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sábado, 23 de abril de 2022

Quem ajudou a Hitler (Parte II), de I. Maiski

Editora: Civilização Brasileira

Tradução: Cristiano M. Oiticica

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 212

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Sinopse: Ver Parte I



“Poderia crer-se que a anexação da Áustria deveria fazer com que Chamberlain agisse dentro da razão, por pouco que fosse, levando-o a ser mais prudente nas relações com os ditadores fascistas. Nada disso! Cego pelo ódio à União Soviética, Chamberlain nada quis ver. Prosseguiu obstinadamente na sua política funesta (funesta para a própria Inglaterra) e, em 16 de abril, assinou o tratado de amizade e colaboração com a Itália, que buscava tão ansiosamente. Esse tratado continha, entre outras coisas, o reconhecimento do Governo britânico da ocupação da Etiópia pela Itália. Não obstante, movido pelo desejo de tranquilizar as massas democráticas da Inglaterra, que consideravam a assinatura do tratado anglo-italiano naquele momento como uma traição à República Espanhola, Chamberlain fez uma ressalva importante: comprometeu-se a ratificar o tratado unicamente depois que a Itália evacuasse da Espanha suas tropas em consonância com o plano que então era elaborado pelo “Comitê de não-intervenção nos assuntos espanhóis”. Mais adiante direi como Chamberlain cumpriu esse compromisso.

Lembro-me que, na primavera de 1938, encontrei-me com lady Vansittart em uma recepção. Estava muito deprimida. O afastamento do seu marido do trabalho ativo na aplicação da política externa inglesa, a nomeação de Halifax como Ministro da Relações Exteriores, a preponderância dos clivedenianos* no Governo e outras muitas coisas haviam-na tornado pessimista ao extremo.

— Van está convencido — disse-me ela — de que a guerra se acha muito próxima, logo ali ao virar a esquina... Que desgraça para nós termos um Primeiro-Ministro tão imprestável em momentos tão difíceis!

Lady Vansittart perguntou-me depois pelo estado das relações anglo-soviéticas. Narrei-lhe com toda franqueza como andavam as coisas, e ela, juntando as mãos com amargura, exclamou:

— Recorda-se como Van conseguiu, há quatro anos, suavizar as relações entre os nossos dois países?... Tudo foi posto a perder agora!

Respondi:

— Sim, em 1934 e 1935, com o concurso do seu marido produziu-se o degelo nas relações anglo-soviéticas; porém agora...

— Agora o quê? — interrompeu-me impaciente.

— Agora — concluí — a temperatura nas relações anglo-soviéticas está abaixo de zero.

Lady Vansittart voltou a juntar as mãos e acrescentou, com profundo sentimento:

— Em todo caso, Van fez o que pôde.”

*: O autor se refere à Cliveden (muitas vezes como a camarilha de Cliveden), conhecido como o “conjunto de Cliveden”, um grupo pró-fascista de pessoas da alta sociedade que se reuniam na casa de campo homônima de Nancy Astor, Viscondessa e Membro do Parlamento (no livro chamada de Lady Astor). Simpáticos aos ideais nazistas, os membros deste grupo se articularam de todas as maneiras para sabotar as relações entre URSS e a Grã-Bretanha, tentando com que esta última se unisse à Alemanha de Hitler e à Itália de Mussolini. Depois da guerra, novamente utilizaram-se de sua ampla influência para elaborar toda sorte de maquinações com o intuito de desmentir o farto apoio dado aos nazistas.

 

 

“MUNIQUE

Porém se Chamberlain não soube obter nenhum ensinamento do colapso da Áustria, Hitler mostrou ser muito mais capaz. O “salto” a Viena foi, para ele, uma prova importante: o ditador nazista queria comprovar como reagiriam as “potências democráticas” diante da sua agressão. A comprovação mostrou que a Inglaterra e a França não se movimentaram. Não é de surpreender que Hitler o interpretasse assim: Caminho livre! E dois meses após a ocupação da Áustria empreendeu uma nova “operação”, ainda mais grave.

Ocorreu o que Litvinov havia predito em suas declarações de 17 de março: a ameaça caiu sobre a Tchecoslováquia. Hitler iniciou em maio de 1938 furiosa campanha contra esse país, na qual não participaram apenas a imprensa e o rádio: as tropas alemãs começaram a concentrar-se na fronteira com a Tchecoslováquia, enquanto que no interior desse país os nazistas dos Sudetos, obedecendo a ordens de Berlim, lançaram-se as mais insolentes provocações contra o Governo tcheco. A atmosfera política se eletrizava cada dia mais na Tchecoslováquia e no restante da Europa Central, na Inglaterra e na França. Cheirava a pólvora. Porque a França tinha um pacto de assistência mútua com a Tchecoslováquia, e se a Alemanha agredisse a esta, ela estava obrigada a sair em sua defesa. A Inglaterra não tinha um pacto formal desse tipo com a Tchecoslováquia, porém como aliada imediata da França, não podia tampouco ficar à margem. Em agosto, a situação tornara-se tão ameaçadora e o alarma e a inquietação das massas francesas e inglesas eram tão fortes que o Governo britânico viu-se obrigado a fazer algo para atenuar a tensão criada. Que fez ele? Algo que correspondia plenamente ao espírito de Chamberlain:

Ao invés de declarar firmemente que a Inglaterra e a França não permitiriam que Hitler tragasse a Tchecoslováquia (e essa providência tinha então probabilidades de deter o braço do agressor), o Governo de Chamberlain resolveu enviar a Tchecoslováquia uma missão presidida por lorde Runciman. Quem era lorde Runciman? Um velho dignitário que jamais se havia ocupado dos assuntos internacionais, surdo, lerdo e que não sabia sequer com exatidão onde ficava a Tchecoslováquia, como pude comprovar durante uma conversação que mantive com ele no verão de 1938. Que objetivo foi atribuído a missão de Runciman? Oficialmente, devia “estudar” no terreno a situação e apresentar uma proposta de mediação para solucionar o conflito germano-tcheco. De fato, como mostraram os acontecimentos, o “trabalho” da missão limitou-se a desbravar o caminho para o desmembramento da Tchecoslováquia.

Embora a acolhida dispensada em Londres e Paris à gestão soviética de 17 de março de 1938, por motivo da anexação da Áustria, não predispusesse, de modo algum, a fazer-se novas tentativas dessa natureza, resolveu o Governo soviético, naquele momento de terrível perigo para a Tchecoslováquia, apelar mais uma vez para o bom-senso dos líderes franco-ingleses. Pensávamos nós: “Talvez que a amarga experiência dos meses transcorridos desde então lhes tenha ensinado algo... Talvez estejam dispostos, ainda que somente agora, a ações mais enérgicas contra os agressores... Não se deve deixar de aproveitar uma única possibilidade sequer, por menor que seja, de impedir a catástrofe”. (...)

E não duvidava então, nem duvido hoje, de que a Tchecoslováquia teria sido salva e todo o curso ulterior dos acontecimentos europeus e mundiais teria tomado outros rumos se o Governo francês houvesse apertado a mão que lhe estendeu a União Soviética em 2 de setembro, se a Inglaterra e a França tivessem aceito sinceramente, inclusive naquele momento tardio, a unidade de ação com a URSS. Porém proceder assim haveria significado indispor-se com Hitler, desligar-se para sempre dos planos de “segurança ocidental” e renunciar as esperanças de enfrentar a Alemanha com a URSS... Não, não! Nem Chamberlain nem Daladier queriam aceitar isso! Preferiam deixar-se levar por suas absurdas e fantásticas quimeras, ditadas pelo ódio de classe ao País do Socialismo! No altar desse estavam dispostos a sacrificar a Tchecoslováquia, e não somente a Tchecoslováquia... (...)

Logo vieram os vergonhosos dias de Munique. O chefe do Governo britânico, “o homem do guarda-chuva” (como o batizaram naqueles dias os mordazes jornalistas) caiu – com o enérgico concurso de Daladier — no papel de um insignificante viajante político que se agitava convulso entre Hitler e o Governo tcheco-eslovaco. Mais ainda: Chamberlain humilhou-se até ao extremo de transformar-se no “grande carrasco” do Führer nazista, exigindo da Tchecoslováquia que capitulasse perante o agressor alemão. (...)

Sabe-se que a primeira peregrinação de Chamberlain à Alemanha para entrevistar-se com Hitler ocorreu em 15 de setembro. O Führer recebeu o Primeiro-Ministro inglês em Berchtesgaden e apresentou suas exigências a Tchecoslováquia, ameaçando empregar a força caso esta se negasse a aceitá-las. Chamberlain regressou a Londres. Realizou-se uma reunião extraordinária dos ministros anglo-franceses, que aceitaram as exigências de Hitler. Em 19 de setembro, sob a pressão de Londres e Paris, o Governo tcheco-eslovaco acedeu também a elas.20 Chamberlain partiu pela segunda vez de avião para conversar com Hitler. A entrevista verificou-se nos dias 22 e 23 de setembro em Godesberg. Chamberlain esperava firmemente merecer a aprovação do Führer quando pusesse na mesa a aquiescência da Tchecoslováquia, porém se equivocou redondamente. Ao ver em Berchtesgaden que não se; encontrava perante um cavaleiro de aço, mas sim diante do “homem do guarda-chuva” coberto de trapos, Hitler resolveu que não tinha por que andar cheio de cuidados. Durante a segunda entrevista com Chamberlain apresentou novas exigências, muito mais duras que as primeiras. O Primeiro-Ministro britânico sentiu-se muito desalentado; não obstante, empreendeu a tarefa de “convencer” a Tchecoslováquia de que cedesse mais uma vez. Regressou mais uma vez a Londres e, juntamente com Daladier, tentou, outra vez, exercer pressão sobre Praga. Porém dessa feita o tiro lhe saiu pela culatra: o Governo tcheco-eslovaco repeliu o “programa godesberguiano” de Hitler. Nessa decisão dos tcheco-eslovacos desempenhou papel de relevância a assertiva da parte soviética, recebida dias antes, de que estava disposta a prestar ajuda a Tchecoslováquia quaisquer que fossem as circunstâncias, inclusive no caso de uma traição por parte da França. Hitler ficou furioso, e em 26 de setembro declarou que iniciaria as hostilidades se a Tchecoslováquia não capitulasse antes das duas horas da tarde de 28 de setembro. O pânico apoderou-se de Chamberlain e Daladier, e o Primeiro-Ministro britânico dirigiu-se a Hitler e Mussolini, rogando-lhes encarecidamente que organizassem uma entrevista dos quatro para resolver em definitivo o problema tchecoslovaco. Ao mesmo tempo, com o fim de criar um determinado estado de espírito entre as grandes massas da população, o Governo francês decretou a convocação de várias classes de reservistas, ao mesmo tempo em que o Governo britânico mobilizava a esquadra e adotava algumas medidas de defesa antiaérea. Todos se interrogavam com terrível tensão se Hitler aceitaria a nova entrevista.

Quando, em 28 de setembro, ocupei meu posto na tribuna dos embaixadores no Parlamento, Chamberlain, nervoso e excitado, estava de pé diante da tribuna azul e agitava nervoso a mão direita, mostrando a todos uma folha de papel branco que apertava entre os dedos. Era uma carta de Hitler, que acabava de receber durante a sessão do Parlamento em resposta ao seu derramamento de lágrimas pedindo a entrevista dos quatro. Hitler acedia a entrevista e Chamberlain não ocultava a sua alegria. A imensa maioria dos conservadores tributou-lhe verdadeira ovação. Os trabalhistas e os liberais foram mais comedidos, porém tampouco ocultaram seu regozijo. Nessa situação, Chamberlain deixou o edifício do Parlamento para empreender de imediato sua peregrinação a Munique.

Toda essa cena causou-me a mais deprimente impressão. Tinha a mesma sensação que se experimenta ao ver um grande automóvel cheio de gente que roda para o abismo sem que se possa fazer nada para detê-lo. Ao abandonar a tribuna dos embaixadores encontrei nos corredores do Parlamento um conhecido trabalhista, que eu tinha visto aplaudindo Chamberlain.

— Por que o aplaudiu? — perguntei-lhe.

— Como não aplaudir! respondeu — Apesar de tudo, a Tchecoslováquia salvou-se e é possível que não haja guerra.

Respondi-lhe:

— Não quero ser Cassandra, porém se lembre do que vou dizer: a Tchecoslováquia pereceu e a guerra se tornou inevitável.

O trabalhista olhou-me surpreendido.

— Está falando a sério? — inquiriu perplexo.

— Absolutamente a sério... Quem for vivo verá.

O que ocorreu depois e do conhecimento geral. Nos dias 29 e 30 realizou-se a conferência de Munique. Hitler estava extremamente insolente. Mussolini apoiou-o. Chamberlain e Daladier retorciam-se como enguias. Afinal de contas, firmou-se, a traição da Tchecoslováquia, o acordo de Munique, cuja essência consistia no seguinte:

Transferia-se para a Alemanha a região dos Sudetos com todos os bens nela existentes, além do que a Tchecoslováquia tinha de satisfazer as pretensões territoriais da Polônia e da Hungria ao referido país. O que restava da Tchecoslováquia, indefesa e humilhada, devia receber garantias do “grande quarteto”, cujo valor, depois de tudo o que havia sucedido, quase não passava de zero.

Para atenuar um pouco a deprimente impressão que devia produzir a traição de Munique aos mais vastos setores da opinião pública inglesa, Chamberlain convenceu Hitler de que assinassem juntos um papel declarando que daí por diante não devia haver guerras entre a Inglaterra e a Alemanha. Um papel sem valor, útil unicamente, como se comprovou mais tarde, para ser lançado à cesta!... Chamberlain agitou ostensivamente esse papel no aeroporto de Londres ao regressar de Munique, proclamando em altos brados que estava assegurada “a paz em nosso tempo”. (...)

A reação na Inglaterra ante o acordo de Munique foi muito violenta. As grandes massas do povo, que compreendiam a essência dos acontecimentos melhor que Halifax, sentiam-se indignadas pela traição à Tchecoslováquia e alarmadas pelo crescente perigo de guerra. Os círculos mais perspicazes da classe dominante compreendiam que o Primeiro-Ministro arrastava o país para o abismo e se sentiam profundamente humilhados pelo triste papel que havia desempenhado nesta trágica história. Houve, inclusive, um membro do Governo, Duff Cooper, Ministro da Marinha, que não pôde suportar o ocorrido e demitiu-se ostensivamente em 19 de outubro de 1938. Não obstante, a camarilha de Cliveden cerrou fileiras mais compactas e procurou descarregar sua responsabilidade pelo crime histórico... sobre a União Soviética! De tudo o que ficou dito, isso poderá parecer um absurdo, mas foi assim. (...)

O que era verdadeiramente grande, importante e primordial a erguer-se então em toda sua estatura perante nós, ante o Estado e o Governo soviético — isto é, a posição da Inglaterra no concerto internacional — só podia suscitar em nós (e o suscitava, com efeito) profunda inquietude e indignação. Em Munique, havia tomado forma o decantado “pacto dos quatro”, dirigido contra a URSS, em sua variante mais abominável e repugnante: um “pacto dos quatro” no qual os ditadores fascistas eram senhores absolutos e os representantes da Inglaterra e da França os seguiam cacarejando, diligentes e medrosos.”

2o A cúpula da burguesia tcheco-eslovaca, inclusive Benes e vários ministros, mantinham tendências capitulantes, o que facilitou ao extremo a missão de Chamberlain e Daladier.

 

 

“Os representantes soviéticos tinham a esperança de que a tragédia da Tchecoslováquia talvez houvesse aberto os olhos até dos clivedenianos, fazendo-os ver o perigo que implicava para a própria Inglaterra o “apaziguamento” de Hitler e que, em vista disso, o governo de Chamberlain acedesse, por fim, a colaborar, eficazmente, com a URSS para conjurar a Segunda Guerra Mundial. Porém, no caso dessa esperança resultar em pura ilusão, era mister intentar, de todas as formas, um acordo com Chamberlain e Daladier. Daí ter o governo soviético respondido com rapidez tão fenomenal (no mesmo dia!) à indagação formulada pelo governo britânico em 18 de março e feito proposta que lhe testemunhava a disposição de adotar medidas eficientes contra o perigo que ameaçava a Romênia.

Muito diverso foi o comportamento do lado britânico, isto é, do governo de Chamberlain, concretamente. Conforme demonstraram os ulteriores acontecimentos, a tragédia da Tchecoslováquia nada, absolutamente, havia ensinado a camarilha de Cliveden. A linha geral do governo de Chamberlain não se alterou em coisa alguma. Esse governo continuou a cifrar as suas esperanças principais no desencadeamento de uma guerra germano-soviética; por isso indispor-se com Hitler era o que menos desejava. Chamberlain, (neste e nos sucessivos casos, refiro-me a ele não só como pessoa, mas também como encarnação da maioria do Partido Conservador) ainda seguia a política do ódio de classes relativamente à URSS e essa paixão o cegava de tal modo que não via, nem queria ver o abismo que com crescente evidência se abria, precisamente naquele momento, ante a Grã-Bretanha. Daí também dimanava a sua conduta durante as negociações de 1939. Se se houvesse preocupado, efetivamente, com a preservação da paz, conforme declarou em mais de uma ocasião, o Primeiro-Ministro inglês teria aproveitado com alegria a proposta que lhe fez a União Soviética em 18 de março. E, se tivesse isso feito, todo o curso dos ulteriores acontecimentos haveria tomado outros rumos. É possível e até provável que, nesse caso, não tivesse havido a Segunda Guerra Mundial. Chamberlain, contudo, tal qual um pássaro carpinteiro, continuou repisando, teimosamente, um ponto: a guerra sovieto-alemã! Por isso, em 18 de março, longe de apertar com alegria a mão que lhe estendia a URSS, começou a sabotagem sistemática de todas as tentativas de colaboração honesta com o governo soviético, sabotagem que informou a conduta da Inglaterra até o fim das negociações. Chamberlain estava tão fundamente certo da infalibilidade dos seus cálculos políticos e da inevitabilidade do choque germano-soviético que nem sequer observou que a guerra se aproximava, furtivamente, de seu país muito antes de atingir a União Soviética.”

 

 

“É claro que a política da camarilha de Cliveden, zelosamente aplicada por Chamberlain, era cega e estúpida, conforme demonstraria o desenvolvimento dos ulteriores acontecimentos. Mas é o que sempre ocorre, quando o poder se acha, em momento crucial da história, nas mãos dos representantes da reação e do obscurantismo.”

 

 

“Levando em conta tanto a posição inglesa, quanto a francesa, o governo da URSS apresentou a sua própria proposta, em 17 de abril de 1939, isto é, três dias após o governo britânico nos ter proposto conceder garantias unilaterais a Polônia e a Romênia. A essência da proposta soviética pode resumir-se em três pontos:

1. Assinar pacto tripartido de assistência mútua entre a URSS, a Inglaterra e a França.

2. Assinar convênio militar para fortalecer esse pacto.

3. Conceder garantias de independência a todos os Estados fronteiriços com a URSS, do Mar Báltico ao Mar Negro.

Ao entregar a Halifax a nossa contraproposta, disse-lhe eu:

— Se a Inglaterra e a França querem, de fato, lutar seriamente contra os agressores e evitar uma Segunda Guerra Mundial, devem aceitar as propostas soviéticas. E se não as aceitarem...

Fiz, então, um gesto muito eloquente, cujo sentido não era difícil compreender.

Halifax procurou afiançar-me que os propósitos dos ingleses e franceses eram dos mais sérios; mas eu disse com meus botões: “Os fatos o demonstrarão...”

Ao mesmo tempo que mandava as nossas contrapropostas, Litvinov chamou-me a Moscou para tomar parte no exame que o governo ia fazer do problema do pacto tripartido de assistência mútua e das perspectivas da sua assinatura. Saí de Londres em 19 de abril e lá voltei em 28 do mesmo mês. Repugnava-me ver a Alemanha nazi, com a sua suástica e o ‘‘passo de ganso” dos seus soldados; por isso, resolvi transferir-me para Moscou dando uma volta. Fiz, de avião, a viagem de Londres a Estocolmo e daí a Helsinki, onde tomei o trem, chegando a Moscou por Leningrado. Pernoitei em Estocolmo, onde travei longa e interessante conversa sobre temas políticos da atualidade com Alexandra Kollontai, velha amiga minha (ainda dos tempos da emigração) e, ao tempo, embaixadora da URSS na Suécia.

— Será possível que Chamberlain não compreenda que a sua política leva a Inglaterra, diretamente, a catástrofe? — perguntou-me ela, perplexa.

Falei-lhe detalhadamente da situação que se criara em Londres e, resumindo, lhe disse:

— O ódio de classe pode cegar a tal ponto as pessoas que elas deixam de ver as coisas mais corriqueiras. É o que agora observo com relação a Chamberlain e toda a camarilha de Cliveden. Claro que a história os castigará com toda a dureza; mas, por desgraça, isso acontecerá, provavelmente, quando os canhões já estiverem começando a disparar.”

 

 

“O governo inglês compreendia perfeitamente que o ar cheirava tempestade e que, dessa vez, ia-se decidir o destino da Polônia, cuja integridade e independência Chamberlain e Daladier acabavam de garantir. O governo inglês não podia deixar de compreender que, sem o acordo com a URSS, não poderia salvar a Polônia. E, apesar disso, em lugar de concluir com a maior rapidez o pacto tripartido de assistência mútua, pôs em execução, princípios de junho, o caminho da sabotagem pertinaz do pacto, cuja necessidade acabava de, oficialmente, reconhecer. A dolorosa história dessa sabotagem será relatada nas páginas seguintes. Quero agora dizer que é difícil encontrar, nos anais diplomáticos, exemplo semelhante de hipocrisia e doblez como as que revelaram Chamberlain e Daladier nas conversações tripartidas de 1939. É também difícil encontrar exemplo mais patente de cegueira política distada pelo ódio de classe! Ao mesmo tempo, a posição dos governos da Inglaterra e da França, nos meses críticos das conversações tripartidas, prova, sem deixar margem à dúvida, que, o que menos os preocupava era salvar a Polônia; que a Polônia, a semelhança da Tchecoslováquia, no ano anterior, era para eles, apenas, uma moeda de troca no seu grande jogo com a Alemanha hitlerista.

Ao recordar esses dias, não posso deixar de referir-me a outra figura que desempenhou papel de não pouca importância na sabotagem anglo-francesa das conversações tripartidas: a figura de Joseph Patrick Kennedy, então embaixador norte-americano em Londres.

Filho de família abastada, Joseph Kennedy fizera carreira rápida como financista e homem de negócios. Aos cinquenta anos, já era muito rico. Segundo o costume na América do Norte, recebeu a sua “compensação” pelos serviços prestados a Franklin D. Roosevelt durante a campanha eleitoral e, em 1938, chegou a Inglaterra como embaixador dos Estados Unidos. Imediatamente, Kennedy tornou-se a “sensação” da temporada; sobretudo, por ser pai de nove filhos! Tais coisas não são frequentes entre os membros do Corpo Diplomático. A sorridente fisionomia do embaixador norte-americano adornou, invariavelmente, durante meses, as páginas dos jornais e revistas; às vezes, à frente de toda a família; outras, com os filhos, que eram quatro; e outras, com as filhas, que eram cinco. Depois se iniciou a campanha de concessão a Kennedy de títulos de Doctor Honoris Causa em Direito; seis (!) universidades — as de Dublin, Edimburgo, Manchester, Birmingham, Bristol e Cambridge — dispensaram essa honra ao embaixador norte-americano. E a cada momento se cantavam toda espécie de loas a Kennedy; e os fotógrafos o apresentavam com a toga universitária ou sem ela, com o barrete de professor ou de cabeça descoberta.

Entretanto, o embaixador norte-americano não se dedicava, apenas, à vida mundana e às funções representativas. Fazia também política, terreno no qual logo se tornou ídolo da camarilha de Cliveden. Duas ideias principais lhe dominavam o espírito: a fé no poderio da Alemanha hitlerista e a descrença na vitalidade da Grã-Bretanha. E como, ao mesmo tempo, não sentia simpatia alguma pela URSS, passou a ser, logicamente, o apóstolo do “apaziguamento” dos agressores. O embaixador norte-americano apoiou a política de Chamberlain durante a crise tcheco-eslovaca e, após Munique, disse que o povo inglês deveria erguer uma estátua ao seu Primeiro-Ministro por ter salvado da guerra a Grã-Bretanha e a Europa.

Lembro-me de que, daí a uns meses, em junho de 1940, depois de a França ter capitulado, quando a Inglaterra se achava ante o dilema de concluir a paz com a Alemanha ou continuar a guerra, Kennedy veio à Embaixada visitar-me e perguntou a minha opinião no assunto. Para ele, a Inglaterra era impotente diante da Alemanha; perdera, definitivamente, a guerra e quanto antes assinasse a paz com Hitler, melhor. O embaixador norte-americano ficou muito surpreendido quando lhe refutei as afirmações e procurei demonstrar-lhe que nada havia de perdido para a Inglaterra até aquele momento; que ela tinha grandes possibilidades de resistir a repelir a ameaça alemã, se, claro estava, conservasse a coragem e a disposição para a luta. Destaquei que, a julgar pelas minhas observações, o espírito das grandes massas populares era firme e que, até na cúpula governamental, havia homens que não se renderiam à insolência dos agressores fascistas. Daí concluía ser errôneo pintar a perspectiva com os tons mais negros. Quando terminei, Kennedy, abrindo os braços, exclamou:

— Sabe o que lhe digo?... Que o senhor é um otimista... Nada tenho ouvido de parecido nem sequer dos ingleses!

E como ia ouvi-lo!? Os ingleses com os quais Kennedy se avistava ostentavam a marca de Cliveden e nem eles próprios acreditavam no futuro do seu país.

Contudo, na Grã-Bretanha encontrava-se no poder, naquele momento, um governo presidido por Churchill. Tinha os seus defeitos, mas, apesar de tudo, refletia melhor o estado de espírito das massas; daí não ter a Inglaterra capitulado ante a Alemanha hitlerista. O embaixador norte-americano e os seus amigos torciam as mãos, horrorizados; a história, porém, veio a justificar, plenamente, a decisão adotada pelo governo britânico de então.

É fácil compreender que um homem como Kennedy podia influir e, com efeito, influiu na conduta dos ingleses, durante as conversações tripartidas de 1939. Foi um firme esteio de Chamberlain, ao longo de todas as complexas peripécias dessa desditosa história.”

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