comércio, que os Estados Unidos tratavam de disseminar, mesmo antes da Segunda Guerra Mundial, a fim de expandir seus interesses econômicos. O Ministério das Relações Exteriores do Brasil, em memorando ao presidente da República sobre a revolução boliviana de 1952, observou que “o acontecimento em La Paz transcende o caráter de uma simples revolução sul-americana, de estilo clássico, para assumir contornos de um movimento de tendência nitidamente doutrinária, uma vez que se defrontam teses da esquerda e direita, se é que essas posições se extremam e não se confundem, tal é a semelhança por vezes entre ambas.”7

Também a Guatemala, àquele mesmo tempo, constituiu motivo de preocupação, pois os Estados Unidos alegavam que a União Soviética ali tentava exercer influência e promover a infiltração do comunismo. Entretanto, o embaixador do Brasil naquele país, Carlos da Silveira Martins Ramos, informou ao Itamaraty que “em Guatemala não há comunismo, Há comunistas, como em todas as partes do mundo, mas em número insignificante, sobretudo se comparamos com os que existem no Brasil, Chile, Cuba e até nos Estados Unidos (...)”.8 Ele acrescentou que a “animosidade” existente na Guatemala contra os Estados Unidos não era “nem maior nem menor” do que a que prevalecia em todos os países hispano-americanos e até mesmo em certos meios brasileiros.9

Naquela conjuntura, em que a Guerra Fria se intensificava, os Estados Unidos, durante os anos 1950, arremeteram contra os governos em vários países do Terceiro Mundo, utilizando a CIA como eficiente empresário de golpes de Estado e subversão, em um esforço para voltar à ordem mundial do passado, como Oswaldo Aranha previra.10 As lutas de libertação sofreram reveses, Mohamed Mossadegh, primeiro-ministro do Irã, foi deposto por um golpe de Estado, em 1953. O secretário de Estado norte-americano, John Foster Dulles, em 10 de junho de 1954, exortou a OEA a “ajudar o povo da Guatemala a livrar-se da maligna força do comunismo”,11 falando à Convenção Internacional do Rotary Club. E, na semana seguinte, mercenários, aliciados pela CIA, invadiram aquele país, forçando o presidente Jacob Arbenz a renunciar, em 28 de junho, em meio a um golpe de Estado comandado pelo próprio embaixador norte-americano, John Peurifoy. Vargas, para não ter que renunciar ou ser deposto, suicidou-se, em 24 de agosto de 1954, denunciando a “campanha subterrânea” dos grupos internacionais, que se aliaram aos grupos nacionais “revoltados contra o regime de garantia do trabalho”, e a “violenta repressão” sobre a economia brasileira, para obrigá-lo a ceder. Perón não resistiu no governo mais do que um ano. Apesar de que, com a política de abertura ao capital estrangeiro, conseguisse desacelerar a inflação, reerguer o salário real e, com a melhoria do balanço de pagamentos, estimular as atividades econômicas, a situação política na Argentina se deteriorava a tal ponto que, em 19 de setembro de 1955, ele teve que renunciar à presidência da República e refugiar-se na canhoneira Paraguai, após quatro dias de sangrenta rebelião conjunta da Marinha e do Exército.

Tais acontecimentos aguçaram os sentimentos anti-Estados Unidos na juventude da América Latina, que talvez fosse a região do mundo, fora da União Soviética, na qual o marxismo, modelando correntes de pensamento, mais se enraizara, em variadas interpretações, ou indo-americanas, como da APRA, ou europeístas. E Juscelino Kubitschek, presidente do Brasil, bem como as correntes nacionalistas da sua administração, perceberam que, em face da progressiva deterioração dos termos de intercâmbio — queda de preço das matérias-primas manufaturadas contra o aumento dos custos dos produtos manufaturados — tornara-se “extremamente difícil para um país subdesenvolvido acelerar seu processo de crescimento através dos métodos clássicos da livre empresa” e que a indiferença dos países industrializados do Ocidente diante dos problemas da América Latina contribuía “fortemente para aumentar a descrença nas formas democráticas de governo e estimular o recurso a soluções socia¬lizantes”.12

Entrementes, a imagem da União Soviética começara a assumir contornos mais positivos depois que o primeiro-ministro Nikita Kruchev, em 1956, denunciara os crimes de Stalin e admitira a teoria de que os outros povos poderiam chegar ao socialismo pela via pacífica. O lançamento do primeiro míssil balístico intercontinental (ICBM) e do primeiro satélite espacial, o Sputnik, que ela em 1957 promovera, concorreu para robustecer seu prestígio, pois, ao exibir sua capacidade de bombardear os Estados Unidos com bombas atômicas teleguiadas, evidenciou o alto nível alcançado pelo seu progresso científico e tecnológico. A percepção, amplamente disseminada não só no Brasil como em toda a América Latina, era de que as economias planificadas do chamado Bloco Socialista, graças à compressão dos níveis de consumo e ao maior volume de investimentos, sob rígido controle estatal, cresciam em ritmo mais acelerado do que as economias de mercado e que o PIB na União Soviética aumentava mais rapidamente que nos Estados Unidos.13 A assistência da União Soviética, inclusive indireta, através de outros países do Bloco Socialista, a países subdesenvolvidos passara de zero, em 1954, para um total de aproximadamente US$ 1,6 bilhão, ao fim de 1957, e seu comércio saltara de US$ 840 milhões para US$ 1,7 bilhão, no mesmo período.14 Estes dados, Kubitschek apresentou, em conferência para a Escola Superior de Guerra, em 26 de novembro de 1958, quando afirmou que a Operação Pan-Americana, por ele lançada com o objetivo de despertar o governo norte-americano para os problemas da região, representava, “precisamente, um protesto contra a desigualdade de condições econômicas neste hemisfério, uma advertência pública e solene no tocante aos perigos latentes no atual estado de subdesenvolvimento da América Latina”, que poderia aproximar-se dos países comunistas se os Estados Unidos não alterassem sua política.15 Conforme se lhe antolhava, o tipo de auxílio soviético, além do seu crescente volume, era de molde a atrair a simpatia dos países subdesenvolvidos, pois se caracterizava, em geral, pela concessão de vultosos empréstimos, a juros baixos, amortizáveis em mercadorias do país devedor, o que contornava o problema de divisas e oferecia, muitas vezes, a possibilidade de escoamento para produtos agrícolas de difícil colocação no mercado internacional.16

Nesse contexto, quando os sentimentos anti-Estados Unidos se exacerbavam na América Latina, a revolução em Cuba triunfou. Tanto Castro quanto Che Guevara previam e, até certo ponto, desejavam o enfrentamento com os Estados Unidos, que inevitável se lhes afigurava, na medida em que o governo revolucionário, ao ampliar a reforma agrária, atingisse suas empresas, como a United Fruit, proprietárias de grandes latifúndios e nos quais mais de 40% das terras permaneciam ociosas.17 Assim acontecera na Guatemala e esta síndrome condicionou suas atitudes, o que tornou a revolução cubana, mais do que um acontecimento nacional, um fenômeno latino-americano, ao refletir as contradições não solucionadas entre os Estados Unidos e o resto do hemisfério. Daí seu impacto e a imensa popularidade que alcançou. Efetivamente, as condições econômicas, sociais e políticas, específicas de Cuba, embora similares às de outros países do Caribe e da América Central, possibilitaram o sucesso das guerrilhas, a partir do foco instalado em Sierra Maestra. Mas foram as experiências da Bolívia e da Guatemala que constituíram o parâmetro e inspiraram a forma pela qual Castro e Che Guevara trataram de consolidar a revolução em Cuba. Che Guevara, amargando a facilidade com que o putsch contra Arbenz triunfara, sempre disse que “Cuba no será otra Guatemala”, o que repetiria, várias vezes, durante conversa com Jânio Quadros, quando este visitou Havana (abril de 1960), ainda como candidato à presidência do Brasil.18

Conquanto alguns dos seus dirigentes, como Ernesto Che Guevara e o próprio Fidel Castro, gestassem ideias marxistas, eles não eram filiados nem comprometidos com nenhum Partido Comunista, não obedeciam nem aceitavam as diretrizes políticas de Moscou e não era inevitável, por conseguinte, que a Revolução Cubana evoluísse para o stalinismo e sua forma de governo. Isto aconteceu na medida em que a União Soviética se afigurou a Fidel Castro e seus companheiros como a única opção internacional de apoio à defesa da soberania e da autodeterminação de Cuba, vis-à-vis das pressões postas pelos Estados Unidos, quando as primeiras medidas da reforma agrária alcançaram as propriedades da United Fruit Co. “The Soviet Union was one alternative power to which these radical nationalists could turn”, o politólogo norte-americano Cole Blasier, com toda a justiça, ponderou.19 E foi Eisenhower, em 1959-1960, que empurrou Castro na sua direção, ao cortar a cota do açúcar, suspender os fornecimentos de petróleo, manter o embargo para a compra de armamentos e organizar uma força de asilados para invadir Cuba e derrubá-lo. Com razão, outro cientista, Martin C. Needler, salientou que não era inevitável que a Revolução Cubana evoluísse a ponto de identificar-se com a doutrina comunista e sua forma de governo.20 Na verdade, conforme, com muita lucidez, ele observou, a União Soviética nunca aceitou completamente Castro como autêntico comunista e Castro só de forma irregular acompanhou a liderança da União Soviética na política internacional e introduziu novos elementos de discórdia no campo comunista, já dividido em várias facções.21 O conflito ideológico com a China, em que Mao Zedong acusava a União Soviética de revisionismo por defender a via pacífica para o socialismo, foi, entre outros fatores, o que levou Kruchev a sustentar, mais decididamente, o regime revolucionário de Fidel Castro, não obstante suas heresias. Se a União Soviética falhasse no apoio a Cuba, sua posição ficaria enfraquecida vis-à-vis à China, dentro do movimento comunista internacional, cuja hegemonia estavam a disputar.22 Na realidade, não foram os comunistas que se apossaram de Castro. Foi Castro que se apossou dos comunistas — Cole Blasier salientou.23

Em fins dos anos 1980, apenas dois dos antigos dirigentes do PSP — Blás Roca e Carlos Rafael Rodríguez — integravam o Bureau Político do Partido Comunista de Cuba. Por tais motivos, inter alia, não se pode analisar a Revolução Cubana sob o prisma do que se passou no Leste Europeu após a Segunda Guerra Mundial. Ela não decorreu de uma intervenção do Exército Vermelho ou de uma operação encoberta da KGB, no contexto do conflito Leste-Oeste, não constituiu uma consequência da Guerra Fria, na qual entretanto se inseriu, envolvendo a América Latina, devido, sobretudo, às contradições com os Estados Unidos, que a União Soviética tratou, naturalmente, de aproveitar em função dos seus interesses estratégicos, como no caso da instalação de mísseis balísticos, dentro de Cuba, no curso de 1962. Deste modo, ao contrário do que ocorrera na Europa, onde o governo soviético, a partir da direção de Stalin, oprimira as nacionalidades e, depois da Segunda Guerra Mundial, estendera seu domínio aos demais países do Leste, agressões à soberania de Cuba, desde os primeiros anos de sua independência, sempre partiram dos Estados Unidos. E a ameaça de invasão, reacendendo e agravando ressentimentos históricos, tornou-se permanente, após a vitória da revolução de 1959, e daí constituir um fator determinante na política interna e externa de Fidel Castro. Os Estados Unidos não lhe deixaram outra opção senão identificar-se mais e mais com o comunismo e sua forma de governo, a fim de assegurar o respaldo econômico, político e militar da União Soviética. E a singularidade de estar Cuba situada nas proximidades dos Estados Unidos e ser o único Estado comunista estabelecido na sua órbita de influência amplificou, mais do que nos países socialistas do Leste Europeu, os sentimentos antinorte-americanos, que se tornaram mais importantes do que o marxismo-leninismo como força na mobilização das massas diante da ameaça de intervenção militar estrangeira.24 Esta ameaça só não se consumou, depois da malograda invasão da Baía dos Porcos, porque o governo norte-americano, no início, não contou com o apoio dos maiores países da América Latina, sobretudo Brasil e México, temendo, posteriormente, não apenas a retaliação da União Soviética em Berlim Ocidental ou no Irã como o elevadíssimo custo em vidas norte-americanas, em virtude dos armamentos recebidos do Bloco Socialista e da resistência que o povo cubano, beneficiado pela revolução e solidário com Castro, ofereceria.

Esse antagonismo dos Estados Unidos, configurado sobretudo pela manutenção e endurecimento do embargo econômico, mesmo depois que a União Soviética se dissolvera, constituiu um dos fatores que continuaram a garantir a Castro o respaldo de amplas camadas da população cubana, apesar de todas as vicissitudes em que passaram a viver. Elas estavam conscientes de que o esbarrocamento abrupto do regime, como no Leste Europeu, não alteraria, substancialmente, a situação existente em Cuba. Antes, pelo contrário, havia certeza de que a crise poderia assumir outras e maiores dimensões quando os cubanos exilados, dos quais cerca de 60%, segundo se supunha, nem sequer queriam voltar a viver em Cuba, buscassem reaver de qualquer modo os privilégios e expulsar os ocupantes de suas propriedades, terras e casas, deflagrando, provavelmente, uma guerra civil em um país onde a escassez de alimentos e, inclusive, de moradia se evidenciava em toda parte e recursos não existiam, muito menos para novas construções. Por outro lado, os Estados Unidos demonstraram, tanto em face do Panamá quanto da Nicarágua, que também não tinham recursos ou não se dispunham a destiná-los para Cuba, mesmo que Castro deixasse o poder. O Panamá só recebera a insignificância de US$ 32 milhões, em fins de 1990, embora o governo norte-americano houvesse prometido uma ajuda de US$ 500 milhões, depois que suas tropas o invadiram, em dezembro de 1989, para prender o general Manuel A. Noriega. E para a Nicarágua, onde eleições se realizaram e Violeta Chamorro assumiu a presidência em abril de 1990, o Congresso norte-americano só aprovou um pacote de US$ 300 milhões depois que a violência voltara a irromper, em 1991, ameaçando a estabilidade da região.25

Por contar ainda com a confiança e o apoio de grande parte da população, Castro, em face da débacle do comunismo no Leste Europeu e das terríveis circunstâncias em que Cuba se precipitara, compreendeu que o melhor seria habilmente administrar, ele próprio, de forma vagarosa, gradual e segura, o retorno ao capitalismo. Este retrocesso se tornara inelutável. Castro pretendera mudar o modo de produção capitalista e saltar para o socialismo sem modificar a estrutura predominantemente agroexportadora do país e o padrão de sua inserção no mercado mundial, que se assentava na troca de commodities por manufaturas. O projeto de industrialização, animado, nos primeiros anos da revolução, sobretudo por Che Guevara, frustrou-se na medida em que Castro, sem poder jogar a “carta americana”, teve de sujeitar-se às imposições da União Soviética e Cuba integrou-se na comunidade econômica do Bloco Socialista, subordinando-se à divisão internacional do trabalho que o Conselho de Ajuda Mútua Econômica (COMECOM) planejava e estabelecia. Assim, o governo revolucionário, ao entrar em conflito com os Estados Unidos, naquele contexto de confrontação entre dois polos do poder mundial, apenas transferiu a dependência econômica de Cuba, de tipo neocolonial, dos Estados Unidos para a União Soviética, da qual continuou dependente, como simples fornecedora de açúcar. A grande contradição de Castro, ao defender a independência nacional de Cuba, foi deixar que a revolução enveredasse pelo caminho do socialismo dependente.

O socialismo real, imitação do modelo implantado por Stalin na extinta União Soviética, virtualmente acabou em Cuba. Castro tentou apenas salvar as aparências e, resguardando a educação e saúde como serviços públicos, que representaram conquistas democráticas da revolução de 1959, suavizar o desmoronamento do regime, montado ao longo de 36 anos, a fim de não perder o controle sobre os acontecimentos e a honra, valor muito importante para ele. O embargo econômico dos Estados Unidos concorreu para ampliar a crise desencadeada pelo desaparecimento do Bloco Socialista, conquanto nada indicasse que seu fim pudesse aliviar sensivelmente a situação de Cuba, dado que não melhoraria o preço do açúcar, detendo a deterioração dos termos de intercâmbio de commodities por produtos industriais, nem baratearia o custo do petróleo no mercado internacional. Esse bloqueio, desumano e, até certo ponto, politicamente inócuo, na medida em que não conseguira, em 40 anos, provocar a queda do regime comunista, só serviu como pretexto para que Castro justificasse a manutenção da ditadura, por existir um estado latente de beligerância com os Estados Unidos, bem como os erros que cometera, ao consentir que a excessiva identificação com a União Soviética terminasse por influir de forma decisiva sobre os rumos da revolução, levando-a a perder as características renovadoras e libertárias, latino-americanas, de que se revestira nos primórdios. O fato de que ele, ao longo de 40 anos, manteve o poder, apesar de tudo, inclusive invasão, sabotagens e tentativas de assassinato, que os Estados Unidos engendraram, constituiu, por si, seu grande triunfo. E, conquanto provavelmente o regime comunista tivesse condições de resistir às pressões domésticas e internacionais e sobreviver, mesmo formalmente, uma vez levantado o embargo econômico dos Estados Unidos, o prestígio com que Castro ainda contava sem dúvida favoreceria sua vitória, em qualquer eleição, com liberdade dos partidos políticos. De qualquer modo, ao radicalizar-se, ainda que compelida pela dinâmica dos conflitos com os Estados Unidos, e exceder-se a si própria, afoitando-se além das condições materiais e das reais possibilidades políticas do país, o que a Revolução Cubana promoveu, não obstante alguns dos seus feitos, como a melhoria dos níveis de saúde, baixando significativamente a taxa de mortalidade infantil, e a eliminação do analfabetismo, foi a socialização da pobreza, uma vez que a riqueza lá concentrada era pouca e a produtividade caíra. De 1959 a 1997, a diferença entre os que muito possuíam, os ricos, e os que nada tinham, praticamente, desaparecera em Cuba. Igualitarismo havia. Todos empobreceram. A escassez e o sacrifício foram solidariamente distribuídos pela população, submetida às mais severas restrições, sem liberdades políticas. Entretanto, a situação em que Cuba se abismara, após o desmerengamiento da União Soviética e dos regimes comunistas nos demais países do Leste Europeu, comprovou, mais uma vez, que toda tentativa de liquidar as diferenças de classe e implantar o socialismo, antes de que o desenvolvimento das forças econômicas elevasse a oferta de bens e serviços em quantidade e qualidade, a níveis de abundância, não podia ter consistência e acarretaria consigo não só o estancamento como, inclusive, a decadência do modo de produção e da sociedade, conforme o próprio Friedrich Engels advertira, na segunda metade do século XIX.26 Cuba, entretanto, pôde recuperar-se, na medida em que promoveu, ainda que timidamente, algumas reformas, abrindo a economia aos capitais estrangeiros, e contou, no início do século XXI, com o apoio solidário da Venezuela, sob o governo do presidente Hugo Chávez, e com os investimentos da China, a emergir como superpotência econômica e como outro polo internacional de poder.”

1. Trotski, Escritos, Tomo X, 1938-1939, 1976, pp. 39-42.

2. Id., ibid., pp. 39-42.

3. Payne, A History of Fascism — 1914-1945, 1995, p. 340.

4. Minuta de P. Mason, 14/1/1944, File AS130, Public Record Office, Foreign Office, 371 37698. Minuta do lorde Halifax, Telegrama do Foreign Office, Washington, 15/1/1994, File 294, Public Record Office, Foreign Office 371 37698.

5. Id.

6. Memorandum for the Presidem, Subject: “Current Status of U.S. — Argentine Relations”, secret security information, 5/3/1953, a) Walter B. Smith, Eisenhower Library.

7. Memorando ao presidente da República, secreto, Ministério das Relações Exteriores, Rio de Janeiro, 29/4/1952, cópia, ibid.

8. Ofício nº 221, secreto, embaixador Carlos da Silveira Martins Ramos ao chanceler Raul Fernandes, Guatemala, 26/8/1950, AHMRE-B MDB, secretos, A-K, Ofícios recebidos, 1950-57.

9. Id.

10. Carta de 2/12/1952, Aranha a Vargas, Washington, Pasta de 1952, AGV.

11. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 11/6/1954.

12. Instruções à delegação do Brasil ao Comitê dos 21 — Setor Econômico, minuta, s/d. 960.3 — Pan-Americanismo — A-B. AMRE-B.

13. Ibid.

14. Ibid.

15. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 27/11/1958 e 28/11/1958.

16. Ibid. Mais detalhes sobre o tema, vide Moniz Bandeira, L. A., 1973, pp. 380-390.

17. Discurso de Raúl Rosa na ONU, 18/7/1960, in Castro et al., 1981, p. 173.

18. O Autor, na época, assistiu ao diálogo de Che Guevara, então presidente do Banco de Cuba, com Jânio Quadros, ao qual o embaixador do Brasil em Havana, Vasco Leitão da Cunha, o escritor Rubem Braga e outros estiveram presentes. Posteriormente, o Autor encontrou Guevara outras vezes e manteve com ele longa conversação de quatro horas, em julho de 1962, no Ministério da Indústria.

19. Blasier, The Giant’s Rival, 1989, p. 134.

20. Needler, The United States and the Latin American Revolution, 1977, p. 33.

21. Id., ibid., p. 34.

22. White, The Cuban Missile Crisis, 1996.

23. Blasier, The Giant’s Rival, 1989, p. 106.

24. Thomas, The Cuban Revolution: 25 Years Later, 1984, p. 19.

25. Cardoso & Helwege, Cuba after Communism, 1992, pp. 97-98.

26. Engels, F. “Soziales aus Rußland”, in Marx & Engels, 1976, p. 39.