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terça-feira, 15 de novembro de 2022

“Dialética da dependência” e outros escritos (Parte III), de Ruy Mauro Marini

Editora: Expressão Popular

Tradução: Carlos Eduardo Martins, Eduardo Carcanholo e Roberta Traspadini

Organização: João Pedro Stedile e Roberta Traspadini

ISBN: 978-65-589-1059-6

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 360

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Sinopse: Ver Parte I



“Na economia capitalista clássica, a formação do mercado interno representa a contrapartida da acumulação de capital: ao separar o produtor dos meios de produção, o capital não só criou o assalariado, isto é, o trabalhador que só dispõe de sua força de trabalho, como também criou o consumidor. De fato, os meios de subsistência do operário, antes produzidos diretamente por ele, são incorporados ao capital, como elemento material do capital variável, e só são restituídos ao trabalhador quando este compra seu valor baixo a forma de salário.27 Existe, pois, uma estreita correspondência entre o ritmo da acumulação e o da expansão do mercado. A possibilidade que tem o capitalista industrial de obter no exterior, a preço baixo, os alimentos necessários ao trabalhador, leva a estreitar o nexo entre a acumulação e o mercado, uma vez que aumenta a parte do consumo individual do operário dedicada à absorção de produtos manufaturados. É por isso que a produção industrial, nesse tipo de economia, concentra-se basicamente nos bens de consumo popular e procura barateá-los, uma vez que incidem diretamente no valor da força de trabalho e portanto — à medida que as condições em que se dá a luta entre os operários e os patrões tende a aproximar os salários desse valor na taxa de mais-valia. Vimos que essa é a razão fundamental pela qual a economia capitalista clássica deve se orientar para o aumento da produtividade do trabalho.

O desenvolvimento da acumulação baseada na produtividade do trabalho tem como resultado o aumento da mais-valia e, em consequência, da demanda criada pela parte desta que não é acumulada. Em outras palavras, cresce o consumo individual das classes não produtoras, com o que se amplia a esfera da circulação que lhes corresponde. Isso não só impulsiona o crescimento da produção de bens de consumo manufaturados, em geral, como também o da produção de artigos supérfluos.28 A circulação tende portanto a se dividir em duas esferas, de maneira similar ao que constatamos na economia latino-americana de exportação, mas com uma diferença substancial: a expansão da esfera superior é uma consequência da transformação das condições de produção e se torna possível à medida que, aumentando a produtividade do trabalho, a parte do consumo individual total que corresponde ao operário diminui em termos reais. A ligação existente entre as duas esferas de consumo é distendida, mas não se rompe.

Outro fator contribui para impedir que a ruptura se realize: é a forma como se amplia o mercado mundial. A demanda adicional de produtos supérfluos que cria o mercado exterior é necessariamente limitada, primeiro porque, quando o comércio se efetua entre nações que produzem esses bens, o avanço de uma nação implica no retrocesso de outra, o que suscita, por parte da última, mecanismos de defesa; e depois porque, no caso da troca com os países dependentes, essa demanda se restringe às classes altas, e se vê assim constrangida pela forte concentração de renda que implica a superexploração do trabalho. Portanto, para que a produção de bens de luxo possa se expandir, esses bens têm de mudar o seu caráter, ou seja, converter-se em produtos de consumo popular no interior mesmo da economia industrial. As circunstâncias que permitem elevar ali os salários reais, a partir da segunda metade do século XIX, às quais não é estranha a desvalorização dos alimentos e a possibilidade de redistribuir internamente parte do excedente subtraído das nações dependentes, ajudam, na medida em que ampliam o consumo individual dos trabalhadores, a se contrapor às tendências desarticuladoras que atuam no nível da circulação.

A industrialização latino-americana se dá sobre bases distintas. A compressão permanente que exercia a economia exportadora sobre o consumo individual do trabalhador não permitiu mais do que a criação de uma indústria débil, que só se ampliava quando fatores externos (como as crises comerciais, conjunturalmente, e a limitação dos excedentes da balança comercial, pelas razões já assinaladas) fechavam parcialmente o acesso da esfera alta de consumo para o comércio de importação.29 É a maior incidência desses fatores, como vimos, o que acelera o crescimento industrial, a partir de certo momento, e provoca a mudança qualitativa do capitalismo dependente. A industrialização latino-americana não cria, portanto, como nas economias clássicas, sua própria demanda, mas nasce para atender a uma demanda pré-existente, e se estruturará em função das exigências de mercado procedentes dos países avançados.”

27 A reprodução ampliada desta relação constitui a essência mesma da reprodução capitalista; cf. particularmente O Capital, I, XXIV.

28 Empregamos o termo “industrialização” para salientar o processo pelo qual a indústria, empreendendo a mudança qualitativa global da velha sociedade, caminha no sentido de se converter em eixo da acumulação de capital. É por isso que consideramos que não se dá um processo de industrialização no seio da economia exportadora, em que pese o fato de que se observa nessa economia atividades industriais.

29 Um historiador brasileiro, referindo-se à campanha pelo aumento de tarifas alfandegárias desencadeada pelos industriais brasileiros em 1928, destaca com clareza o mecanismo de expansão do setor industrial na economia exportadora: “Sob a pressão de uma recessão da demanda de tecidos de má qualidade nas áreas rurais, como consequência da queda de preços do café — o preço médio da saca de 60 quilos caiu de 215$ 109 para 170$ 719 entre 1925 e 1926 — vários industriais se especializaram na produção de tecidos médios e finos, a partir de meados da década de 1920. Ao penetrar nesta faixa do mercado, passaram a sofrer o impacto da concorrência inglesa, que foi acusada de realizar um ‘dumping’ para liquidar a produção nacional. Os Centros Industriais se articularam em uma campanha visando o aumento das tarifas de tecidos de algodão e a restrição das importações de maquinado, alegando que o mercado não comportava a ampliação da capacidade produtiva existente”. (Boris Fausto. A revolução de 1930. Ed. Brasiliense, São Paulo, 1970, pp. 33-34). O episódio é exemplar: a queda dos preços do café restringe o poder de compra dos trabalhadores, mas também a capacidade de importação para atender a esfera alta da circulação, provocando um movimento da indústria no sentido de se deslocar para esta última e se beneficiar dos melhores preços que ali se pode obter. Como veremos, esse tropismo da indústria latino-americana não é privilégio da velha economia exportadora.

 

 

“Dedicada à produção de bens que não entram, ou entram muito escassamente, na composição do consumo popular, a produção industrial latino-americana é independente das condições de salário próprias dos trabalhadores; isso em dois sentidos. Em primeiro lugar, porque, ao não ser um elemento essencial do consumo individual do operário, o valor das manufaturas não determina o valor da força de trabalho; não será, portanto, a desvalorização das manufaturas o que influirá na taxa de mais-valia. Isso dispensa o industrial de se preocupar em aumentar a produtividade do trabalho para, fazendo baixar o valor da unidade de produto, depreciar a força de trabalho, e o leva, inversamente, a buscar o aumento da mais-valia por meio da maior exploração — intensiva e extensiva — do trabalhador, assim como a redução de salários mais além de seu limite normal. Em segundo lugar, porque a relação inversa que daí se deriva para a evolução da oferta de mercadorias e do poder de compra dos operários, isto é, o fato de que a primeira cresça à custa da redução do segundo, não cria problemas para o capitalista na esfera da circulação, uma vez que, como deixamos claro, as manufaturas não são elementos essenciais no consumo individual do operário.”

 

 

“É assim como, incidindo sobre uma estrutura produtiva baseada na maior exploração dos trabalhadores, o progresso técnico possibilitou ao capitalista intensificar o ritmo de trabalho do operário, elevar sua produtividade e, simultaneamente, sustentar a tendência para remunerá-lo em proporção inferior a seu valor real. Para isso contribuiu decisivamente a vinculação das novas técnicas de produção com setores industriais orientados para tipos de consumo que, se tendem a convertê-los em consumo popular nos países avançados, não podem fazê-lo sob nenhuma hipótese nas sociedades dependentes. O abismo existente entre o nível de vida dos trabalhadores e o dos setores que alimentam a esfera alta da circulação torna inevitável que produtos como automóveis, aparelhos eletrodomésticos etc. sejam destinados necessariamente para esta última. Nessa medida, e toda vez que não representam bens que intervenham no consumo dos trabalhadores, o aumento de produtividade induzido pela técnica nesses setores de produção não poderia se traduzir em maiores lucros por meio da elevação da taxa de mais-valia, mas apenas mediante o aumento da massa de valor realizado. A difusão do progresso técnico na economia dependente seguirá, portanto, junto a uma maior exploração do trabalhador, precisamente porque a acumulação continua dependendo fundamentalmente mais do aumento da massa de valor — e portanto de mais-valia — que da taxa de mais-valia.

Pois bem, ao se concentrar de maneira significativa nos setores produtores de bens supérfluos, o desenvolvimento tecnológico acabaria por colocar graves problemas de realização. O recurso utilizado para solucioná-los tem sido o de fazer a intervenção do Estado (por meio da ampliação do aparato burocrático, das subvenções aos produtores e do financiamento ao consumo supérfluo), assim como fazer intervir na inflação, com o propósito de transferir poder de compra da esfera baixa para a esfera alta da circulação; isso implicou em rebaixar ainda mais os salários reais, com o objetivo de contar com excedentes suficientes para efetuar a transferência de renda. Mas, na medida em que se comprime dessa forma a capacidade de consumo dos trabalhadores, é fechada qualquer possibilidade de estímulo ao investimento tecnológico no setor de produção destinado a atender o consumo popular. Não pode ser, portanto, motivo de surpresa que, enquanto as indústrias de bens supérfluo crescem a taxas elevadas, as indústrias orientadas para o consumo de massas (as chamadas “indústrias tradicionais”) tendem à estagnação e inclusive à regressão.”

 

 

“Por conseguinte, o que se pretende demonstrar em meu ensaio é, primeiro, que a produção capitalista, ao desenvolver a força produtiva do trabalho, não suprime, e sim acentua, a maior exploração do trabalhador; e, segundo, que as combinações das formas de exploração capitalista se levam a cabo de maneira desigual no conjunto do sistema, engendrando formações sociais distintas segundo o predomínio de uma forma determinada.”

 

 

“A superexploração não corresponde a uma sobrevivência de modos primitivos de acumulação de capital, mas que é inerente a esta e cresce correlativamente ao desenvolvimento da força produtiva do trabalho. Supor o contrário equivale a admitir que o capitalismo, à medida que se aproxima de seu modelo puro, converte-se em um sistema cada vez menos explorador e logra reunir as condições para solucionar indefinidamente suas contradições internas. Em segundo lugar, de acordo com o grau de desenvolvimento das economias nacionais que integram o sistema, e do que se verifica nos setores que compõem cada uma delas, a maior ou menor incidência das formas de exploração e a configuração específica que elas assumem modificam qualitativamente a maneira como ali incidem as leis de movimento do sistema e, em particular, a lei geral da acumulação do capital. É por essa razão que a chamada marginalidade social não pode ser tratada independentemente do modo como se entrelaçam nas economias dependentes o aumento da produtividade do trabalho, que deriva da importação de tecnologia, com a maior exploração do trabalhador, que esse aumento da produtividade torna possível. (...)

Como quer que seja, a exigência de especificar as leis gerais de desenvolvimento capitalista não permite, desde um ponto de vista rigorosamente científico, recorrer a generalidades como a de que a nova forma da dependência repousa na mais-valia relativa e no aumento da produtividade. E não permite porque esta é a característica geral de todo o desenvolvimento capitalista, como vimos. O problema está, portanto, em determinar o caráter que assume na economia dependente a produção de mais-valia relativa e o aumento da produtividade do trabalho.”

 

 

“A procedência social, os mecanismos de mobilidade a que estão sujeitos, a educação, o ambiente familiar e de trabalho dos indivíduos modificam seu comportamento e, mais que isso, moldam sua visão do mundo e a percepção que eles têm de si mesmos. Para definir uma classe social em um momento histórico dado não basta, portanto, considerar a posição que objetivamente ocupam os homens na reprodução material da sociedade. É necessário, além disso, considerar os fatores sociais e ideológicos que determinam sua consciência em relação ao papel que nela acreditam desempenhar. Apesar das críticas que essa assertiva tem sofrido, somente em última instância a base econômica determina a consciência. E o faz mediante a dinâmica social concreta, ou seja, através da luta de classes. E a tal ponto que, em circunstâncias dadas, mesmo trabalhadores que, por sua posição na reprodução econômica, não estão incluídos diretamente na classe operária ou que se consideram alheios a ela podem coincidir com suas aspirações e se assimilar ao movimento operário.8

Isso se deve a que, além da consciência que possam ter de seu pertencimento de classe, os operários produtivos ou improdutivos, qualquer que seja a modalidade sob a qual realizam seu trabalho e o âmbito onde o fazem, do mesmo modo que outras classes ou frações de classe submetidas ao capital, têm interesses comuns, cuja percepção estabelece a base possível de um projeto de vida solidário. Essa é a razão pela qual todas as instituições e mecanismos do jogo político que caracterizam a sociedade burguesa, assim como suas variadas expressões ideológicas, visam bloquear essa percepção, dissolver a unidade latente entre os trabalhadores antes que esta tome forma, vedar-lhes a passagem para a compreensão dos fatos reais que constituem a essência da ordem capitalista e de seu desenvolvimento.”

8 A adesão dos trabalhadores intelectuais – professores, estudantes, profissionais, funcionários públicos – a valores de inspiração operária, que foi uma marca distintiva dos movimentos de 1968, resultou da prática desses setores que, em sua mobilização por melhores condições de vida e de trabalho, começaram a adotar formas de organização e luta como o sindicato e a greve. Isso pôde ser observado claramente na América Latina desde os princípios daquela década e não somente aqui. Os anos 1970 assistiram ao auge dessa tendência, que hoje se encontra em declínio.

 

 

“A democracia plena não somente tem o socialismo como premissa, mas conduz a ele. Isso só não ocorreria se fosse possível conceber uma maioria governando para o benefício da minoria, ou seja, contra si mesma.”

 

 

As alianças de classes

Este é, sem dúvida, um elemento central do conceito de democracia e que lhe confere sua especificidade, independente do sistema econômico com o qual convive: o reconhecimento de divergências e choques de interesses entre os atores políticos (a democracia socialista não faz mais do que converter em sujeitos políticos reais as grandes massas do povo, o que a democracia burguesa coíbe e reprime) e a possibilidade efetiva de que eles sejam solucionados pacificamente, por meio de negociação e do consenso. No momento em que um sujeito impõe a outro uma solução de força, está abandonando o terreno da democracia, por mais que, aos olhos dos contemporâneos em perspectiva histórica se procure justificar esta imposição como destinada a garantir, a longo prazo, a própria democracia. Pode-se discutir se, caso não houvesse ocorrido a coletivização, a União Soviética teria sido capaz de levar adiante sua edificação socialista; mas não há dúvida de que a coletivização constituiu um modo não-democrático de solucionar a crise a que havia chegado a aliança operário/camponesa.

Nesta perspectiva, a democracia, mais além das instituições jurídico políticas em que se expressa, configura um modo, um método para solucionar as divergências entre os sujeitos políticos, isto é, de modo geral, entre as classes sociais. Entre todas? A visão leninista, inscrita em um contexto de guerra civil e de agressão internacional, responde a esta pergunta restringindo a democracia ao campo da revolução, à aliança operário/camponesa, e a torna gêmea da ditadura a ser exercida sobre a burguesia, que promove esta guerra e esta agressão. Deixemos de lado, por enquanto, a questão de saber se essa dualidade é consubstancial ao conceito de democracia socialista e nos ocupemos, inicialmente, de como Lenin concebe o seu exercício.

Na Revolução Russa, a aliança operário-camponesa não é uma aliança entre iguais. Isto fica claramente estabelecido na Constituição de 1921, que superdimensiona a representação política do proletariado em detrimento dos camponeses. Considera-se esta aliança como a que realiza a classe revolucionária — o proletariado — com a imensa massa oprimida e explorada da Rússia, a qual se compõe essencialmente de camponeses, e que ela se baseia na insubmissão destes a esta opressão e exploração, o que também os converte em revolucionários. Porém, enquanto os camponeses podem se contentar com o acesso ao direito de propriedade, mantendo-se, por ele, nos marcos da revolução burguesa, o proletariado quer ir além e suprimir a propriedade privada dos meios de produção, como modo de garantir a igualdade política e, enfim, a liberdade. A questão consiste, para o proletariado, em convencer o campesinato a lutar contra seu interesse imediato, a propriedade privada, em troca da satisfação de seu interesse geral, ou seja, o término de qualquer forma de opressão e exploração.

Convencer significa persuadir. Existe, para isto, uma razão prática: por sua situação minoritária na sociedade, o proletariado não tem condições de submeter o campesinato pela força, mesmo que alegasse que o faz em benefício deste, sem colocar em cheque a aliança de classes. Mas também existe uma questão de princípio: submetê-lo pela força contraria a vocação democrática do proletariado.

Portanto, é preciso recorrer mais à persuasão do que à coerção: isto é o que faz do Estado operário-camponês um Estado democrático, ou seja, um Estado cuja característica central é a solução das divergências entre as classes mediante a discussão e o consenso. A forma e a duração da transição socialista estarão determinados, antes de tudo, pelo modo como se enfrentam as divergências e tempo que sua resolução exija. Até então, as duas classes têm de conviver pacificamente, fazendo concessões mútuas, nos marcos das instituições estatais que assegurem esta convivência.

A convivência democrática não impede, mas, ao contrário, exige iniciativas tendentes a modificá-la. Do contrário, resultaria em estagnação, o pior inimigo dos grandes projetos históricos. Enquanto essas iniciativas se mantém no plano da persuasão, elas não afetam em nada o caráter democrático do Estado. Bastaria, porém, que assumissem um caráter coercitivo para que a democracia fosse posta em xeque.

Isto nos leva a perguntar o que é a lei em um Estado democrático. Instrumento mediante o qual este fixa objetivos e estabelece procedimentos sob pena de sanção, o que a converte em medida coercitiva, a lei não poderia existir em um regime no qual todos fossem iguais e ninguém tivesse o direito de impor qualquer coisa ao outro. Para que ela exista, é necessário que a tomada de decisões em uma sociedade não se reparta equitativamente entre os indivíduos e as classes que a compõem — o que não tem nada a ver com a igualdade de todos perante a lei, noção que a revolução proletária herda da revolução burguesa.

Democracia e igualdade política não são, pois, idênticas. A democracia implica desigualdade no plano da tomada de decisões e implica necessariamente um modo de dominação. A especificidade da democracia socialista reside em que a dominação tende a se exercer predominantemente por meio da persuasão e não pela coerção.

Eis porque, para Lenin, a lei não é um mero imperativo que implica uma sanção (como ocorre na democracia burguesa), mas também — e sobretudo — enquanto meio de ação da democracia socialista, um elemento educativo, que coloca objetivos e que os explica, cabendo ao Estado (e ao partido) aplicá-los por meio da persuasão. A lei ideal na democracia socialista, é aquela que contém mais preâmbulo do que artigos e que serve de ferramenta aos agitadores e propagandistas para induzir comportamentos revolucionários6. No limite, a lei é apenas uma forma mais desenvolvida de educação política7. A este respeito, Lenin afirmou que, “se esperássemos que a redação de uma centena de decretos fosse mudar toda a vida do campo, seríamos uns rematados idiotas. Mas se renunciássemos a indicar nos decretos o caminho a seguir, seríamos traidores ao socialismo. Estes decretos, que na prática não puderam ser aplicados imediata e integralmente desempenharam um grande papel para a propaganda (...) O nosso decreto é um apelo, mas não no espírito anterior: ‘Operários, erguei-vos, derrubai a burguesia!’ Não, é um apelo às massas, um apelo à ação prática. Os decretos são instruções que chamam à ação prática de massas.” (s/d b, III, 122).8”*

6. Isto foi o que vislumbrou Rousseau, ao se ocupar do tema da desigualdade, e que quase o levou ao ponto de ruptura com a ideologia burguesa. Sua fidelidade ao pequeno produtor e, por fim, à pequena propriedade individual o impediu de fazê-lo. Disto se aproveitou a burguesia para, mesmo a contragosto, empreender a recuperação de sua doutrina.

7. É mais desenvolvida porque a classe que a utiliza conta com o Estado para apoiá-la, mesmo que não tanto pelo uso da força, mas antes pela pressão econômica; v.g., a prioridade concedida às cooperativas agrícolas para a obtenção de recursos do Estado.

8. Mais adiante, ele acrescenta: “Os nossos decretos em relação às explorações camponesas são basicamente justos. Não temos motivos para renunciar a nenhum deles nem para lamentar um único. Mas se os decretos são justos, é injusto impô-los pela força ao camponês” (s/d, b:125).

*: A tradução deste trecho e dos outros três subsequentes não é a mesma do livro.

 

 

“Arma privilegiada que representa para a conquista do poder político, a ideologia constitui também, para a burguesia, instrumento fundamental para exercê-lo. Nenhuma classe na história, antes dela, concedeu à ideologia papel tão decisivo em seu modo de dominação. Valendo-se da ideologia, a burguesia realizou um esforço gigantesco, com o objetivo de converter à igualdade e subordinação de todos perante a lei; à liberdade na livre disposição da própria força de trabalho; e ao progresso, em perspectiva individual de ascensão social.

A pedra angular desta construção ideológica foi o conceito de cidadania ou, o que é o mesmo, a titularidade individual dos direitos civis e políticos, mediante o qual burguesia escamoteou às classes sociais e destinou a cada qual o papel de participante isolado na vida do Estado. Desta maneira, o indivíduo se confrontou inteiramente desarmado com o Estado, fonte e guardião da ordem estabelecida e que baseia sua existência no monopólio da força. O papel destacado que assumiu a ideologia na implementação da ordem burguesa não deixa margem ao uso da força, cabendo também à burguesia a invenção do monopólio estatal da mesma. Este inexiste em regimes anteriores, sendo que o maior grau de dispersão da força que observamos em instituições estatais é o que ocorre no Estado escravista, em que cada proprietário de escravos é livre para empregá-las contra seus trabalhadores.9

A democracia socialista, que rompe com o individualismo burguês e se assume como expressão da luta de classes, renuncia também à mistificação ideológica como instrumento de dominação. Já vimos a rude franqueza que reina no interior da aliança operário-campesina, baseada no interesse comum de pôr fim à opressão e à exploração, ainda que nela subsistam divergências em relação aos interesses de classe imediatos. Em relação à burguesia, com a qual não compartilha nenhum objetivo histórico e da qual lhe separa seu interesse de classe geral, o proletariado não pode praticar uma política de aliança: ao contrário, está obrigado a submetê-la à força, pela coerção, a seu projeto de sociedade.”*

9. A burguesia, em sua luta contra a ordem feudal, postula o monopólio da força e, transformada em classe dominante, o emprega conta as demais classes, chegando, inclusive, a suprimir suas próprias organizações aramadas, constituídas, na Idade Média, em defesa da autonomia dos burgos. Sob o regime jurídico burguês, o direito de portar armas só é concedido a cidadãos qualificados e em função exclusiva de sua defesa individual.

 

 

“O controle operário, a cogestão e a autogestão das empresas; a luta eleitoral e a participação no parlamento e nos governos locais; a participação e o controle popular sobre as políticas orçamentária, educacional, de saúde, de transporte público, junto à reivindicação de uma maior autonomia regional e local; a democratização dos meios de comunicação e o rechaço da censura; a crítica às desigualdades de base econômica, étnica ou sexual: estes são alguns dos instrumentos de que as massas estão lançando mão, aqui e ali, para defender seus interesses, elevar sua cultura política e amadurecer seu espírito revolucionário. É por este caminho que elas estão se capacitando para — diferentemente do ocorreu até agora nas revoluções socialistas — assumirem, elas mesmas, a direção do processo de transição socialista. O que, ao fim e ao cabo, é a única garantia segura de seu êxito.”

 

 

“A ciência não é um conjunto de procedimentos destinados a embelezar ou escamotear a realidade. A ela cabe lidar com os fatos, ainda que isto implique perder a elegância e sujar as mãos. A forma pela qual se estão desenvolvendo a democracia, a reconversão econômica e a integração na América Latina, e seus reflexos ao nível da ordem política, está longe de corresponder a nossos desejos. Isso exige que assumamos nossas responsabilidades para com os povos da região e nos esforcemos por indicar-lhes um caminho melhor.” *

 

 

“Nenhuma classe amadurece fora da luta.”

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