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sexta-feira, 9 de setembro de 2022

Desigualdade & caminhos para uma sociedade mais justa (Parte I), de Eduardo Moreira

Editora: Civilização Brasileira

ISBN: 978-85-2001-393-9

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 144

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Sinopse: Após passar vinte anos no mercado financeiro, Eduardo Moreira percebeu que estava “olhando para o lado errado”; e, mais grave, “era um dos responsáveis pelo maior problema que o mundo vive há séculos”: a desigualdade.

O livro apresenta os circuitos que conectam essa formidável fábrica de desigualdades na qual vivemos. Com linguagem acessível, são explicados os conceitos de redistribuição de renda, impostos sobre renda e patrimônio, o papel do crescimento na geração de riquezas, a questão da propriedade privada, o papel dos bancos privados e a “crueldade” do mecanismo de endividamento do poder público, que gera dinheiros para um “grupo seleto” de membros da comunidade, mas não gera riqueza para as nações.

O livro analisa o real significado de “riqueza”, seu processo de criação e distribuição e suas consequências na vida das pessoas. A riqueza sem dinheiro não é capaz de manter uma comunidade viva e forte; e o dinheiro sem riqueza não tem valor algum, afirma o autor.

Com base em Karl Polanyi (A grande transformação), o autor aponta que existem mecanismos que atuam para amortecer os efeitos de concentração de riqueza. Numa sociedade democrática, na qual o sistema político representa os interesses do conjunto da sociedade, o Estado pode atuar para redistribuir renda pela implantação de políticas sociais e pela adoção de sistema tributário que incida proporcionalmente mais sobre a renda, os lucros, o patrimônio e a herança dos mais ricos (como fazem os países no norte da Europa).

Esse livro é imprescindível no Brasil. Somos a nação mais desigual do mundo; temos logo passado escravocrata; e ainda não enfrentamos, sequer, as desigualdades do Século 19.”

 


Tenho comparado, em minhas aulas e palestras, a economia dos países e regiões do mundo a pequenos parques de areia onde brincam crianças. Explico que a riqueza de um país é como a areia do parque. Digo também que, para se construírem montes de areia, inevitavelmente existirão buracos em algum lugar. Mostro, então, que nos países mais desenvolvidos do mundo, onde a qualidade de vida é tida como melhor, os montes não são tão altos e os buracos não são tão fundos, um reflexo de mecanismos que servem para “derrubar” areia dos montes mais altos de volta para o playground e permitir que os buracos nunca fiquem muito grandes, e todos sigam brincando.

É assim que as coisas funcionam, por exemplo, nos países nórdicos, onde o 1% mais rico da população não acumula mais do que 10% da renda do país e são poucos, estatisticamente, os indivíduos ultrarricos, como aqueles que figuram nas listas das pessoas com maior patrimônio do mundo.

Fica claro também, pela análise das estatísticas disponíveis relativas ao sucesso dos países em oferecer qualidade de vida a seus habitantes, que “derrubar montes” é um dos mecanismos mais eficazes para se fazer com que os playgrounds que existem funcionem da melhor e mais justa maneira possível.

No entanto, a maioria dos países capitalistas alega que o melhor mecanismo é outro: o de se jogar mais areia no parque, para que essa areia nova possa tapar os buracos sem que os montes tenham que, necessariamente, ser destruídos. Isto acontece, naturalmente, por um poder político concentrado nas mãos dos detentores (ou representantes deles) dos “montes de areia” nesses países.

Estimativas, porém, mostram que, se dependêssemos somente da areia que é jogada no parque para tapar os buracos, o mundo precisaria crescer 175 vezes sua economia (+17.500%), com a atual taxa de distribuição de renda, para fazer com que todo habitante do planeta conseguisse viver com uma renda superior a 5 dólares por dia (Oxfam Brasil, 2018). Um crescimento impensável, dada a escassez de recursos naturais no planeta e a inexistência de mão de obra para suportar tal crescimento.”

 

 

“Historicamente, todas as vezes que a desigualdade de riqueza atingiu certo ponto – colocando em risco a sobrevivência de uma parcela da população –, aconteceu algum evento que acabou levando forçosamente a uma redistribuição da riqueza.”

 

 

“É curioso notar que nas listas que trazem os dez países com melhor sistema de educação, saúde, segurança, menor corrupção, melhor índice de desenvolvimento humano e vários outros indicadores sociais, quase sempre os países nórdicos estão presentes. E quando analisamos as listas que trazem os indivíduos mais ricos do mundo, dificilmente acharemos um indivíduo desses países.”

 

 

“À medida que o investimento do poder público, visando à criação e distribuição de riqueza para todos, é bem-sucedido, a propriedade privada e os meios de produção passam a ser mais bem distribuídos entre os integrantes do grupo. Isso acaba tirando poder decisório dos ricos e enfraquece essa máquina concentradora de riqueza.

Desse modo, os donos das terras e dos meios de produção criaram mecanismos aparentemente inofensivos que funcionariam como um vírus infiltrado na máquina pública, e que fariam com que, ao longo do tempo, duas coisas viessem a acontecer: o poder público se transformaria em um instrumento concentrador de renda, e a riqueza nas mãos do poder público (ou seja, aquelas de propriedade de todo o grupo) seria lentamente passada para o poder privado sem que ninguém percebesse. São mecanismos tão eficazes que, mesmo hoje, pouquíssimas pessoas os percebem, por isso seguem cumprindo seu papel de concentrar riqueza nas mãos dos mais ricos e saquear as riquezas que estão em posse do poder público.

O principal desses mecanismos é o endividamento do Estado: uma máquina brilhante de dilapidar o bem comum e alocar ainda mais riqueza nas mãos dos que já a concentram.

Mas como surgiu e como funciona essa máquina tão engenhosa e eficiente a serviço dos ricos da comunidade? Tudo começa em nome do tal do “progresso”. Os membros dominantes da comunidade, os donos das terras e dos meios de produção, convencem todos no grupo de que as novas descobertas e possibilidades tecnológicas exigem que o grupo, como um todo, abra mão de uma parte de seu estoque de riqueza para investir na criação de novas riquezas.

Foi assim no descobrimento dos novos continentes, na Revolução Industrial e em vários outros momentos da história. Só que, nesses momentos – alegam os donos dos meios –, como o risco é grande e o benefício do investimento será para todos, a iniciativa de investir deve partir do poder público. Em outras palavras, deve-se usar o estoque de riqueza do grupo, e não o estoque dos indivíduos mais ricos.

O poder público, porém, não possui as riquezas necessárias para fazer o investimento exigido para que o tal “progresso” aconteça e beneficie “todos”. A única solução, portanto, seria que o poder privado, ou seja, os donos das terras e dos meios de produção, contribuíssem também, investindo parte de suas riquezas junto com o poder público.

E é exatamente aí que uma ideia brilhante surge: o vírus do qual falamos há pouco. Os donos dos meios de produção, em vez de investirem parte de suas riquezas junto com o poder público – o que implicaria o risco de perdê-las –, oferecem emprestar suas riquezas ao poder público! Voilà! A mágica está feita! Agora é só aguardar os efeitos que virão no decorrer do tempo.

Há ainda um detalhe de crueldade nesse mecanismo de endividamento do poder público. Os recursos obtidos com os donos dos meios de produção, em vez de serem utilizados para o tal progresso que deveria beneficiar a todos, são utilizados para iniciativas que beneficiam majoritariamente os mais ricos. Como, por exemplo, levar energia elétrica ou pavimentação para as regiões onde moram os ricos ou onde estão suas fábricas, em vez da realizar melhorias na periferia, onde moram os mais pobres. É como se em vez de gastar o seu próprio dinheiro para fazer uma obra de que necessitam, os mais ricos tenham encontrado uma maneira de fazer com que o Estado faça por eles e depois ainda lhes pague por esta obra (através dos juros da dívida). Em outras palavras, mais do que conseguir fazer a obra de que necessitam de graça, eles ganham dinheiro para tê-la feita.

O endividamento do poder público significa também que uma parte da riqueza gerada pela comunidade e coletada em nome de todos deverá ser distribuída somente para um “grupo seleto” de membros da comunidade, através do pagamento da dívida. Uma parcela que somente cresce com o tempo em função dos juros.

Depois de contraída a dívida com os donos das terras e dos meios de produção, só existem duas maneiras de o poder público conseguir pagar o que deve. A primeira é aumentando os impostos – como vimos, a porcentagem com que cada membro da sociedade tem de contribuir sobre as riquezas que gera ou que tem em estoque. A segunda é pagar com riquezas que foram acumuladas no passado em nome do grupo, como fruto do trabalho do grupo e para servir ao grupo. Mas que, agora, devem descumprir seu propósito inicial para atender a um compromisso assumido “ingenuamente” em benefício de todos.

Agora endividado e, por causa do pagamento dos juros, com uma quantidade de riqueza muito menor do que antes (insuficiente até mesmo para quitar suas dívidas), o poder público está com sua capacidade de investimento combalida. No entanto, o grupo precisa que os investimentos sigam sendo feitos; afinal, a riqueza existente está sendo consumida e isso pode arruinar o grupo como um todo, principalmente arruinar a vida daqueles que não detêm terras nem meios de produção. Todos, inclusive o governo, passam a ficar dependentes, portanto, dos donos das terras e dos meios de produção, os únicos que podem contribuir com o investimento necessário para gerar a riqueza que atenderá as necessidades do grupo.

Percebam que genial: é um processo que leva naturalmente quem criou o problema para o grupo a surgir como o único que pode solucioná-lo. E faz com que ele passe a ser visto como “o salvador” em potencial do grupo, passando a ser estimado e venerado por todos os membros da comunidade.

Há dois resultados imediatos desse processo para os donos das terras e dos meios de produção. O primeiro é o aumento do poder de barganha que passam a ter com os indivíduos que ocupam posições de decidir e de criar as regras de distribuição de riqueza na comunidade, os titulares do poder público. O segundo é a possibilidade de se colocarem como a melhor opção para representar os interesses do grupo nos processos eleitorais, dado que são os únicos que detêm os meios para salvar a sociedade. Essa é a combinação perfeita para, dentro de uma estrutura democrática criada inicialmente para representar todos, eleger um grupo que só representará os mais ricos e que poderá definir as regras de distribuição de riquezas, privilegiando os que já a possuem, sem ser contestado pelo grupo. Uma falsa democracia. Mas que não pode de forma alguma ser questionada, já que cumpre todos os requisitos legais que, em tese, definem o que é uma democracia.

Após os representantes dos donos das terras e dos meios de produção tomarem o poder público, e havendo a possibilidade de legislar em causa própria, quais são os próximos passos?

O primeiro, como já citamos, é aumentar os impostos, ou seja, aumentar a contribuição de riqueza de todos os membros da comunidade. Mas não de forma homogênea, como poderíamos esperar. Afinal, o problema maior da comunidade é a falta de investimentos necessários para gerar a riqueza de que todos precisam. Inclusive o poder público, que precisa quitar as dívidas, que não param de crescer.

Logo, os impostos sobre a propriedade das terras e dos meios de produção (devidos pelos donos dos maiores estoques de riqueza) são minorados com o intuito de facilitar o processo de investimento para a geração de novas riquezas. Por outro lado, todos os outros impostos, que afetam o resto da população, sobem bastante.

O Brasil é um exemplo fantástico desse processo, exatamente como acabamos de descrevê-lo. O imposto sobre a terra é quase inexistente, e os impostos que incidem sobre a renda e o patrimônio estão entre os menores do mundo. O Brasil é também um dos países que mais oferece subsídios fiscais para os investimentos dos grandes grupos de indústrias e empresas. Enquanto isso, os impostos sobre bens e serviços, que atingem todos – porém, com um impacto maior sobre os mais pobres –, são os responsáveis pela maior parte da arrecadação no país.



 

A máquina de impostos é ainda mais eficiente do que parece para atender ao interesse de acumulação de riquezas dos membros dominantes da comunidade. Isso porque a riqueza correspondente aos poucos impostos pagos pelos indivíduos ricos entra nessa máquina concentradora de renda, operada (e paga) pelo poder público, somente para voltar do outro lado como “recebimento de juros” das riquezas emprestadas inicialmente por estes mesmos indivíduos.

É como se o dinheiro emprestado no começo fosse o preço para comprar essa máquina concentradora e saqueadora das riquezas da comunidade. Essa máquina é propriedade dos donos dos meios de produção, mas é operada, de maneira ingênua e ignorante, pelo poder público – esse, que deveria representar os que são prejudicados pela máquina.

O segundo passo é pressionar o Estado a abrir mão de suas propriedades e transferi-las para os donos das terras e dos meios de produção para, assim, poder quitar suas dívidas, recuperar sua capacidade de investir e voltar a cumprir sua função de redistribuir as riquezas, recolhidas através dos impostos, em benefício de todos e não somente dos mais ricos. O Estado paga suas dívidas, transferindo aos mais ricos o estoque de riqueza que a sociedade possui: terras, empresas e imóveis. A riqueza guardada em nome do grupo e acumulada com a contribuição de todos que, por conta do vírus infiltrado no sistema pelos donos dos meios de produção, passa agora para as mãos da iniciativa privada. Assim, os mais ricos continuam a deter o controle majoritário do principal instrumento gerador de desigualdade em uma comunidade: as terras e os meios de produção (empresas e imóveis).

Estamos todos também acostumados com este segundo processo. É o famoso processo de “privatização dos ativos do Estado”. Significa vender, em nome do poder público, as riquezas construídas com os recursos de todos, sob a justificativa de devolver ao Estado o poder de investimento necessário para gerar riquezas e atender os indivíduos que passam dificuldade na comunidade. Mas isso, na verdade, significa pegar as riquezas que foram dadas, por todos ao Estado, com o objetivo de serem redistribuídas para os que mais necessitavam e entregá-las somente para os que já são ricos, em pagamento de uma dívida inicialmente motivada por estes mesmos indivíduos.

O processo inteiro acaba fazendo ruir as riquezas do grupo em posse do poder público e por entregá-las aos indivíduos que já concentram as riquezas na comunidade. O processo decisório dessa comunidade passa a ficar inteiramente sob domínio dos que detêm os meios de produção. Assim, a capacidade de agir segundo os interesses do grupo é diminuída drasticamente na sociedade.

Vários países já passaram por processos parecidos a esse ao longo das últimas décadas, de modo que, hoje, já temos dados para confirmar essa sequência de eventos, bem como os resultados que ela gera, como a lógica descrita há pouco foi capaz de prever.

Os Estados Unidos são um bom exemplo. Antes da década de 1980, uma fatia relevante do estoque de riqueza do país estava nas mãos do poder público, pouco mais de 15%. Os impostos sobre o estoque de riqueza (patrimônio) e a geração de riqueza  (renda) eram também altos, iniciando a década de 1980, acima de 50% nas alíquotas mais altas para os indivíduos mais ricos. Essas taxas, nas décadas anteriores, eram ainda maiores. A taxa que incidia sobre o patrimônio chegou a quase 80%, nos EUA, ou seja, de tudo que um americano acumulasse de riquezas e não utilizasse ao longo da vida, 80% seriam redistribuídos após sua morte para todos na comunidade, visando a tornar o grupo mais forte. A taxa sobre a geração de riqueza, para os mais ricos, chegou a ultrapassar os 90% nos anos posteriores à Segunda Guerra. Era como dizer a eles que havia um limite de riqueza que poderiam ter e que, devido aos efeitos causados pela guerra, a comunidade havia se fragilizado e era necessário que todos tivessem acesso à riqueza para o bem do grupo.

Foram anos em que os EUA se tornaram a nação mais forte, influente e economicamente poderosa do mundo. A desigualdade no país decrescia ano a ano, fazendo com que o 1% mais rico da população, que acumulava no início do século quase 50% da riqueza existente no país, diminuísse sua fatia de riqueza para pouco mais de 20% em 1980. Os governos eram cada vez mais representativos da sociedade, pois, ao longo do século, as mulheres (na década de 1920) e os negros (Voting Rights, em 1965) passaram também a votar. A dívida pública norte-americana, que havia alcançado mais de 100% do Produto Interno Bruto (a riqueza gerada por ano num país) após a Segunda Guerra, foi reduzida para menos de um terço do PIB e mantinha-se estável havia uma década. Os EUA eram como um aluno cumprindo o dever de casa e tirando a nota máxima em todas as provas.

A situação era tão perfeita que, apesar de choques econômicos como os do petróleo da década de 1970 (o do embargo de 1973 e o da revolução iraniana de 1979) e de algumas recessões, o país era conhecido mundialmente como a “terra das oportunidades”, onde todos podiam se tornar tudo o que sempre sonharam. Naquela década, os EUA provaram que pequenas recessões não necessariamente representam uma ameaça a uma comunidade, se os mecanismos de distribuição de riqueza fossem eficientes e o país tivesse riqueza acumulada para ser distribuída. Exatamente como acontecia nas comunidades rudimentares, quando dificuldades meteorológicas, migrações em massa de animais e tantos outros problemas surgiam: se houvesse riqueza acumulada, ela era redistribuída e todos atravessavam sem problemas as dificuldades.

Até que o então presidente Ronald Reagan convenceu o povo norte-americano de que era hora de acelerar o progresso. Afinal, existia uma recessão a ser combatida e uma “guerra ideológica” em curso e somente o progresso poderia vencê-las. Para isso, era necessário tomar duas providências. Primeiro, diminuir os impostos para que os donos das terras e dos meios de produção vissem uma oportunidade maior para investir suas riquezas no sistema e ajudá-lo a gerar riquezas e crescer. Segundo, o poder público devia aumentar seus investimentos, e para isso pegar dinheiro com os donos das terras e dos meios de produção – a chance de colocar o vírus dentro do sistema!

E exatamente assim foi feito. E os efeitos foram exatamente iguais aos que acabamos de prever em nosso simples exemplo. Trata-se de um estudo de caso bastante didático, como poucas vezes poderemos observar na história.

Em somente onze anos, de 1981 para 1992, a dívida pública norte-americana passou de 31% para 62% do PIB. Algo jamais visto na história do país em período curto e de relativa paz. Os impostos mais altos que incidiam sobre a geração de riqueza caíram de mais de 50% para quase a metade desse percentual ainda na década de 1980. Caíram também bruscamente os impostos sobre o estoque de riqueza. E aí, todo o resto foi apenas consequência.

 

Em pouco tempo o endividamento do Estado fez com que o discurso das privatizações ganhasse força e iniciou o processo de entrega de riqueza do poder público aos donos das terras e dos meios de produção para solucionar o problema. O processo decisório sobre o futuro da comunidade ia, na prática, saindo cada vez mais das mãos do poder público para chegar nas mãos do pequeno grupo dos mais ricos. Se no começo da década de 1980 os 90% mais pobres da população acumulavam quase 40% da riqueza do país e o 1% mais rico acumulava pouco mais de 20%, algumas décadas depois a situação se inverteu, com o 1% mais rico quase dobrando sua fatia nas riquezas do país, para quase 40% do “bolo”, enquanto os 90% mais pobres passaram a dividir cerca de 25% da riqueza nacional.




O percentual da riqueza do país nas mãos do poder público, ou seja, aquele que seria a reserva de segurança para suprir as necessidades dos mais necessitados do grupo em tempos de dificuldade (que, como vimos, superava os 15% antes da década de 1980), foi sendo transferido para os donos dos meios de produção até que chegou a zero e se tornou negativo: as dívidas do poder público passaram a ser maiores do que todas as suas riquezas. Em outras palavras, em vez de ter um estoque de riquezas para redistribuir entre os membros da comunidade, todo membro da comunidade passou a nascer devendo dinheiro para os donos dos meios de produção.

Desde a década de 1980, quando os EUA mudaram de rumo com a justificativa de diminuir o endividamento e acelerar o crescimento do país para o benefício de todos, nada do que fora prometido aconteceu. O endividamento só cresceu, ano após ano, até que o total da dívida pública superasse toda a geração de riqueza do país nas primeiras décadas do século XXI. E absolutamente nada mudou no ritmo de crescimento norte-americano. A única real consequência da mudança de rumo foi que os benefícios que antes eram distribuídos entre todos da comunidade passaram a ir somente para os mais ricos. 


 

Aí, sem o mecanismo de proteção para os indivíduos fragilizados da comunidade, normalmente garantido pela riqueza redistribuída pelo poder público, o enfraquecimento do grupo aconteceu de forma assustadora. E, curiosamente, sem que ninguém parecesse perceber. Isso porque o mundo parou de pensar em termos de “força do grupo” e passou a pensar em termos de “dinheiro total acumulado”, e nesse aspecto o país seguia forte. Ninguém percebia que a riqueza gerada não chegava mais a todos na comunidade. Era como ver um indivíduo aparentemente saudável, mas que, quando analisado por raios X ou por endoscopia, revelava um câncer interno que destruía rapidamente todos os seus órgãos vitais.

Atualmente, nas primeiras décadas do século XXI, a situação da comunidade norte-americana é preocupante. Os EUA continuam sendo o país com maior geração de riqueza no mundo. No entanto, não está entre os trinta lugares mais seguros para se morar, entre os trinta com melhor oferta de sistema de saúde para seus habitantes, entre os dez com melhor educação, entre os dez com melhor índice de desenvolvimento humano. É, entre todos os países que compõem a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE – grupo representativo dos países mais desenvolvidos do mundo), o que tem a maior taxa de pobreza; mesmo que quase todos os indivíduos que compõem a lista dos cem mais ricos do mundo sejam norte-americanos.”

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