Editora: Todavia
Opinião: ★★★☆☆
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ISBN: 978-65-5692-520-2
Páginas: 304
Sinopse: Depois
de esmiuçar o mundo do crime no Rio de Janeiro em A república das milícias,
Bruno Paes Manso volta com um mergulho em outra dimensão da criminalidade no
Brasil. A partir de depoimentos de ex-criminosos que tiveram a vida
transformada pelo contato com a religião, o autor desconstrói estigmas
associados às novas denominações evangélicas e mostra como o crescimento desses
grupos responde a anseios profundos de uma população exposta a todo tipo de
violência.
“(...) Os religiosos chamam essa mudança de “metanoia”, termo
que não fazia parte do meu vocabulário, mas que passei a ouvir com relativa
frequência entre os evangélicos, assim como tantas outras palavras. O vocábulo
tem origem grega e aparece no Novo Testamento, sendo normalmente traduzido como
arrependimento. Essa adaptação, porém, é imprecisa e não contempla o
significado em toda sua abrangência. A metanoia representa uma mudança de
consciência e de comportamento que não acontece por ameaça de punição, nem por
mera pressão social, mas por convicção pessoal, em decorrência de uma nova
crença que faz o sujeito passar a enxergar o mundo de outra forma e a agir
conforme ela. Depois da metanoia, é como se o indivíduo nascesse novamente ao
acreditar em uma outra verdade e viver de acordo com ela. O processo é radical
e quase sempre envolve uma religião. Para ocorrer, a pessoa deve ser capaz de
abandonar as crenças que a definiam até então e seguir em direção a um novo
futuro, modulado por outro programa mental. É como se um espírito diferente
assumisse o controle do corpo convertido, mudando os comandos sobre seu
raciocínio, sentimentos e ações. (...)
Havia
um mecanismo mental sofisticado que permitia a viabilidade daquelas
transformações, apoiado por um aparato discursivo, institucional e metafísico criado
para legitimá-las. Envolvia arrependimento das pessoas em apuros, abandonadas,
sozinhas, e a compreensão verdadeira de que sua postura inadequada diante da
vida era uma das causas do seu infortúnio. As igrejas pentecostais abriam as
portas para essas pessoas se integrarem a uma nova rede, ofereciam verdades
para transformar os desencaixados em cidadãos de bem. Para os agraciados com o
dom de acreditar nessas verdades, havia a chance de se reinventar de modo a
seguir as regras e as expectativas da sociedade. A mudança, no entanto, não
podia ser meramente cosmética. Dependia de um arrependimento verdadeiro que
devia se transformar em ações concretas, como pedir perdão a Deus, aos que
foram prejudicados pelos erros passados e perdoar a si mesmo. A veracidade
desse sentimento era a garantia de que os erros não se repetiriam. Do ponto de
vista formal, o perdão também servia para anistiar os pecados acumulados,
aliviando assim a consciência e fortalecendo o amor-próprio. (...)
Acreditar,
contudo, não é algo automático. Mesmo quando queremos, muitas vezes
simplesmente não conseguimos. Em compensação, quando o contrário acontece, a
realidade pode vir a ser enxergada de outra forma, como se a pessoa colocasse
uma nova lente sobre os olhos e a partir de então processasse as informações em
uma outra consciência. Na metanoia, a pessoa renasce e torna a viver uma
encarnação no mesmo corpo, sem precisar morrer.”
“No
geral, eu via todas essas mudanças com bons olhos. Quase sempre os convertidos
se tornavam pessoas melhores, porque conseguiam diminuir a voracidade de seu
ego para pensar no próximo. No mercado de crenças havia excelentes pacotes de
conversões para reduzir o sofrimento e as angústias da vida. Essas
transformações dependiam da capacidade das pessoas de acreditar cegamente na
verdade sagrada: elas se libertavam da identidade que as fazia sofrer, mas se
aprisionavam em outra. Uma das características dessas mudanças, contudo, era o
foco nos indivíduos e a falta de atenção aos mecanismos do sistema que não paravam
de produzir pecadores. Como se as engrenagens não demandassem reparos, o mundo
não precisasse de reformas, apenas de conversões em massa. As mudanças deveriam
acontecer na consciência de cada um, para que conseguissem suportar os
inevitáveis dissabores da vida.
Por
causa disso, os temas morais é que tinham destaque, para os quais as leituras
da Bíblia indicavam o caminho, e não os debates técnicos sobre políticas
públicas e os rumos do país. É claro que existem diferentes abordagens,
conforme a denominação e seu histórico, mas a chegada dos pentecostais
transformou o debate, que passou a girar em torno das pautas de costumes que,
em tese, numa república democrática, deveriam ficar restritas ao universo
privado. Nesse sentido, o que aconteceria se os evangélicos pentecostais se
tornassem a maioria do eleitorado? A crença em tantas verdades absolutas
poderia criar uma cisão entre eles e as pessoas que não professam a mesma fé?
Eles poderiam ser manipulados por religiosos que levassem para o debate
político temas morais explorando a ideia de uma guerra santa?”
“Autoridade,
ordem, propósito, redes de apoio; de repente, uma nova forma de poder definia a
direção do futuro do Brasil. Quanto mais popular e abrangente, mais a mensagem
se normaliza e passa a fazer parte da cultura. Pode ser vista no show sertanejo
ou na final do campeonato de futebol, na celebração dos gols e das vitórias
mais importantes, quando o crente aponta os dedos indicadores para cima, como
se compartilhasse com Deus os sucessos de sua vida.”
“Eu
achava que as discussões morais que brotavam a partir da Bíblia eram razoáveis.
Os princípios gerais de amor ao próximo, no Antigo e no Novo Testamento, assim
como os exercícios de orações e de jejum para controlar o ego e os desejos
pessoais, na busca de uma vida em comunhão, me soavam um caminho seguro para a
civilidade. Nas últimas décadas, contudo, houve uma invasão dessas crenças no
debate público. Os dogmas passaram a ser usados para manipular e estigmatizar
políticas públicas e seus defensores, interditando debates importantes,
atacando a ciência e a objetividade. O debate em torno do aborto é um exemplo
emblemático. Compreensivelmente, os religiosos trazem para a conversa a defesa
da vida do feto e o problema da objetificação do sexo e da mulher. A escolha
pelo aborto não é banal. Em compensação, não é aceitável fechar os olhos para a
realidade e criminalizar as mulheres que fazem essa escolha difícil, política
sustentada no Brasil pelo lobby religioso. O tabu em torno da descriminalização
do aborto já vinha com os católicos, porém, a partir da popularização do
pentecostalismo, o uso do sagrado se banalizou, mobilizado pelo discurso da
guerra santa, demonizando adversários.
A
popularização das redes sociais e a fragilização do jornalismo tiveram papel
importante nesse processo. As pautas de interesse público, que costumavam ser
filtradas por uma elite em tese comprometida com princípios republicanos — e na
prática também com os interesses econômicos de seus financiadores —, foram
esvaziadas pela diversidade de assuntos e interesses vindos de influenciadores,
agrupados nas mais diversas bolhas. Havia aspectos positivos na novidade, que
permitia uma comunicação mais descentralizada e democrática. O modelo de
negócio dos grandes conglomerados de tecnologia, contudo, ajudou a produzir
efeitos colaterais importantes e a piorar a qualidade dos debates políticos. Os
discursos mais radicais, que reforçam as crenças das bolhas, mesmo sem respaldo
nos fatos, tornaram-se populares, mediados por algoritmos que os impulsionam.
Eles seduzem não apenas por pregar o ódio a terceiros, mas por levar os
participantes do grupo a acreditar que travam uma batalha decisiva, com
propósitos definidos.11 O novo contexto das redes sociais afetou o
debate dos evangélicos e religiosos. Discursos alarmistas, que enxergam o
demônio em todos os cantos, passaram a se sobressair às mensagens de comunhão e
pacifismo de Jesus Cristo. Até pregação armamentista ganhou respaldo nos textos
sagrados.”
11. O papel das redes sociais na
criação de propósito de luta é debatido com riqueza no livro de Max Fisher, A
máquina do caos (São Paulo: Todavia, 2023).
“As
ondas subsequentes ao processo de urbanização, que investigamos neste livro,
seriam decorrência da tensão provocada pela mistura do passado brasileiro com a
expectativa de futuro nas cidades. Diante dos desvalidos abandonados no meio do
caminho por governos frágeis e ineficientes, a própria sociedade precisou
descobrir maneiras de atenuar a miséria e sobreviver. Com o passar do tempo, duas
soluções foram adotadas para organizar a vida caótica das cidades: a fé e o
fuzil. Quanto à primeira, o fortalecimento da autoridade religiosa é
representado pela curva do crescimento dos pentecostais, a partir dos anos
1950. Com relação à segunda, pelo aumento da violência policial e dos
homicídios nos bairros urbanos pobres, a partir dos anos 1980, e pela
disseminação das facções de base prisional e das milícias, a partir dos anos
1990 e 2000.
A
formação do primeiro tsunami, o processo caótico de urbanização do Brasil, está
associada à história rural do país, uma espécie de feudalismo empobrecido que
antecede a modernização capenga que viria depois. Durante as primeiras décadas
da República, os donos de engenhos e casas-grandes herdadas do período colonial
e escravista se reinventaram para manter a influência dos coronéis no centro da
política nacional. Apoiados pelos governadores da República, eles continuaram
fortes com suas milícias formadas por capangas. Travavam disputas violentas com
outras parentelas, donas de fazendas vizinhas, mantendo o poder como algo a ser
sustentado à base das balas. As rixas transcendiam gerações em rivalidades
movidas por ciclos de vingança que se perpetuavam na defesa da honra familiar.6
Nos
arredores das fazendas, uma população miserável de trabalhadores sazonais
sobrevivia vagando pelas grandes propriedades como parceiros, arrendatários ou
agregados. Moradores de casas de taipa ou de palha, estavam sujeitos aos
favores e à boa vontade dos poderosos numa relação de dependência com eles. Os
vaqueiros e tropeiros formavam a chamada “civilização do couro”, cuja renda
também vinha dos donos de terra e de gado. A maioria das pessoas comia o que
produzia em suas roças, como milho, mandioca e feijão. O dinheiro quase não
circulava e as alternativas de trabalho eram restritas à terra. A monocultura,
a elevada concentração de propriedade, as técnicas de produção ultrapassadas e
o mercado incipiente tornavam a fome, a mortalidade infantil e a baixa
expectativa de vida alguns dos problemas mais graves da região.
Existia,
porém, um legado ainda mais cruel deixado pelo regime escravista: a
deterioração do imaginário na relação entre patrão e empregado, entre classes e
raças, que transformava o trabalhador braçal em mero objeto, propriedade para
produzir riqueza. A cor da pele era um elemento importante na construção do
estigma, assim como a baixa educação formal. O uso da violência se tornou
sinônimo de autoridade nas relações de poder, como um instrumento para
domesticar e criar obediência — quase sempre de pessoas pobres, parcamente
alfabetizadas e negras.7
No
universo agrário nordestino, o catolicismo mediava o duro convívio entre quem
mandava e quem obedecia. Legitimava a autoridade dos poderosos, preservava a
tradição, fortalecia os laços familiares e de vizinhança por meio dos seus
sacramentos e festas. A Igreja viabilizava a caridade, aliviando a consciência
dos cristãos que doavam, ao mesmo tempo que diminuía o desespero e criava um
sentimento de gratidão dos que recebiam. A Igreja também ajudava o Estado,
proporcionando educação nos colégios religiosos, saúde no atendimento das
santas casas, ordem por meio da catequização indígena e dos registros de
nascimento, batismo, casamentos e óbitos.
O
poder girava em torno das paróquias e das fazendas, com os capelães se
subordinando aos donos das terras, dependentes dos coronéis para realizar suas
obras e festas. Os festejos católicos tinham um papel importante nessa
acomodação cultural. Celebravam os santos, reunindo o povo nas praças, em
procissões e novenas, como nas festas juninas de são João, são Pedro e santo
Antônio, que persistiram como as mais populares do Nordeste. Os santos de
devoção e as festas ainda podiam ser associados a entidades indígenas e
africanas, resultado do sincretismo próprio do catolicismo nacional, como nas
festas de Nosso Senhor do Bonfim e de Iemanjá, em Salvador.
Dessa
forma, ao mesmo tempo que legitimava o status quo, paradoxalmente a
religiosidade criava a sensação de pertencimento em uma sociedade marcada pelo
abandono. Os santos e as entidades animistas tinham um papel importante na
relação dos crentes com o sobrenatural. Eles e os fiéis formavam uma espécie de
irmandade que se ajudava, com os primeiros prestando favores mágicos aos mais
necessitados em troca de promessas, comidas, perfumes.8 Era uma
relação sem cerimônia, que podia ser acessada para resolver problemas como
falta de chuva, de comida, cura de doenças, questões sentimentais. As novenas
para são José, por exemplo, eram associadas à garantia de chuvas e bonança na
lavoura; a imagem de santo Antônio servia para as mulheres arrumarem marido; e
as benzedeiras, com suas plantas e rezas, supriam o papel dos agentes de saúde
diante de um Estado inexistente.
A
Revolução de 1930, liderada por Getúlio Vargas, romperia com as elites agrárias
e daria início ao processo de industrialização nacional. Em 1940, durante a
ditadura do Estado Novo, Vargas concedeu anistia a todos os cangaceiros que se
entregassem, e diversos deles baixaram as armas. O banditismo rural dos
cangaceiros contra a opressão do sistema coronelista durou cerca de meio
século. Diante da decadência no campo, não havia mais motivos para seguir
lutando. Corisco, sobrevivente do bando de Lampião, não quis se entregar e foi
executado por uma volante em uma fazenda no município de Barra do Mendes, na
Bahia. Era o último da espécie. Depois de sua morte, o cangaço desapareceu do
mapa para se eternizar nos livros de história e nos cordéis. Com o fim dessa
era, novas ideias começavam a ser sopradas nos ouvidos dos brasileiros, que as
escutavam com atenção. A violência redentora e a rebeldia do cangaço, a
imobilidade do mundo agrário, o poder das oligarquias e as barreiras para a
ascensão social podiam ser deixadas para trás. Outros caminhos para a vida estavam
irrompendo e prometiam superação. Bastava comprar um lugar no pau de arara e
enfrentar as centenas de quilômetros que separavam o campo das cidades do Sul e
Sudeste do Brasil. Surgia uma janela para escapar da jaula que aprisionava os
moradores pobres da zona rural a um futuro fadado a ser miserável e violento.”
6. A discussão política do
período da República Velha está presente no livro Coronelismo, enxada e voto
(São Paulo: Companhia das Letras, 2012), de Victor Nunes Leal.
7. O papel da escravidão e da
violência na história da formação do Brasil vem sendo tratado por Jessé Souza
em sua releitura de clássicos como Raízes
do Brasil (Sérgio Buarque de Holanda), Os
donos do poder (Raymundo Faoro) e Casa-grande
e senzala (Gilberto Freyre). Ver A elite do atraso (Estação Brasil, 2019) e “Elias,
Weber e a singularidade cultural brasileira”. In: Leopoldo Waizbort. Dossiê
Norbert Elias (São Paulo: Edusp, 1999). A relação entre o poder agrário e a
religiosidade também é discutida no clássico Coronelismo, enxada e voto,
de Victor Nunes Leal, op. cit.
8. Em seu diálogo intelectual com
Max Weber, em Raízes do Brasil (26. ed. São Paulo: Companhia das Letras,
1995), Sérgio Buarque de Holanda contrapõe a separação entre sagrado e profano,
características do protestantismo ascético dos Estados Unidos, ao catolicismo
brasileiro, popular, sincrético, rico em mediações entre o homem e Deus,
reproduzindo uma situação análoga à estrutura de mediação de favores do
cotidiano, que definiria o éthos cordial, plástico e emocional do brasileiro.
Ver também “Faces do catolicismo brasileiro contemporâneo”, de Faustino
Teixeira, em Revista USP, São Paulo, n. 67, pp. 14-23, 2005.
“Nessa
geração das periferias havia um vazio a ser preenchido que a colocaria em
choque com a geração dos seus pais e avós. Os valores desses jovens nascidos em
São Paulo não eram os mesmos dos migrantes que vieram para a capital
acreditando nas oportunidades das cidades. A esperança forjada no ambiente
rural não fazia mais a cabeça de Alexandre e de seus amigos, nascidos na
realidade opressora e violenta das periferias. Eles negavam a cultura dos seus
ancestrais. De que adiantava conhecer a terra, o clima, os ciclos das
plantações, as tradições e as festas dos santos em São Paulo? Os hábitos e
costumes rurais eram menosprezados, considerados anacrônicos. O estigma pesava
sobre os nordestinos no Sudeste. “Baiano” e “paraíba”, respectivamente em São
Paulo e no Rio, eram adjetivos associados à ignorância e ao atraso.
Os
descendentes dos migrantes nordestinos, nascidos nas periferias, tinham o
desafio de inventar para si uma nova identidade urbana em meio a uma sociedade
violenta, implacável com quem não tinha dinheiro para sobreviver, uma
verdadeira máquina de humilhação de pobres. O crime ofereceu um caminho para a
criação dessa identidade masculina urbana e periférica. Permitia extravasar a
raiva, responder com violência, na mesma moeda, à perversidade do sistema, e
recusar ser atacado na honra e masculinidade, ainda que pagando com a vida e a
liberdade. Eles morriam de cabeça erguida, ao contrário dos seus antepassados,
que aceitavam as regras do jogo, sendo humilhados por pessoas que não
reconheciam sequer sua humanidade.
O
crime também era uma afronta ao sistema por oferecer um atalho para a aquisição
de bens materiais aparentemente inacessíveis e prestígio social. Usando a
violência, os criminosos podiam participar da sociedade de consumo, mesmo que
por alguns instantes. Essa possibilidade se conectava aos valores hedonistas da
sociedade burguesa sem religião; era um hedonismo violento, que não se
preocupava com o que seus desejos podiam provocar nas vítimas de seus crimes.
A
crise da religiosidade ajudava a aumentar o cinismo: se Deus não existe e o
sistema pretende exterminar os pobres, por que não dar o troco? Sem as amarras
religiosas, o que impediria alguém de roubar, trapacear, assaltar e se vingar
da violência no mundo? Essa leitura da realidade e das leis, estimulada pelo
ódio e pela cultura do crime, liberava moralmente muitos jovens para buscar o
prazer em carros e motos potentes, roupas chiques, sexo e drogas, o que
dificilmente conseguiriam com um emprego comum. O canto da sereia atraiu
Alexandre e seus amigos. Para seguir esse caminho era preciso negar a
humanidade do outro, o que era mais fácil para quem sentia a própria humanidade
negada. Assim cresceram os adeptos da “vida louca”, os “bichos soltos”, sem
remorso, que preferiam viver dez anos a mil em vez de mil anos a dez.
Quando
o crime começou a crescer, principalmente depois da crise econômica dos anos
1980, houve um choque entre essas duas gerações: os migrantes, que chegaram do
campo, e seus descendentes, nascidos nas periferias. Em São Paulo esse conflito
foi representado por dois personagens: os justiceiros, que carregavam os
valores dos primeiros; e os bandidos, que simbolizavam a revolta antissistema
dos segundos. A absoluta maioria dos justiceiros era formada por pessoas vindas
da zona rural, que diante do crescimento do crime organizaram-se para limpar
seus bairros dos jovens que roubavam a vizinhança. Durante os anos 1980,
segundo estimativas, os justiceiros chegaram a mais de mil, atuando em todos os
cantos da metrópole. Matavam para defender o trabalhador e organizar seus
bairros, varrendo quem não respeitava as regras.
Rivadávia
Serafim da Silva liderou na zona norte um grupo suspeito de cometer duzentos
homicídios entre 1983 e 1987. Nascido em Pena Forte, no Ceará, tinha 1,60 metro
e pesava cinquenta quilos. Jonas Félix da Silva, que matava no Jardim Ângela e
em outros bairros da zona sul, era de Limoeiro, em Pernambuco. Também eram
pernambucanos Gilvam Brás da Silva e Francisco Alves de Souza, que atuavam em
Guarulhos, e Ivanildo Gomes de Freitas, o Zoreia, que exterminava em Osasco.
Francisco Vital da Silva, o Chico Pé de Pato, era de Campo Alegre de Lourdes,
no sertão da Bahia. Recebeu o apelido porque andava com os pés abertos e ganhou
status de herói ao dar entrevistas no programa de rádio de Afanásio Jazadji,
que chegou a bater a marca de 1 milhão de ouvintes. Sua popularidade nos anos
1980 era tanta que o termo “pé de pato” se tornou sinônimo de justiceiro.
Muitas
vezes havia protestos em frente aos fóruns ou delegacias quando eles eram
presos, e, não raro, policiais e justiceiros faziam dobradinhas. Dizia-se que
os pés de pato sabiam diferenciar os bandidos dos trabalhadores por morarem
todos no mesmo bairro, o que evitava que os policiais, que associavam pobreza
com a bandidagem e não sabiam diferenciar bandido de trabalhador, assassinassem
inocentes. Também havia uma diferença entre a lógica de extermínio de policiais
matadores e de justiceiros. Os homicídios da polícia eram em defesa de uma
classe. Já os justiceiros defendiam os valores de sua geração, ligados ao
trabalho duro. O inimigo de ambos, contudo, estava sintetizado no estigma do
bandido.”
“As
chacinas ganhavam destaque na imprensa paulista na década de 1990 e os casos
eram contabilizados e investigados por uma delegacia especializada em múltiplos
homicídios. Em 1994, foram registradas 34 ocorrências em toda a região
metropolitana. No ano seguinte, 49, número que se manteve relativamente estável
até 1998, quando saltou para 89, que se repetiu em 1999. O recorde de 95
ocorrências foi registrado no ano 2000.
Foi
nessa época que comecei a investigar mais de perto os homicídios em São Paulo.
Era o ano de 1999, e eu trabalhava na revista Veja, em que fui pautado
para fazer uma matéria sobre chacinas. Entrevistando os matadores, compreendi
que os assassinatos que eles praticavam não estavam associados meramente a
ignorância, falta de autocontrole, maldade, loucura ou algum tipo de
perversidade. A motivação para suas ações vinha de uma crença e um discurso que
tinham sido formados no caos, na ausência de leis, no abandono institucional,
no excesso de armas, e já tinham sido assumidos por pessoas que deixaram o
mundo do trabalho para buscar o sustento no crime, apropriando-se de uma
identidade marginal. Ademais, em um meio repleto de homicidas, matar era visto
como uma ação necessária e legítima, e mesmo a vingança era entendida como uma
maneira de impor respeito. Essa lógica tinha um efeito multiplicador implícito
que vinha fazendo os assassinatos crescerem havia quarenta anos. Mais uma vez,
foi preciso ouvi-los de igual para igual, escutá-los com atenção, levar em conta
suas explicações para enxergar sua humanidade.
As
longas conversas que tive com diversos matadores mostraram, para minha
surpresa, que pessoas comuns, como Alexandre, Marcelinho, Edson e tantos
outros, embarcavam nesses caminhos acreditando no propósito e no sentido de
suas escolhas. Os autores de chacinas — alguns diziam ter perdido a conta de
quantos mataram — também justificavam seus crimes a partir de uma ética local:
como matadores rivais e criminosos nos arredores faziam o mesmo, não havia escapatória,
eles precisavam entrar no conflito. Matar era a maneira mais eficiente de não
morrer, e eles não matavam inocentes, apenas os que mereciam. A vida passava a
girar em torno dessas disputas fatais das quais eles não conseguiam sair, como
jovens guerreiros se autodestruindo na desordem.
Quando
comecei as entrevistas, eu não esperava encontrar tamanha convicção em pessoas
com tantos assassinatos nas costas. Eles acreditavam na justeza de seus atos.
Numa conversa especialmente reveladora, pedi que o entrevistado informasse o
apelido pelo qual gostaria de ser identificado, já que seu nome não poderia ser
mencionado. Ele sugeriu “Wolverine”, o super-herói membro do grupo X-Men,
criado e publicado pela Marvel, uma ficção darwinista sobre mutantes que ganham
diferentes tipos de superpoderes no processo de evolução natural. O Wolverine
da minha reportagem se chamava César, o que só descobri anos depois, quando ele
já havia sido assassinado. Em 1999, o ano da entrevista, ele tinha 25 anos,
morava no Grajaú, na periferia sul de São Paulo, e tinha iniciado sua vida de
assassinatos no começo daquela década. Seus pais eram atenciosos, ele havia
concluído o ensino médio e trabalhava com transporte alternativo. Era um jovem
bonito, bem-vestido, vaidoso, que usava um brinco de brilhante na orelha.
César
cometeu o primeiro homicídio para se vingar da morte de seu melhor amigo
durante um jogo de futebol de várzea. Inconformado com a covardia no campo,
acompanhou seus colegas matadores no justiçamento do assassino, mas precisou
continuar no grupo para se proteger dos adversários e logo cometeu o segundo
homicídio. Novas tretas e vinganças surgiram, e ele nunca mais parou. Nove anos
depois, era incapaz de dizer quantos já tinha matado, inclusive em inúmeras
chacinas. Com o tempo, percebi que os X-Men eram uma metáfora que ajudava a
entender como esses matadores enxergavam o mundo. A disposição para matar era
um superpoder que eles adquiriam, uma evolução que os tornava quase divinos. Os
revólveres e as balas eram uma extensão do seu corpo, capazes de torná-los
imbatíveis, como as garras e a força do Wolverine da ficção. Ao se transformar
em matador, eles viravam ex-humanos, cuja vida passava a girar em torno da
disputa com outros superpoderosos, também dispostos a matar. Era uma guerra
entre ex-humanos mutantes.3 O resto da humanidade, os que precisavam
conviver com eles em seus bairros, eram chamados de zé-povinho. (...)
Discursos
e crenças homicidas como aquelas apareciam na desordem. A convicção desses
guerreiros do caos surgia em um meio sem agências mediadoras capazes de
garantir previsibilidade, o que costumava acontecer em um mercado ilegal, cheio
de armas e altamente competitivo. Quanto à tolerância velada de parte da
sociedade e das instituições a esses assassinatos, apareceram novas perguntas:
Como reverter o quadro? Será que apenas o sistema de justiça e a punição dos
homicidas poderia mudar essa situação? Seria possível produzir outras verdades,
capazes de reprogramar as mentes e mudar os comportamentos homicidas? Por que
as políticas de segurança pública e o sistema de justiça não estavam
funcionando? Haveria espaço para mudar comportamentos a partir da construção de
um discurso que convencesse os matadores a pararem de se matar? Um novo pacto
era verdadeiramente viável ou mera ingenuidade utópica? Eu achava que essas
perguntas levariam muito tempo para ser respondidas e fui para a academia, onde
eu poderia pesquisar com o prazo menos apertado do que o de um jornal. Só não
esperava ver as crenças mudarem e os assassinatos caírem enquanto eu
pesquisava. Eu me sentia dentro de um laboratório gigante.
A
transformação começou lentamente no ano 2000, com o registro das primeiras
quedas nas taxas de homicídios no estado de São Paulo. Como podiam ser
residuais, então era preciso aguardar mais. No ano seguinte, entrei no mestrado
para estudar o crescimento da violência nos quarenta anos anteriores. Os
homicídios paulistas, porém, não pararam mais de cair. Testemunhei o surgimento
e o fortalecimento do PCC, que proibiu a vingança e criou formas de as regras
do crime serem obedecidas. Ao mesmo tempo, assisti aos pentecostais crescerem
mais do que nunca, promovendo milhares de conversões no mundo do crime. As
metanoias me impressionaram justamente por apresentar novos propósitos e
narrativas que eram aceitas e reproduzidas nas rádios e igrejas. A violência
deixava de ser uma opção natural.
Tanto
o PCC como as igrejas pentecostais são instituições criadas pelos pobres, para
os pobres, que produziam novos discursos capazes de reprogramar as mentes. O
novo Brasil pobre e urbano começava a inventar formas de se governar. Elas
nasciam da miséria, nas ruas esburacadas das periferias, nas igrejas
evangélicas e nas prisões, e eram maneiras alternativas de gerar ordem e
propósito, que, nas décadas seguintes, ajudariam a definir o futuro brasileiro.”
3. Por causa dessa metáfora, dei
o nome do meu primeiro livro de O homem X: Uma reportagem sobre a
alma do assassino em São Paulo (Rio de Janeiro: Record, 2005).
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