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sexta-feira, 9 de setembro de 2022

Desigualdade & caminhos para uma sociedade mais justa (Parte II), de Eduardo Moreira

Editora: Civilização Brasileira

ISBN: 978-85-2001-393-9

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 144

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Sinopse: Ver Parte I


Analisar o comportamento das Bolsas de Valores pelo mundo, que negociam exatamente esses direitos de receber parcelas de riquezas que serão geradas pelas empresas, é extremamente confuso para muitos. Até para especialistas.

Como vimos, um país não se torna mais rico ou mais pobre com a queda ou alta da Bolsa de Valores. Esses são movimentos absolutamente especulativos, que estão tentando adivinhar qual será a quantidade de riqueza gerada no futuro pela sociedade. Aliás, a invenção do dinheiro fez com que passássemos a considerar possibilidade de riqueza futura como se fosse riqueza presente – um erro de concepção proveniente da confusão que fazemos entre riqueza e dinheiro.

O que é importante ficar claro é que uma Bolsa em alta ou em queda não destrói nem dinheiro nem riqueza. Isso apenas aconteceria se notas de dinheiro fossem rasgadas no processo. Ou se os estoques de riqueza das empresas fossem queimados a cada vez que as Bolsas caíssem de valor. Porém, não é esse o caso. O que existe é um enorme fluxo do “fluxo de riqueza”, ou fluxo de dinheiro, entre os membros da comunidade. Que segue, como no nosso exemplo simplificado, passando pelas mãos dos intermediadores de riquezas, deixando-os com mais dinheiro, independentemente de altas ou quedas dos preços.”

 

 

Sociedades de consumo exigem uma grande geração de riqueza porque são grandes consumidoras de riqueza. Quando são ao mesmo tempo sociedades de consumo e comunidades com grande concentração dos meios de produção, essa necessidade de geração de riqueza é propositalmente impulsionada pelos donos dos meios de produção e das terras. E a equação quase sempre acaba como nos exemplos que demos ao longo deste livro, com poucos indivíduos muito ricos, muitos indivíduos muito pobres, um poder público com pouquíssimo poder de decisão e de redistribuição de riqueza, ocupado por representantes dos ricos. E com o meio de onde se tira a riqueza (a natureza) rapidamente degradado. Podemos agora adicionar a este cenário os intermediadores de riquezas, ou banqueiros, que, ao se beneficiarem da dinâmica das sociedades de consumo, acumulam também enormes quantidades de dinheiro, riqueza e poder.

A compreensão desses processos e da diferença entre dinheiro e riqueza são de fundamental importância para que uma comunidade possa focar seus esforços na geração de riqueza, e não nos processos envolvendo o dinheiro em si. A riqueza sem dinheiro já mostrou que é capaz de manter uma comunidade viva e forte. O dinheiro sem riqueza, ao contrário, não tem valor algum.”

 

 

Ao escrever o livro, porém, outra ideia foi ganhando força: a de que eu precisava viver um pouco daquilo sobre o que escrevia para poder testar minhas hipóteses e me tornar verdadeiramente empático ao problema. Decidi que faria um mergulho profundo nesta investigação. Em vez de simplesmente visitar grupos carentes ou marginalizados (como seria o normal de um pesquisador), decidi viver com eles por um período. Dormir onde eles dormiam, comer com eles, trabalhar com eles e me oferecer, mesmo que temporariamente, como um integrante do grupo para o que fosse preciso.

Cinco grupos vieram imediatamente à minha cabeça. Grupos extremamente marginalizados pela nossa sociedade, pintados como “perigosos” ou simplesmente “inferiores” pela mídia, e que certamente viviam o lado cruel da desigualdade que eu tanto havia estudado: o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), os povos indígenas, a população das regiões secas do interior do Nordeste brasileiro, a população carcerária e os moradores das favelas metropolitanas.

Pedi ajuda ao amigo Jessé de Souza, que prefacia este livro, para colocar meu plano de pé. E foi graças à sua ajuda e às pontes que ele fez com lideranças do movimento que, muito antes do que eu imaginava (somente duas semanas após minha ideia), eu estava decolando de São Paulo rumo ao noroeste do Paraná, onde iria morar durante algumas semanas em acampamentos e assentamentos do MST.

Eu verdadeiramente não sabia o que esperar. Tudo o que tinha ouvido, visto ou lido sobre o MST havia sido através da mídia. Jornais, rádios e programas de televisão mostrando violentos invasores de terras, armados com foices, facões e pedras, vandalizando propriedades, matando animais e rumando em fila a entoar gritos de guerra e espalhar sangue e desordem por onde passavam. Mas eles cumpriam os pré-requisitos que eu tinha estabelecido: eram marginalizados e pobres.

Não avisei ninguém próximo sobre a viagem. Fiquei com medo de assustá-los. A única a saber foi minha esposa. E mesmo ela, progressista e defensora de políticas públicas inclusivas e redistributivas, ficou temerosa. “Cuidado, meu amor, esses caras podem ser perigosos.” Já era tarde, a viagem estava decidida e só nos restava, a mim e a ela, torcer para que fosse menos perigoso do que imaginávamos.

Não descreverei aqui os detalhes dessa viagem. Seria injusto dedicar poucas páginas para uma experiência de vida tão incrível, que mereceria uma obra completa, escrita ou em vídeo. Estou certo de que ainda irei fazer um dos dois. Afinal, foram certamente as semanas de maior aprendizado em toda a minha vida. Durante todos os dias em que morei com os irmãos e irmãs de oito acampamentos e assentamentos do MST, aprendi mais sobre viver em comunidade e sobre economia do que havia aprendido nos meus 43 anos.

É sobre a parte econômica deste aprendizado que gostaria de me ater neste livro. E a razão é o fato de ter tido a oportunidade de ver na prática, acontecendo no dia a dia da comunidade, muitos dos conceitos que eu havia somente teorizado ao escrever este texto. Trazê-los ao conhecimento do leitor sem dúvida irá fundamentar muito do que foi falado até aqui.

Antes, porém, preciso destacar, mesmo que de forma breve, alguns pontos sobre o que vi nos dias em que lá estive:

• Nunca testemunhei tamanho acolhimento e generosidade como o que tive no MST. Desde o primeiro dia, em todas as comunidades por onde passei, não houve uma casa sequer que eu tenha visitado em minhas caminhadas onde não tivesse sido recebido com um café, um convite para almoçar ou jantar e, acreditem, a oferta de um lugar para passar a noite. E estamos falando de pessoas, na sua maioria, muito pobres, com casas muitas vezes feitas de lona e pedaços de madeira amontoados um sobre o outro. Não lhes falta, porém, o sorriso nem a disposição de dividir o que têm.

• Poucas vezes vi um sentimento de grupo, de comunidade, como o que vi nos acampamentos e assentamentos do MST. Existe uma preocupação genuína, verdadeira, de todos em relação a todos. Pouco antes de chegar a um dos acampamentos, fiquei sabendo que o barraco de um dos moradores tinha pegado fogo. Quando cheguei ao acampamento e fui visitá-lo, qual foi minha surpresa ao saber que o vizinho que tinha acabado de construir um barraco novo para a família dera o seu antigo, onde haviam morado, para o que havia perdido a casa. Vejam bem, ele deu! Não vendeu, trocou ou alugou.

• Nunca me senti tão seguro como nos dias em que morei nos acampamentos e assentamentos do MST. As casas não têm fechaduras nas portas, mas somente tramelas de madeira. As paredes não são pichadas. As crianças andam a pé todos os dias para onde quiserem, sozinhas ou com os amigos.

• Todos têm a mesma oportunidade de desempenhar um papel de coordenação na comunidade. Mulheres e homens, negros e brancos, jovens e idosos recebem o mesmo espaço e a mesma voz na discussão dos problemas dos acampamentos e assentamentos e possuem representantes nos grupos de coordenação do MST. Isto faz com que exista uma empatia enorme das lideranças em relação aos desafios pelos quais passam todos aqueles que estão sendo afetados por suas decisões.

• É importante que todos saibam que, quando as ocupações do MST se transformam em assentamentos, o Estado indeniza os antigos proprietários das terras ocupadas. Ou seja, não existe, em nenhum assentamento do país, o que as pessoas chamam de “roubo de terra”. Não há absolutamente nada que justifique identificar os integrantes do MST como “ladrões de terra”. Roubar implica que alguém se apropria de bem alheio, sem que o antigo proprietário seja remunerado por isso. O MST recupera terras improdutivas, produz riqueza para todo o país em forma geração de renda e impostos e acelera o processo de Reforma Agrária.”

 

 

Como já vimos neste livro, o surgimento da propriedade privada foi sem dúvida alguma a mais importante mudança de paradigma nas relações econômicas entre os homens. Após o seu surgimento, o ato de gerar riqueza deixou de ser uma decisão pessoal e passou a ser algo para o qual era necessário ter permissão. Isso fez com que, ao longo do tempo, os donos das terras e dos meios de produção, aqueles com o poder de dar ou negar essa permissão, cada vez mais acumulassem suas riquezas a partir da terra e cada vez menos a partir da sua capacidade pessoal de produzir.

Assim, os ricos precisaram somente ser filhos de famílias ricas para, ao herdar terras, máquinas e dinheiro, ter como única tarefa oferecer seus meios para outros que saibam gerar riquezas, os trabalhadores. Passaram inclusive a estudar para exercer essa função distanciada do processo de geração de riqueza, tornando-se “administradores” de fazendas, fábricas e empresas.

As relações econômicas, mais do que somente uma relação de conflito de classes, passaram a ser uma relação entre capital e trabalho. E cada vez mais aqueles que não geravam riquezas ficavam com uma parcela maior, e os que eram responsáveis pela criação de riquezas, com uma parcela menor. Em resumo, a exploração do trabalho pelos donos dos meios de produção.

Isto teve também um efeito psicológico importante, como lembra o psicólogo social americano Erich Fromm. Quando o homem era próximo do processo produtivo e contribuía gerando riqueza, sabia psicologicamente que sua capacidade de produzir tinha um limite físico ou fisiológico. Sua ambição, portanto, era também limitada. Ao distanciar-se desse processo produtivo e passar a acumular a riqueza gerada por outros, somente através da exploração de seu trabalho, esse limite passou a ser infinito. Ou pelo menos passou a ser limitado somente pela quantidade de pessoas que conseguiria explorar. Algo que passou a ser enorme depois da Revolução Industrial e da produção em grande escala possibilitada pelas máquinas. Com isso, sua ambição também se tornou ilimitada.

Migramos então para um sistema, o atual, no qual os ricos concentram quase todo o capital disponível – seja ele financeiro, tecnológico, fundiário ou intelectual –, mas pouco ou nada contribuem no processo de geração de riqueza. Isso os coloca ao mesmo tempo em uma situação de enorme força e fragilidade.

Força porque eles detêm o direito de escolher quando, quanto e como será gerada a riqueza que sustentará o grupo do qual fazem parte e dominam. Mas frágil porque, se por qualquer motivo perderem a propriedade dos meios de produção, passam a não ter valor algum. E sabendo disso, passam a ter como único objetivo manter sua posição privilegiada nesse sistema, impedindo o acesso dos trabalhadores às terras e aos meios de produção.

E esse simples fato, sozinho, explica quase todos os fenômenos do sistema econômico em que vivemos. As pressões por reformas trabalhistas e previdenciárias por parte das elites, os juros altos praticados pelos bancos e as campanhas de demonização de movimentos organizados como os sindicatos e o próprio MST, por exemplo.”

 

 

Outro cuidado que deve ser tomado pelos donos dos meios de produção para manter essa necessária relação de dependência é impedir, a qualquer custo, a organização dos trabalhadores. Isso porque, organizados, esses trabalhadores podem simplesmente inverter a relação de dependência. Vejamos por exemplo o caso das greves. Se um trabalhador sozinho decidir que não irá trabalhar, de maneira a mostrar que o dono da empresa tem uma posição frágil porque não domina o processo de criação de riqueza, certamente não causará impacto algum – e provavelmente acabará demitido. Mas, se todos os trabalhadores da empresa se unirem e decidirem juntos não ir trabalhar, o dono da empresa estará numa situação incrivelmente difícil. Afinal, sem seus trabalhadores, os responsáveis pela riqueza que produz (e acumula), ele não é capaz de absolutamente nada. E este será sempre seu maior medo.

É por isso que, no mundo todo, os donos das terras e dos meios de produção pressionam o governo por reformas trabalhistas que diminuam a força dos sindicatos e outras organizações coletivas e minem os direitos dos trabalhadores. Com o único objetivo de fazer com que a relação de necessidade e dependência entre o trabalhador e eles se acentue e a capacidade de compreender seu papel no processo produtivo diminua.

Por fim, é esse também o motivo por trás das mudanças propostas nos regimes de seguridade social em muitos países capitalistas. O interesse em dificultar a possibilidade de as pessoas poderem se aposentar é fazer com que, impedidos de tornarem-se donos dos meios de produção, os trabalhadores sejam obrigados a seguir até o fim da vida trabalhando e gerando riquezas para os donos dos meios de produção. Sem a aposentadoria não lhes resta alternativa senão aceitar a condição que lhe for oferecida para sobreviver.

O problema é que, com as novas regras vigentes em muitos países capitalistas, a capacidade física e psicológica de gerar riqueza de boa parte dos trabalhadores cessará antes da chegada de sua aposentadoria. E então, sem a posse dos meios de produção, sem a capacidade de gerar riqueza e sem um estoque de riqueza acumulado, só restará a eles uma alternativa para sobreviver: a assistência social. E é aí que reside o grande risco do futuro do sistema capitalista.”

 

 

Para enfrentar o problema da desigualdade é urgente adequar a carga tributária brasileira à de outros países. Isso significa aumentar consideravelmente a tributação sobre lucros, renda e ganho de capital, para conseguir reduzir, também de maneira expressiva, a tributação sobre os bens e serviços que são utilizados por toda a população.

Sem entrar em pormenores a respeito do tributo e da entidade política responsável pela arrecadação, a ideia pode ser ilustrada de forma simples, por meio de um exemplo baseado em estimativas reais: a carga tributária sobre a energia elétrica e serviços de telecomunicações no Brasil é de aproximadamente 40% sobre o preço do produto e serviço. Ao mesmo tempo, a tributação paga pelos indivíduos sobre os dividendos recebidos de empresas é de 0%. Acontece que nem todo brasileiro detém participação em empresas, ao passo que todo cidadão, direta ou indiretamente, consome energia elétrica e serviços de telecomunicações. Ou seja, uma redução na tributação sobre tais produtos e serviços, compensada por um aumento na tributação sobre dividendos, claramente beneficiaria toda a sociedade.

A tributação sobre dividendos é usada, de modo habitual, para exemplificar a injustiça tributária no país, mas existem inúmeras outras situações previstas na legislação, feitas não só para manter o patrimônio dos mais ricos, mas para acentuar a desigualdade social independentemente do período pelo qual passe a economia nacional. Nada justifica que a propriedade de uma Brasília amarela seja sujeita ao pagamento de um imposto sobre patrimônio, enquanto o proprietário de um barco ou avião não precise pagar imposto algum sobre o bem; que um presidente de empresa que aufira mais de 1 milhão de reais em salários por ano pague exatamente a mesma alíquota de imposto de renda que seu empregado que recebe 5 mil reais por mês; que a herança sofra uma tributação que não excede 8%, perpetuando eternamente o patrimônio na mão das mesmas famílias; que o investidor estrangeiro consiga auferir rendimentos e ganhos de capital no mercado brasileiro sem qualquer tributação; que empresas de serviços e mercadorias com faturamento de até 78 milhões de reais consigam remunerar seus sócios, que muitas vezes desenvolvem o trabalho pessoalmente, com carga tributária total (carga da pessoa jurídica e da pessoa física) que não chega a 20%, enquanto os empregados das mesmas empresas, que naturalmente recebem muito menos que seus sócios, paguem imposto de renda superior; que incentivos fiscais sejam concedidos sem qualquer preocupação de que a redução da carga tributária chegue ao consumidor final. Enfim, os exemplos são incontáveis e apenas ilustram um arcabouço jurídico cuja matriz ideológica é a perpetuação da exploração dos mais pobres pelos mais ricos.

Uma vez feitas tais constatações, é possível concluir que o enfrentamento da desigualdade e, consequentemente, dos maiores problemas do Brasil não é uma tarefa impossível, nem um trabalho para gerações. E, tampouco, deveria ser um projeto político “de esquerda”. A nossa legislação é tão perversa, a carga tributária, tão mal alocada, que bastará nos adequarmos a modelos já experimentados em outros países para darmos um salto enorme e imediato na busca por um país mais justo.

Para atingirmos tal objetivo é essencial que todos pensem no coletivo, pois o crescimento do grupo fará todos os indivíduos terem uma vida mais aprazível, menos custosa. Menos gastos com segurança, saúde e escolas privadas. Mais economia nas compras no mercado, nas contas de energia, telefone, gás e água.

Independentemente da formação profissional, todos podem participar dessa transformação para uma sociedade mais justa, mas o profissional do direito tributário tem as condições de ser um poderoso agente de mudança ao se questionar sempre se a tributação que busca para seu cliente, além de legal, é justa.”

(Márcio Calvet Neves)

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