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sábado, 23 de abril de 2022

Quem ajudou a Hitler (Parte III), de I. Maiski

Editora: Civilização Brasileira

Tradução: Cristiano M. Oiticica

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 212

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SinopseVer Parte I


“Chamberlain teve a ideia de apoiar-se nos precedentes do passado para se defender dos ataques que lhe eram feitos pela sabotagem das negociações. Disse que as negociações relativas à aliança anglo-japonesa de 1903 haviam durado seis meses: a Entente anglo-francesa de 1904 exigira nove meses de negociações e a Entente anglo-russa de 1907, quinze meses... A conclusão era clara; as negociações que, então, se mantinham com a URSS duravam, apenas, quatro meses e meio. Que era, pois, que se queria dela?46 É difícil de imaginar exemplo mais claro de inatividade política do que esses argumentos do Primeiro-Ministro britânico, em um momento no qual estava a ponto de se desencadear uma tormenta histórica.

Apesar da indignação dos mais vastos setores da opinião pública inglesa, Chamberlain continuou fiel a sua linha geral, sem perder a esperança de atirar a Alemanha contra a URSS, conforme provavam todos os atos do governo britânico, inclusive naquele instante tardio.”

46 Parliamentary Debates. House of Commons, vol. 350, col. 2.023.

 

 

“O quadro geral das forças armadas das três potências era o seguinte:

A França dispunha de 100 divisões, sem contar a defesa antiaérea, a defesa costeira e as tropas aquarteladas na África; havia, além disso, uns 200.000 combatentes da República Espanhola55 que haviam entrado na França depois da vitória de Franco e pedido seu engajamento no exército francês. O armamento das forças francesas constava de 4.000 tanques modernos e de 3.000 peças de artilharia de grosso calibre, de 150 mm para cima (sem contar a artilharia de divisão). A frota aérea da França tinha 2.000 aviões de primeira linha, dois terços dos quais eram modernos para o nível daqueles tempos, entre eles caças com velocidade de 450 a 500 Km/h e bombardeiros cuja velocidade oscilava entre 400 e 450 Km/h.

A Inglaterra tinha preparadas 6 divisões, podia transferir outras 9 para o continente “em prazo brevíssimo” e acrescentar “no segundo escalão” mais 16 divisões: quer dizer, 32 divisões ao todo. As forças aéreas da própria Inglaterra compreendiam mais de 3.000 aviões de primeira linha.

A União Soviética dispunha, para lutar contra a agressão na Europa, de 120 divisões de infantaria e 16 de cavalaria, 5.000 canhões pesados, 9.000 a 10.000 tanques e 5.000 a 5.500 aviões de combate.

Além disso, as três grandes potências tinham a seu serviço Marinhas de Guerra entre as quais se destacava pelo seu poderio a Esquadra britânica.56

Como vemos, as forças armadas dos eventuais firmadores do pacto tripartido eram muito consideráveis e superavam de longe as que tinham, então, a Alemanha e a Itália. Essas forças bastariam ou teriam bastado, sem dúvida alguma, para conjurar a agressão fascista, mas com uma condição iniludível: que os três governos quisessem, realmente, criar uma frente única eficaz contra Hitler e Mussolini. O governo soviético tinha muita vontade de chegar a essa frente única, mas não se pode dizer o mesmo, absolutamente, do governo da França e, muito menos, da Inglaterra.”

55 A cifra de espanhóis era muito exagerada.

56 “Negociações das missões militares da URSS, Inglaterra e França, em Moscou, em agosto de 1939”, revista La Vida Internacional, Moscou, 1959, n.º 2, págs. 144-158; n.º 3, págs. 139-158.

 

 

“Que era que se podia fazer?

O governo soviético se deparou diante de um agudo dilema: prosseguir nas negociações tripartidas com os governos inglês e francês, que não desejavam, evidentemente, o pacto, ou procurar outros rumos para reforçar a sua segurança?

Vinha à memória, involuntariamente, impressionante episódio dos primeiros tempos da União Soviética.

Logo após a Revolução de outubro, o jovem Estado Soviético, ainda não fortalecido, viu-se colocado ante a necessidade de solucionar importante e difícil problema: como pôr fim à guerra em meio a qual havia nascido? Da solução que se desse a esse problema dependia todo o futuro da revolução e do povo soviético; mais ainda: todo o futuro da humanidade.

Na verdade, qual era a situação?

Na Rússia, acabava de ocorrer a Grande Revolução, que se chocara com a furiosa resistência das velhas classes dominantes, apoiadas por todo o mundo capitalista, e que herdara do regime czarista a grave ruína econômica, bem como a ignorância das grandes massas populares. Para poder manter-se e subsistir, a jovem República dos Sovietes, ainda fraca, necessitava, sobretudo, de paz, ou, pelo menos, de “trégua”.

Como procedeu, então, o governo soviético, dirigido por Vladimir Ilitch Lenin?

No famoso Decreto da Paz, de 8 de novembro de 1917, e nas subsequentes notas dirigidas a diversos governos, apelou, em primeiro lugar, para todos os países beligerantes, propondo-lhes que cessassem, imediatamente, as hostilidades e assinassem uma paz geral, justa e democrática, sem anexações, nem tributos. O governo soviético achava que essa forma de acabar com a guerra era a mais desejável, a mais condizente com os interesses da classe operária e de toda a humanidade.

Sabe-se que a iniciativa do governo soviético caiu, então, em terreno pedregoso. Nem a Alemanha, nem a Áustria-Hungria, nem a Inglaterra, nem a França, nem os Estados Unidos deram importância ao apelo do Estado soviético. Atenazados por luta de morte, prosseguiram a guerra durante mais de um ano.

Como procedeu, nessa situação, o governo soviético? Como procedeu Lenin?

O governo soviético não empreendeu o caminho da “guerra revolucionária”, para o qual o empurravam os chamados “comunistas da esquerda”, nem o de “nem paz, nem guerra”, que lhe recomendava Trotski; escolheu outro caminho. Raciocinou assim: se, por motivos alheios à sua vontade, não se podia conseguir paz democrática geral — que teria sido, naturalmente, o melhor — pelo menos tinha que se preocupar em tirar, o quanto antes, da guerra o próprio país. Isso tinha excepcional importância para salvar a revolução e preservar a pátria do Socialismo. Se não se podia conseguir “trégua” mediante a assinatura da paz geral, era preciso consegui-la, ao menos, mediante paz em separado com a Alemanha. Sim, a Alemanha era, efetivamente, uma potência imperialista agressiva. Que importava, porém? A Rússia soviética não existia no vazio, mas se via cercada pelo mundo capitalista hostil. E já que, apesar da aspiração soviética, a paz democrática geral era impossível naquele momento, tinha-se de conseguir, pelo menos, uma “trégua” temporária mediante acordo com o imperialismo alemão (mas com a condição iniludível, e claro, de não se imiscuir nos negócios internos da Rússia Soviética).

E Lenin deu o passo decisivo que, para alguns pareceu, então, apostasia dos princípios da Revolução de outubro, mas que foi, na prática, manobra genial, justamente com base nesses princípios.

Nasceu, assim, a paz de Brest-Litovsk, paz muito dura, com anexações e tributos à custa do povo soviético, paz má, paz “grosseira”, como a qualificou Lenin. Entretanto, essa paz deu a República Soviética o que ela mais necessitava, naquele instante: “trégua”, que, como ficou demonstrado mais tarde, foi a premissa indispensável do pujante desenvolvimento da URSS, nos decênios seguintes. A história justificou plenamente a conduta de Lenin, nesses dias difíceis. Lenin revelou ser grande mestre da causa revolucionária que não sacrifica a sua essência às frases revolucionárias.65

Vinte e dois anos depois de se assinar a paz de Brest-Litovsk, em 1939, o governo soviético viu-se, de novo, à frente de importante e difícil problema. Certamente, durante o tempo transcorrido desde então, haviam mudado muitas coisas no mundo e, em primeiro lugar, crescera imensamente o poderio da União Soviética. Todavia, na situação de 1939, concorriam não poucos elementos semelhantes aos que havia predominado em 1917.

Em 1939, a União Soviética via-se novamente ameaçada por grande perigo: o perigo da agressão das potências fascistas, principalmente, a Alemanha e o Japão. Ainda mais: existia o perigo de se criar uma frente única capitalista contra o Estado soviético, visto que, segundo mostrava claramente o desenvolvimento das negociações tripartidas, Chamberlain e Daladier podiam colocar-se, a qualquer momento, ao lado das potências fascistas e apoiar, de uma maneira ou de outra, a agressão à URSS. Era preciso conjurar esse perigo a todo custo: mas como?

A melhor saída, à qual tendia o governo soviético, com todas as forças e meios, era criar poderosa coligação defensiva dos países não interessados no desencadeamento da Segunda Guerra Mundial. Concretamente tratava-se, em primeiro lugar do pacto tripartido de assistência mútua entre a Inglaterra, a França e a URSS. Nas páginas anteriores, mostramos com suficiente força de convicção que o governo soviético enveredara, no começo, precisamente por esse caminho. Fora ele que propusera a Inglaterra e a França a assinatura de um pacto tripartido. E fora ele também que sustentara, tenazmente, durante quatro longos meses, negociações com Londres e Paris para a assinatura desse pacto, revelando paciência quase angélica.

Entretanto, a sabotagem sistemática de Chamberlain e Daladier — os quais, como assinalamos repetidas vezes, cifravam as suas esperanças no desencadeamento de uma guerra germano-soviética — fez afundarem as negociações tripartidas, em agosto de 1939. A disputa relativa à passagem das tropas soviéticas pelo território da Polônia e da Romênia não foi mais que um último e definitivo elo da longa cadeia de desilusões precedentes. Ficou absolutamente claro que o pacto tripartido de luta contra os agressores era impossível, e não precisamente por culpa da URSS. Mesmo admitindo que, no fim das contas, esse pacto pudesse ser assinado, surgia, antes de tudo, uma pergunta: Quanto tempo seria ainda preciso para conseguir esse resultado? Não chegaria tarde demais para deter a mão, já levantada, dos agressores? Porque a terra da Europa já ardia debaixo dos pés! Vinha também outra pergunta, mais importante ainda: como cumpririam a Inglaterra e a França o pacto assinado? Acabavam de desfilar à nossa vista os dolorosos exemplos da Áustria, Tchecoslováquia e Espanha. Os três países haviam sido simplesmente traídos pela Inglaterra e pela França. Onde estava a garantia de que essas duas grandes potências se portariam melhor, no cumprimento dos seus compromissos com a URSS? Seria muito mais provável que Chamberlain e Daladier, com um ou outro pretexto, nos voltassem as costas no momento crítico? Todo o fundamento dessas dúvidas se viu confirmado três semanas mais tarde, quando a Alemanha atacou a Polônia.

Não, em agosto de 1939, não se podia confiar na assinatura de um pacto tripartido! Valia a pena, nesse caso, continuar as negociações tripartidas? Valia a pena fomentar nas massas a ilusão de que era possível uma aliança defensiva da Inglaterra, França e URSS ante os agressores fascistas? Não, não valia a pena.

Tinha que se pensar em outra coisa. E a genial manobra de Lenin nos dias de paz de Brest-Litovsk dava resposta a indagação do que se devia fazer.

No caso de cessarem as negociações com a Inglaterra e a França, ao governo soviético se delineavam duas possíveis perspectivas: a política de isolamento ou o acordo com a Alemanha. Entretanto, a política de isolamento naquela situação, quando os canhões já disparavam nas fronteiras da URSS, no Extremo Oriente (Hasan e Halhin-Gol!), quando Chamberlain e Daladier faziam esforços inauditos para empurrar a Alemanha contra a URSS, quando na própria Alemanha havia vacilações acerca da direção em que se devia assestar o primeiro golpe; em situação assim, a política de isolamento era extremamente perigosa, e o governo soviético repeliu-a com toda razão. Restava uma só saída: o acordo com a Alemanha.”

65 As reflexões do general alemão Max Hoffmann, que participou da representação alemã nas negociações de Brest-Litovsk, nos oferecem curiosa confirmação do acerto da manobra de Lenin; confirmação — e estranho dizê-lo! — procedente dos nossos inimigos. No seu livro, A guerra das possibilidades perdidas, Hoffmann diz, em particular: “Tenho pensado muitas vezes se não teria sido melhor que o Governo Imperial e o Alto Comando Militar tivessem refugado toda espécie de negociações com as autoridades bolchevistas. Dando-lhes a possibilidade de concluir a paz e, deste modo, satisfazer o apaixonante desejo das massas populares, nós as ajudamos a tomar, firmemente, o poder e nele manter-se”. Hoffmann, la guerra de las possibilidades perdidas, ed. em russo, Edit. do Estado, 1925, pag. 160.

 

 

“Nenhuma das conversações dos representantes soviéticos em Berlim com os diplomatas alemães continha, absolutamente, nada que excedesse os limites da natural preocupação cotidiana em melhorar as relações entre dois países que as têm muito tensas. Nem com microscópio se pode nelas descobrir sintoma de pérfida conjuração contra a Inglaterra e a França.

À 20 de maio, registrou-se um acontecimento muitíssimo importante: nesse dia, o embaixador alemão em Moscou, Schulenburg, visitou o Comissário do Povo dos Negócios Estrangeiros da URSS e procurou reatar as negociações comerciais germano-soviéticas, interrompidas em fevereiro. Era uma evidente manifestação de agrado que a Alemanha fazia à URSS. Que recebeu como resposta? O Comissário do Povo soviético, longe de manifestar o menor entusiasmo por isso, declarou com bastante rispidez que toda a história das precedentes negociações comerciais entre ambos os países produziam no governo soviético impressão de falta de seriedade por parte da Alemanha, cujo jogo visava, evidentemente, a fins políticos. Daí o Comissário do Povo tirava a conclusão lógica de que, antes de reatar as negociações, devia-se criar a necessária “base política”, isto é, melhorar as relações políticas entre ambos os países.73

O informe de Schulenberg acerca dessa conversa causou grande desalento em Berlim. A 21 de maio, o secretário de Estado, Weizsaecker, telegrafou ao embaixador alemão em Moscou:

“Os resultados da sua discussão com Molotov nos levam à seguinte conclusão: devemos esperar em silêncio para ver se os russos exprimem o desejo de falar com maior clareza”.74

Este é o verdadeiro quadro das relações germano-soviéticas em maio de 1939, conforme patenteiam até os documentos do Ministério das Relações Exteriores da Alemanha, tendenciosamente selecionados por incumbência dos nossos adversários nos Estados Unidos. E Daladier atreveu-se, depois disso, a afirmar gratuitamente que “desde o mês de maio, a URSS havia mantido duas negociações: uma com a França e outra com a Alemanha”!

Entretanto, as negociações tripartidas inquietaram enormemente a Alemanha hitlerista, e a “espera em silêncio” não durou muito. Weizsaecker escreveu a Schulenburg, a 27 de maio: “Aqui (isto é, em Berlim, — I. M.) sustentamos a opinião de que não será fácil prevenir a combinação anglo-russa”.75 E a 30 de maio, por indicação especial de Hitler, chamou Astajov e, depois de dizer-lhe que o estatuto da representação comercial soviética em Praga afetava grandes problemas de princípio, formulou-lhe, em toda a sua importância, a questão das relações políticas entre a Alemanha e a URSS. Isso fazendo, Weizsaecker desenvolveu a seguinte concepção: em Berlim, não se quer o comunismo e se acabou com ele dentro do país: em Berlim, não se espera que em Moscou se queira o nacional-socialismo; mas as diferenças ideológicas não devem ser obstáculo a que se mantenha entre ambos os países relações práticas normais.

Era nova manifestação alemã a URSS, mas Astajov reagiu a ela com muita cautela. As notas de Weizsaecker mostram que Astajov lembrou ao seu interlocutor a desconfiança arraigada em Moscou, relativamente a Alemanha hitlerista; todavia, como é lógico, declarou-se de acordo com a opinião de Weizsaecker de que, apesar das diferenças ideológicas, os dois países podiam normalizar completamente as suas relações; porque essa era e é, justamente, um dos princípios fundamentais da política externa soviética, em geral.

Mais importante ainda era que Moscou não reagia de maneira alguma ao novo ato da ofensiva diplomática alemã. Durante o mês de junho, mantiveram-se animadas negociações comerciais entre a Alemanha e a URSS, cessando, porém, no fim do mês, por ser impossível superar as discrepâncias existentes entre as duas partes. A URSS declarou que a posição alemã não lhe era bastante favorável.

Apesar dessa falência, apesar de o governo soviético continuar cauteloso em relação à conversa de 30 de maio de Weizsaecker com Astajov, Schulenburg visitou, em 28 de junho, o Comissário do Povo dos Negócios Estrangeiros da URSS e voltou a repetir, oficialmente, em nome de seu governo, que a Alemanha desejava normalizar as relações entre os dois países. Schulenburg assinalou uma série de fatos que, no seu modo de pensar, provavam a disposição de Berlim de ir ao encontro da União Soviética: assinatura de pactos de não-agressão, entre a Alemanha e os países bálticos, mudança de tom da imprensa alemã relativamente a URSS, etc.

Isso coincidia com os desejos soviéticos e significava progresso, favorável para nós, na política alemã; entretanto, o Comissário do Povo soviético não manifestou, também nesse caso, nenhum entusiasmo especial, mas, a julgar pelas próprias notas de Schulenburg, respondeu, serenamente, que recebia as suas palavras com satisfação e considerava necessário sublinhar que a política externa do governo soviético, em consonância com as declarações dos seus dirigentes, tendia a cultivar as boas relações com todos os países, o que dizia respeito também a Alemanha, com a condição, é claro, de que houvesse reciprocidade.76

Passou, depois, um mês inteiro, o aziago mês de julho, durante o qual os ingleses e franceses sabotaram, obstinadamente, a unidade do pacto e do convênio militar. Contudo, a compilação citada não contém um só documento que testemunhe a aproximação progressiva entre a URSS e a Alemanha no terreno político. Apesar dessa sabotagem, apesar das crescentes dúvidas do governo soviético acerca da possibilidade de assinar o pacto tripartido, a URSS continuou firme nas negociações com a Inglaterra e a França, abstendo-se de fazer a menor demonstração de simpatia à Alemanha.

Completamente diverso foi o comportamento de Berlim. As negociações tripartidas e, em particular, o acordo quanto a enviar a Moscou as missões militares inglesa e francesa, despertaram alarma, cada dia maior, nos meios do governo hitlerista. Este examinou febrilmente e procurou aplicar diversas medidas que deviam, no seu modo de pensar, frustrar ou, pelo menos, retardar a assinatura do pacto tripartido. Na segunda quinzena de julho, reatamos as negociações comerciais com a Alemanha, interrompidas três semanas antes; dessa vez, o lado alemão acedeu com agrado aos desejos soviéticos.

A 26 de julho, Schnurre, por indicação direta das altas esferas, deu em Berlim um banquete em honra de Astajov e do representante comercial soviético na Alemanha, Babarin. Nele, Schnurre fez tudo para demonstrar que eram perfeitamente possíveis as boas relações entre a Alemanha e a URSS e até chegou a apontar, de maneira concreta, as etapas consecutivas da respectiva melhoria. Afirmou, mais adiante, que a Alemanha estava disposta a fazer com a URSS um acordo de longo alcance sobre todos os problemas “desde o Báltico ao Mar Negro”.

Que responderam a isso os hóspedes soviéticos de Schnurre? O próprio Schnurre diz, nas suas notas:

“Astajov, apoiado integralmente por Babarin, considerou que o caminho traçado (por Schnurre. — I. M.) para a aproximação com a Alemanha corresponde aos interesses vitais dos dois países. Não obstante, fez finca-pé para que o ritmo do desenvolvimento venha a ser, provavelmente, muito lento e gradual. A política externa nacional-socialista ameaça a União Soviética... Astajov recordou o Pacto Anticomintern, “as nossas relações com o Japão, Munique e a liberdade de ação que tivemos na Europa Oriental. As consequências políticas de tudo isso se voltam, inevitavelmente, contra a URSS... A Moscou não é fácil crer que a política da Alemanha, no que diz respeito a União Soviética, tome outro rumo. A diferença de estado de espírito só se pode produzir aos poucos”.77

Como vemos, os representantes soviéticos em Berlim acolheram com grande reserva os cantos de sereia nazistas e, em todo caso, não excederam em suas manifestações os limites de uma aspiração absolutamente legítima: contribuir para melhorar as relações entre os dois países.

Está aqui, agora, a curiosa apreciação da atitude do governo soviético com relação às manifestações alemãs que encontramos em telegrama de Weizsaecker a Schulenburg, datado de 29 de julho:

“Teria importância esclarecer se encontram eco em Moscou as declarações feitas a Astajov e Babarin (durante o banquete de 28 de julho. — I. M.). Se o senhor tiver oportunidade de falar novamente com Molotov, peco-lhe que o sonde nesse sentido... E se acontecer que Molotov abandone a reserva que tem mantido até agora, pode dar o seguinte passo adiante (grifado por mim. — I. M.).78

Assim, pois, na apreciação feita pelo lado alemão, o governo soviético não fez eco, de abril a julho, a ofensiva diplomática alemã.

Uma semana depois, a Alemanha deu novo passo, e muito importante, em direção à URSS. A 3 de agosto, nos mesmos dias em que as missões militares inglesa e francesa se preparavam sem pressa para partir rumo a Moscou, Ribbentrop convidou Astajov para visitá-lo e lhe fez uma declaração da maior importância. Na prática diplomática, o fato de que o “próprio’’ Ministro das Relações Exteriores receba em seu escritório um “encarregado de negócios” significa que a gestão é de urgência e importância extremas. Ribbentrop declarou que era possível transformar, radicalmente, as relações germano-soviéticas à base de duas condições fundamentais: a) não ingerência recíproca nos negócios internos, e b) renúncia (por parte da URSS — I.M.) à política orientada contra os interesses alemães. Ribbentrop assegurou a Astajov que o governo alemão estava predisposto a favor de “Moscou” e acrescentou que se “Moscou” fosse ao encontro do governo alemão, “não haveria problemas do Báltico ao Mar Negro que não pudessem ser resolvidos entre nós”.

Astajov, segundo as notas de Ribbentrop, foi muito comedido nas suas respostas; não se comprometeu em absoluto e se limitou a declarar que “a seu ver, o governo soviético desejava seguir política de compreensão mútua com a Alemanha”. Isso, naturalmente, não contradizia em nada com a possibilidade de assinar o pacto tripartido.

Depois de transmitir a Schulenburg o conteúdo de sua conversa com Astajov, Ribbentrop acrescentou, para conhecimento do próprio embaixador:

“O encarregado de negócios, que parecia interessado, procurou, várias vezes, fazer recair a conversa sobre questões mais concretas. Contudo, dei-lhe a entender que só estou disposto a ser mais concreto no caso de o governo soviético declarar oficialmente que reconhece, em princípio, a conveniência de dar um novo caráter as relações. Se Astajov receber instruções nesse sentido, nós, de nosso lado, estaremos interessados em concluir o quanto antes um acordo definitivo”.79

No dia seguinte, 4 de agosto, Schulenburg, cumprindo as indicações de Ribbentrop, transmitiu ao Comissário do Povo dos Negócios Estrangeiros da URSS tudo que Ribbentrop havia dito, na véspera, a Astajov. Como reagiu o Comissário do Povo soviético às palavras do embaixador alemão? Schulenburg informou a Berlim que o Comissário do Povo lhe havia comunicado a opinião do governo soviético, favorável a assinatura de acordo econômico entre os dois países; havia exprimido o critério de que a imprensa das duas partes devia abster-se de manifestações que pudessem azedar as relações entre eles, e reconhecido ser desejável o restabelecimento gradual dos contatos no terreno cultural. Schulenburg escrevia, mais adiante:

“Passando, depois, à questão das relações políticas, o Comissário do Povo declarou que o governo soviético desejava também a normalização e a melhoria das relações mútuas. Não é culpa sua que as relações tenham piorado. Ele (o Comissário do Povo. — I. M.) vê a causa da piora, sobretudo, na assinatura do Pacto Anticomintern e em tudo o que se tem dito e feito em relação a ele”.

Schulenburg tocou na questão da Polônia. Disse que a Alemanha procurava resolver as suas divergências com a Polônia por via pacífica. Entretanto, se a obrigassem a proceder de outra forma, levaria em conta os interesses soviéticos. O Comissário do Povo respondeu que o ajuste pacífico entre a Polônia e a Alemanha dependia, sobretudo, da Alemanha. Como se vê pelas notas posteriores de Schulenburg, esta resposta aborreceu-o muito.

O embaixador alemão não deixou de se referir às negociações tripartidas, ao que o Comissário do Povo soviético respondeu que visavam a fim puramente defensivo.

Comentando essa conversa, Schulenburg escreveu a Berlim que, a julgar por todos os sintomas, “o governo soviético se sente agora mais inclinado a melhoria das relações germano-soviéticas; entretanto, a velha desconfiança em relação a Alemanha continua muito forte”.80

Vemos, pois, que durante a primavera e o verão de 1939, o governo soviético revelou plena lealdade nas relações com as potências que participavam das negociações tripartidas. Não houve confabulação secreta alguma com a Alemanha dirigida contra elas. Não houve, do lado soviético, intenção alguma de formar bloco com Berlim por trás da Inglaterra e da França e “trair” a Londres e Paris. Não houve nada que recordasse, sequer remotamente, as conversações de Horace Wilson com Wohlthat. Até o mês de agosto, as relações germano-soviéticas tiveram o caráter de relações diplomáticas corriqueiras, com tintas, certamente, não muito “amistosas”. E as conversações entre os representantes de ambos os governos foram também conversações corriqueiras, daquelas que mantêm, todos os dias, em todos os pontos da Terra, os ministros e os embaixadores sobre diversos problemas da atualidade. Assim o provam, de maneira indubitável, os próprios documentos compilados pelos nossos adversários nos Estados Unidos para denegrir ao máximo o governo soviético.81

Só em agosto, quando as negociações tripartidas definitivamente desmoronaram em consequência da sabotagem anglo-francesa; quando se desvaneceu por completo a esperança de ser assinado um pacto eficaz de assistência mútua entre a URSS, Inglaterra e França, o governo soviético viu-se obrigado a fazer uma alteração geral de sua política, coisa plenamente natural e legítima, se um governo considera que circunstâncias alheias à sua vontade o obrigam a fazê-lo. Eis porque, na primavera e no verão de 1939, não existia o jogo com pau de dois bicos de que acusam o governo soviético os seus adversários estrangeiros, mas um afã claro, firme e absolutamente leal para com a Inglaterra e a França de concluir com elas um pacto tripartido contra os agressores. E se, em definitivo, a ele não se conseguiu chegar, não é, em todo caso, sobre a URSS que recai a culpa.

Porém, nem nessa situação, o governo soviético quis queimar, de imediato, as pontes. A 3 de agosto, a Alemanha (justamente a Alemanha, e não a União Soviética) fez, oficialmente, ao governo soviético, propostas de longo alcance acerca da transformação radical das relações entre os dois países. Isso devia levar primeiramente, à sua normalização e, depois, de modo gradual, ao que, em linguagem diplomática, se chama “amizade”. Semelhante perspectiva correspondia inteiramente às aspirações pacíficas do governo soviético e sua realização podia fortalecer, em alto grau, a segurança do povo soviético. Contudo, “Moscou”, também nesse caso, não se deixou seduzir pelas tentações de Berlim. “Moscou” continuou pensando no pacto tripartido e quis fazer mais um esforço, o último, para levar à prática a melhor variante da luta contra a agressão. Apesar de todas as dúvidas engendradas pela história precedente das negociações tripartidas, “Moscou” não perdeu a esperança de que os governos da Inglaterra e França soubessem, talvez, refletir profundamente e enveredar pelo caminho certo, embora fosse só cinco minutos antes da catástrofe.

Por isso, “Moscou” esperou dez dias mais. Berlim, impaciente, queria acelerar, de qualquer modo, os acontecimentos. Uma semana após a conversa de Ribbentrop com Astajov, em 10 de agosto, Schnurre insistiu, conversando com Astajov, em que se fixasse com a maior rapidez a atitude da URSS ante as propostas que lhe havia feito a Alemanha.

“Moscou”, porém, continuou a se abster, como vinha fazendo desde a conversa de Ribbentrop com Astajov a 3 de agosto, de adotar decisão definitiva. “Moscou” esperou, enquanto as missões militares inglesa e francesa faziam a travessia de Londres a Leningrado em navio misto. “Moscou” esperou, enquanto se realizavam, na capital soviética, as primeiras reuniões com as missões militares. Mas, quando no decorrer dessas reuniões, se formulou o problema da passagem das tropas soviéticas pelos territórios da Polônia e da Romênia (questão central de todo o acordo militar); quando se viu claramente que nem as missões militares inglesa e francesa, nem os governos inglês e francês davam resposta a esta questão; quando Londres e Paris só reagiram com longo silêncio aos telegramas que lhe foram enviados, por esse motivo, a longa paciência soviética acabou-se. Ficou absolutamente claro que Chamberlain e Daladier eram incorrigíveis e que não se podia criar com eles nenhuma segurança coletiva das potências pacíficas.

O melhor método de luta contra a agressão fascista falhou por culpa exclusiva de Chamberlain e Daladier. Chegou o momento de passar à única saída que ainda restava.

A situação do governo soviético, no decorrer das negociações tripartidas, podia comparar-se a de um homem acossado cada vez mais pela maré alta: a água lhe chega aos joelhos, depois à cintura, depois ao peito, à garganta... Um momento mais, e a água lhe cobrirá a cabeça, se o homem não der um salto rápido e decidido, capaz de fazê-lo alcançar uma rocha inacessível à maré.

Com efeito, o perigo da Segunda Guerra Mundial se aproximava mais e mais; em março e abril, apenas se vislumbrava; em maio e junho, começou a adquirir contornos mais definidos; em julho, o seu terrível alento começou a empeçonhar toda a atmosfera da Europa; e, em meados de agosto, já ninguém duvidava de que faltavam poucos dias para que troassem os canhões e caíssem as bombas dos aviões.

Não se podia esperar mais. Só então, em meados de agosto, o governo soviético viu-se obrigado a resolver, definitivamente, o que devia fazer. O dilema que tinha formulado antes se converteu em amarga necessidade de entrar em acordo com a Alemanha. Os cinco meses de sabotagem dos governos da Inglaterra e França, apoiados pelos Estados Unidos, às negociações tripartidas não deixaram outra saída à URSS.”

72 NSR, pág. 5.

73 Ibid., pág. 6.

74 Ibid., pág. 7.

75 NSR, pág. 9.

76 NSR, págs. 26-27.

77 NSR, págs. 33-36.

78 NSR, pág. 36.

79 NSR, págs. 33-36.

80 NSR, págs. 40-41.

81 Aqui está um curioso testemunho, procedente de fontes pouco amistosas, de que o governo soviético não cometeu nenhum ato desleal. O embaixador norte-americano em Paris, William Bullit, disse, entre outras coisas, em seu informe de 28 de junho de 1939, acerca da conversa mantida com o Primeiro-Ministro Francês, Daladier: “Daladier disse que não acreditava, naturalmente, nas declarações russas (acerca da lealdade das relações com os ingleses e os franceses. — I. M.); mas nem as embaixadas, nem os serviços secretos franceses e ingleses puderam receber, até agora, informação alguma indicadora de que os russos mantenham negociações com a Alemanha (Foreign Relations of the United States, 1939, vol. I. Wash., 1956, pag. 278).

A coisa é bem simples: essas negociações não existiram. Como ajustar essas declarações de Daladier às suas afirmações, citadas anteriormente (veja-se a pag. 169 do presente volume), de que a URSS mantinha negociações com a Alemanha “desde maio de 1939” por trás da França?

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