Editora: Estação Brasil
ISBN: 978-85-5608-042-4-3
Opinião: ★★☆☆☆
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Páginas: 352
Sinopse: Ver Parte I
“As
ideias dominantes para a reprodução do elitismo brasileiro, como a do
patrimonialismo, que demoniza seletivamente o ocupante do Estado, e a do
populismo, que demoniza as classes populares, não são apenas ensinadas nas
escolas e nas universidades. Seu ensino nas universidades é importante, pois
confere o prestígio do conhecimento científico, com seu apanágio de
universalidade e neutralidade objetiva, a essas visões muito particulares da
vida social e política. Armadas dessa consagração do campo científico, elas
passam a ter ainda mais peso na formação de uma opinião pública manipulada ao
se transformarem em motes usados como arma política pela grande imprensa.
Dependendo
do caso específico, às vezes temos a corrupção apenas do Estado, o
patrimonialismo como mote principal, ou o populismo, o velho medo da ascensão
das classes populares. Mas os dois estão sempre presentes. Afinal, essa é sua
função enquanto mecanismo que sempre pode ser ativado ao sabor das
circunstâncias: sempre que a regra democrática ferir o mandonismo e o
privatismo da elite do dinheiro, o dispositivo pode ser ativado, permitindo a
captura da classe média moralista e a estigmatização das classes populares e
suas demandas. A esfera pública comprada é o dado decisivo de todo o processo.”
“Traçando
um paralelo com nosso passado escravista, a classe média é o capataz da elite
do dinheiro, cuja tarefa é subjugar o restante da sociedade como um todo.
Obviamente,
não é esse o modo como a classe média se vê. Todas as classes do privilégio
tendem, necessariamente, a ver seu privilégio como inato ou merecido. Como
diria Weber, os privilegiados não querem apenas exercer o privilégio, mas
também que ele seja percebido como merecido, como um direito. Já as classes
populares estão condenadas às armas frágeis dos dominados. Sua ação tende a ser
reativa e construída contra os valores das classes dominantes sob o poder do
discurso do inimigo. Assim, se o individualismo é o valor máximo das classes
dominantes, nas classes populares a solidariedade e o espírito de grupo, por
exemplo, tendem a ser mais importantes. Se a noção de sensibilidade tende a ser
dominante nas classes superiores, a ética da virilidade tende a ser o seu
contraponto perfeito nas classes populares.”
“Se
essas são as frações de classe média cujas cabeças são feitas pela mídia
tradicional e dominante, o processo não é unilateral. A mídia não cria para
elas uma interpretação do mundo do nada. Trata-se muito mais de uma dialética
de interdependência, em que a mídia aprende a se comunicar com sua classe de
referência e seus consumidores mais leais, enquanto as frações tradicionais
recebem dela o que precisam: um discurso homogêneo e totalizador que permita a
defesa de suas opiniões, generalizado e compartilhado o suficiente para lhes
dar as certezas de que tanto precisam. O conforto aqui é aquele que legitima a
visão tradicional e afirmativa do mundo. A tranquilidade de se estar no caminho
correto – correção esta que não é, por definição, uma descoberta pessoal e
arriscada, mas, sim, aquela que é percebida como tal porque se tem a companhia
da maioria.
Essas
são também as frações do moralismo, ou seja, daquela noção de moralidade tão
pouco arriscada e construtivista quanto sua forma de cognição do mundo. O que é
justo e moral não é percebido como algo que se construa paulatinamente, à custa
de experiências cotidianas desafiadoras, em um processo de aprendizado doloroso
por meio do qual se reconhece, no melhor dos casos, nosso próprio envolvimento
em tudo aquilo que criticamos da boca para fora. Esse tipo de aprendizado moral
exige o incondicional reconhecimento de que o mal nos habita a todos e que só
nos livramos dele – e ainda assim apenas parcialmente – sob o custo de uma
vigilância eterna.
O
moralismo é muito diferente. Ele pula todas as etapas arriscadas e incertas e
abraça só o produto fácil, vendido a baixo custo pela mídia e pela indústria
cultural construída para satisfazer esse tipo de consumidor: a boa consciência
das certezas compartilhadas. É nesse terreno que o liberal se afasta do
protofascista. Para o liberal, os rituais da convivência democrática são
constitutivos, ainda que possa ser convencido das necessidades de exceções no
contexto democrático.
O
protofascista, que, na verdade, se espraia da classe média para setores
significativos das classes populares, é bem diferente. O golpe lhe trouxe o
mundo onde pode expressar legitimamente seu ódio e seu ressentimento. O ódio às
classes populares é aqui aberto e proclamado com orgulho, como expressão de
ousadia ou sinceridade. O protofascista se orgulha de não ser falso como os
outros e poder dizer o que lhe vem à mente. O mal e o bem estão claramente
definidos, e o bem se confunde com a própria personalidade.
Mais
ainda. Como nunca aprendeu a se criticar, o protofascista tem uma sensibilidade
à flor da pele e qualquer crítica aciona uma reação potencialmente violenta.
Assim, qualquer crítica é percebida como negação da personalidade como um todo,
pela ausência de qualquer distanciamento em relação a si mesmo, gerando uma
violência também totalizadora. Essa banalidade do mal não existia antes entre
nós. Ela foi criação midiática, ainda que ninguém na Rede Globo ou nas outras
mídias, agora, queira assumir a responsabilidade pelo que fez.”
“Se
Sérgio Buarque é o filósofo do liberalismo conservador brasileiro, ao construir
o esquema de categorias teóricas nas quais ele pode ser pensado de modo
pseudocrítico, Raymundo Faoro é seu historiador oficial. É Faoro, afinal, quem
cria a narrativa histórica de longa duração desde o início do Estado português
unitário e sua suposta transposição para o Brasil. Sua inegável erudição criou
um efeito de convencimento que foi capaz de ganhar o coração não apenas dos
leigos, mas também da imensa maioria dos intelectuais e homens de letras do
Brasil contemporâneo. Devido à importância de sua visão, não superada até hoje,
iremos reproduzir e criticar em detalhe seus argumentos, tentando, como sempre,
ser claros o bastante para que qualquer um, mesmo sem ser treinado em ciências
sociais, possa compreender.
A
tese do livro de Faoro é clara desde o início: sua tarefa é demonstrar o
caráter patrimonialista do Estado e, por extensão, de toda a sociedade
brasileira. Esse caráter patrimonialista responderia, em última instância, pela
substância intrinsecamente não democrática, particularista e baseada em
privilégios que sempre teria marcado o exercício do poder político no Brasil.
Ou seja, o conceito de patrimonialismo passa a ocupar o lugar que a noção de
escravidão e das lutas de classe que se formam a partir dela deveria ocupar. A
corrupção patrimonial substitui a análise das classes sociais e suas lutas por
todos os recursos materiais e imateriais escassos. Faoro procura comprovar sua
hipótese buscando raízes que se alongam até a formação do Estado português no
remoto século XIV de nossa era. Um argumento central que perpassa todo o livro
é o de que o Brasil herda a forma do exercício do poder político de Portugal.
Como em Sérgio Buarque, a herança ibérica que supostamente fincaria fundas
raízes na nossa sociedade passa a ser responsável por nossa relação exterior, e
para inglês ver, com o processo de modernização capitalista.
O
Brasil seria uma sociedade pré-moderna, pois reproduz a forma patrimonialista
de exercício do poder que vigorava em Portugal, como procura demonstrar Faoro
nas várias centenas de páginas de seu livro construídas para validar uma única
tese política: a ação intrinsecamente demoníaca do Estado contraposta à ação
intrinsecamente virtuosa do mercado. Essa é a ideia-força fundamental do
liberalismo brasileiro por boas razões. Afinal, nas poucas vezes em que se
verificou historicamente qualquer preocupação política com as demandas das
classes populares, estas sempre partiram do Estado. É aqui que começa, portanto,
o deslocamento da questão secularmente principal da sociedade brasileira, sua
abissal desigualdade e a atmosfera de conflito abafado/generalizado que ela
produz, como a nossa mais importante peculiaridade social, em nome do falso
conflito mercado/Estado. Esse conflito é falso por vários motivos que
aprofundaremos adiante. (...)
Seu
argumento é teleológico, ou seja, antecipa um fim estranho à argumentação que
coloniza e subordina todos os argumentos utilizados. Isso acontece na medida em
que ele, a partir de sua primeira intuição influenciada pela leitura de Joaquim
Nabuco acerca da influência da elite de funcionários letrados no Brasil da
segunda metade do século XIX, alonga essa influência retrospectivamente a um
período de quase oito séculos.96 Nesse caminho, o
leitor atento percebe muitas vezes a camisa de força que significa a
transposição para as situações históricas as mais variadas de uma ideia que
deixa, ao limite, de ser uma categoria histórica e assume a forma de uma
maldição, uma entidade demiúrgica que tudo explica e assimila.
É
isso que irá explicar de que modo a categoria a-histórica de estamento
patrimonial que o autor constrói pode transmutar-se, quase imperceptivelmente,
na noção pura e simples de Estado interventor. Toda a argumentação do livro se
baseia nessa transfiguração: sempre que temos Estado, temos um estamento que o
controla em nome de interesses próprios impedindo o florescimento de uma
sociedade civil livre e empreendedora.
Apesar
da narrativa elegante e erudita, literalmente todos os pressupostos, tanto os
históricos quanto os sociológicos, da análise de Faoro são falsos. Eles repetem
também, passo a passo, a síndrome conceitual do liberalismo conservador cuja
fragilidade conceitual e histórica é clara como a luz do Sol de meio-dia: o
Brasil não herda de Portugal sua estrutura social, mas sim da escravidão, que
não existia em Portugal. O patrimonialismo ou a existência de um Estado forte
não se contrapõem ao desenvolvimento capitalista, como mostra o exemplo dos
Estados Unidos, o qual desde meados do século XIX deve sua expansão territorial
e econômica não só ao poderio militar estatal, mas também à intervenção do
Estado na construção de ferrovias e de universidades em todo o país para
impulsionar o desenvolvimento tecnológico e produtivo. É a partir dessa época
de forte intervenção estatal, inclusive com protecionismo e tarifas
alfandegárias que vigoraram até a Segunda Guerra Mundial, que os Estados Unidos
se tornam potência mundial, como aliás todos os exemplos históricos concretos
antes e depois dele. Não existe nenhum exemplo histórico de desenvolvimento de
um mercado capitalista dinâmico sem que o Estado tenha sido o apoio e esteio
principal.
Frágil
e absurda como essa ideia é, ela continua a ser a ideia-força principal do
liberalismo conservador brasileiro que permanece viva no imaginário social
cotidiano de todos nós. Episódios como os escândalos de corrupção no Estado –
todos, sem exceção, estimulados por interesses de mercado –, na sua
subjetivação e novelização infantilizada dos aspectos políticos, que passam
longe de qualquer discussão racional dos conflitos sociais e políticos
verdadeiramente em jogo, aludem à tese do patrimonialismo. É essa tese
superficial e sem qualquer fundamento conceitual sério que serve de contraponto
para a pobreza do debate público político entre nós.”
96 Entrevista ao jornalista
Marcelo Coelho para a Folha de S.Paulo, Suplemento MAIS, de 14 de maio
de 2000.
“No
caso brasileiro, só em meados do século XX se constitui uma verdadeira
burocracia com os meios para a atuação em todo o território nacional, mas já
num contexto de desenvolvimento capitalista intenso e rápido. O caso brasileiro
era, portanto, muito diferente sob todos os aspectos do chinês. Primeiro,
jamais existiu no período colonial brasileiro qualquer coisa semelhante ao
estamento burocrático chinês. A colonização do país foi deixada nas mãos de
particulares que eram verdadeiros soberanos nas suas terras, onde o Estado
português conseguia impor sua vontade apenas de modo muito tênue. A ênfase de
Faoro em uma dominação remota de Portugal no Brasil, que atravessava praias e
sertões com seus olhos de big brother, tudo vendo e controlando,
equivale a uma quimera. Portugal era um país pequeno e pouco populoso, e sua
estratégia de delegar a particulares a colonização das novas terras era um
imperativo de sobrevivência. Aqui como em outros lugares, a fantasia histórica
serve apenas para corroborar uma tese política, no caso liberal e conservadora,
sem qualquer fundamento na realidade.
Além
disso, entre 1930 e 1980, o Brasil foi um dos países de maior crescimento
econômico no mundo, logrando construir um parque industrial significativo sem
paralelo na América Latina. Como se pode exibir tamanho dinamismo econômico em
um contexto como o do patrimonialismo, que pressuporia indiferenciação da
esfera econômica e, portanto, a ausência de pressupostos indispensáveis, e
ausência de estímulos duradouros de toda espécie à atividade econômica? Essa
questão por si só seria um desafio intransponível para os defensores do
patrimonialismo brasileiro. Mas ela nunca é levantada. Daí essa noção valer até
hoje como pressuposto central e nunca explicitado de como funciona a realidade
brasileira. Para seus defensores atuais, ela seria tão óbvia que dispensaria
explicitação.108
Na
sociologia brasileira, portanto, o conceito de patrimonialismo perde qualquer
contextualização histórica, fundamental no seu uso por Max Weber, e passa a designar
uma espécie de mal de origem da atuação do Estado enquanto tal em qualquer
período histórico. Em Faoro,109 que fez dessa
noção, como vimos, seu mote investigativo com extraordinário impacto e
influência até hoje – para a maioria dos intelectuais e jornalistas
brasileiros, ela é um pressuposto implícito e fundamental –, a noção de
patrimonialismo carece de qualquer precisão histórica e conceitual. Na visão
dele, o “patrimonialismo brasileiro” viria desde o Portugal medieval,
confundindo épocas históricas com fundamentos sociais muito distintos.
Como
vimos, na Idade média não havia sequer a noção de soberania popular e,
portanto, não existia sequer a ideia de “bem público” no sentido moderno. A
ideia de “propriedade pública” só existe em um contexto histórico que contempla
também a ideia de que todo poder deriva do povo. E esta ideia só se consolida
na Revolução Francesa, de 1789. Só a partir dessa época é que um particular
pode ser “corrupto”, no sentido moderno do termo, ao se apropriar privadamente de
algo que pertence ao público. Assim, se não havia sequer a ideia da separação
entre bem privado (do rei) e bem público, o rei e seus prepostos não podiam
roubar o que já era deles de direito. A ideia básica do “culturalismo
vira-lata” brasileiro, de que herdamos de Portugal a desonestidade nos negócios
públicos, é, portanto, ridícula, para se dizer o mínimo.
Em
segundo lugar, no âmbito de suas generalizações sociológicas, o patrimonialismo
acaba se transformando, de forma implícita, em um equivalente funcional para a
estigmatização da mera intervenção estatal. No decorrer do livro de Faoro, o
conceito de patrimonialismo perde crescentemente qualquer vínculo concreto,
passando a ser substituto da mera noção de intervenção do Estado, seja quando
este é furiosamente tributário e dilapidador, por ocasião da exploração das
minas no século XVIII, seja quando é benignamente interventor, como quando D.
João cria, no início do século XIX, as precondições para o desenvolvimento do
comércio e da economia monetária, quadruplicando a receita estatal e
introduzindo inúmeras melhorias públicas.
A
imprecisão contamina até a noção central de estamento, uma suposta elite
incrustada no Estado, que seria o suporte social do patrimonialismo. O tal
estamento é composto, afinal, por quem? Pelos juízes? Pelo presidente? Pelos
burocratas? O que dizer do empresariado brasileiro, que foi, no nosso caso, o
principal beneficiário do processo de industrialização brasileiro financiado
pelo Estado interventor desde Vargas? Ele também é parte do estamento estatal?
Deveria ser, pois econômica e socialmente foi ele que mais ganhou com o suposto
Estado patrimonial brasileiro. Como fica, em vista disso, a falsa oposição
entre mercado idealizado e Estado corrupto?
A
aplicação da noção de patrimonialismo ao caso brasileiro é, portanto, uma óbvia
fraude conceitual, destinada a usar o prestígio científico de um dos mais
importantes pensadores de todos os tempos para legitimar uma ideia extremamente
conservadora e frágil conceitualmente e lhe dar uma aparência de rigor
científico e de crítica social. O nosso liberalismo, falso e conservador como
sempre foi, consegue com esse contrabando conceitual passar-se por
interpretação inovadora e erudita. Na verdade, a noção de patrimonialismo
aplicada à realidade brasileira não vale um tostão furado.
Aliás,
a noção de patrimonialismo passa a ser fundamental exatamente por sua
imprecisão conceitual. Ela está no lugar da noção de escravidão e serve para
tornar invisíveis as relações sociais de humilhação e subordinação criadas
nesse contexto. Além disso, tenta criar uma aparência de crítica social, um
charminho crítico falso, ao apontar o dedo moralizador contra uma falsa elite,
na verdade mero instrumento dos proprietários que têm o verdadeiro poder. Uma
falsa elite que existe apenas para tornar invisível a atuação da elite real que
comanda o mercado da rapina e do saque social. A elite do patrimonialismo, que
ninguém define, é uma elite falsa, posto que comprada pela elite econômica que
permanece invisível na análise, mostrando seu potencial mistificador.
Não
é que Faoro e os outros liberais não falem de escravidão. Eles falam, sim.
Muito se fala sobre a escravidão, mas pouco se “reflete” a respeito dela.
Fala-se na escravidão como se fosse um nome, e não um conceito científico que
cria relações sociais muito específicas. Muitas de nossas características foram
atribuídas à dita herança portuguesa, mas não havia escravidão em Portugal.
Somos, nós brasileiros, portanto, filhos de um ambiente escravocrata, que cria
um tipo de família específico, uma justiça específica, uma economia específica.
Aqui valia tomar a terra dos outros à força para acumular capital, como
acontece até hoje, e condenar os mais frágeis ao abandono e à humilhação
cotidiana. Isso é herança escravocrata, não portuguesa. O patrimonialismo,
percebido como herança portuguesa, substitui a escravidão como núcleo
explicativo de nossa formação. Essa é sua função real. Por conta disso, até
hoje, reproduzimos padrões de sociabilidade escravagistas como exclusão social
massiva, violência indiscriminada contra os pobres, chacinas contra pobres
indefesos que são comemoradas pela população, etc.
Mas
isso ainda não é o pior. O patrimonialismo esconde as reais bases do poder
social entre nós. Ele assume que interesse privado é interesse individual
privado, de pessoas concretas, as quais se contraporiam aos interesses
organizados apenas do Estado. Tudo como se houvesse interesses organizados
apenas no Estado, suprema estratégia de distorção da realidade. É uma noção de senso
comum do leigo, que não percebe os interesses privados organizados no mercado e
sua força, que implica o controle de preços, da imprensa, da formação de
monopólios privados e da captura do Estado para o interesse de meia dúzia de
grandes plutocratas. É para esconder essa realidade que o conceito de
patrimonialismo e de corrupção apenas do Estado como causa de todas as nossas
mazelas existe. Daí decorre a noção absurda, mas tida como verdade acima de
qualquer suspeita entre nós: a noção de que a elite poderosa está no Estado,
com isso invisibilizando a ação da elite real, que está no mercado, tanto nos
oligopólios quanto na intermediação financeira.
Se
compararmos nosso capitalismo com o narcotráfico, o político corrupto é o
aviãozinho do tráfico, que fica com as sobras; a boca de fumo que faz o
dinheiro grande é o mercado da rapina selvagem que temos aqui. O conceito de
patrimonialismo serve, precisamente, para encobrir os interesses organizados no
mercado, que funcionam para se apropriar da riqueza social, já que a noção de
privado é absurdamente pessoalizada, permitindo todo tipo de manipulação. A
real função da noção de patrimonialismo é fazer o povo de tolo e manter a
dominação mais tosca e abusiva de um mercado desregulado completamente
invisível.”
108 LAMOUNIER, Bolivar; SOUZA,
Amaury de. A classe média brasileira. Rio de Janeiro: Campus, 2009. Ver
também o best-seller ALMEIDA, Alberto Carlos de. A cabeça do brasileiro.
Rio de Janeiro: Record, 2007.
109 FAORO, Raymundo. Os
donos do poder.
“O
lócus onde esse acordo entre desiguais se consuma é uma esfera pública para
inglês ver, colonizada pelo dinheiro e sem qualquer pluralidade de opiniões que
permita a construção de sujeitos autônomos e com opinião própria. Contra a
classe média, portanto, a violência da elite de proprietários que controla não
só a produção material, mas também a produção intelectual e a informação, é uma
violência simbólica. Um tipo de violência não percebido enquanto tal, posto que
se vende como se fosse convencimento real.
O
mecanismo principal desse tipo de dominação é uma imprensa desregulada e venal,
que vende uma informação e uma interpretação da vida social enviesada pelos
interesses do pacto antipopular. Isso acontece tanto porque é dependente de
seus anunciantes quanto porque participa, ela própria, do mesmo esquema
elitista dominante do saque e da rapina do trabalho coletivo. Como não houve
aqui a criação do mecanismo da TV pública, que não se confunde com TV estatal,
em uma sociedade com pouca leitura e pouca reflexão, a dominação simbólica mais
violenta encontrou terreno fértil para se desenvolver.
A
história da sociedade brasileira contemporânea não pode ser compreendida sem
que analisemos a função da mídia e da imprensa conservadora. É a grande mídia
que irá assumir a função dos antigos exércitos de cangaceiros, que é assegurar
e aprofundar a dominação da elite dos proprietários sobre o restante da
população. A grilagem agora não assumirá mais apenas a forma de roubo violento
da terra dos posseiros pobres, mas também a forma da colonização das
consciências com o fito de possibilitar, no entanto, a mesma expropriação pela
elite. Substitui-se a violência física, como elemento principal da dominação
social, pela violência simbólica, mais sutil, mas não menos cruel.
Nos
últimos cinquenta anos, nenhum grupo empresarial midiático foi mais
bem-sucedido nem se esmerou tanto na tarefa de distorcer sistematicamente a
realidade brasileira, em nome de interesses inconfessáveis, quanto a Rede
Globo. Não que ela esteja sozinha ou seja muito pior que o resto da grande
imprensa. Não, toda a grande imprensa se irmana no ataque à democracia e à
soberania popular. Recentemente, a Folha de S.Paulo e O Estado de S.
Paulo, apenas para citar dois exemplos entre milhares possíveis, mostraram
a mesma foto de capa depois das manifestações no dia 24 de maio de 2016, em
Brasília, contra o governo Temer, em que um vândalo ataca com pedras um prédio
público.
Para
quem viu, como eu, a manifestação inteira por filme – que deixava claro o
ataque e a provocação policial com cavalaria e com bombas de efeito moral sobre
os manifestantes até então pacíficos –, a violência simbólica, a mentira
consciente e a fraude do público eram estarrecedoras. Uma imprensa em conluio
com uma repressão antidemocrática e abusiva, em nome da distorção sistemática
da informação, não é privilégio da Globo. A revista Veja, por exemplo,
se esmera em matérias cuja finalidade é produzir ódio e informação enviesada e
distorcida para seu público da fração protofascista da classe média. Mas a
Globo levou a fraude e a distorção sistemática da realidade a níveis de ficção
científica.”
“A
Globo é a roupagem perfeita para um capitalismo selvagem e predatório que chama
a si mesmo de emancipador e protetor dos fracos e oprimidos. A glorificação do
oprimido não ajuda em nada na melhoria do cotidiano cruel e opressivo dos
pobres, mas emula a necessidade de legitimação da vida que se leva quando as
possibilidades de mudanças efetivas estão interditadas. O mais cruel é que as
possibilidades de redenção real são tanto mais impossíveis quanto maior a
influência dessa mensagem mistificadora produzida pela emissora. Como no golpe
de 2016, a emissora ajudou a impedir a continuidade de um processo de ascensão
social dos pobres que era real. O processo de manipulação social caminha sempre
no sentido de extrair a riqueza de todos e concentrar o poder nas mãos de
poucos – inclusive da família que manda na empresa –, dando a impressão de que
se é defensor dos melhores valores da igualdade e da justiça. Mesmo toda a
fraude golpista da moralidade seletiva é construída como se a TV fosse mero
veículo neutro de informação.”
“É
claro que as empresas arriscam seu capital de confiança nesse jogo, acreditando
que podem fazer seu público de tolo o tempo todo. Um cálculo arriscado, mesmo
se levarmos em conta a ausência de padrão de comparação do público brasileiro
acostumado a ser usado como massa de manobra sem nunca ter tido acesso a uma
mídia plural. A distorção sistemática da realidade nos últimos anos superou
qualquer coisa que tenhamos testemunhado antes. A possibilidade de se perceber
que as próprias empresas de comunicação fazem parte do jogo da elite do atraso
na manutenção dos privilégios de uma meia dúzia em desfavor da população como
um todo se torna, hoje, mais que nunca, um risco real.
Repare
o leitor que jamais se reflete acerca de um sistema político construído para
ser corrupto, ou seja, construído para ser comprado pela elite do atraso para
manter seus privilégios econômicos. O ataque midiático é feito para parecer que
a corrupção é obra de pessoas privadas ou partidos específicos. (...)
O
crescente apoio popular à Ditadura, assim como também as formas não
democráticas de sociabilidade e de ódio aberto que se instauraram no Brasil
desde então, tem nessa fraude midiática gigantesca seu início. É que o ataque
não se limitou à democracia. A Globo como que concentra o ódio secular e
escravocrata ao povo e passa a expressar o pacto elitista e antipopular em ato.
A perseguição seletiva e sem tréguas ao PT e aos movimentos sociais que o
apoiam equivale a um ataque ao princípio mesmo da igualdade social como valor
fundamental das democracias ocidentais. É que a luta contra a desigualdade do
PT e de Lula foi tornada, pela propaganda televisiva, mero instrumento para a
corrupção no Estado.
Como
o PT foi o motor da ascensão social dos miseráveis e pobres em geral, atacá-lo
como corrupto e como organização criminosa – sendo acompanhada pelos próprios
agentes do Estado envolvidos na operação Lava Jato – equivale a tornar suspeita
a própria demanda por igualdade. É a igualdade que é tornada meio para um fim,
no caso a suposta corrupção, o que implica retirar sua validade como valor, ou
seja, como um fim em si. A Globo e a grande mídia – e sua aliada, a operação
Lava Jato – não só contribuíram para o mais massivo ataque à democracia e ao
direito brasileiro de que se tem notícia, como atacaram também, em uma das sociedades
mais desiguais e perversas do planeta, a igualdade social como princípio, ao
torná-lo suspeito e mero instrumento para outros fins.
Depois,
quando o ódio passa a grassar no país e figuras que representam o elogio à
tortura e à violência mais grotesca, como Jair Bolsonaro e seu fascismo aberto,
passam a representar ameaças reais à democracia e aos direitos humanos mais
elementares, a Globo e a grande mídia agem como se não tivessem nenhuma
responsabilidade. Escondem o fascismo que praticam diariamente e criticam o
resultado que produzem sem assumir a menor responsabilidade pelo que fazem. A
Globo e a operação Lava Jato, no entanto, são os agentes principais dessa
verdadeira regressão civilizacional que sacode o país deixado em frangalhos,
econômica, política e moralmente, por sua ação combinada. Para sua audiência
imbecilizada, no entanto – assim como a Globo critica Bolsonaro da boca para
fora –, passa despercebida sua ação a favor dos valores antidemocráticos, o
que, na realidade, cria o campo de ação para os Bolsonaros da vida.
O
resultado, que é o que importa na vida, é que a cruzada contra a corrupção dos
sócios da Globo, da grande mídia e da Lava Jato, que seria uma piada ridícula e
digna de riso e escracho se não fosse trágica, feriu de morte nosso jovem
experimento democrático e ainda criminalizou e estigmatizou a bandeira da
igualdade social. Nada mais vivificador do nosso ódio secular aos pobres do que
isso. Existe algo mais fiel à nossa tradição escravocrata que isso? Tudo
produzido agora simbolicamente, como se quisesse o bem dos necessitados,
dourando a pílula por fora, que contém, no entanto, o mesmo conteúdo venenoso
de sempre.
E
não é apenas a participação da grande mídia nos esquemas da elite do atraso e
do saque que não interessa aos paladinos da justiça entre nós, como vimos. O
assalto à sociedade fraudada e enganada pode ser ainda muito pior. A grande
mídia coloniza para fins de negócios, escusos ou não, toda a capacidade de
reflexão de um povo, ao impossibilitar o próprio aprendizado democrático que
exige opiniões alternativas e conflitantes, coisa que ninguém nunca viu
acontecer em época alguma em nenhum de seus programas. Isso equivale a
imbecilizar uma nação que certamente não nasceu imbecil, mas foi tornada
imbecil para os fins comerciais de uma única família que representa e expressa
o pior de nossa elite do saque e da rapina.
O
que se perde aqui, como vimos em detalhe neste livro, é simplesmente o recurso
mais valioso de uma sociedade, que é sua capacidade de aprender e de refletir com
base em informações isentas. Distorcer sistematicamente a realidade social,
mentir e fraudar uma população indefesa é, por conta disso, fazer um mal
incomparavelmente maior que surrupiar qualquer quantia financeira. É que o mal
aqui produzido é literalmente impagável. O que se frustra aqui são os sonhos,
os aprendizados coletivos e as esperanças de centenas de milhões. O que se
impede aqui é o processo histórico de aprendizado possível de todo um povo, que
é abortado por uma empresa que age como um partido político inescrupuloso. Isso
apenas para que fique registrada a noção de mal maior em uma sociedade que
tende a perder qualquer critério de aferição e de comparação de grandezas
morais.”
“O
espantalho da criminalização da política só serve para que os donos do mercado
deleguem a política ao que há de pior e mais mesquinho do baixo clero político.
Já o espantalho da criminalização da esquerda e do princípio da igualdade
social só serve para que a justa raiva e o ressentimento da população, que
sofre sem entender os reais motivos do sofrimento, percam sua expressão
política e racional possível. Foi assim que a mídia irresponsável possibilitou
e pavimentou o caminho para a violência fascista do ódio cego dos Bolsonaros da
vida. O ódio fomentado todos os dias contra o PT e Lula produziu,
inevitavelmente, Bolsonaro e sua violência em estado puro, agressividade burra
e covarde. Agora, uma população pobre e à mercê de demagogos religiosos está
minando as poucas bases civilizadas que ainda restam à sociedade brasileira.
Essa dívida tem que ser cobrada da mídia que cometeu esse crime.”
“Ainda
que o candidato com pregação fascista não tenha sido o preferencial da elite do
atraso – o conjunto dos proprietários sob comando do rentismo internacional –,
o fracasso dos seus candidatos “oficiais”, como Geraldo Alckmin, por exemplo,
jogou toda a elite nos braços de Bolsonaro. Afinal, o fascismo sempre foi o
“plano B” dos proprietários que só pensam no próprio bolso em todos os casos
históricos relevantes. Mesmo que a alternativa fosse uma simples
socialdemocracia leve e superficial como a incorporada pelo Partido dos
Trabalhadores. (...)
A
verdadeira elite brasileira, que é a do dinheiro, que manda no mercado e que
“compra” as outras elites que lhes são subalternas, criou o bode expiatório da
corrupção só da política, como vimos anteriormente, para desviar a atenção de
sua corrupção disfarçada de legalidade. Toda a sociedade tomou doses diárias
desse veneno destilado pela mídia, pelas escolas e pela universidade e viu,
imbecilizada, como não podia deixar de ser, uma meia dúzia de estrangeiros e
seus capangas brasileiros tomarem seu petróleo, sua água, suas terras, seus
recursos. Em nome da moralidade, do combate à corrupção e pelo suposto “bem do
povo brasileiro”, roubaram tudo o que puderam e nos deixaram muito mais pobres.”
“Todo
fascismo é, portanto, reflexo de uma luta de classes truncada, percebida de
modo distorcido e, por conta disso, violento e irracional no seu cerne. Na sua
base está a manipulação de emoções que geram agressividade, como medo, raiva,
ressentimento e ansiedade sem direção, sempre com fins de manipulação política.
A incompreensão racional, por parte da população, de processos políticos complexos
é utilizada para a construção de bodes expiatórios, um modo historicamente
eficiente de canalizar frustração e ressentimentos sociais. A marginalização de
grupos minoritários e a violência aberta e disseminada, contaminando a
sociedade como um todo, são as consequências inevitáveis de todo fascismo.
(...)
O
contexto geral do neofascismo contemporâneo parece resultar do processo de
desenraizamento político e social dos indivíduos provocado, na esfera política,
pelas mudanças do capitalismo financeiro, hoje dominante. Por meio de uma
política consciente que destruiu ou enfraqueceu sindicatos, partidos e a
capacidade associativa em geral – muito especialmente das classes populares –,
o capitalismo financeiro cria o isolamento individual como marca da sociedade
contemporânea. Isolado, o indivíduo não apenas pode ser explorado, trabalhar
mais ganhando menos, sem direitos trabalhistas. Acreditando-se “empresário de
si mesmo”, ele é deixado politicamente sem defesa. Pior ainda, é também cada
vez mais dominado pela propaganda neoliberal que diz que as vítimas do
desemprego e do subemprego precário, produzidas por um sistema econômico
concentrador e improdutivo, são, elas próprias, as culpadas pelo próprio
infortúnio. Esse indivíduo isolado e indefeso é assolado por uma agressividade
que não compreende e, desse modo, ele ou dirige contra si próprio a raiva que
sente por sua própria pobreza e privação ou a canaliza contra bodes expiatórios
construídos para este fim. O caso brasileiro é paradigmático neste sentido. Uma
multidão de desempregados e subempregados empobrecidos ao longo de anos de
política em favor do rentismo nacional e internacional passa a ter a opção de
dirigir sua raiva e seu ressentimento contra si mesma – quando não se entrega,
como é comum, ao alcoolismo e à depressão – ou contra bodes expiatórios
socialmente aceitáveis.”