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terça-feira, 30 de abril de 2024

Somos as palavras que usamos, de Manuela D’ávila

Subtítulo: Um guia para entender (um pouco) e explicar (um pouquinho) o mundo

Editora: Planeta

Opinião: ★★☆☆☆

ISBN: 978-65-5535-823-0

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Páginas: 176

Sinopse: ACREDITO que as palavras, quando usadas para machucar, podem ser como bombas, mas, quando generosas, podem ser como pedaços de um caminho que aproxima. Afinal, como ensinou Saramago, “somos as palavras que usamos”, e eu quero, com este pequeno livro, te ajudar a encontrar as palavras certas para que determinados assuntos, tão importantes, deixem de ser o motivo de briga ou de silêncio na noite de Natal (não, eu não estava espiando a tua ceia de natal, eu simplesmente sei que isso aconteceu em quase todas as famílias) e passem a ser uma das razões para aquelas conversas que duram até tarde e que, dentro de nós, guardamos para sempre.

Nada do que você vai ler tem o sentido de ponto-final. Ao contrário, são reticências. Estou abrindo o papo para que tu sigas falando por aí. Para que as palavras que somos (porque usamos) sejam pontos para luz. E, nunca mais, para sombras.



“Não ter consciência de tudo não é um problema.

O problema é não ter acesso ao que te permite ter consciência.”

 

 

“É importante entender sobre liberdade de expressão justamente porque o discurso de ódio se situa num equilíbrio delicado entre direitos e princípios fundamentais, incluindo a liberdade de expressão e a defesa da dignidade humana, como afirma a SaferNet Brasil, organização referência no enfrentamento aos crimes e violações aos direitos humanos na internet. Mesmo que a definição de discurso de ódio seja aplicada a partir de cada caso concreto, levando em conta leis nacionais, tratados internacionais e termos de uso das plataformas, podemos defini-lo como manifestações que fomentam o ódio contra determinados grupos sociais baseadas em raça, etnia, gênero, orientação sexual, religião ou origem nacional.

O discurso de ódio, exposto de maneira mais nítida ou mais sutil, aprofunda preconceitos contra grupos específicos e, hoje em dia, é impossível dissociá-lo da fábrica de desinformação, explorando preconceitos e construindo uma reação moral que naturaliza a raiva contra quem é, na verdade, vítima.”

 

 

“Estima-se que, dos aproximadamente 12 milhões de africanos levados como escravizados, 5 milhões chegaram ao Brasil. Talvez você não saiba, mas esse número é mais de dez vezes superior ao norte-americano. Talvez você também não saiba que nosso país foi o último país das Américas a acabar com a escravização, que durou quase quatrocentos anos.

Nos longínquos anos 1990, quando eu fiz o Ensino Fundamental, 13 de maio marcava a data de assinatura da Lei Áurea pela princesa Isabel. Pouco se estudava sobre a luta do povo negro que culminou na abolição e muito se dizia da virtual “benevolência” de Isabel. Praticamente nada se dizia sobre a assinatura da lei não ter garantido direitos para a população negra. É por isso que, nos últimos cinquenta anos, o movimento negro reivindica o 20 de novembro como data de suas lutas. (...)

Mas, agora que tu já sabes a dimensão da escravização no Brasil e as razões pelas quais o movimento negro refuta o 13 de maio como data da liberdade, qual o resultado desse processo para o nosso país? Poderia o mais longevo e numericamente expressivo processo de escravização resultar numa população que vive harmoniosamente, independentemente da raça? Quantas vezes você leu na internet que esse debate sobre raça divide o povo brasileiro, que é miscigenado?

No livro Racismo estrutural, Silvio Almeida afirma que é impossível compreender a sociedade contemporânea sem os conceitos de raça e racismo e que o conceito de raça, mesmo que de maneira velada, sempre dialoga com a filosofia, a ciência política, a teoria econômica etc. Ou seja, o conceito de raça precisa ser compreendido dentro dos marcos das circunstâncias históricas em que é utilizado. Entre os séculos XVII e XVIII, a classificação de seres humanos (raça) emergiu para justificar — diante de uma Europa que vivia o apogeu do Iluminismo e de suas revoluções liberais — a destruição das populações das Américas, da África, da Ásia e da Oceania pelo colonialismo europeu. Depois, no final do século XIX, com a primeira grande crise do capitalismo de 1873, as grandes nações pactuaram a ocupação da África (neocolonialismo) com base na ideia de inferioridade racial.

O racismo é a discriminação sistêmica baseada em raça, podendo ser consciente ou inconsciente. Por que usar discriminação em vez de preconceito? Essa é uma questão que pode parecer irrelevante, mas não é. E está relacionada a outras questões que surgem por aí.

Vamos lá: o preconceito é o juízo a partir de estereótipos raciais, por exemplo, judeus são bons em lidar com dinheiro, quenianos nascem para a corrida. Isso pode ou não se transformar em discriminação. Já o racismo pressupõe o tratamento diferente em função do pertencimento a um grupo racializado e, para tanto, exige o exercício do poder.”

Dom Casmurro, de Machado de Assis

Editora: Antofágica

Opinião: ★★★★☆

ISBN: 978-65-8649-008-4

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Páginas: 464

Sinopse: Prometido para o seminário desde o nascimento, o jovem carioca Bentinho precisa encontrar um jeito de fugir da vida na Igreja e realizar seu verdadeiro sonho: casar-se com a vizinha Capitu. Uma história de paixão, obsessão e ciúme se desenrola, em uma narrativa cheia de reviravoltas, que aos poucos constrói um retrato da sociedade brasileira. Com este romance publicado em 1899, o maior nome da literatura nacional, Machado de Assis, torna-se também parte do cânone mundial. “Dom Casmurro” traz contundentes reflexões sobre o Brasil de sua época, ainda muito relevantes para os dias atuais, e faz isso com a narrativa repleta de ironia que é uma marca do autor. A nova edição da Antofágica traz o texto integral de Machado com notas e posfácio do especialista Rogério Fernandes dos Santos, além de ilustrações de Paula Siebra, apresentação da produtora de conteúdo Camilla Dias e posfácios da atriz e escritora Maria Ribeiro do escritor Geovani Martins.



Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo.”

 

 

“Um dia, quando todos os livros forem queimados por inúteis, há de haver alguém, pode ser que tenor, e talvez italiano, que ensine esta verdade aos homens. Tudo é música, meu amigo. No princípio era o , e o fez-se etc.”

 

 

“Os sonhos do acordado são como os outros sonhos, tecem-se pelo desenho das nossas inclinações e das nossas recordações.”

 

 

“Meses depois fui para o seminário de São José. Se eu pudesse contar as lágrimas que chorei na véspera e na manhã, somaria mais que todas as vertidas desde Adão e Eva. Há nisto alguma exageração; mas é bom ser enfático, uma ou outra vez, para compensar este escrúpulo de exatidão que me aflige. Entretanto, se eu me ativer só à lembrança da sensação, não fico longe da verdade; aos quinze anos, tudo é infinito.”

 

 

“Há pessoas a quem as lágrimas não acodem logo nem nunca; diz-se que padecem mais que as outras.”

 

 

“A vaidade é um princípio de corrupção.”

 

 

“Às vezes, eu contava a Capitu a história da cidade, outras dava-lhe notícias de astronomia; notícias de amador que ela escutava atenta e curiosa, nem sempre tanto que não cochilasse um pouco.”

 

 

“Os apóstolos não levam a boa doutrina senão depois de a terem toda no coração.”

 

 

“Tal não faria Ezequiel. Não comporia bolas envenenadas, suponho, mas não as recusaria também. O que faria com certeza era ir atrás dos cães, a pedrada, até onde lhe dessem as pernas. E se tivesse um pau, iria a pau. Capitu morria por aquele batalhador futuro.

— Não sai a nós, que gostamos da paz, disse-me ela um dia, mas papai em moço era assim também; mamãe é que contava.

— Sim, não sairá maricas, repliquei; eu só lhe descubro um defeitozinho, gosta de imitar os outros.

— Imitar como?

— Imitar os gestos, os modos, as atitudes; imita prima Justina, imita José Dias; já lhe achei até um jeito dos pés de Escobar e dos olhos…

Capitu deixou-se estar pensando e olhando para mim, e disse afinal que era preciso emendá-lo.”

 

 

“José Dias pediu para ver o nosso “profetazinho” (assim chamava a Ezequiel) e fez-lhe as festas do costume. Desta vez falou ao modo bíblico (estivera na véspera a folhear o livro de Ezequiel, como soube depois), e perguntava-lhe: “Como vai isso, filho do homem?”. “Dize-me, filho do homem, onde estão os teus brinquedos?” “Queres comer doce, filho do homem?”

— Que filho do homem é esse, perguntou-lhe Capitu agastada.

— São os modos de dizer da Bíblia.

— Pois eu não gosto deles, replicou ela com aspereza.”

quinta-feira, 18 de abril de 2024

A Revolução Burguesa no Brasil: Ensaio de Interpretação Sociológica (Parte IV), de Florestan Fernandes

Editora: Contracorrente

Opinião: ★★★☆☆

ISBN: 978-85-6922-074-9

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Páginas: 432

Sinopse: Ver Parte I



“Essa descrição da natureza, da forma e das funções da dominação burguesa na sociedade brasileira, embora sumária, põe-nos diante do que é essencial. Ela retrata uma evolução que é particular, pois focaliza as classes burguesas, a dominação burguesa e o poder burguês em determinada sociedade. Não obstante, essa evolução é típica: ela evidencia como se dá a interação recíproca entre dominação burguesa e transformação capitalista na periferia. Como, enfim, o capitalismo dependente e subdesenvolvido constitui uma criação de burguesias que não podem fazer outra coisa além de usar os imensos recursos materiais, institucionais e humanos com que contam e a própria civilização posta à sua disposição pelo capitalismo para manter a revolução nacional nos estreitos limites de seus interesses e valores de classe. Elas contêm, ou sufocam, por essa razão, as impulsões societárias tão conhecidas ao igualitarismo, ao reformismo e ao nacionalismo exaltado de tipo burguês, expurgando-as, por meios pacíficos ou violentos, da ordem social competitiva. Ao mesmo tempo, fomentam e exaltam outras impulsões societárias de tipo burguês, igualmente bem conhecidas, ao racionalismo acumulador e expropriativo, ao egoísmo, ao exclusivismo e ao despotismo de classe, conferindo-lhes, por meios pacíficos ou violentos, predominância na elaboração histórica da ordem social competitiva. Elas se tornam, em suma, os agentes humanos que constroem, perpetuam e transformam o capitalismo dependente e subdesenvolvido, levando a modernização para a periferia e adaptando a dominação burguesa às funções que ela deve preencher para que a transformação capitalista não só possa reproduzir-se em condições muito especiais, mas, ainda, tenha potencialidades estruturais e dinâmicas para absorver e acompanhar os ritmos históricos das economias capitalistas centrais e hegemônicas.”

 

 

“Feita toda essa discussão, cabe uma pergunta: o que explica, sociologicamente, o êxito relativo da burguesia brasileira nesse movimento que a levou, finalmente, a descobrir e a cumprir as tarefas e os papéis que lhe cabiam no contexto histórico global? As respostas a essa pergunta sublinham, com frequência, quatro fatores. As características demográficas, econômicas e sociais da sociedade brasileira, que tornavam viável e fácil uma nova eclosão do industrialismo e a aceleração do crescimento econômico com colaboração externa; a assistência técnica, econômica e política intensiva das nações capitalistas hegemônicas e da “comunidade internacional de negócios”; a forte identificação das Forças Armadas com os móveis econômicos, sociais e políticos das classes burguesas e sua contribuição prática decisiva na rearticulação do padrão compósito de dominação burguesa; a ambiguidade dos movimentos reformistas e nacionalistas de cunho democrático-burguês e a fraqueza do movimento socialista revolucionário, com forte penetração pequeno-burguesa e baixa participação popular ou operária. Esses fatores são, de fato, suficientes para “explicar o que houve”, mas eles fixam as respostas no plano morfológico das relações e conflitos de classe. É possível ir um pouco mais longe indagando-se por que, afinal de contas, em determinado momento a burguesia brasileira realizou o seu movimento histórico de uma forma que é especificamente contrarrevolucionária (em termos do padrão democrático-burguês “clássico” de revolução nacional) e envolve uma ruptura com todo o arsenal ideológico e utópico inerente às “tradições republicanas” da mesma burguesia. Aqui entramos na área dos fenômenos de consciência de classe e de comportamentos coletivos de classe, que infelizmente têm sido mal e pouco investigados.”

 

 

“A industrialização intensiva e a eclosão do capitalismo monopolista alargaram e aprofundaram, de maneira explosiva, as influências externas sobre o desenvolvimento capitalista interno, exigindo das classes e dos estratos de classe burgueses novos esquemas de ajustamento e de controle daquelas influências. Era impossível deter semelhante processo, nascido da própria estrutura mundial do capitalismo e incentivado pelo caráter dependente da economia capitalista brasileira. As classes e os estratos de classe burgueses tinham de enfrentar, no entanto, seus efeitos políticos. Pois se a irradiação do capitalismo competitivo, de fora para dentro, não atingia diretamente as estruturas de poder político da sociedade brasileira, o mesmo não sucedia com a irradiação do capitalismo monopolista. Aquelas classes e estratos de classe viam-se, de repente, na posição de antagonista do aliado principal. O desafio externo também se erguia, portanto, como um espantalho. Se, como parte da autodefesa e da autoafirmação da “iniciativa privada” em geral, se impunha defender e aumentar a associação com os “capitais externos”, fomentando os ritmos das “inversões estrangeiras” e, com elas, os da modernização controlada de fora, a autoproteção de classe da burguesia brasileira estabelecia um limite à “interdependência”. Acima do afluxo de capitais, de tecnologias e de empresas e, mesmo, acima da aceleração do desenvolvimento capitalista estava, para ela, seu status, em parte mediador e em parte livre de “burguesia nacional”. O fulcro do poder real interno da burguesia, no que diz respeito ao capitalismo dependente e subdesenvolvido e às conexões de economias nacionais capitalistas da periferia com as nações capitalistas hegemônicas e com o sistema capitalista mundial, passa por esse status. As classes e os estratos de classe burgueses viam-se na contingência de resguardar esse status, embora a quatro mãos estivessem empenhados numa cruzada pró-imperialista. Se ele fosse afetado, não haveria base material para qualquer processo de autodefesa e de autoafirmação da burguesia nativa como parte de um sistema nacional de poder. Ela deixaria, automaticamente, de ser uma “burguesia nacional” — embora dependente e da periferia do mundo capitalista e reverteria à condição de burguesia-tampão, típica de economias coloniais e neocoloniais, em transição para o capitalismo e para a emancipação nacional (da qual a melhor ilustração é a “burguesia compradora” chinesa). Desse ângulo, percebe-se claramente o quanto o referido status é importante para uma burguesia dependente. Ele constitui a base material de autoproteção, autodefesa e autoafirmação dessa burguesia, no plano das relações internacionais do sistema capitalista mundial. Privadas desse status, as burguesias nativas da periferia não contariam com suporte e funções políticas, que o monopólio do poder estatal lhes confere, para existir e sobreviver como comunidade econômica. Daí a perturbadora evolução política do desafio externo, para uma burguesia tão empenhada em atingir o ápice da transformação capitalista através da “colaboração externa” e da “associação com os capitais estrangeiros”.”

 

 

“Sem nenhuma “idealização sociológica”, é evidente que nesta última situação (portanto, onde o modelo democrático-burguês de transformação capitalista encontrou efetiva vigência histórica) prevaleceu uma ampla correlação entre radicalismo burguês, reformismo e “pressões dentro da ordem” de origem extraburguesa (procedentes do proletariado urbano e rural ou das “massas populares”). A situação de classe da burguesia como um todo comportava essa correlação, pois ela repousava em uma base material de poder de classe suficientemente “integrada”, “estável” e “segura” para permitir (e, mesmo, para exigir) a livre manifestação de dinamismos econômicos, sociais e políticos que só poderiam ser desencadeados pelas classes assalariadas. Em consequência, o radicalismo burguês acabou refletindo, no nível estrutural-funcional tanto quanto no nível ideológico, pressões que tinham uma origem operária, proletária ou sindical, as quais, com frequência, transcendiam e colidiam com os interesses de classe especificamente burgueses. Isso tornou, muitas vezes, ambíguas as relações do radicalismo burguês com o socialismo reformista (e chegou a fomentar, mesmo, o que Lênin caracterizou como uma “infecção burguesa” do marxismo). Doutro lado, as “pressões contra a ordem” encontravam tolerância no plano ideológico e mesmo na esfera prática, objetivando-se socialmente através do movimento sindical, dos partidos operários etc. As relações dessas pressões com o radicalismo burguês também eram, sem dúvida, fortemente ambíguas e complexas. O radicalismo burguês podia avançar o suficiente para absorver, entre tais pressões, pelo menos aquelas que fossem compatíveis com os tipos de “revolução dentro da ordem” que poderia advogar, o que lhe dava certa elasticidade para adaptar a ordem social competitiva a certos interesses revolucionários da classe operária e, até, dos setores destituídos. Não obstante, se tal coisa não sucedesse, nem por isso o conflito de valores e de interesses engendrava, em si e por si mesmo, a confusão entre as duas espécies de pressões de modo que as “pressões dentro da ordem” das classes baixas ou de estratos burgueses ultrarradicais fossem estigmatizadas e banidas por meios repressivos, com fundamento na mera existência e propagação das “pressões contra a ordem”. Por fim, embora seja uma regra o aproveitamento das tensões e conflitos de classes pelos diversos estratos burgueses dominantes, raramente as classes burguesas se viram na contingência de ter de empregar as “pressões dentro da ordem” e as “pressões contra a ordem” da classe operária (ou das massas destituídas) como um expediente normal de autoprivilegiamento em face de outros setores burgueses ou como técnica sistemática na obtenção de vantagens esporádicas. Um comportamento de classe tão elementar e tosco podia ser necessário em momentos de crise do regime de classes, de alteração do padrão de hegemonia burguesa, na competição política associada aos processos eleitorais, em “frentes comuns” por ou contra certas políticas governamentais etc. Todavia, o grau de diferenciação vertical e de integração horizontal das várias classes burguesas punha a dominação burguesa e o poder burguês em bases materiais e políticas mais firmes, elásticas e estáveis. Como consequência geral, o padrão de reação societária às “pressões de baixo para cima”, a favor ou contra a ordem existente, podia ser, normalmente, mais tolerante, flexível e democrático. Certos valores da democracia burguesa se incorporam, pois, aos requisitos materiais, legais e políticos da própria existência, continuidade e fortalecimento da dominação burguesa e do poder burguês. O consenso burguês podia, por conseguinte, “abrir” a ordem existente àquelas pressões, como parte de uma rotina que conferia à cidadania, às franquias políticas ligadas à ordem legal, à participação política das massas etc. o caráter de algo essencial para a estabilidade e a normalidade de uma sociedade nacional.”

 

 

“Os três processos mencionados dão conta das grandes transformações históricas sofridas pela organização do poder burguês e da sociedade de classes na última metade do século. A unificação e a centralização do poder de classe da burguesia explicam como se altera a solidariedade das classes e dos estratos de classe burgueses; e como emerge, se irradia e se consolida um novo padrão compósito de hegemonia dessas classes e estratos de classe. A contrarrevolução burguesa, por sua vez, explica como se passa do econômico e do social para o político: como as classes e os estratos de classe burgueses impuseram às demais classes sua própria transformação econômica, social e política, a qual acarretava profundas alterações nos padrões institucionais de relações de classes, de organização do Estado nacional e de vinculação dos interesses de classe burgueses com os ritmos econômicos, sociais e políticos de integração da nação como um todo. No plano histórico, passava-se, pura e simplesmente, de uma ditadura de classe burguesa dissimulada e paternalista para uma ditadura de classe burguesa aberta e rígida. Trata-se de uma passagem aparentemente irrelevante, especialmente para os observadores externos, acostumados à ideia de que “eles se entendem”, ou de que “certos países só podem ser governados assim”. Todavia, uma realidade inalteravelmente terrível e chocante pode sofrer gradações para melhor e para pior. Os que têm de arcar com os custos econômicos, sociais e políticos da passagem podem ver-se em um estado de privação relativa e de opressão sistemática ainda mais agudo, o que revela se a oscilação se deu em benefício de uns e contra outros. Como a economia, a sociedade e o Estado se encontraram envolvidos por igual em tal passagem, não houve área ou esfera em que as consequências negativas, passageiras ou persistentes, deixassem de se refletir: depressão de salários e da segurança no emprego, e compressão do direito de greve e de protesto operário; depressão dos níveis de aspiração educacional das “classes baixas”, e compressão das “oportunidades de educação democrática”; depressão dos direitos civis e dos direitos políticos, e compressão política e policial-militar etc.

As palavras “deprimir” e “comprimir’’ exprimem, muito bem, a substância das relações da nova sociedade civil, constituída pelos cidadãos válidos, em sua quase totalidade burgueses, com o Estado nacional e com a nação. Pois a ditadura de classe aberta e rígida exige, para o seu “equilíbrio ideal” estático e dinâmico, um esvaziamento dos controles reativos e do poder relativo de autodefesa ou de retaliação seja das classes dominadas, em geral, seja dos setores dissidentes das classes dominantes. Se, por sua própria natureza, os três processos aprofundavam o entrosamento do poder burguês com o Estado nacional, a instauração e a continuidade de uma ditadura de classe aberta e rígida convertiam o Estado nacional no núcleo do poder burguês e na viga mestra da rotação histórica, que se operou quando a burguesia evoluiu da autodefesa para a autoafirmação e o autoprivilegiamento. Para o bem e para o mal, é através do Estado nacional, portanto, que essa ditadura de classe iria mostrar quais são os parâmetros políticos do modelo autocrático-burguês de transformação capitalista.

Se as demais condições são mantidas ou se elas se alteram muito pouco, a “aceleração da revolução burguesa” (que é o efeito histórico da industrialização intensiva e da eclosão do capitalismo monopolista) só pode levar ao incremento e à agravação das desigualdades econômicas, sociais e políticas preexistentes. É fácil observar como isso se concretizou (assunto de que já tratamos no capítulo anterior). Todavia, é mais difícil tirar de tais observações as conclusões políticas pertinentes.

Em primeiro lugar, essa relação entre a aceleração da revolução burguesa e a distribuição da riqueza, do prestígio social e do poder numa sociedade de classes pressupõe que a distância econômica, sociocultural e política entre a sociedade civil e a nação não diminui, mas aumenta de forma desordenada e em todas as direções, no decurso do processo. O enrijecimento da ordem constitui um processo automático e prévio, em semelhante situação: o Estado nacional precisa assumir novas funções, diferenciar as antigas ou cumpri-las com maior rigor, o que implica intensificar a opressão indireta e a repressão direta, inerentes à “manutenção da ordem”. No contexto em que as coisas se deram, como fruto de um movimento burguês contrarrevolucionário, a autodefesa da burguesia associou-se ao recurso à guerra civil, que não se concretizou por falta de resposta e, ainda, porque o golpe de Estado revelou-se uma técnica suficiente de transição política. O enrijecimento da ordem evoluiu naturalmente, assim, para uma excessiva e desnecessária “demonstração de força” preventiva. O que vinculou a militarização de funções repressivas do Estado e a preservação da segurança nacional com a criação de um novo status quo, necessário à instauração e à persistência da ditadura de classes aberta e rígida. A curto prazo, cabia ao Estado nacional “deprimir e comprimir” o espaço político e jurídico de todas as classes ou estratos de classe (mesmo burgueses e pró-burgueses) que se erguessem ostensivamente contra a transição, opondo-se a ela por meios violentos. A médio e a largo prazos, cabia-lhes uma tarefa mais complexa: criar o arcabouço legal de uma ordem social competitiva que deve possuir reguladores especiais contra a “guerra revolucionária”, a “agitação política” e a “manipulação subversiva do descontentamento”. O elemento saliente, nesta diferenciação, não é a institucionalização da violência (o mesmo tipo de violência e sua institucionalização estavam presentes na armadura anterior do arsenal opressivo e repressivo do Estado nacional). Mas a amplitude e a qualidade das funções e subfunções que ligam o Estado nacional e a militarização de muitos de seus serviços e estruturas a uma concepção de segurança fundada na ideia de guerra permanente de umas classes contra as outras. Ao contrário do que podia ocorrer sob uma ditadura de classe dissimulada e paternalista, a nova forma de ditadura de classe não admite ambiguidades. Embora a dissimulação continue a jogar o seu papel, pois não se podem designar claramente as coisas nem pintar a realidade como ela se apresenta, é impossível evitar a cara definição dos inimigos de classe e das situações reais ou potenciais de conflito de classe, sem comprometer seriamente a própria eficácia dos “órgãos de segurança do Estado”. Doutro lado, uma filosofia militante e agressiva de defesa da ordem impõe correlações mais ou menos rígidas entre “crime, punição” e “formas de punir”. É nesse plano, que muitos consideram policial-militar, mas que é jurídico e político também, que a autocracia burguesa coloca seu ideal de Estado em conexão histórica com o fascismo e o nazismo. O Estado não tem por função essencial proteger a articulação política de classes desiguais. A sua função principal consiste em suprimir qualquer necessidade de articulação política espontânea nas relações entre as classes, tornando-a desnecessária, já que ele próprio prescreve, sem apelação, a ordem interna que deve prevalecer e tem de ser respeitada.”

 

 

“Dois artifícios possibilitaram transpor o consenso burguês do plano da sociedade civil para o da nação como um todo. Primeiro, a impregnação militar e tecnocrática dos serviços, estruturas e funções do Estado. Essa impregnação não só elevou o volume da burguesia burocrática como ampliou sua participação direta na condução dos “negócios do Estado”. Além disso, ela também redundou em controles mais específicos, flexíveis e eficientes do funcionamento e da transformação do Estado por parte dos estratos dominantes das classes burguesas. Segundo, a modernização e a racionalização dos processos de articulação política dos estratos dominantes das classes burguesas entre si e com o Estado. Os interesses burgueses superaram, assim, sua debilidade congênita na esfera política. Deixaram de “ter de pressionar” o Estado por vias indiretas e precárias (através do Parlamento, dos meios de comunicação de massa, da manipulação de greves e de agitações populares etc.), conduzindo os ajustamentos necessários a formas de exteriorização menos visíveis, mas que se adaptam melhor a requisitos técnicos e políticos de rapidez, sigilo, eficácia, segurança, economia etc. Quanto ao que representa o deslocamento político em questão, é óbvio que contém uma dupla evolução: 1) dentro dos tempos da revolução burguesa, a revolução econômica foi dissociada da revolução nacional, sendo esta relegada a segundo plano; 2) o Estado capitalista dependente, ao modernizar-se, converteu-se em elo do tempo econômico da revolução burguesa, sendo levado a negligenciar e a omitir, sistematicamente, suas funções econômicas diretamente vinculadas à revolução nacional ou à sua aceleração. As classes e os estratos de classe burgueses patrocinaram e estão patrocinando, portanto, um intervencionismo estatal sui generis. Controlado, em última instância, pela iniciativa privada, ele se abre, em um polo, na direção de um capitalismo dirigido pelo Estado, e, em outro, na direção de um Estado autoritário. Ambas as noções são ambíguas. Contudo, elas traduzem uma realidade concreta. O Estado adquire estruturas e funções capitalistas, avançando, através delas, pelo terreno do despotismo político, não para servir aos interesses “gerais” ou “reais” da nação, decorrentes da intensificação da revolução nacional. Porém, para satisfazer o consenso burguês, do qual se tornou instrumental, e para dar viabilidade histórica ao desenvolvimentismo extremista, a verdadeira moléstia infantil do capitalismo monopolista na periferia.”

 

 

Essa discussão põe em relevo aonde levam os três processos (a unificação e a centralização do poder de classe da burguesia; e a contrarrevolução burguesa): o modelo típico de Estado capitalista moderno na forma em que pode surgir na periferia, quando o capitalismo dependente e a sociedade de classes correspondente atingem a fase de industrialização intensiva e de transição para o capitalismo monopolista. Nessa forma, ele aparece como um Estado nacional complexo e heterogêneo, que contém várias camadas históricas, como se refletisse os pontos extremos, de partida e de chegada, das transformações por que passou, originariamente, o Estado capitalista nas sociedades hegemônicas e centrais. Ele combina estruturas e dinamismos (funcionais e históricos) extremamente contraditórios, aliás de acordo com a própria situação histórica das burguesias dependentes e com a organização da sociedade de classes sob o capitalismo dependente, também extremamente contraditórias. O fundamento dessa complicação e dessa complexidade especiais é conhecido e já foi apontado; as classes burguesas têm de afirmar-se, autoproteger-se e privilegiar-se através de duas séries de antagonismos distintos: os que se voltam contra as classes operárias e as classes destituídas (que se poderiam considerar como o “inimigo principal”); e os que atingem as burguesias e os focos de poder das sociedades capitalistas hegemônicas e do sistema capitalista mundial (que se poderia entender como “aliado principal”). As contradições são intrínsecas às estruturas e aos dinamismos da sociedade de classes sob o capitalismo dependente; e minam a partir de dentro e a partir de fora o padrão de dominação burguesa, o poder real da burguesia, os padrões de solidariedade de classes e de hegemonia de da burguesia, e o Estado capitalista periférico e dependente.4

De acordo com a descrição apresentada, a versão final dessa forma de Estado, a que se está constituindo e consolidando com a irradiação do capitalismo monopolista pelas áreas da periferia do mundo capitalista que comportam semelhante desenvolvimento, é a de um Estado nacional sincrético. Sob certos aspectos, ele lembra o modelo ideal nuclear, como se fosse um Estado representativo, democrático e pluralista; sob outros aspectos, ele constitui a expressão acabada de uma oligarquia perfeita, que se objetiva tanto em termos paternalistas-tradicionais quanto em termos autoritários e modernos; por fim, vários aspectos traem a existência de formas de coação, de repressão e de opressão. Ou de institucionalização da violência e do terror, que são indisfarçavelmente fascistas. Quando se fala em conexão com “ditadura de classe aberta e rígida” em relação a esse tipo de Estado, não se pode ter em mente, portanto, nada que lembre as chamadas “ditaduras políticas tradicionais” ou, pura e simplesmente, os modelos mais elementares de ditadura política, que se realizam mediante o “controle absoluto dos meios tradicionais de coação”. O Estado se diferencia e, ao mesmo tempo, satura sua estrutura constitucional e funcional de uma maneira tal que fica patente ou que se pratica, rotineiramente, uma democracia restrita, ou que se nega a democracia. Ele é, literalmente, um Estado autocrático e oligárquico. Preserva estruturas e funções democráticas, mas para os que monopolizam simultaneamente o poder econômico, o poder social e o poder político, e usam o Estado exatamente para criar e manter uma dualidade intrínseca da ordem legal e política, graças à qual o que é oligarquia e opressão para a maioria submetida, é automaticamente democracia e liberdade para a minoria dominante. Doutro lado, não se pode dizer que tal ditadura de classe transitória e que culmine num sistema político destinado a esvair-se, paralelamente à eliminação dos riscos ou ameaças que “perturbem a ordem estabelecida”. Na verdade, o que entra em jogo é um processo de reorganização das estruturas e funções do Estado nacional, nas condições historicamente dadas de relações de classe. Estado e ordem legal e política transformam-se concomitantemente, adaptando-se cada um, de per si e reciprocamente, a condições externas e internas dotadas de certa continuidade. Por fim, seria inútil “depurar” analiticamente esse Estado. Não existe uma linha pura e única de compreensão e descrição do Estado capitalista dependente e periférico. Produto da situação mais contraditória e anárquica que qualquer burguesia poderia viver, ele é uma composição sincrética e deve ser retido como tal. Precisa-se, no mínimo, recorrer à Antropologia, para se entender cabalmente esse Estado nacional. De outra maneira, é impossível descobrir-se como uma instituição pode ordenar-se e ser operativa, apesar de tantos elementos e influências em choque, que se atritam, se negam e se destroem uns aos outros, embora se objetivem com certa unidade, compatível com seu uso social pelo homem. Ele é Leviathan no verso, e Behemouth no reverso, mas só existe e possui algum valor porque as duas faces estão fundidas uma à outra, como a cara e a coroa de uma moeda.5

Esse Estado nacional não poderia nem deveria surgir na crista da revolução burguesa. No entanto, nas condições do desenvolvimento capitalista dependente, ele constitui uma exigência mesma dos ritmos históricos, sociais e políticos que essa revolução assume na periferia (dentro da Europa e fora dela). A industrialização que se atrasa, indefinidamente, no tempo, que se descola do desenvolvimento do mercado interno, da revolução agrária e da revolução urbana, ou que se dá sem que tais processos adquiram certa velocidade e intensidade, e que se compensa e avança graças ao intervencionismo estatal e ao empuxo externo dos dinamismos do capitalismo mundial, fragmenta a revolução burguesa. O que possuía enorme sincronia, pelo menos com referência a certos países da Europa e, em grande parte, aos Estados Unidos, na periferia tende a suceder de modo pulverizado e por etapas mais ou menos distantes umas das outras. E as transições, à medida que o capitalismo amadurece e se moderniza, ficam crescentemente mais difíceis, perigosas ou, até, cataclísmicas. Em consequência, o Estado nacional acaba prevalecendo como um fator de compensação, de fato o único que pode ser mobilizado pelas burguesias da periferia e empregado compactamente na solução de tais dilemas e na superação da debilidade orgânica que os origina. Não é sem razão, pois, que ele tenha as duas faces mencionadas antes e que, no extremo do processo, mescle tão monstruosamente ardil, força bruta e racionalidade.

Em última instância, é nesse modelo autocrático de Estado capitalista que acaba residindo a “liberdade” e a “capacidade de racional” da burguesia dependente. Ele confere às classes e aos estratos de classe burgueses não só os fundamentos da existência e da persistência da dominação e do poder burgueses, depois de atingido um ponto crítico à sobrevivência da sociedade de classes. Mas, ainda, o que é mais importante: ele lhes dá o espaço político de que elas carecem para poder intervir, deliberada e organizadamente, em função de suas potencialidades relativas, no curso histórico da revolução burguesa, atrasando ou adiantando certos ritmos, bem como cindindo ou separando, entre si, seus tempos diferenciados (econômico, social e político). Sem o controle absoluto do poder, que as classes burguesas podem tirar da constituição desse Estado, seria inconcebível pensar-se como elas conseguem apropriar-se, com tamanha segurança, da enorme parte que lhes cabe no excedente econômico nacional; ou, ainda, como elas logram dissociar; quase a seu bel-prazer, democracia, desenvolvimento capitalista e revolução nacional.”

4 O mesmo tipo de impacto ocorre com as classes operárias e destituídas. Não consideramos necessário discutir, neste trabalho, todos os aspectos da situação.

5 Ambos os conceitos são empregados, em seu sentido e contraste clássicos, por Hobbes. Gostaríamos de enfatizar, porém, que quanto às implicações do segundo termo temos em mente o importante estudo de F. Neumann sobre o nazismo.

 

 

“Se isso fosse possível, as classes burguesas e suas elites poderiam fazer uma típica “revolução dentro da ordem”, orientada contra a dominação imperialista externa, o capitalismo dependente e o desenvolvimento desigual interno. Elas sairiam de tal processo, se tivessem êxito, trazendo nas mãos um Estado democrático e a bandeira de um nacionalismo revolucionário. O fato de se verem condenadas à contrarrevolução permanente conta, por si mesmo, outra história — e toda a história, que se desenrolou ou está se desenrolando. A unificação e a centralização do poder real das classes burguesas não atingiram níveis suficientemente altos e profundos mesmo com o auxílio, ulterior, do seu Estado autocrático e do que ele representa, como fator de reforço e de estabilidade da ordem a ponto de mudarem o significado dos interesses especificamente burgueses em termos das outras classes, da nação como um todo e dos centros de dominação imperialista externa. Por conseguinte, as classes burguesas continuam tão presas dentro de seus casulos, isoladas da realidade política de uma sociedade de classes e submetidas a partir de fora, como estavam há vinte ou há quarenta anos. Depois de tudo e apesar de tudo, elas se alienam das demais classes, da nação e da “revolução brasileira” pelo mesmo particularismo de classe cego, o qual as leva a perceber as classes operárias e as classes destituídas em função de uma alternativa estreita: ou meros tutelados; ou inimigos irreconciliáveis. De outro lado, elas não contam com uma base material de poder para se autoafirmarem e se autoprivilegiarem, de modo pleno, a não ser para dentro, pois seu famoso “Estado autoritário” (eufemismo que circula, reveladoramente, no exterior) não produz os mesmos efeitos para fora, especialmente diante das exigências impreteríveis das multinacionais, das nações capitalistas hegemônicas ou de sua superpotência e da comunidade internacional de negócios. Aí, até as funções autoprotetivas do Estado autocrático-burguês são antes (ou muito pouco ativas), pois ele carece de um suporte interno mais amplo, que transcenda ao particularismo de classe burguês e introduza na barganha, mediada ou garantida por via estatal, o peso de um countervailing power efetivamente nacional. Se não é um simples biombo, ele só constrange e modifica as disposições do “aliado principal” em matérias nas quais este consente em sofrer ou “negociar” inibições impostas.”

 

 

“Uma avaliação sociológica crítica do modelo autocrático-burguês de transformação capitalista tem de levar em conta esses aspectos e deles partir. Eles nos põem diante da problemática da ditadura de classes total e absoluta, quando ela é controlada pela burguesia e com vistas, exclusivamente, à continuidade do capitalismo e do Estado capitalista. Mas, com algo específico. Trata-se do capitalismo dependente na era do imperialismo total, num momento de crise mundial da periferia do sistema capitalista e como parte de uma luta de vida e morte pela sobrevivência da dominação burguesa. Outras burguesias, mesmo as que cabem por inteiro no “modelo clássico” de revolução burguesa, poderiam ser estigmatizadas, em função de seu individualismo egoístico, de seu particularismo agressivo ou de sua violência “racional”. Com tudo isso, porém, tais burguesias não se achavam desfocadas, a um tempo, da dinâmica do regime de classes e da socialização política requerida pelo enquadramento nacional das relações de classes. Ambas as realidades se tornavam presentes nos interesses de classe, na consciência de classe, na solidariedade de classe e nos padrões de dominação de classes das referidas burguesias, revelando-se através de impulsões igualitárias, democráticas e nacionalistas, que punham tanto o radicalismo quanto o consenso burgueses em interação constante com os interesses ou valores de outras classes e com as necessidades fundamentais da nação como um todo. Aqui estamos em face de uma burguesia dependente, que luta por sua sobrevivência e pela sobrevivência do capitalismo dependente, confundindo as duas coisas com a sobrevivência da “civilização ocidental cristã”. Em suas mãos, o individualismo egoístico, o particularismo agressivo e a violência “racional” só se voltam para um fim: a continuidade do tempo econômico da revolução burguesa, ou seja, em outras palavras, a intensificação da exploração capitalista e da opressão de classe, sem a qual ela é impossível. Esse, aliás, é o único ponto para o qual convergem os mais díspares e contrastantes interesses e valores burgueses, constituindo-se, por isso, no polo histórico onde se unem todas as “forças vivas”, nacionais e estrangeiras, da revolução burguesa sob o capitalismo dependente. Ou “aceleração do desenvolvimento econômico”, ou “fim do mundo”, o que não deixa de ser uma verdade histórica, pois a aceleração do desenvolvimento econômico e a sua impossibilidade são os limites que separam a existência do capitalismo dependente de sua destruição final.”

A Revolução Burguesa no Brasil: Ensaio de Interpretação Sociológica (Parte III), de Florestan Fernandes

Editora: Contracorrente

Opinião: ★★★☆☆

ISBN: 978-85-6922-074-9

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Páginas: 432

Sinopse: Ver Parte I



“É conhecida a extraordinária importância estratégica do Estado, quer para o desenvolvimento capitalista na periferia, quer para um tipo de dominação burguesa que se singulariza pela institucionalização política da autodefesa de classe (para a preservação e a ampliação de privilégios econômicos; para a política econômica posta calculadamente a serviço do alargamento da base material do poder burguês; ou para ambas). A natureza de todas essas conexões em função da dominação burguesa nem sempre é evidente. Contudo, em nações capitalistas nas quais as funções classificadoras do mercado e as funções estratificadoras do sistema de produção são tão limitadas, a ponto de o grosso da população permanecer excluído do funcionamento normal do regime de classes e da ordem social competitiva, somente as classes altas e médias chegam a participar efetivamente das vantagens proporcionadas pelo desenvolvimento capitalista. Essa participação é, em si mesma, um privilégio e só se pode manter na medida em que outros privilégios, vitais para as situações de classe alta e média, são intocáveis. A dominação da burguesia irradia-se de modo muito fraco da minoria dominante para o resto da sociedade (ao contrário do que sucedeu nas nações capitalistas hegemônicas, onde tal irradiação serviu de embasamento econômico para a “democracia burguesa”). Ela se concentra no tope, nos 10, 15, 20 ou 25% que têm rendas altas, monopolizam a cultura e o poder político, o que faz com que o poder político indireto, nascido do poder econômico puro e simples, e o poder especificamente político se confundam, atingindo o máximo de aglutinação, e o Estado se constitua no veículo por excelência do poder burguês, que se instrumentaliza através da maquinaria estatal até em matérias que não são nem administrativas nem políticas. Isso explica a facilidade com que, no Brasil, as classes possuidoras e privilegiadas passaram tão rapidamente, em 1964, da automobilização social para a ação militar e política; como o Estado nacional foi posto a serviço de fins particularistas da iniciativa privada; e por que as várias elites das classes dominantes (econômicas, militares, políticas, judiciárias, policiais, profissionais, culturais, religiosas etc.) encontraram tão depressa um foco de unificação institucional de suas atividades. O Estado aparece, portanto, como o segundo elemento, na ordem dos fatores de importância estratégica para a solução da crise do poder burguês, no amplo movimento da burguesia para se assegurar o êxito da transição para o capitalismo monopolista. Isso se se tomar a questão em termos da criação de uma base econômica adequada à dominação burguesa sob o capitalismo monopolista. Quando se vê a mesma questão em termos dos fundamentos políticos dessa dominação, a ordem dos fatores precisaria ser alterada. Os requisitos políticos do desenvolvimento econômico sob o capitalismo monopolista dependente, como já foi indicado acima, exigem um tão elevado grau de estabilidade política (pelo menos nas fases de eclosão e de consolidação, que nos é dado observar) que só uma extrema concentração do poder político estatal é capaz de garantir. Doutro lado, nos momentos mais críticos da transição, que ainda não foram vencidos, operou-se uma dissociação acentuada entre desenvolvimento econômico e desenvolvimento político. Isso fez com que a restauração da dominação burguesa levasse, de um lado, a um padrão capitalista altamente racional e modernizador de desenvolvimento econômico; e, concomitantemente, servisse de pião a medidas políticas, militares e policiais, contrarrevolucionárias, que atrelaram o Estado nacional não à clássica democracia burguesa, mas a uma versão tecnocrática da democracia restrita, a qual se poderia qualificar, com precisão terminológica, como uma autocracia burguesa.”

 

 

“O que se pode dizer, de um ponto de vista geral, é que sob o capitalismo monopolista o desenvolvimento desigual da periferia se torna mais perverso e “envenenado”. Não se voltando contra a dupla articulação, ele mantém, alarga e aprofunda a dependência, ao mesmo tempo em que agrava o subdesenvolvimento relativo (malgrado os efeitos de demonstração em contrário). Além disso, como também desencadeia pressões fortes no sentido de crescer aceleradamente com “recursos internos”, infunde novas distorções estruturais e dinâmicas no processo de acumulação capitalista. Isso se revela particularmente grave em duas esferas: 1) as fortes compressões conjunturais dos salários dos trabalhadores; 2) desinflatores e outras técnicas de transferência de renda que amparam, sistematicamente, os que podem “fazer poupança”, isto é, todos aqueles que estão fora e acima da economia popular. Em contraste, o pequeno e exclusivo exército dos “ricos”, “poderosos” e “modernos” — os grupos de rendas altas e muito altas —, além de participar direta e desigualmente da prosperidade induzida de fora, encontra novas facilidades de elevação da renda, graças a uma política econômica e financeira delineada para fazer dele um dos eixos dinâmicos da transição. Ele se projeta, assim, naquilo que se poderia descrever como a “conexão positiva” do padrão de desenvolvimento capitalista-monopolista dependente. Forma os estratos dos consumidores dos artigos de luxo e dos médios ou grandes investidores; e encarna os desequilíbrios que esse novo padrão de desenvolvimento introduz em estruturas econômicas, sociais e políticas que pareciam não suportar maiores incrementos das desigualdades de classe, de região ou de raça. (...)

Nas condições em que se está dando, a transição para o capitalismo monopolista impõe tendências de concentração social da riqueza que não podem ser nem transitórias nem atenuadas com o tempo. Poderá haver uma diluição dos contrastes mais sombrios na distribuição da renda, especialmente quando os assalariados e as classes médias começarem a fazer pressão política, através dos sindicatos e de outros meios. Contudo, aquelas tendências irão persistir, contribuindo para preservar e até agravar os fatores internos que tomam a articulação de economias desiguais, a partir de dentro, uma realidade inelutável. É previsível que aí está o fundamento estrutural e dinâmico para que as grandes corporações (estatais, nacionais ou estrangeiras), os “impérios econômicos” e as metrópoles se transformem em formidáveis núcleos de satelitização de grandes, pequenas e médias cidades e do campo, ou, em outras palavras, do resto da economia e da sociedade brasileira. Do mesmo modo, nas condições em que se está dando, a transição para o capitalismo monopolista não pode concorrer para a autonomização do desenvolvimento capitalista. Ele captura tudo — o mercado interno, o vasto sistema de produção capitalista em expansão, o comércio internacional de matérias-primas e utilidades extraídas ou produzidas no Brasil, parcelas do excedente econômico geradas internamente — para os dinamismos e os controles econômicos das economias capitalistas centrais e do mercado capitalista mundial. Por isso, o que se pensa ser o “momento de predominância estrangeira” não poderá ser eliminado ou atenuado no futuro (próximo ou remoto). Mais que sob o capitalismo competitivo, a drenagem agora se faz sob a estratégia da bola de neve: ela se acelera, se avoluma e se intensifica à medida que o desenvolvimento capitalista interno se acelera, se avoluma e se intensifica. Nesse sentido, até as atividades econômicas diretas do Estado nacional são satelitizadas, pois são absorvidas pela estratégia externa de incorporação e por seus desdobramentos internos. E a iniciativa privada interna, em qualquer proporção significativa, da agricultura, da criação, da mineração, ao comércio interno e externo, à produção industrial, aos bancos e aos serviços, terá de crescer sob o influxo dos dinamismos e dos controles econômicos manipulados, direta ou indiretamente, a partir do desenvolvimento das economias capitalistas centrais e do mercado capitalista mundial. Chegou-se, pois, a um ponto em que a articulação no plano internacional tende a esgotar todos os limites. Sob o capitalismo monopolista, o imperialismo torna-se um imperialismo total. Ele não conhece fronteiras e não tem freios. Opera a partir de dentro e em todas as direções, enquistando-se nas economias, nas culturas e nas sociedades hospedeiras. A norma será: “o que é bom para a economia norte-americana é bom para o Brasil” (e assim por diante). Só que nunca se estabelecerão as diferenças entre a economia norte-americana (ou as outras economias capitalistas centrais) e a economia brasileira. Nessa situação, o industrialismo e a prosperidade capitalista virão finalmente, mas trazendo consigo uma forma de articulação econômica às nações capitalistas hegemônicas e ao mercado capitalista mundial que jamais poderá ser destruída, mantidas as atuais condições, dentro e através do capitalismo.”

 

 

Enquanto existir capitalismo haverá classes sociais e os mecanismos básicos de relações de classes terão de passar por processos de acomodação, competição e conflito das classes entre si. A dependência e o subdesenvolvimento não eliminam esse fato. Apenas introduzem elementos novos na formação e na manifestação de tais processos, que se ajustam, assim, à natureza do capitalismo dependente e subdesenvolvido, o qual tende a introduzir maiores desequilíbrios econômicos na base dos antagonismos de classes e controles políticos mais rígidos sobre os seus efeitos. Nada disso pode impedir quer que os antagonismos de classes “cresçam” e se “alterem”, de acordo com as transformações do desenvolvimento capitalista; quer que eles operem, em cada configuração socioeconômica e histórica do capitalismo, como reguladores do comportamento coletivo dos indivíduos, como membros das classes sociais, e das classes sociais, como unidades fundamentais da constituição estrutural e dinâmica íntima da sociedade. Portanto, se houve uma alteração do padrão de desenvolvimento capitalista no Brasil, isso significa que ocorreram, simultaneamente, transformações na base econômica de organização das classes sociais na superestrutura de suas relações entre si (não só em termos de acomodação e de competição, mas também em termos de conflito). O conflito reprimido e encoberto nem por isso deixa de existir, de estar presente nas estruturas e nas relações de classes, ou seja, de expandir-se e de condicionar ou causar as modificações que estamos testemunhando em nossa vida diária. Ainda que a única parte visível do conflito de classes apareça em comportamentos autodefensivos das classes dominantes e no teor agressivo de sua dominação de classe, isso já basta ao sociólogo para fazer o seu diagnóstico e para determinar que os antagonismos de classes estão ativos, fermentando nas estruturas e dinamismos sociais em reelaboração, bem como na história que se está construindo. É típico da sociedade de classes que as probabilidades de ação econômica, social e política sejam afetadas pela desigualdade das classes. Os antagonismos nem sempre podem subir à tona. Em dados momentos, essa desigualdade confere às classes que detêm o poder a faculdade de tomar iniciativas e até de usar, em seu proveito, ações agressivas de cunho autodefensivo, sem que as demais classes disponham da possibilidade de responder automaticamente, empregando por sua vez ações simétricas de agressão autodefensiva.”

 

 

A relação entre a dominação burguesa e a transformação capitalista é altamente variável. Não existe, como se supunha a partir de uma concepção europeucêntrica (além do mais, válida apenas para os “casos clássicos de Revolução Burguesa”), um único modelo básico democrático-burguês de transformação capitalista. Atualmente, os cientistas sociais já sabem, comprovadamente, que a transformação capitalista não se determina, de maneira exclusiva, em função dos requisitos intrínsecos do desenvolvimento capitalista. Ao contrário, esses requisitos (sejam os econômicos, sejam os socioculturais e os políticos) entram em interação com os vários elementos econômicos (naturalmente extra ou pré-capitalistas) e extraeconômicos da situação histórico-social, característicos dos casos concretos que se considerem, e sofrem, assim, bloqueios, seleções e adaptações que delimitam: 1) como se concretizará, histórico-socialmente, a transformação capitalista; 2) o padrão concreto de dominação burguesa (inclusive, como ela poderá compor os interesses de classe extraburgueses e burgueses ou, também, os interesses de classe internos e externos, se for o caso e como ela se impregnará de elementos econômicos, socioculturais e políticos extrínsecos à transformação capitalista); 3) quais são as probabilidades que tem a dominação burguesa de absorver os requisitos centrais da transformação capitalista (tanto os econômicos quanto os socioculturais e os políticos) e, vice-versa, quais são as probabilidades que tem a transformação capitalista de acompanhar, estrutural, funcional e historicamente, as polarizações da dominação burguesa, que possuam um caráter histórico construtivo e criador.”

 

 

A outra presunção errônea diz respeito à própria essência da dominação burguesa nas economias capitalistas dependentes e subdesenvolvidas. Associaram-se ao imperialismo efeitos de inibição dos elementos políticos do capitalismo dependente (ou, alternativamente, de diferenciação regressiva do poder burguês) que não são compatíveis com qualquer forma de dominação burguesa e, muito menos, com o tipo de dominação burguesa requerido, especificamente, pelas nações capitalistas dependentes e subdesenvolvidas. Ignorou-se que a apropriação dual do excedente econômico — a partir de dentro, pela burguesia nacional; e, a partir de fora, pelas burguesias das nações capitalistas hegemônicas e por sua superpotência — exerce tremenda pressão sobre o padrão imperializado (dependente e subdesenvolvido) de desenvolvimento capitalista, provocando uma hipertrofia acentuada dos fatores sociais e políticos da dominação burguesa. A extrema concentração social da riqueza, a drenagem para fora de grande parte do excedente econômico nacional, a consequente persistência de formas pré ou subcapitalistas de trabalho e a depressão medular do valor do trabalho assalariado, em contraste com altos níveis de aspiração ou com pressões compensadoras à democratização da participação econômica, sociocultural e política produzem, isoladamente e em conjunto, consequências que sobrecarregam e ingurgitam as funções especificamente políticas da dominação burguesa (quer em sentido autodefensivo, quer numa direção puramente repressiva). Criaram-se e criam-se, desse modo, requisitos sociais e políticos da transformação capitalista e da dominação burguesa que não encontram contrapartida no desenvolvimento capitalista das nações centrais e hegemônicas (mesmo onde a associação de fascismo com expansão do capitalismo evoca o mesmo modelo geral autocrático-burguês). Sob esse aspecto, o capitalismo dependente e subdesenvolvido é um capitalismo selvagem e difícil, cuja viabilidade se decide, com frequência, por meios políticos e no terreno político. E, ao contrário do que se supôs e ainda se supõe em muitos círculos intelectuais, é falso que as burguesias e os governos das nações capitalistas hegemônicas tenham qualquer interesse em inibir ou perturbar tal fluxo do elemento político, pelo enfraquecimento provocado das burguesias dependentes ou por outros meios. Se fizessem isso, estariam fomentando a formação de burguesias de espírito nacionalista revolucionário (dentro do capitalismo privado) ou incentivando transições para o capitalismo de Estado e para o socialismo. Estariam, portanto, trabalhando contra os seus interesses mais diretos, que consistem na continuidade do desenvolvimento capitalista dependente e subdesenvolvido.”

 

 

“Chegamos aqui a um ponto geral de enorme importância teórica. As Revoluções Burguesas “retardatárias” da parte dependente e subdesenvolvida da periferia não foram só afetadas pelas alterações havidas na estrutura do mundo capitalista avançado. É certo que as transformações ocorridas nas economias capitalistas centrais e hegemônicas esvaziaram historicamente, de modo direto ou indireto, os papéis econômicos, sociais e políticos das burguesias periféricas. Estas ficaram sem base material para concretizar tais papéis, graças aos efeitos convergentes e multiplicativos da drenagem do excedente econômico nacional, da incorporação ao espaço econômico, cultural e político das nações capitalistas hegemônicas e da dominação imperialista. Aí está o busílis da questão, desse ângulo: o porquê do caráter retardatário das Revoluções Burguesas na periferia dependente e subdesenvolvida do mundo capitalista. Mas há a outra face da medalha. A esse atraso da revolução burguesa corresponde um “avanço da história”. As burguesias que só agora chegaram ao vértice de suas possibilidades — e em condições tão difíceis viram-se patrocinando uma transformação da ordem que perdeu todo o seu significado revolucionário. Ela é parte da “Revolução Burguesa’’ porque se integra a um processo que se prolonga no tempo e se reflete nas contradições das classes que se enfrentam, historicamente, com objetivos antagônicos. No fundo tais burguesias pretendem concluir uma revolução que, para outras classes, encarna atualmente a própria contrarrevolução. A maioria já não é cega, mesmo quando compartilha as “opções burguesas’’, ou se volta abertamente contra elas, identificando-se com as esperanças criadas pelo socialismo, revolucionário ou reformista.

Nessas condições, há uma coexistência de revoluções antagônicas. Uma, que vem do passado e chega a termo sem maiores perspectivas. Outra, que lança raízes diretamente sobre “a construção do futuro no presente”. Não se deve ignorar — nem descritiva nem interpretativamente — as implicações de tal fato e as repercussões que um encadeamento dessa natureza desata na esfera concreta das relações de classes. Ao contrário do chavão corrente, as burguesias não são, sob o capitalismo dependente e subdesenvolvido, meras “burguesias compradoras” (típicas de situações coloniais e neocoloniais, em sentido específico). Elas detêm um forte poder econômico social e político, de base e de alcance nacionais; possuem o controle da maquinaria do Estado nacional; e contam com suporte externo para modernizar as formas de socialização, de cooptação, de opressão ou de repressão inerentes à dominação burguesa. Torna-se, assim, muito difícil deslocá-las politicamente através de pressões e conflitos mantidos “dentro da ordem”; e é quase impraticável usar o espaço político, assegurado pela ordem legal, para fazer explodir as contradições de classe, agravadas sob as referidas circunstâncias. O “retardamento” da revolução burguesa, na parte dependente e subdesenvolvida da periferia, adquire assim uma conotação política especial. A burguesia não está só lutando, aí, para consolidar vantagens de classe relativas ou para manter privilégios de classe. Ela luta, simultaneamente, por sua sobrevivência e pela sobrevivência do capitalismo. Isso introduz um elemento político em seus comportamentos de classe que não é típico do capitalismo especialmente nas fases de maturação econômica, sociocultural e política da dominação burguesa na Europa e nos Estados Unidos. Essa variação, puramente histórica, é, no entanto, central para que se entenda o crescente divórcio que se dá entre a ideologia e a utopia burguesas e a realidade criada pela dominação burguesa. Entre a ruína final e o enrijecimento, essas burguesias não têm muita escolha propriamente política (isto é, “racional”, “inteligente” e “deliberada”). O idealismo burguês precisa ser posto de lado, com seus compromissos mais ou menos fortes com qualquer reformismo autêntico, com qualquer liberalismo radical, com qualquer nacionalismo democrático-burguês mais ou menos congruente. A dominação burguesa revela-se à história, então, sob seus traços irredutíveis e essenciais, que explicam as “virtudes” e os “defeitos” e as “realizações históricas” da burguesia. A sua inflexibilidade e a sua decisão para empregar a violência institucionalizada na defesa de interesses materiais privados, de fins políticos particularistas; e sua coragem de identificar-se com formas autocráticas de autodefesa e de autoprivilegiamento. O “nacionalismo burguês” enceta assim um último giro, fundindo a república parlamentar com o fascismo.

Isso nos coloca, certamente, diante do poder burguês em sua manifestação histórica mais extrema, brutal e reveladora, a qual se tornou possível e necessária graças ao seu estado de paroxismo político. Um poder que se impõe sem rebuços de cima para baixo, recorrendo a quaisquer meios para prevalecer, erigindo-se a si mesmo em fonte de sua própria legitimidade e convertendo, por fim, o Estado nacional e democrático em instrumento puro e simples de uma ditadura de classe preventiva. Gostemos ou não, essa é a realidade que nos cabe observar, e diante dela não nos é lícito ter qualquer ilusão. O máximo que se poderia dizer é que a democracia e as identificações nacionalistas passariam por esse poder burguês se a transformação capitalista e a dominação burguesa tivessem assumido (ou pudessem assumir), a um tempo, outras formas e ritmos históricos diferentes.”

 

 

“O principal tema é, naturalmente, de cunho teórico. Ele diz respeito à conexão geral da dominação burguesa com a transformação capitalista, sob o capitalismo dependente e subdesenvolvido na fase mais adiantada da eclosão industrial. Ele impõe, pois, a discussão da forma, da natureza e das funções da dominação burguesa nas condições em que se dá, concretamente, a transição do capitalismo competitivo para o capitalismo monopolista, sem a desagregação do caráter duplamente articulado da economia brasileira e com a intensificação da dominação imperialista externa. Nesta etapa da discussão, não adianta levar em conta alternativas utópicas da burguesia, alimentadas ideologicamente a partir de dentro e de fora (como, por exemplo: que a ampliação e a aceleração do desenvolvimento industrial promoveriam a destruição do “atraso econômico”, eliminando, por si mesmas, a dependência e o subdesenvolvimento; isto é, suprimindo o caráter duplamente articulado da economia brasileira e removendo, portanto, por neutralizações de origem econômica, tecnológica e/ou política, as formas pré ou subcapitalistas de relações econômicas e a dominação imperialista). Na verdade, um maior controle do “atraso econômico” não implica, por si mesmo, supressão da dependência e do subdesenvolvimento. Ele só modifica as condições em que ambos se manifestam, em termos estruturais relativos, o que faz com que a dominação burguesa tenha de ajustar-se, em sua forma, estruturas e dinamismos, a um tipo de transformação capitalista em que a dupla articulação constitui a regra (ou seja, no qual o desenvolvimento desigual interno e a dominação imperialista externa constituem requisitos da acumulação capitalista e de sua intensificação). (...)

A dupla articulação não cria, apenas, o seu modelo de transformação capitalista. Ela também engendra uma forma típica de dominação burguesa, adaptada estrutural, funcional e historicamente, a um tempo, tanto às condições e aos efeitos do desenvolvimento desigual interno quanto às condições e aos efeitos da dominação imperialista externa. É preciso partir dessa constatação fundamental, se se quiser entender, sociologicamente, as aspirações socioeconômicas e as identificações políticas das classes que compõem a burguesia no Brasil — e, em particular, o modo pelo qual essas classes aplicaram, concretamente, suas fórmulas de revolução nacional. É claro que nada impedia — a não ser a polarização conservadora da consciência burguesa, exclusivistamente isolada dentro de seus interesses de classe e de dominação de classe — que a revolução nacional fosse encaminhada de outra maneira, mesmo dentro do capitalismo. Não é difícil, até, conceber uma alternativa “possível”, pela qual a opção burguesa passaria por uma vertente radical, culminando na destruição simultânea do desenvolvimento desigual interno e da dominação imperialista externa. Contudo, isso não ocorreu (a não ser esporadicamente, como manifestações extremistas da “vontade revolucionária” de certas facções das classes burguesas). Quando a crise de transição atingiu o ápice, aquelas definiram não só sua lealdade, mas também suas tarefas políticas e sua missão histórica na direção de um “desenvolvimento acelerado” e de uma “revolução institucional” que implicavam a mesma saída: a revolução nacional continuaria a ser dimensionada pela infausta conjugação orgânica de desenvolvimento desigual interno e dominação imperialista externa.”

 

 

O fato de a revolução nacional estabelecer-se segundo semelhante circuito fechado não invalida nem limita o significado estrutural, funcional e histórico que ela deveria ter e tem para as classes burguesas. O problema crucial, para estas, é a integração nacional de uma economia capitalista em diferenciação e em crescimento, sob as condições e os efeitos inerentes à dupla articulação (isto é, ao desenvolvimento desigual interno e à dominação imperialista externa). Uma comparação que se mantivesse alerta às diferenças essenciais específicas descobriria que, para elas, a revolução nacional possui a mesma importância econômica, social e política que outras revoluções análogas tiveram (ou têm) para as classes burguesas nas nações capitalistas hegemônicas. Ela visa a assegurar a consolidação da dominação burguesa no nível político, de modo a criar a base política necessária à continuidade da transformação capitalista, o que nunca constitui um processo simples (por causa dos conflitos faccionais, no bloco burguês; e da pressão de baixo para cima, visível ou não, das classes operárias e destituídas). Doutro lado, graças às suas conexões estruturais e dinâmicas com a dupla articulação, a revolução nacional sob o capitalismo dependente engendra uma variedade especial de dominação burguesa: a que resiste organizada e institucionalmente às pressões igualitárias das estruturas nacionais da ordem estabelecida, sobrepondo-se e mesmo negando as impulsões integrativas delas decorrentes. Configura-se, assim, um despotismo burguês e uma clara separação entre sociedade civil e nação. Daí resulta, por sua vez, que as classes burguesas tendem a identificar a dominação burguesa com um direito natural “revolucionário” de mando absoluto, que deve beneficiar a parte “ativa” e “esclarecida” da sociedade civil (todos os que se classificam em e participam da ordem social competitiva); e, simetricamente, que elas tendem a reduzir a nação a um ente abstrato (ou a uma ficção legal útil), ao qual só atribuem realidade em situações nas quais ela encarne a vontade política da referida minoria “ativa” e “esclarecida”.

Nesse contexto histórico-social, a dominação burguesa não é só uma força socioeconômica espontânea e uma força política regulativa. Ela polariza politicamente toda a rede de ação auto defensiva e repressiva, percorrida pelas instituições ligadas ao poder burguês, da empresa ao Estado, dando origem a uma formidável superestrutura de opressão e de bloqueio, a qual converte, reativamente, a própria dominação burguesa na única fonte de “poder político legítimo”. Mero reflexo das relações materiais de produção, ela se insere, como estrutura de dominação, no âmago mesmo dessas relações, inibindo, suprimindo ou reorientando, espontânea e institucionalmente, os processos econômicos, sociais e políticos por meio dos quais as demais classes ou quase-classes se defrontam com a dominação burguesa. Isso explica, sociologicamente, como e por que a dominação burguesa se erige no alfa e no ômega não só da continuidade do modelo imperante de transformação capitalista como, ainda, da preservação ou da alteração da ordem social correspondente. Ela se impõe como o ponto de partida e de chegada de qualquer mudança social relevante; e se ergue como uma barreira diante da qual se destroçam (pelo menos por enquanto) todas as tentativas de oposição às concepções burguesas vigentes do que deve ser a “ordem legal” de uma sociedade competitiva, a “segurança nacional”, a “democracia”, a “educação democrática”, o “salário mínimo”, as “relações de classes”, a “liberdade sindical”, o “desenvolvimento econômico”, a “civilização” etc. Desse ângulo, dela provém a opção interna das classes burguesas por um tipo de capitalismo que imola a sociedade brasileira às iniquidades do desenvolvimento desigual interno e da dominação imperialista externa.”

 

 

“A que necessidades econômicas, sociais e políticas responde essa máquina de opressão de classe institucionalizada? As conexões diretas e indiretas, mencionadas acima, indicam claramente que essa forma de dominação burguesa constitui a verdadeira chave para explicar a existência e o aperfeiçoamento da versão que nos coube do capitalismo, o capitalismo selvagem. O “capitalismo possível” na periferia, na era da partilha do mundo entre as nações capitalistas hegemônicas, as “empresas multinacionais” e as burguesias das “nações em desenvolvimento” um capitalismo cuja realidade permanente vem a ser a conjugação do desenvolvimento capitalista com a vida suntuosa de ricas e poderosas minorias burguesas e com o florescimento econômico de algumas nações imperialistas também ricas e poderosas. Um capitalismo que associa luxo, poder e riqueza, de um lado, à extrema miséria, opróbrio e opressão, do outro. Enfim, um capitalismo em que as relações de classe retornam ao passado remoto, como se os mundos das classes socialmente antagônicas fossem os mundos de “nações” distintas, reciprocamente fechados e hostis, numa implacável guerra civil latente.

Ao particularizar essa função global, descobrimos três funções derivadas centrais para essa forma de dominação burguesa. Primeiro, ela visa, acima de tudo, preservar e fortalecer as condições econômicas, socioculturais e políticas através das quais ela pode manter-se, renovar-se e revigorar-se, de maneira a imprimir ao poder burguês, que ela contém, continuidade histórica e o máximo de eficácia. Segundo, ela visa ampliar e aprofundar a incorporação estrutural e dinâmica da economia brasileira no mercado, no sistema de produção e no sistema de financiamento das nações capitalistas hegemônicas e da “comunidade internacional de negócios”, com o objetivo de garantir o máximo de continuidade e de intensidade aos processos de modernização tecnológica, de acumulação capitalista e de desenvolvimento econômico, e de assegurar ao poder burguês meios externos acessíveis de suporte, de renovação e de fortalecimento. Terceiro, ela visa preservar, alargar e unificar os controles diretos e indiretos da máquina do Estado pelas classes burguesas, de maneira a elevar ao máximo a fluidez entre o poder político estatal e a própria dominação burguesa, bem como a infundir ao poder burguês a máxima eficácia política, dando-lhe uma base institucional de autoafirmação, de autodefesa e de autoirradiação de natureza coativa e de alcance nacional.

As duas primeiras funções derivadas pressupõem, na cena brasileira, a defesa consciente, ativa e organizada (quando necessário), pelas classes burguesas, de uma forma especial de solidariedade de classe, que articula mecanicamente, no mesmo padrão de dominação econômica, social, cultural e política, interesses capitalistas “nacionais” e “estrangeiros”, convergentes e divergentes, mais ou menos conservadores e mais ou menos liberais, variavelmente compartilhados pela “grande”, “média” e “pequena” burguesias e pela enorme massa de pessoal estrangeiro das filiais das corporações e outras empresas estrangeiras. Essa modalidade de aglutinação mecânica da solidariedade de classe burguesa acarreta vários efeitos inibidores, tanto no que se refere ao desenvolvimento capitalista quanto no que diz respeito às irradiações da dominação burguesa nos níveis econômico, sociocultural e político.

De um lado, só é essencial, para ela, a defesa e a promoção de interesses comuns da burguesia nacional e internacional (relativos à intocabilidade da propriedade privada, da iniciativa privada e do controle burguês do poder político estatal); e a filtragem de interesses divergentes se na base de concessões mútuas e de ajustamentos recíprocos, que anulam ou reduzem drasticamente o impacto revolucionário dos deslocamentos de interesses burgueses dominantes. Com isso, a própria dominação burguesa interpõe-se entre os antagonismos de classe intrinsecamente burgueses e sua fermentação nas esferas econômica, sociocultural e política. A unidade no bloco de classe adquire um teor altamente conservador, que se pode polarizar, facilmente, em torno de orientações de valor e de comportamento reacionários ou, até, profundamente reacionários. Ela impõe, especialmente em matérias nas quais o poder burguês assume conotações políticas, a adesão de todo o bloco ao que se poderia descrever como principia media dos interesses e valores burgueses nacionais e estrangeiros. Em consequência, tanto o reformismo burguês (sirvam de ilustração os dilemas decorrentes da reforma agrária e da expansão do mercado interno) quanto o movimento democrático-burguês (sirva de ilustração o amortecimento da radicalização das classes médias) são sufocados a partir das compulsões que emanam da própria dominação burguesa e da forma de solidariedade de classe em que ela repousa. E a burguesia nacional converte-se, estruturalmente, numa burguesia pró-imperialista, incapaz passar de mecanismos autoprotetivos indiretos ou passivos para ações frontalmente antiimperialistas, quer no plano dos negócios, quer no plano propriamente político e diplomático.

De outro lado, essa modalidade de aglutinação mecânica da solidariedade de classe burguesa atua como uma fonte de inibições quanto às possibilidades de diferenciação, intensificação e autonomização progressiva do desenvolvimento capitalista interno. Por paradoxal que pareça, certos imperativos universais desse padrão de dominação burguesa compelem as classes burguesas a se omitirem ou, mesmo, a se anularem diante de certas tarefas práticas especificamente burguesas, as quais alargariam a amplitude da revolução nacional em processo e o sentido da própria transformação capitalista. Essa omissão e neutralização das potencialidades criadoras intrínsecas das classes burguesas provocam consequências extremamente nocivas. A dupla articulação faz com que vários focos de desenvolvimento econômico pré ou subcapitalistas mantenham, indefinidamente, estruturas socioeconômicas e políticas arcaicas ou semiarcaicas operando como impedimento à reforma agrária, à valorização do trabalho, à proletarização do trabalhador, à expansão do mercado interno etc. Ela também faz com que a especulação se desenrole num contexto que é antes quase colonial que puramente capitalista, em todas as esferas da vida econômica (embora com predomínio do setor industrial e financeiro; e do capitalismo urbano-industrial sobre o capitalismo agrário). Ela impede também que as estruturas econômicas efetivamente modernas ou modernizadas fiquem expostas a controle societário eficiente, permitindo que a eclosão industrial continue largamente submetida ao velho modelo dos ciclos econômicos, tão destrutivo para o desenvolvimento orgânico de uma economia capitalista integrada em escala nacional. A ausência desse controle societário eficiente confere ainda uma liberdade quase total à “grande empresa”, nacional ou estrangeira, em todos os ramos de negócios, e à devastadora penetração imperialista em todos os meandros da vida econômica brasileira. Portanto, a própria forma de dominação burguesa responde pela alienação das classes burguesas pela anulação de tarefas econômicas, socioculturais e políticas que cabem à burguesia, enquanto o desenvolvimento capitalista representar a fonte de dinamização da revolução nacional. O pior é que isso ocorre em detrimento de processos que não se constituirão espontaneamente na situação histórico-social brasileira. A dupla articulação faz com que, naturalmente, o desenvolvimento desigual interno e a dominação imperialista externa criem e reforcem pontos de estrangulamento estruturais no seio mesmo da transformação capitalista. Para libertar-se do capitalismo dependente e subdesenvolvido a burguesia brasileira precisaria livrar-se, com a maior urgência, do atual padrão de dominação burguesa e de solidariedade de classe. Ele nem sequer é uma relíquia histórica e, como tal, digno de ser arquivado. Ele tem de ser posto no lixo, pois é antes uma armadilha, que tira mais do que dá às classes burguesas. Se estas não forem capazes de fazer isso, esse padrão de dominação de classe e de solidariedade de classe erigir-se-á, fatalmente, em sua tumba.

A terceira função derivada inclui duas conexões mais ou menos conhecidas. Uma, que se relaciona com necessidades políticas de autoafirmação, autodefesa e autoirradiação dos vários estratos da burguesia brasileira. Não é fácil conduzir o barco, quando o desenvolvimento capitalista não guia a revolução nacional com uma bússola firme e os extremos do espectro burguês se encontram em formas subcapitalistas ou pré-capitalistas de produção agrária, na “empresa multinacional” estrangeira e na “grande empresa estatal”. A convergência de interesses pode ser obtida e até imposta, mas em dano dos papéis burgueses negligenciados historicamente e quase sempre apenas durante certos lapsos de tempo. Pode-se ignorar a história interna, sob certas condições de sufocação dos interesses e dos conflitos de classes. Mas os ritmos históricos externos do capitalismo são inexoráveis. Daí resulta um tipo especial de impotência burguesa, que faz convergir para o Estado nacional o núcleo do poder de decisão e de atuação da burguesia. O que esta não pode fazer na esfera privada tenta conseguir utilizando, como sua base de ação estratégica, a maquinaria, os recursos e o poder do Estado. Essa impotência — e não, em si mesma, a fraqueza isolada do setor civil das classes burguesas colocou o Estado no centro da evolução recente do capitalismo no Brasil e explica a constante atração daquele setor pela associação com os militares e, por fim, pela militarização do Estado e das estruturas político-administrativas, uma constante das nossas “crises” desde a Proclamação da República. O padrão de dominação de classe e de solidariedade de classe descrito facilitava semelhante composição, pela qual as classes burguesas aliavam-se entre si, em um plano mais alto, convertendo a mencionada impotência em seu reverso, em uma força relativamente incontrolável (pelas demais classes e pelas pressões imperialistas externas). Portanto, o Estado nacional não é uma peça contingente ou secundária desse padrão de dominação burguesa. Ele está no cerne de sua existência e só ele, de fato, pode abrir às classes burguesas o áspero caminho de uma revolução nacional, tolhida e prolongada pelas contradições do capitalismo dependente e do subdesenvolvimento.

A outra conexão diz respeito às probabilidades de preservar a ordem burguesa existente. Isto é, de impedir que as divergências no seio das classes burguesas (variadas e profundas a ponto de exigir um mecanismo de unidade de classe e de solidariedade de classe como o apontado acima) e, especialmente, que as pressões de baixo para cima (tão fortes, apesar da aparente “apatia” do proletariado, das classes trabalhadoras rurais e das classes destituídas, que exigiram a sufocação dos meios de autoafirmação dessas classes) destruam as precárias bases do equilíbrio econômico, social e político dessa ordem. Ainda aqui o poder estatal surge como a estrutura principal e o verdadeiro dínamo do poder burguês. Sem a incorporação a si mesma daquele poder e o congestionamento que isso provocou nas funções do Estado a dominação burguesa teria desaparecido como a brisa. Pois não pode, sob o capitalismo dependente e subdesenvolvido, sustentar-se, impor-se coativamente e suplantar os conflitos de classes apoiando-se exclusivamente nos meios privados de dominação de classe e nas funções convencionais do Estado democrático-burguês. Por isso, em sua evolução recente, o Estado nacional brasileiro foi plasmado pelas necessidades e interesses das classes burguesas e, em particular, pelo peculiar enredamento do padrão de dominação dessas classes com o controle de uma economia capitalista e de uma sociedade de classes dependentes e subdesenvolvidas. Na medida em que puderam tolher e unificar suas próprias reivindicações, congregando-se em torno de interesses capitalistas internos e externos comuns ou articuláveis, elas puderam silenciar e excluir as outras classes da luta pelo poder estatal, conseguindo condições ideais para amolgar o Estado a seus próprios fins coletivos particularistas. Além das demais condições favoráveis a esse objetivo, que serão ventiladas adiante, a natureza autoritária do presidencialismo e a forte lealdade dos militares à dominação burguesa, com sua profunda e obstinada identificação com os alvos que ela perseguia, facilitaram sobremaneira o processo implícito de domesticação particularista do Estado. É claro, de outro lado, que a militarização das estruturas e das funções do Estado nacional simplificou e fortaleceu todo o processo, conferindo, finalmente, à vinculação da dominação burguesa com uma ditadura de classe explícita e institucionalizada uma eficácia que ela jamais alcançaria sob o Estado democrático-burguês convencional. Todavia, essa evolução não suprime a vulnerabilidade da ordem burguesa, tão ampliada sob o capitalismo dependente e subdesenvolvido. Ela apenas aumenta, nas condições históricas em que se tornou possível, a eficácia da dominação burguesa. Na verdade, as próprias classes burguesas possuem uma percepção social nítida do significado dos arranjos descritos. Eles são instrumentais, adaptando o poder burguês às condições estáveis e instáveis de uma revolução nacional constantemente abalada e enfraquecida pelos efeitos implacáveis do desenvolvimento desigual interno e da dominação imperialista externa.”