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domingo, 22 de maio de 2022

Dicionário Analítico do Ocidente Medieval – Volume II (Parte IV), de Jacques Le Goff e Jean-Claude Schmitt

Editora: Unesp

ISBN: 978-85-3930-686-2

Tradução: Hilário Franco Júnior (coord.)

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 704

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Sinopse: Ver Parte I

 

“No século XI, a “honra” castelã é, para os contemporâneos, uma evidência imediata e sintética. O prodigioso Récit des Pactes (Conventi) entre Hugo de Lusignan e o conde de Poitiers, nos anos I020, não fala de outra coisa! Percebe-se que sob essa expressão encontra-se, ao mesmo tempo, o feudo e o senhorio, emblema do homem e riqueza material, função pública e patrimônio... Contudo, é extremamente difícil descrever esse tipo de honra, tanto no que se refere a seu princípio quanto aos seus dispositivos concretos. Sofremos com a escassez das fontes: não há inventários completos, e faltam até mesmo referências em zona de atrito com determinado senhorio de igreja. E nossas categorias modernas mostram suas limitações. A velha escola do século XIX tem razão: com base em nossos critérios, confunde-se indevidamente soberania e propriedade. E, contudo, é preciso aprendermos a esclarecer cada uma dessas noções. Não há, no século XI, propriedades ou soberanias abstratas, plenas e integrais, e sim, por toda a parte, verdadeiros laços de relações sociais (Duby o dizia muito bem): a posse de uma terra ou mesmo de um castelo supõe sempre uma relação entre diversos detentores de direitos, quer sejam eles os mesmos e concorrentes (alternados ou partilhados), quer sejam direitos de tipos diferentes que nós não mais dissociamos. Quase não conseguimos imaginar, por exemplo, que se possa deter um castelo ou uma terra sem o direito de aliená-los à vontade, o que no entanto é extremamente frequente no século XI. Predominam os direitos de uso sobre os de abuso. De maneira geral, as servidões que pesam sobre um homem e seus bens são mais numerosas do que na época moderna, sobretudo depois de I789, e é a toda essa atmosfera mental e sociojurídica que se chama “feudalismo” ou “ordem senhorial”, expressões mais imprecisas do que propriamente erradas.” (Senhorio – Dominique Barthélemy)

 

 

“Essa concepção da hierarquia dos valores não favoreceu a reflexão positiva acerca do casamento, “remédio à concupiscência”, “alternativa à danação para os incontinentes”, única forma de conjugação admitida a fim de conter a volúpia e, com esta última, a desordem. Partindo dos modelos evangélicos e romanos, os Pais falam em ordo conjugatorum e elaboram uma teologia do matrimônio que dedica, bem ou mal – mas muito tardia e parcimoniosamente –, um lugar ao sexo. E o fazem visando ao melhor uso de uma prática condenável quando não inteiramente subordinada à sua única finalidade lícita, a procriação. Portanto, convém respeitar estritamente as regras e os ritos de uma conjunção de corpos que têm igualmente por função moderar a luxúria. A advertência, tantas vezes citada depois de Santo Agostinho, ecoou através dos séculos: “Também é adúltero quem ama com demasiado ardor sua mulher”. A única relação suscetível de escapar ao pecado é aquela que os cônjuges empreendem e condizem a uma boa finalidade genésica. Os esposos não pecam quando restituem o debitum e respondem a uma exigência do outro que eles próprios não sentem, mas é necessário afastar resolutamente as ocasiões ou comportamentos que favorecem a concupiscência, limitar-se às relações noturnas, esquivar-se da nudez e não provocar a volúpia por gestos, cantos ou atitudes impudicas. Recomenda-se não abusar da mesa, pois o excesso de carne e vinho inflama o desejo carnal. É necessário saber dominar os corpos a fim de reduzir o número de encontros. Visando a esse objetivo, basta observar algumas regras simples: que a mulher, passiva, deixe toda iniciativa ao homem, e que este último conforme-se com o modo de conjunção que é próprio da espécie, pois o resto é invenção da incontinência e reduz as chances de procriação. Além disso, as posições incomuns são perigosas, provocam a cólera de Deus, ultrajam a ordem natural (como o equus eroticus) e podem dar lugar a concepções monstruosas (por exemplo, o acoplamento more canino). Ocorre o mesmo com o desrespeito aos períodos interditos, que totalizam, inicialmente, mais de 250 dias, reduzindo-se pouco a pouco com a supressão, desde o século XI, dos períodos de abstinência mais longos (salvo a Quaresma). Restam, entretanto, várias – e semanais – chamadas à continência, que se juntam aos períodos de impureza da mulher, aos da gravidez ou da penitência.” (Sexualidade – Jacques Rossiaud)

 

 

“Na pena de autores modernos, o empobrecimento do símbolo encontra-se sobretudo nas obras de divulgação. Nenhuma área do medievalismo foi talvez tão aviltada por trabalhos e livros de qualidade medíocre. Em matéria de “simbólica medieval” – noção vaga, de que se abusa –, o grande público e os estudantes quase sempre só têm acesso a obras aliciadoras ou esotéricas, que brincam com o tempo e o espaço, fundindo em uma desprezível mistura comercial os cátaros, os templários, o Graal, a alquimia, a heráldica, a cavalaria, a sagração dos reis, a arte românica, os canteiros das catedrais, as Cruzadas.” (Símbolo – Michel Pastoureau)

 

 

“Entre esses tempos significativos, muito dependentes da natureza, do nascer e do pôr do sol, do ritmo das estações, marcados pelo medo da noite, emerge o tempo religioso (em particular o tempo monástico), o tempo camponês de um mundo essencialmente rural, o tempo urbano construído pelo desenvolvimento das cidades, o tempo guerreiro privilegiando a primavera e o verão, o tempo senhorial, ritmado pelas expedições militares, homenagens e datas de pagamento dos encargos camponeses, o tempo do mercador, por longo tempo prejudicado pela impossibilidade de navegação durante o inverno, o tempo público imposto pelos reis e príncipes segundo o ritmo da construção do Estado moderno. Numa sociedade na qual a expectativa de vida é fraca (forte mortalidade infantil, expectativa de vida de menos de 40 anos para as crianças de mais de um ano), o tempo da vida engendra ainda tanto o prestígio dos anciãos, em particular dos monges, submetidos a uma vida mais higiênica, quanto uma sensibilidade ambígua em relação à vida frágil dos jovens.” (Tempo – Jacques Le Goff)

 

 

“Características originais

De início, a originalidade estava na autonomia ou, como se dizia, nas “liberdades e privilégios” de que usufruíam mestres e estudantes (em Bolonha, apenas estes últimos). A comunidade universitária era, no começo, bastante diferente de outros ofícios urbanos e o estatuto de seus membros assemelhava-se ao dos clérigos. Entretanto, como qualquer corporação, a Universidade podia elaborar estatutos para organizar a disciplina interna e estabelecer regras de funcionamento; programas, cursos, exames, colações de graus sucessivos (bacharelado, licenciatura, mestrado ou doutorado), eram livremente definidos, em cada faculdade, pela assembleia dos mestres. A Universidade organizava, também, a confraternização entre seus membros, garantia-lhes a defesa e a representação perante as autoridades externas. Enfim, ela era dona do recrutamento, tanto no que se refere à matrícula de novos estudantes, quanto à eleição ou admissão de novos mestres. Em suma, a autonomia universitária era bem real e garantia, simultaneamente, um funcionamento interno bastante democrático e o exercício de uma liberdade eminentemente favorável à atividade intelectual.

Outra característica marcante da Universidade medieval era sua invocação universalista. Esse universalismo era o mesmo do saber transmitido pela Universidade. Extraído de dupla fonte, da ciência antiga (oportunamente enriquecida pelos árabes) e da Revelação cristã, esse saber era o mesmo em toda parte. Ensinado em uma língua também universal (o latim), apoiado em todos os locais sobre as mesmas “autoridades” (Prisciano, Aristóteles, Galeno, o Corpus iuris civilis, a Bíblia, as Sentenças, de Pedro Lombardo etc.), alheio, portanto, a qualquer particularismo nacional ou regional, era uniformemente encontrado em todas as universidades da Cristandade. Ao menos em teoria, essa uniformidade proporcionava a validação universal dos graus universitários, onde quer que tivessem sido obtidos, e o direito dos estudantes de escolher livremente sua universidade.

Ao mesmo tempo causa e consequência dessa vocação universalista, as universidades ligavam-se diretamente ao poder universal por excelência: o papado. Era o papa que confirmava seus privilégios, era em seu nome que o chanceler conferia a licença ubique docendi (“válida em toda parte”), era ele que protegia mestres e estudantes contra os '“abusos” das autoridades locais, laicas ou eclesiásticas. Em troca, o papa esperava das universidades que fossem fiéis e ortodoxas auxiliares doutrinais do magistério romano e que acolhessem em seu seio esses agentes especialmente devorados ao papado, que eram os religiosos mendicantes.

Naturalmente, essa definição da Universidade medieval é muito geral e um pouco teórica. Na prática, a instituição universitária revestiu-se, na Idade Média, de formas muito variadas e essa diversidade cresceu à medida que apareciam novas universidades, do século XIII ao XV. Existia uma grande oposição entre as universidades das regiões mediterrâneas, do tipo bolonhês, ou seja, “universidades de estudantes” (ainda que a exclusão de professores da comunidade universitária raramente tenha sido tão marcante quanto na própria Bolonha), relativamente laicizadas, de predomínio jurídico e médico, e as universidades da metade norte da Europa, do tipo parisiense,” universidades de mestres”, sob domínio filosófico e teológico. Havia também uma evidente separação entre as grandes universidades, que largamente ultrapassavam o milhar de estudantes, tendo recrutamento internacional, gozando de uma autoridade doutrinal reconhecida em toda a Cristandade, capazes, portanto, de afirmar verdadeiramente sua autonomia perante os poderes, e as universidades menores, que reuniam apenas algumas centenas de estudantes, com prestígio puramente nacional, às vezes regional, visando mais produzir acadêmicos corretamente formados do que contribuir para a inovação intelectual, muito mais submissas, consequentemente, ao controle e às pressões de autoridades locais; nesse caso, a dimensão universalista tornava-se bastante teórica.” (Universidade – Jacques Verger)

 

 

“A Universidade, no início, levou à perfeição métodos de ensino cuja fecundidade foi por muito tempo encoberta pelas críticas tardias e injustas dos humanistas e filósofos das Luzes. A “leitura” atenta das “autoridades” permitia uma minuciosa exegese de textos, a “disputa” abria caminho a grande liberdade intelectual, assentada no rigor racionalista do raciocínio dialético. O conteúdo do ensino universitário também deve ser considerado: os “artistas”2 de Paris e Oxford levaram a lógica formal a uma perfeição que os filósofos de hoje redescobrem; com Alberto Magno e São Tomás de Aquino, os teólogos reconciliaram no século XIII fé e razão, confiança na Revelação e redescoberta do mundo; nos séculos XIV e XV, os críticos de Ockham e de seus herdeiros “nominalistas” enfraquecerão essas sínteses poderosas, mas para recolocar em primeiro plano problemas que ocuparão a consciência moderna (liberdade, graça, salvação), livrando, talvez, o pensamento científico do entrave teológico. As ciências dos números e da natureza foram frequentemente negligenciadas nas universidades medievais. No entanto, são elas que, em alguns momentos privilegiados (meados do século XIV em Oxford e Paris; século XV em Pádua e Salamanca), darão forma a certos rudimentos da ciência moderna (astronomia, mecânica). Sua introdução na Universidade representou para a medicina, malgrado o peso das autoridades (Galena, Avicena), uma verdadeira revolução, que a fez passar do estágio do saber empírico, se não mágico, ao de disciplina intelectualmente constituída por princípios racionais e reconhecida como tal. O direito finalmente encontrou nos juristas medievais, sobretudo italianos, tanto exegetas minuciosos como pensadores capazes de abstrair os princípios gerais de um sistema legislativo; por esse caminho e manifestando algum desdém pelo direito cotidiano, o do costume e o da jurisprudência, eles tiveram a função essencial de introduzir em nossa civilização uma imensa parcela de romanidade, sobre a qual se fundarão tanto a ciência política moderna quanto as noções que regem até hoje o direito privado.

E isso não concerne apenas aos grandes mestres e aos principais centros: ao menos por tabela, as universidades secundárias, os professores de rotina, até mesmo as escolas não universitárias ou os simples praticantes do direito e das letras, sem formação escolar, receberam algum eco enfraquecido das teorias dominantes e divulgaram-nas por meio de ampla prática social.

Com certeza, pode-se também fazer a lista dos impasses, dos limites e das lacunas do ensino escolástico. O método da autoridade fê-lo negligenciar os recursos da observação, da experiência, da quantificação; vãos preconceitos culturais e sociais fizeram-no marginalizar as belas-letras, a poesia e a expressão vernácula, a história e as artes, a economia e o imenso universo das técnicas aplicadas. É fora das universidades que, no final da Idade Média, esses patrimônios começaram a ser promovidos à condição de atividades culturais reconhecidas. Também é fora das universidades que nasceu, no século XIV, primeiro na Itália, depois na França, o humanismo moderno; as inovações que ele trazia, tanto no plano filológico (retorno aos clássicos, renascimento dos estudos gregos e da retórica) quanto filosófico (ênfase na moral prática e no fervor religioso), foram recebidas com algum atraso em determinadas faculdades, notadamente as faculdades de Artes italianas, e recusadas por outras. Também o ensino das disciplinas universitárias tradicionais padecia no final da Idade Média de tais distorções (desorganização de cursos e exames, ausência de professores), que somos tentados a ver aí um indício de esclerose dessas disciplinas, encerradas em uma pedagogia desatualizada e em aporias metodológicas. Mas isso não autoriza a ignorar no conjunto a considerável contribuição das universidades medievais à cultura europeia.” (Universidade – Jacques Verger)

2 No original, artiens: em sentido rescrito, é o estudante da faculdade de Artes, isto é, o filósofo. [N.T.]

 

 

“As alusões aos temperamentos que se inflamam sem razão têm certamente tendência a se multiplicar ao final da Idade Média, como demonstra o impacto dos discursos da Igreja e do Estado para defender a paz a todo preço; em compensação, a agressão raramente é condenada quando resulta de uma causa considerada justa e quando se desenrola segundo as regras da vingança reconhecidas por todos. São os excessos da violência que são objeto de condenações, não a violência propriamente dita. Responder a injúria com injúria é do domínio do possível, até mesmo do necessário, mas acrescentar propósitos ou gestos que infrinjam as regras do combate é levar a discussão para um campo que lhe modifica o sentido e que se qualifica de “vilão”, até mesmo de “desumano”. Esses atos são considerados gratuitos e como tais são condenados. Assim se esboça a ideia de que pode haver uma violência lícita quando ela respeita as leis mais ou menos tácitas que obrigam a um combate claramente anunciado entre as partes adversas. O primeiro estágio da análise das palavras permite enfatizar o que faz a originalidade da violência medieval: ela obedece a um código e, como tal, não pode ser nem espontânea nem ilimitada.

Porque sabe usar a violência, a sociedade medieval pode integrar essa violência como uma energia necessária ao vínculo social. A violência permanece, em grande parte e durante toda a Idade Média, como o fundamento das hierarquias de poderes: violência de senhores entre si pela posse do ban de poderosos de todo tipo impondo suas exações aos rústicos. O poder, que se define inicialmente pela aquisição de privilégios, disputa-se pela exclusão de adversários iguais ou subalternos. Ele se justifica pela torça que o fundamenta e pela proteção que dele decorre. Raptos, estupros e banditismos marcam a instalação das linhagens nobres no decorrer dos séculos X e XI. E, mais tarde, ao final da Idade Média, quando as coações estatais impõem um ideal de paz, são ainda aquelas formas de violência que se tornam privilégios da nobreza ocidental e contribuem para defini-la. De certo modo, a nobreza toma consciência de si mesma confiscando a violência em seu proveito e escapando à obediência que o Estado ou a Igreja impõem. A violência é constitutiva da nobreza.

Assim se explicam as longas viagens à Prússia, a participação nas guerras privadas, o florescimento das ordens de cavalaria e o peso dos contratos ou das alianças que se mede pelo número de homens de armas colocados a serviço de uma ajuda mútua que funda a solidariedade nobiliária. O palácio das grandes famílias nobres é uma zona de turbulência. Ali estão lado a lado jovens mal posicionados e matadores de aluguel, esposas e prostitutas, filhos legítimos e bastardos. Essa exaltação da violência tem a mesma natureza da nobreza, que até o fim da Idade Média deve assegurar sua reputação para garantir seus privilégios. Para ser nobre é preciso ser violento, e só o nobre pretende ter o direito de sê-lo: assim se desenha uma sociedade dominada pela força. É necessário, entretanto, nuançar essa adequação entre violência e nobreza, pois a linguagem política fundada sobre a violência está longe de ser exclusiva. As formas do poder definidas pelo direito venceram, como as eleições preconizadas pelo direito canônico e retomadas pelas assembleias dos Estados, ou as formas que dão prioridade ao sangue e à hereditariedade, ou ainda as concedidas pelo saber. Tantas invectivas limitaram o triunfo da violência, inclusive nas camadas nobiliárias, que souberam, aliás, monopolizá-las e tornar-se o ferro da lança da paz.” (Violência – Claude Gauvard)

 

 

“Desde o século XIII, as coletâneas de direito costumeiro bem como os textos da prática jurídica preferem distinguir os homicídios considerados “belos feitos” daqueles que se colocam entre os “casos desprezíveis”. Os primeiros respondem às leis da vingança honrada: eles ocorrem de dia, após um desafio, em público. Os segundos escondem-se privadamente, de noite, sem advertência feita à vítima, eventualmente recorrendo a um assassino profissional. Nos dois casos, o culpado arrisca-se à pena máxima, que em geral é o enforcamento ou o banimento, em virtude da lei divina que os juízes devem aplicar: “Não matarás”. Mas a natureza do homicídio, quando se trata de um belo feito ou de legítima defesa, pode facilmente conduzir à indulgência e sobretudo à graça que as autoridades concedem. O rei da França, no final da Idade Média, agracia facilmente os autores de homicídios que lhe solicitam uma carta de remissão. A violência que pode conduzir à morte acha-se então legitimada, o que prova que não existe ruptura entre os valores que defendem a sociedade cometendo o crime e o poder que respeita o ato cometido absolvendo o criminoso. Podia-se esperar um poder coercitivo, respondendo à violência pela violência. É o caso para um pequeno número de crimes ou de criminosos, em particular os que atacam a própria essência do poder, como a heresia, a traição e a lesa-majestade, ou certos casos tratados voluntariamente de modo exemplar. O procedimento extraordinário que se propaga a partir do século XIII e que pode incluir a tortura utiliza uma repressão violenta. Mas, em face dos crimes mais numerosos que são os homicídios, o poder responde de preferência com o perdão, o que é uma maneira de aprovar a vingança privada que conduziu à morte do adversário.

Essa atitude do poder baseia-se na natureza do homicídio, que na maior parte dos casos apresenta-se como uma resposta a uma honra ofendida. A violência obedece, então, em todas as categorias sociais, a um encadeamento lógico dos fatos. Aquele que conduz da injúria ao gesto injurioso, dos golpes e feridas à morte. Certamente, as circunstâncias exteriores podem favorecer seu desdobramento, quer se trate das tensões ligadas à guerra ou à festa, dos efeitos da embriaguez ou do jogo. Mas esses são apenas os elementos que servem como reveladores dos conflitos internos nos quais está em jogo a reputação das mulheres, cujos homens são os fiadores, quer eles sejam pais, filhos ou esposos, e mesmo às vezes irmãos ou tios. Essa reputação das mulheres delineia o grupo das que têm permissão para o jogo amoroso ou que podem vir a tê-la, moças comuns, mulheres casadas reputadas fáceis, mulheres que uma condição social subalterna “predispõe” ao estupro ou que a viuvez fragiliza. Inversamente, convém defender como uma fortaleza o grupo de mulheres honradas que se arriscavam a perder tal condição com o menor insulto. A tarefa não é pequena, porque a reputação é frágil. Pode-se mesmo pensar que existe uma espécie de jogo de honra que contribui para a constituição do indivíduo, se bem que a reputação deva ser reatualizada aos olhos de todos. É possível que as conversas de taverna que passam em revista a honra das pessoas conhecidas servissem para atualizar reputações. Isso se deve à fragilidade da memória e ao peso das palavras nessa sociedade da tradição, em que o indivíduo é somente aquilo que parece aos olhos dos outros. As palavras ou os gestos pronunciados em público criam um estado irreversível se não são imediatamente desmentidos. Aquele que injuria trata seu adversário de “bastardo”, a mulher ou a mãe de seu adversário de “puta”. A ele cabe replicar o desafio, proclamando em público que o outro mentiu, tirando sua pequena faca de cortar pão ou qualquer outra arma disponível para evitar ser difamado. Assim se explica que a violência seja quase exclusivamente masculina: a honra das mulheres está nas mãos dos homens. E, nesse contexto, todos os homens são abrangidos, jovens ou velhos, casados ou solteiros, clérigos ou leigos. Sua violência tem por toda parte o mesmo perfil, o de uma luta para defender sua honra e a de sua parentela.

 

O principal risco: a honra

As altercações raramente se mantêm individuais. Rápido, elas tornam-se questão de pequenos grupos que se afrontam pelo jogo das solidariedades que protegem o indivíduo, quer se trate de laços de sangue, de aliança, de amizade ou do simples companheirismo que começa com o caminho percorrido junto ou o vinho partilhado. Inversamente, tais círculos protetores criam em princípio zonas de paz, já que a vingança normalmente está interditada a eles. Mas isso resulta em deveres de assistência que implicam a intervenção em caso de agressão, em nome do “amor natural”. As querelas de honra alimentam-se também das clivagens que dividem as comunidades de vizinhos. Nesse universo urdido a pequenos passos, os “odiados” ·opõem-se aos “benevolentes”. Quando um crime inexplicável é cometido, o juiz informa-se sobre aqueles que são os odiados da vítima para com certeza encontrar o culpado! Um desejo latente de vingança serve então de pano de fundo à violência, e a injúria surge como um pretexto para fazê-la explodir. Mas somente a vingança não explica a violência, pois ela não é um fim em si, mesmo se pode dar lugar a expedições punitivas particularmente cruéis. “Matem todos”, tal é a palavra de ordem que torna a ação vingativa irreversível e que acaba em estupros, olhos vazados, massacres. É, portanto, uma violência desenfreada? Nos piores momentos do combate continuam a se manifestar as regras que dirigem a violência e podem colocar um termo a elas. No decorrer das guerras privadas, por exemplo. a expedição punitiva ataca o gado, os bens, depois os homens ou de preferência suas companheiras que a parte adversa tenta raptar e sobretudo violar. O estupro é na maioria das vezes fictício: a mulher é arrastada para o esterco e desfigurada. Os gestos não são anárquicos. Procura-se atingir o rosto, a parte visível de seu pudor, ou ainda arrancar seu capuz para a desonrar. Mas a violência tem limites que lhe foram tacitamente dados pela sociedade. Ela se choca, por exemplo, com a interdição da mulher grávida, que nenhum homem deve tocar, inclusive o carrasco, ou ainda com a da criança, considerada sagrada. Todo desrespeito a essas regras é um sacrilégio ou o sinal de uma violência selvagem que faz comparar o homem ao lobo.

A violência é um dos móbeis essenciais da sociedade medieval, menos porque ela opõe grupos a priori antagônicos, ricos contra pobres, jovens contra velhos, clérigos contra leigos, e sim porque ela funda a reputação do indivíduo e, consequentemente, prenuncia o seu reconhecimento e o intercâmbio entre os sexos. Ela não se situa, portanto, nas margens do tecido social, mas em seu coração. Ela não exclui a presença de profissionais do crime, ladrões, banidos, devassos, que mergulham mais explicitamente que os outros no estupro, na prostituição ou nas guerras, na pilhagem e que se fazem, havendo ocasião, matadores profissionais. Eles podem se organizar em sociedade paralelas, ter na chefia um rei, utilizar gírias, deslocar-se em bandos que são, sem dúvida, mais numerosos na Europa meridional do que no norte, nas grandes metrópoles como Paris ou Avignon de fins da Idade Média e não nas pequenas cidades do reino da França. Mas, no total, o “meio” só desempenha um papel quantitativo negligenciável na história da violência. A grande questão continua sendo as relações conflituais que homens comuns podem ter entre si, entre pessoas com perfis aparentemente iguais em riqueza, saber ou idade. Eles percebiam tais conflitos como uma forma de violência e julgavam-nos condenáveis? É extremamente significativo que os homens que convivem com a violência no cotidiano falem de bom grado em rejeitá-la para suas margens, para a cabeça daqueles que não pertencem ao seu horizonte habitual. Para os criminosos, reais ou supostos, mas na maior parte do tempo desconhecidos, eles adotam facilmente os discursos oficiais da exclusão e reclamam mesmo a pena de morte. Mas não falam nada de sua própria violência. Ela não pertence, aliás, ao âmbito criminal, já que é normal, até mesmo necessária. De resto, eles próprios tendem a resolver o caso por meio de transações. O homicídio entrou, enfim, muito tardiamente no campo penal. Isso não é sinal de que a vida humana não tem preço, mas que a vida humana não é nada se a honra é ultrajada. A maior parte dos reis compreendeu bem que fundavam seu poder tanto na coerção quanto no perdão de um crime do qual, em suma, eles reconhecem a razão de ser. Aquela sociedade não louva a violência por si mesma. Ela faz da preferência da violência um meio de combate ao serviço dos valores simples que fundam a ordem social, assegurando as leis de sua reprodução.” (Violência – Claude Gauvard)

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