Editora: Instituto Lukács
Opinião: ★★★★☆
Tradução: Bernard Herman Hess, Rainer Patriota,
Ronaldo Vielmi Fortes
Páginas: 794
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Sinopse: Ver Parte I
“É sabido que Hegel repudiou duramente o idealismo
subjetivo de Kant, em especial a sua negação da
cognoscibilidade da “coisa-em-si”. A cognoscibilidade desta constitui um ponto
fundamental da sua teoria do conhecimento dialética; pois ela implica a
relativização dialética de fenômeno e essência, de fenômeno e coisa-em-si, pois
conhecer as qualidades (os modos fenomênicos) da coisa é conhecer ao mesmo
tempo a própria coisa, de maneira que o em-si torna-se um para-nós, e, em
determinadas condições, um para-si; ignorar esse processo de conhecimento
concreto, que vai do fenômeno à essência, da coisa-em-si, é, para Hegel, uma
abstração vazia e nula. Os renovadores de Hegel do período
imperialista não chegam sequer a apreciar seriamente essa crítica de Hegel a
Kant, quanto mais a assimilá-la. Eles continuam aferrados ao ponto de vista do
neokantismo adaptado às condições do período imperialista, portanto, continuam
separando mecanicamente o fenômeno da essência, negando e desmerecendo a
existência e a cognoscibilidade da realidade objetiva.”
“Na filosofia moderna a dialética de Hegel não é
um método entre muitos outros. Tanto em sua gênese quanto em sua essência ela é
a continuação – num plano superior – daquelas aspirações espirituais dos
melhores pensadores desde o renascimento, para fundamentar filosoficamente o
aspecto racional e progressista do desenvolvimento humano. O plano superior
alcançado por Hegel nesse sentido surge da nova situação histórica na qual o
filósofo capturou idealmente esse aspecto racional e progressista: a situação
histórico-social criada pela Revolução Francesa. Isso significa em primeiro
lugar que ele capturou a razão em sua essência contraditória, isto é, por
oposição à tradição geral do Iluminismo, que com frequência – mas não sempre –
concebia a ligação entre razão e vida de um modo excessivamente retilíneo e
direto, em contradição com o próprio caminho objetivo do esclarecimento da
razão na vida. Os sucessores de Hegel, ao simplificarem e vulgarizarem essa
unidade indissociável de razão e contradição, convertendo-a num “panlogismo”,
desviam-se do método dialético de Hegel; como vimos com o neo-hegelianismo, a
polêmica contra esse desvio se converte na equiparação entre dialética e
irracionalismo, portanto, na total falsificação do método hegeliano, de modo
que a racionalidade antes meramente vulgarizada agora desaparece completamente.
Em segundo lugar, o método
dialético significa uma defesa histórica do progresso. A atitude reacionária
contra a Revolução Francesa no plano da visão de mundo fundamenta uma versão do
histórico na qual a ideia de progresso deixou de existir e que, em particular,
declara como anti-histórica toda transformação social. Ao contrário, o
verdadeiro sentido do método dialético hegeliano, brevemente expresso, consiste
em demonstrar – numa unidade inseparável com o lugar central da contradição –
que os caminhos complexos e desiguais da história revelam precisamente seu
caráter racional profundo e que na relação imediata normalmente costuma ficar
oculto. Daí que a fundação do materialismo dialético e histórico pôde se unir a
Hegel. É claro que com base numa crítica implacável de seu idealismo (com todas
as suas consequências metodológicas e de conteúdo), de seu sistema reacionário
etc. Mas a profundidade e a multilateralidade dessa crítica, o caráter
qualitativamente novo do marxismo em comparação com Hegel, a oposição que o
novo método dialético-materialista representa em comparação com a dialética
idealista hegeliana, não elimina o fato desse vínculo crítico. O materialismo
histórico e dialético é a visão de mundo que expressa sob a forma mais elevada
o progresso e a legalidade da história racionalmente formuláveis, a única visão
de mundo que pode fundamentar de modo filosoficamente consequente o progresso e
a racionalidade.”
“Nesse
solo a falsa oposição entre civilização e cultura pode crescer espontaneamente.
Oposição que, formulada conceitualmente, obtém a seguinte forma – objetivamente
falsa e que leva a erro: a civilização, isto é, o desenvolvimento
técnico-econômico, fomentado pelo capitalismo, avança continuamente, mas esse
desdobramento é, em grande medida, desfavorável à cultura (à arte, à filosofia,
à vida interior do homem); e essa oposição entre ambas recrudesce cada vez mais
a ponto de se tornar uma tensão trágica e insuportável. Percebe-se que a
situação fática do desenvolvimento capitalista assinalada por Marx é
desfigurada de um modo anticapitalista-romântico, subjetivista-irracional. Que
se trata da desfiguração irracionalista de um fato histórico-social, mostra a
simples consideração de que cultura e civilização – entendidos corretamente –
não podem constituir conceitos opostos. A cultura consiste no
conjunto das atividades com as quais o homem suplanta as próprias condições
naturais dadas originalmente na natureza, na sociedade e em si mesmo (com
razão, fala-se de uma cultura do trabalho, do comportamento humano etc.). A
civilização, pelo contrário, é uma expressão abrangente dos períodos históricos
posteriores ao momento em que o homem deixou o estágio da barbárie; esse
conceito envolve também a cultura e com ele o conjunto da vida social do homem.
A colocação de semelhante oposição conceitual, a criação do mito de forças,
entidades etc. que se confrontam, não passa de uma deformação ao mesmo tempo
abstrata e irracionalista das contradições concretas da cultura do capitalismo
(essa contraditoriedade real também está relacionada às forças produtivas
materiais; que se pense na aniquilação dessas forças nos momentos de crise, na
contraditoriedade da máquina sob o capitalismo em suas relações com o trabalho
humano, tal como Marx as expõe etc.).
A
deformação irracionalista das condições factuais originárias nasce
espontaneamente da situação social dos intelectuais sob o capitalismo. Essa
deformação, que os ideólogos do capitalismo desenvolvem e aprofundam, se
reproduz espontaneamente. Em parte porque as tendências eventualmente rebeldes
do anticapitalismo romântico podem ser canalizadas numa crítica inócua da
cultura e, em parte, porque a falsa oposição entre civilização e cultura posta
em termos absolutos parece ser, aos olhos de muitos intelectuais, uma arma
eficaz contra o socialismo: ao dar continuidade ao desenvolvimento das forças
produtivas materiais (mecanização etc.), o socialismo não poderia resolver o
conflito entre a civilização e a cultura, mas, longe disso, o perpetuaria –
logo, não vale a pena para os intelectuais que sofrem com esse dualismo
combater o capitalismo em nome do socialismo.”
“Como
é sabido, em sua sociologia, Max Weber encara a vocação especialmente do líder
democrático como um “carisma”, terminologia em que se expressa o caráter
irracionalista conceitualmente não refutável do líder, apreendido, pois, de modo irracionalista. E isso era inevitável para Max Weber, pois
se – seguindo a metodologia da história de Rickert, para quem só existem
fenômenos singulares – nos perguntamos por qual motivo chegaram a converter-se
em líderes um Péricles ou um Júlio César, um Cromwell ou um Marat, e ao
generalizar sociologicamente as respostas histórico-individuais a esta
pergunta, surgirá o conceito de “carisma”, que fixa num pseudoconceito, como
algo irracional, nosso assombro incapaz de se tornar um saber. Ao contrário,
quando Hegel em seu tempo falava do “indivíduo histórico-universal”, não partia
do indivíduo, mas da tarefa colocada pela história a uma época ou a uma nação,
considerando como “histórico-universal” o indivíduo que se revelasse capaz de
resolvê-la. Hegel era plenamente ciente do componente de casualidade
insuperável inerente à questão de o indivíduo ser X ou Y aquele que – dentre
todos os que exibiam como possibilidade o necessário grau de consciência e
energia para tanto – efetivamente se converte no “indivíduo
histórico-universal”. Max Weber, por sua vez, ao colocar o problema
precisamente do ponto de vista dessa casualidade insuperável, buscando um
“esclarecimento” justamente para isso, tinha de chegar inevitavelmente ao
pseudoconceito, em parte abstrato, em parte místico-irracional, de “carisma”.”
“O período imperialista, objetivamente falando, só tem duas saídas: a
afirmação do imperialismo com suas guerras mundiais, sua sanha em subjugar e
explorar os povos coloniais e as massas do próprio povo, ou a negação prática
do sistema imperialista, a rebelião das massas e a destruição do capitalismo
monopolista. E se um pensador não se decide, de forma franca e resoluta, a
favor ou contra esse sistema, sua vida – quer ele simpatize com o imperialismo
e o fascismo, quer os repudie – haverá de definhar num desespero carente de
toda perspectiva (por várias vezes temos tido a oportunidade
de assinalar o serviço objetivamente positivo que a filosofia do desespero
presta ao fascismo).”
“Como é natural, toda superfície imediata, artificialmente isolada da
essência, das leis do movimento, produz necessariamente uma imagem deformada,
inclusive da própria superfície enquanto tal.”
“A
demagogia social hitlerista esteve sempre atrelada a um irracionalismo aberto,
que culmina no seguinte estado de coisas: as contradições do capitalismo, tidas
como insolúveis mediante o emprego de meios normais, abriram caminho para um
salto num mito radicalmente irracionalista. A defesa atual – diretamente apologética
– do capitalismo, renuncia, aparentemente, ao mito e ao irracionalismo. Pelo
contrário: segundo a forma, o modo de exposição, o estilo, trata-se aqui de uma
cadeia argumentativa puramente conceitual e científica. Mas só aparentemente,
pois o conteúdo dessas construções conceituais é a pura falta de conceito, a
construção de conexões não existentes, a negação da legalidade real em função
de conexões aparentes, reveladas imediatamente (livres de conceitos) pela
imediaticidade da superfície da realidade econômica. Estamos, portanto, diante
de uma nova forma de irracionalismo, que se caracteriza por sua aparência de
racionalidade.
Porém,
não diante de uma forma fundamentalmente nova. Já mostramos a regressão da
economia americana (e seus apoiadores europeus) à economia vulgar e, ao mesmo
tempo, apontamos para o fato de que todas as tendências anticientíficas da
economia atual obtiveram um crescimento correspondente às
condições da apologética direta do capitalismo no período imperialista.
Portanto, aquelas tendências do irracionalismo reveladas por Marx como
imanentes à antiga economia vulgar continuam presentes na economia vulgar de
hoje, porém, numa escala muito maior, de modo que o incremento da quantidade se
transforma aqui numa nova qualidade: o irracionalismo implícito da antiga
economia vulgar se converte agora num irracionalismo explícito. Uma vez que as
palavras de Marx referentes a isso trazem uma exposição ampla e fundamental dos
problemas com os quais deparamos aqui, vemo-nos obrigados a citá-las na
íntegra: “No entanto, as mediações das formas irracionais, em que se apresentam
e se condensam em termos práticos determinadas relações econômicas, não
interessam nem um pouco aos portadores práticos destas relações em seus
comércios e trocas; uma vez que estão acostumados a se mover no interior delas,
seu entendimento não encontra nenhum impulso nesse sentido. Para eles, uma
contradição flagrante não tem nada de misterioso. Sentem-se tão à vontade
quanto um peixe dentro d’água em relação a essas formas fenomênicas alienadas
de toda a conexão interna, isoladas em si mesmas e desprovidas de qualquer
refinamento. Poderíamos dizer o mesmo que Hegel diz a propósito de certas
fórmulas matemáticas, a saber, que aquilo que o senso comum considera
irracional é o racional e o que para ele é racional, é a própria
irracionalidade”.”
“Podemos
constatar aqui, como já era o caso na ideologia hitlerista, que o pensamento
burguês do período imperialista se vê obrigado a reconhecer tacitamente sua
derrota na luta espiritual com o materialismo histórico, uma vez que, embora
combatendo-o publicamente com maior veemência, só está em condições de lhe opor
uma contraideologia com ajuda do próprio adversário e submetida a uma distorção
arbitrária, construindo assim uma contraideologia que não passa de uma
caricatura feita de retalhos distorcidos do materialismo histórico. Tal foi o
procedimento adotado na construção do “socialismo” de Hitler; e assim também
foram feitos os enxertos na teoria dos managers de Burnham (os
capitalistas se tornam dispensáveis para a produção etc.); assim, aparece em
Schmitt a prioridade da base econômica frente à soberania política. Ora, aqui é
a mesma coisa: a concepção marxista da missão histórica do capitalismo na
criação de um mercado mundial único e de uma economia mundial é apresentada de
uma forma caricata, pela qual tudo é posto de cabeça para baixo e toda a verdade se transforma em mentira.”
“Um
dos traços essenciais do hitlerismo consistia em fazer com que pessoas em si
inócuas e medíocres e, às vezes, de boa disposição, se convertessem, por meio
de manobras insidiosas, em corresponsáveis, em cúmplices e até em copartícipes
ativos de crimes espantosos e de atos desumanos bárbaros. É evidente que sem
uma “pedagogia social” desse tipo jamais teriam sido possíveis coisas como
Auschwitz, por exemplo. A especialidade do desenvolvimento americano consiste
em que sempre existiram nos Estados Unidos elementos de tais tendências, no Sul
desde a abolição da escravidão. A passagem de uma acumulação em parte
originária ao período do capitalismo monopolista facilitou e estimulou essa
trajetória social; e a isso é preciso acrescentar a nuance especificamente
sulista, onde o regime de exploração mais retardatário e anacrônico (a
escravidão) teve desde o primeiro momento um caráter capitalista mais ou menos
marcado. O resultado foi que certos elementos sociais que só ocorrem na
acumulação originária se transferiram com as correspondentes mudanças para o
capitalismo imperialista. Ocorre ainda uma especificidade particular de que
tudo isso se manifeste e se desenrole sob a forma de uma democracia burguesa
prototípica; os Estados Unidos não conhecem nem o feudalismo nem a monarquia
absoluta ao modo europeu. Outro importante componente do hitlerismo, a teoria
das raças e a discriminação racial também atuam ali, sobretudo no sul, vindo a
se estender mais tarde por todo o país, numa época em que estas, na Europa, não
passavam de uma concepção privada de mundo de alguns outsiders extremos
da reação; já vimos como Gobineau, quando ninguém lhe dava atenção, encontrou
seus primeiros leitores entusiastas no sul dos Estados Unidos. À medida que o
imperialismo americano vai se convertendo na potência reacionária dominante no
mundo, essas tendências se generalizam com maior vigor, colocando-se – de modo
mais consciente e sistemático do que em Hitler, se é que isso é possível – a serviço da agressão, da guerra imperialista, a serviço das
condutas bárbaras empregadas nas guerras já desencadeadas (como no caso da
Coreia). E todos sabem como os democratas honestos dos Estados Unidos vêm
travando uma luta até agora inglória contra estas tendências.
Outro
aspecto desse quadro é que nunca nem em parte alguma se viu semelhante rede,
semelhante sistema de “elos transversais” entre o gangsterismo aberto e o
aparato oficial dos estados e municípios como nos Estados Unidos. (O professor
H. H. Wilson publicou uma enquete do National Opinion Research Center,
do ano de 1944, em que cinco de cada sete americanos consultados consideram que
todos os políticos estão corrompidos). Também nesse ponto se confirma uma
indignação consistente por parte dos homens simples e honestos. Mas eles não
podem fazer muita coisa, principalmente porque são, o tempo todo, ludibriados
pelo monopólio da publicidade, pelo poder da imprensa dominada por esses
trustes e pelo aparato dos dois grandes partidos. É muito provável, por
exemplo, que, em 1952, a última vitória do candidato republicano tenha sido
parcialmente causada pela rejeição espontânea dos homens comuns à corrupção dos
democratas. Nesse sentido, pode-se prever com bastante segurança que em alguns
anos uma revolta semelhante venha a ocorrer contra a corrupção dos
republicanos; o caso do vice-presidente Nixon, que, para a sua felicidade,
permanece encoberto, lança uma luz reveladora sobre o fato de que entre os
republicanos se constata a mesma corrupção que grassa entre os democratas. E
para ilustrar essa corrupção entre os democratas com um exemplo, recorde-se o
caso O"Dwyers. Em Neuen Züricher Zeitung, um periódico contra o
qual não se pode levantar a acusação de antiamericanismo, pode-se ler o
seguinte: “A nomeação de O"Dwyers como embaixador no México atendeu
exclusivamente à necessidade de possibilitar a fuga do prefeito de Nova York,
antes que o escândalo vergonhoso de sua administração viesse à tona. O
território americano ficou tão perigoso para esse ex-policial de Nova York, que
ele prefere passar o resto de sua vida no México, e, de fato, como “consultor”
de um escritório de advocacia. Truman só aceitou o retorno de O’Dwyers, como
ele próprio diz, ‘com hesitação e em caloroso agradecimento aos serviços
prestados’. Mas O"Dwyers ainda vai representar os Estados Unidos da
América junto com outros delegados especiais na posse a ocorrer dentro de
poucos dias do novo presidente mexicano Ruiz Cortines”. No momento em que
escrevemos estas páginas, parece estar a ponto de explodir o caso
MacCarran. E este caso talvez seja, como sintoma, ainda mais interessante, uma
vez que se trata de um homem estreitamente vinculado às organizações de
gângsteres e que se faz passar por um paladino do “autêntico americanismo” e um
purificador contra as tendências antiamericanas. O caso MacCarran é, a sua
maneira, uma concentração simbólica do que ocorre nos círculos dominantes dos
instigadores da guerra, assim como, em seu tempo, o capitão Köpenick – muito
mais inocente, decerto – pôde ser considerado como um símbolo da Alemanha
guilhermina.
Esse
tipo de mistura de corrupção, gangsterismo, delinquência e terror político era
também característica do regime de Hitler. Recordemos aquela conversa de
Rauschning com o Führer, em que este afirmava como algo positivo a
corrupção da elite dominante, na medida em que isso obrigava seus membros, no
caso em que suas corrupções fossem descobertas, a prestar uma obediência
incondicional. Esse motivo também desempenha um papel importante na corrupção
hoje dominante. Quando se desmascara publicamente um desses casos de corrupção,
fica revelado que já havia um grande número de pessoas iniciadas no segredo,
mas que tinham suas razões para calar. Porém, os “elos transversais” com o
mundo dos gângsteres apresenta ainda a vantagem “política” de que, em casos
difíceis, se possa sempre contar com organizações terroristas dispostas a
intimidar e, se necessário, eliminar os elementos comprometedores. Em tempos
“normais” de paz, isso funciona como um sucedâneo daquilo que na guerra é
obtido por meio da disciplina militar. “O medo é a motivação do homem do século
XX” diz o general Cummings, aquele personagem de Mailer que já conhecemos. E
para fomentar esse medo, existe o aparato cada vez mais reforçado da polícia
secreta, existem as torturas legalmente autorizadas dos interrogatórios
policiais etc. Tudo isso naturalmente encontra sua expressão mais concentrada
no exército. “Onde melhor funciona o exército é ali onde cada um teme aquele
que lhe é superior e despreza aquele que lhe é inferior”, diz o já citado
general Cummings. A atmosfera de medo generalizado que assim se cria não está
em contradição com o problema da liberação dos instintos a que acabamos de
fazer referência. Pelo contrário, essa liberação é absolutamente necessária,
não apenas contra o inimigo interno, como também contra o externo. Basta que –
também como nos tempos de Hitler – os instintos sejam devidamente canalizados,
colocados na direção desejada. A atitude dos estratos dominantes ante o
gangsterismo constitui, nesse sentido – moral-espiritual e organizacional – um
elo nada desprezível.
Nesse capítulo da liberação dos instintos, do
gangsterismo e da corrupção espiritual e moral, encontra-se presente também o
forte papel que se confere aos renegados na luta contra o comunismo, e que
nunca foi tão grande quanto hoje. É óbvio que o fenômeno por si mesmo não é
completamente novo. Já conhecíamos, do entreguerras, a atividade internacional
de propaganda e provocação de Trotsky; havia então os diferentes Eastmans,
Doriots etc. Hoje, no entanto, não apenas os holofotes da publicidade destacam
agentes vulgares da polícia do tipo Kravchenko, etc., como também escritores
festejados, como Dos Passos, Silone, Koestler, Malraux, políticos importantes
como Ernst Reuxer, publicistas como Burnham e outros, procedem do campo dos
renegados do comunismo.
E
aqui emerge naturalmente a seguinte questão: o que torna o desprezo pelo
movimento comunista tão valioso aos olhos dos instigadores da guerra? Já
falamos a respeito do fato de que o vazio e a pobreza de ideias da ideologia imperialista
fazem necessariamente com que ela se aproprie – sob formas distorcidas – de
conteúdos marxistas, ao mesmo tempo que procura explorar detalhes caricaturais
na luta contra o próprio marxismo. E nessa questão os renegados são experts.
(Basta ver como os monopólios são abordados e descritos por Burnham, em
contraste com um Lippmann ou um Röpke). Fica claro que o estudo do marxismo,
por mais superficial que seja, oferece uma grande vantagem frente à formação
universitária burguesa, especialmente no campo da economia e da política. E
aqui é preciso dizer que a imensa maioria dos renegados que conquistaram certa
fama atuaram apenas momentaneamente no movimento comunista e, ademais, em sua
periferia. Como afirma o renegado Borkenau, somente Silone e Reuxer chegaram a
ser funcionários efetivos do Partido Comunista (sobre as diferenças de talento,
não vale a pena entrar em detalhes aqui, embora Silone, por exemplo, fosse, em
sua época de comunista, um realista digno de consideração, ao passo que
Koestler, com seus famosos romances sociopsicológicos, continue sendo o mesmo
jornalista superficial de antigamente). A isso é preciso acrescentar a
“autenticidade” de suas revelações acerca do comunismo, cujo valor de
propaganda os imperialistas valorizam, independentemente de se o renegado em
questão, devido a sua posição altamente periférica no movimento, estava
realmente em condições de se informar sobre as situações. Uma vez que a
propaganda anticomunista decaiu, conforme dissemos, ao baixo nível dos
Kravchenko, toda mentira e toda calúnia – e as informações de segunda são
apenas ornamentos que não mudam a coisa-em-si – são boas para ela. Além disso,
os renegados são considerados pessoas especialmente dignas de crédito pela simples razão de que não há para eles nenhum caminho de
volta. Burnham se expressa sobre isso, dizendo que eles são mais imunes ao
envenenamento ideológico do comunismo do que aqueles que nunca passaram por
essa experiência de transição; seu “não” ao comunismo é mais apaixonado do que
o dos demais. Seu ódio, seu sentimento de vingança, seu ressentimento, são
emoções altamente valiosas no campo da propaganda anticomunista. E tudo isso
explica por que – apesar do grau extremamente modesto de seus conhecimentos e
de seus talentos – eles são convertidos da noite para o dia em figuras de
liderança da luta ideológica contra o comunismo. Isso é mais uma prova do baixo
nível a que chegou a ideologia burguesa.
Dessa
situação e do reconhecimento da inferioridade espiritual e moral de seus
patronos atuais brotam a soberba e a arrogância dos renegados. Crossman relata
uma conversa com Koestler em que este lhe diz: “Nós, que fomos comunistas,
somos os únicos dentre vocês que sabemos o que realmente ocorre”. E Silone, com
sua arrogância, chega a afirmar que “a última batalha será travada entre
comunistas e ex-comunistas”. O que naturalmente não passa de uma piada ruim,
cujo único valor consiste em demonstrar que Silone esqueceu o que qualquer um
aprende num curso elementar de introdução. Essa piada sem graça é bastante
significativa, pois ressalta um aspecto da atitude moral-espiritual dos
renegados. O outro aspecto é uma nova nuança, um novo incremento da psicologia
e da moral dos decadentes. É onde se mostra o motivo decisivo da importância
que essas pessoas possuem para a burguesia atual. Ela só pode se servir de
gângsteres e de pessoas com deficiência moral. Para isso, os renegados são o
melhor material humano de que se pode dispor, pois constantemente vem à tona o
fundamento desfigurado e decadente de sua essência anímica, exageradamente
compensado pela soberba. “O verdadeiro ex-comunista – afirma Crossman – jamais
pode voltar a ser uma personalidade sadia”. E Koestler confirma esse
diagnóstico, fazendo com que um personagem – um poeta ex-comunista – se expresse
nos seguintes termos a respeito de si mesmo: “Existe uma poesia lírica e uma
sacra; existe também uma poesia do amor e uma poesia da rebelião; mas não
existe poesia dos apóstatas”.
Essa
psicologia do renegado, embora, à primeira vista, seja uma criação extrema de outsider,
consiste, no entanto, em um tipo revelador de todo esse período. O caráter
intimamente mentiroso decisivo que se expressa aqui sob a forma de um cinismo
hipócrita atravessa todos os fenômenos internos e externos da vida. Como a luta
contra o comunismo não pode e não deve de modo algum expressar o seu verdadeiro
conteúdo, qual seja, a luta para dar continuidade à exploração
contra os esforços em contrário, toda a base da controvérsia ideológica não
passa de um campo de mentiras: a luta da “liberdade” contra a “opressão”; uma
mentira aberta proclamada de forma cínica. E dessa falácia fundamental do
“mundo livre” se segue, obrigatoriamente, todo o método de Kravchenko.
Suas
consequências se tornam patentes em todos os campos da cultura. A tentativa de
forçar administrativamente a hegemonia cultural dos Estados Unidos não se
dirige somente ao campo diretamente político. Às vezes, se considera a direção
ideológica americana como uma questão universal; outras vezes, desempenham
também um papel decisivo os interesses materiais dos editores, dos produtores
americanos de cinema etc. Um cinema tão desenvolvido como o italiano e o
francês têm que travar, em seus próprios países, uma luta desesperada pela
existência frente à concorrência injusta e subsidiada com recursos estatais dos
Estados Unidos. Os livros progressistas franceses precisam se proteger por meio
de um movimento organizado de massa contra a difusão massiva da péssima
literatura de detetive, dos Digest etc. Enquanto a propaganda americana
da Guerra Fria pretende salvar a cultura europeia do “totalitarismo oriental”,
a verdadeira cultura europeia mantém uma luta de vida ou morte pelo direito de
existir frente às agências do “século americano”.
Tal
é a situação externa. E a interna? Temos falado de uma série de problemas
decisivos da cultura. Só queremos destacar aqui, por fim, outro que, apesar de
só interessar realmente a uma camada relativamente exígua da intelectualidade,
constitui o motivo comum que une entre si intelectuais bastante divergentes e
os insere nas tendências ideológicas da concepção de “mundo livre”. Já nos
referimos ao direito ao não conformismo. Mas isso não passa de uma ilusão. O
aparato editorial, cinematográfico, jornalístico etc. do capitalismo
monopolista reduz extraordinariamente o campo de ação real desse não
conformismo, sobretudo nas condições da Guerra Fria. E, na verdade, dentro de
cada caso preestabelecido, são toleradas e até exigidas certas nuanças
pessoais. Porém, tão logo se produza uma divergência real em questões de
conteúdo essencial, intervêm o aparato da publicidade, impondo um silêncio de
morte (recorde-se do enterro de Paul Éluard, o necrológio sobre ele), que pode
chegar a ponto da perseguição aberta (Chaplin). Os defensores do não
conformismo devem se colocar a questão: que tipo de não conformismo é
efetivamente permitido no “mundo livre”? Sartre, por exemplo, foi um herói da
“liberdade de pensamento” quando escreveu contra o comunismo; desde que, em
1952, integrou o Congresso dos Povos pela Paz, celebrado em Viena, se converteu
num sujeito desprezível para o “mundo livre”. À pergunta “conforme com quem e
com o quê?” o mundo livre dá uma resposta categórica: se pode (e se deve)
professar audaciosamente seu não conformismo, pronunciando-se, seja nos Estados
Unidos, seja na Alemanha de Adenauer etc. contra a União Soviética e contra o
socialismo. Há inclusive liberdade para empregar à vontade todo tipo de
argumento. Mas isso desde que se marche em conformidade com o capitalismo
monopolista e com sua política imperialista de agressão: só aqueles que se
conformam com isso são reconhecidos e respeitados como “não conformistas”
adequados.
Mas
a problemática do não conformismo vai muito além. Já dizia Lênin em sua obra Empiriocriticismo
que as distintas nuanças professorais da teoria do conhecimento, nuanças
individuais defendidas e atacadas, se pulverizam a ponto da indistinção quando
contemplados pelo prisma da questão realmente decisiva da teoria do
conhecimento: idealismo ou materialismo? Isso se aplica cada vez mais aos
problemas ideológicos do presente. Quem dirigir sua atenção para as questões
decisivas da visão de mundo perceberá, no caos à primeira vista imenso das
nuanças individuais que constituem o panorama da filosofia de nossa época, uma
monotonia espantosamente conformista: nesse sentido, já vimos o quão perto se
encontram, por exemplo, Wittgenstein e Heidegger, que nunca exerceram
influência nenhuma um sobre o outro. A mesma coisa ocorre na condição da ética,
na concepção da história, nas posições relativas à sociedade, na estética. E,
naturalmente, também na literatura e nas artes.
E
são justamente as tendências mais individualistas, mas radicalmente não
conformistas que trazem consigo esse nivelamento radical, pois, objetivamente
(e, portanto, também artisticamente), a “riqueza real do indivíduo depende
inteiramente de suas relações reais” (Marx). Quanto mais a nova arte se empenha
em colocar no centro de sua criação a personalidade voltada para si mesma,
dissociada da sociedade, das relações sociais, maior vai se tornando, a ponto
da indiferenciação, a semelhança entre todas as figuras, que, externamente, são
tão – extraordinariamente – diferentes, pois, objetivamente (e, portanto,
também artisticamente) o mundo das relações humanas culturalmente desdobradas é
incomparavelmente mais rico e variado do que o simples e desnudo mundo dos
instintos, razão pela qual uma arte que faz desse mundo, com
exclusivismo quase dogmático, seu tema central, marcha forçosamente para a
monotonia, para a nivelamento. O coito entre Dido e Eneas não se diferencia
muito da união carnal de Romeu e Julieta, no entanto, a diferença dos
sentimentos eróticos culturalmente condicionados criou individualidades
autênticas que não morrem jamais. O abstracionismo não fraternal da maioria dos
não conformistas de hoje engendrou assim um nivelamento desumano de suas
criações. À uniformização que mencionamos mais acima, imposta no exterior pelos
órgãos do capitalismo monopolista, une-se aqui – involuntariamente – a
uniformização provocada interiormente. Ernst Fischer tinha razão quando disse
no Congresso da Paz de Wroslaw que as modernas individualidades não
conformistas são tão parecidas entre si quanto um ovo com outro.
Toda
essa estrutura, o nivelamento da personalidade, sua uniformidade, sua
normatização, que é tanto maior quanto mais ruidosa e intempestivamente se
proclama o não conformismo, seu reflexo na criação e na recepção artística, é
uma farsa objetiva que brota necessariamente do solo do capitalismo
monopolista; e, subjetivamente, trata-se, com muita frequência, de um
autoengano, de uma fraude contra si mesmo. Tal é o caráter geral desse “mundo
livre” de hoje, assim como sob Hitler. Com a diferença de que ali, para uns, a
farsa vinha camuflada sob o véu colorido dos mitos, ao passo que outros
acreditavam que a demagogia e a tirania hitlerista (e não a essência do
capitalismo monopolista avançado, do qual Hitler era um mero agente)
constituíam o único obstáculo, cuja eliminação traria consigo o advento da
beatífica era do individualismo não conformista. O véu caiu, a embriaguez
passou. Hoje todo mundo pode se dar conta de que a apologética extraída à força
do sistema capitalista, e, de fato, em sua forma atual, agressiva e
beligerante, é apenas o pressuposto para um não conformismo tolerado. O campo
de ação para o movimento livre é, nesse mundo, cada vez mais estreito, e o
conteúdo prescrito e que se obriga a proclamar, cada vez mais pobre e
mentiroso. Parece incrível, mas é verdade. A ideologia da guerra fria trouxe
consigo uma perda de nível, inclusive em relação ao tempo de Hitler. Para se
convencer disso basta comparar um Hans Grimm com um Koestler ou um Rosenberg
com um Burnham.
As
causas desse fenômeno já foram discutidas aqui. Trata-se do colapso da
apologética indireta, que podia pelo menos simular a aparência falsa de uma
união com o povo. Por mais que labutem, os braintrusts de hoje seriam
incapazes de encontrar, em sua luta contra o comunismo, uma nova
forma que pudesse entusiasmar realmente o povo. A falsidade se torna cada vez
maior e seu modo fenomênico cada vez menos tentador e atrativo. Hitler ainda
pôde reunir tudo o que de reacionário havia em 150 anos de desenvolvimento
irracionalista, levando o irracionalismo para os salões e para as ruas. A
obrigação, socialmente condicionada, de praticar a apologética direta faz com
que isso hoje também seja impossível.”
“Não há visão de mundo inocente.”