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sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico, de Vladimir Safatle, Nelson da Silva Junior, Christian Dunker (Orgs.) (Parte II)

Editora: Autêntica

ISBN: 978-65-8823-981-0

Opinião: ★★★☆☆

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Páginas: 288

Sinopse: Ver Parte I


 

“Se aceitarmos que a vida psíquica é na verdade um setor da vida social, com suas dinâmicas de internalização de normas, ideais e de princípios de autoridade, por que não se perguntar como tais processos sociais nos fazem sofrer, como eles podem estar na base das reações que irão levar sujeitos a hospitais psiquiátricos e consultórios?”

 

 

“A noção psicanalítica do sofrimento psíquico como expressão de sistemas de conflitos e de contradições nos processos de socialização e de individuação, conflitos esses que mostravam muitas vezes a natureza contraditória, problemática e traumática de nossas próprias instituições e estruturas (como a família, o casamento, o mundo do trabalho, a escola, a igreja, a sexualidade), foi um elemento decisivo não apenas para compreender o que era o sofrimento psíquico, mas também para mobilizar certo horizonte crítico a respeito dos custos de nosso processo civilizacional, dos problemas imanentes a nossas formas de vida na sociedade capitalista. Lembremos como o eixo de organização do DSM-I era a noção de “reação”, vinda da psicobiologia de Adolf Meyer. Ou seja, o sofrimento psíquico era analisado a partir de sua estrutura relacional em relação às injunções normativas do meio.

Tenhamos em mente esses dois fenômenos quando procurarmos melhor compreender o que estava de fato em jogo na ruptura nos padrões de classificação de doenças mentais e formas de sofrimento psíquico no final dos anos 1970. Pois tais fenômenos indicam como o campo da clínica do sofrimento psíquico estava em rota de assumir a relação entre contradições imanentes às estruturas institucionais da vida social (família, hospital, Estado, escola, entre tantos outros) e produção de sofrimento psíquico, produção da vida psíquica como espaço de expressão da recusa à aceitação dos quadros normativos que nos governam.32 Essa articulação sempre foi e será politicamente explosiva, pois leva à conscientização de transformações institucionais profundas tendo em vista a luta contra o sofrimento psíquico e social.

Normalmente, a justificativa oficial das modificações produzidas a partir do DSM-III tem a forma da produção de um mero quadro classificatório dotado de neutralidade axiológica. Certo conflito de interpretações reinaria no campo do diagnóstico do sofrimento psíquico até então. Daí a dificuldade em ter um quadro unificado que permitiria chegarmos às mesmas conclusões diagnósticas. Nesse sentido, o melhor seria eliminar toda reflexão etiológica em prol de descrições sindrômicas convergentes.33 Na verdade, podemos dizer que a “neutralidade” do DSM-III procurava realizar três ambições: “ultrapassar as clivagens ideológicas através da ciência, colocar entre parênteses a questão etiológica para se concentrar em descrições clínicas, reformar o vocabulário diagnóstico evitando ao máximo as inferências” (Demazeux, Qu’est-ce que le DSM?, 2013, p. 156).

O resultado foi um processo de reconfiguração completa da forma de descrever o sofrimento psíquico, cujos principais fatores são: o desaparecimento das neuroses como quadro compreensivo principal para a determinação do sofrimento psíquico; a individualização das depressões (que escapa da estrutura mania-depressão) e sua ascensão como quadro principal de descrição de sofrimento psíquico; a ascensão das patologias narcísicas e borderlines; a elevação da esquizofrenia a condição de “psicose unitária”, categoria geral de organização do campo das antigas psicoses.”

 

 

“O primeiro fenômeno está ligado à hegemonia das depressões. Se procurarmos a definição psiquiátrica dos transtornos depressivos, encontraremos descrições como “a característica comum de todos esses transtornos é a presença de humor ligado a sentimentos de tristeza, esvaziamento, irritação, acompanhado de modificações somáticas e cognitivas que afetam de forma significativa a capacidade individual para funcionar (to function – um termo sintomático por denunciar demanda por desempenho)” (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, Diagnostic And Statistical Manual Of Mental Disorders: DSM-5. 2013, p. 155). Tais transtornos, descritos sem levar em conta perspectiva etiológica alguma, devem durar ao menos duas semanas e envolver modificações sensíveis nos afetos, na cognição e em funções neurovegetativas.

Até 1994, o DSM reconhecia apenas dois tipos de transtorno depressivo: o transtorno depressivo maior e a distimia, ambos compreendidos como formas de transtornos afetivos particularizados a partir de 1980 (ano de publicação do DSM-III), momento em que a atenção clínica à depressão conhece substancial crescimento. Até então, a depressão passara por um processo através do qual ela deixara de ser apenas a descrição de um polo de reações no interior de uma patologia bipolar maníaco-depressiva (como era o caso em Kraepelin, no final do século XIX) ou no quadro geral das neuroses. Com a publicação do DSM-II, em 1968, ela aparece como “neurose depressiva”, deixando de ser compreendida como reação depressiva neurótica enquanto termo geral para depressão não bipolar, isso quando não era caracterizada como “depressão endógena” (causada por fatores eminentemente biológicos e caracterizada por ausência de causas exógenas). Por fim, a partir do final dos anos 1970, ela ganhará autonomia em relação ao quadro, agora abandonado, das neuroses.

Tal dissociação entre depressão e o quadro das neuroses, com sua herança psicanalítica, não é um mero ajuste nosográfico ocorrido, por coincidência, exatamente no momento de imposição da guinada neoliberal nos países capitalistas centrais. Na verdade, a neurose e a depressão são modelos radicalmente distintos de patologias. Uma ocupa o lugar da outra. Como viu claramente Alain Ehrenberg (2000), a depressão só pode aparecer como problema central no momento em que o modelo disciplinar de gestão de condutas cede lugar a normas que incitam cada um à iniciativa pessoal, à obrigação de ser si mesmo. Pois contrariamente ao modelo freudiano das neuroses, em que o sofrimento psíquico gira em torno das consequências de internalização de uma lei que socializa o desejo, organizando a conduta a partir da polaridade conflitual permitido/proibido, na depressão tal socialização organizaria a conduta a partir de uma polaridade muito mais complexa e flexível, a saber, a polaridade possível/impossível.34 A proibição moral advinda das exigências normativas de socialização dá lugar a uma situação de flexibilização das leis, de gestão da anomia que coloca as ações não mais sob o crivo da permissão social, mas sob o crivo individual do desempenho, da performance, da força relativa à capacidade de sustentar demandas de satisfação irrestrita. Assim, o indivíduo é confrontado a uma patologia da insuficiência e da disfuncionalidade da ação, em vez de uma doença da proibição e da lei. Se a neurose é um drama da culpabilidade, drama ligado ao conflito perpétuo entre duas normas de vida, drama que só pode ser tratado através da compreensão das contradições imanentes ao funcionamento “normal” da lei, a depressão aparece como tragédia implosiva da insuficiência e da inibição.

Não há intervenção clínica na neurose sem o desvelamento daquilo que psicanalistas como Jacques Lacan chamaram de “falta no Outro”, outra forma de dizer que o conflito neurótico só pode ser superado à condição de que a inadaptação à norma não seja sentida como inadequação do sujeito, mas como impossibilidade da própria estrutura institucional em dar conta da natureza singular do desejo. Nada disso está presente no horizonte clínico da depressão. A implosão das neuroses implica também perda de visibilidade e de espaço de intervenção analítica na modificação de modos de participação e de adesão social como condição para a cura. Ou seja, é uma tecnologia de intervenção clínica baseada na elaboração das articulações entre conflitos psíquicos e sociais que entra juntamente colapso. Outra tecnologia que elimina tal dimensão do sofrimento aparecerá em seu lugar. Esse ponto mereceria ser mais pesquisado.

Por outro lado, notemos os elementos que estão em jogo na reconfiguração radical do quadro das psicoses, reconfiguração que levou, no DSM-V, ao desaparecimento da paranoia e à transformação da esquizofrenia em psicose unitária. A paranoia foi a categoria fundamental da clínica psicanalítica das psicoses. Uma das razões para tanto era que ela fora pensada a partir de uma visão da doença como degenerescência, ou seja, a doença faria o caminho inverso do desenvolvimento normal. Por mais que tal definição tivesse seus problemas, havia algo de significativo aqui, a saber, a patologia não era uma ordem outra em relação à normalidade. Ela era uma fixação ou regressão dentro de um processo comum. Por isso, a doença dizia sempre algo a respeito da normalidade, ela deixava visíveis processos que na normalidade ficavam relativamente escondidos. Havia certa proximidade entre os dois, um terreno movediço.35

Essa solidariedade relativa entre normalidade e patologia desaparecerá com a hegemonia da esquizofrenia, que agora representa praticamente todo o espectro do que entendíamos por psicoses. Pois, nesse caso, a distinção é funcional. Há um princípio de unidade das condutas, de organização da experiência e de síntese que não está presente. Na esquizofrenia, os processos estão dissociados, pois não há mais a unidade sintética da personalidade. A linha entre normalidade e patologia é funcionalmente definida, e a personalidade é o verdadeiro marcador desse processo. Tal linha é clara, e nada passa de um lado a outro. Linhas claras, divisões estritas, lugares determinados. Mesmo que a personalidade não seja um fator biológico, mas uma construção social. Dessa maneira, a forma estrutural da personalidade, com suas ilusões de autonomia, de individualidade e de unidade, a mesma personalidade que será necessariamente encarnada na figura do médico como autoridade não problemática, aparece como o elemento estrutural na exclusão da produtividade imanente às experiências de multiplicidade no interior da vida psíquica.

Note-se que não é um acaso que a unidade tenha se tornado a determinação funcional fundamental e única para a distinção entre normalidade e patologia em um momento histórico como o nosso. Em uma situação social no qual todos os setores da vida são indexados a partir de uma visão unitária baseada na generalização da racionalidade econômica, na generalização de uma mesma gramática da experiência para todas as esferas da ação humana, o quadro clínico fundamental para a definição do sofrimento psíquico não poderia ser outro além exatamente da perda da capacidade de organizar as dimensões da vida a partir de um princípio geral de unidade, de coerência e de síntese. As formas de sofrer aparecem como impossibilidades de operar uma reconversão geral da vida a partir da abstração geral da unidade e da síntese, abstração essa que será agora vista como “liberdade”. Dessa forma, o neoliberalismo nos levou a sofrer de outra forma, procurando retirar de nosso sofrimento psíquico a consciência potencial da violência social.”

34 “O direito de escolher sua vida e a injunção a advir si mesmo colocam a individualidade em um movimento permanente. Isso leva a colocar de outra forma o problema dos limites reguladores da ordem interior: a partilha entre o permitido e o proibido declina em prol de um esgarçamento entre o possível e o impossível” (EHRENBERG, 2000, p. 15).

35 Isso apenas realizava a explicação freudiana: “Se atiramos ao chão um cristal, ele se parte, mas não arbitrariamente. Ele se parte, segundo suas linhas de clivagem, em pedaços cujos limites, embora fossem invisíveis, estavam determinados pela estrutura do cristal” (FREUD, Gesammelte Werke, 1999, p. 64). O patológico é esse cristal partido que, graças à sua quebra, fornece a inteligibilidade do comportamento definido como normal. Para um bom comentário desse problema em Freud, ver: VAN HAUTE, P.; DE VLEMINCK, J. Aan gene zijde van Freud: De grenzen en de mogelijkheden van een psychoanalytische pathoanalyse. In: Freud als filosoof. Leuven: University of Leuven Press, 2013.

 

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O sujeito e a ordem do mercado: gênese teórica do neoliberalismo”, de Fábio Franco, Julio Cesar Lemes de Castro, Ronaldo Manzi, Vladimir Safatle e Yasmin Afshar.

 

“A hipertrofia da ação individual chega a seu ponto máximo na doutrina neoliberal, cuja expressão mais significativa é o conceito de “capital humano”, associado principalmente ao nome de Gary Becker, da Escola de Chicago. Esse conceito implica uma relação a si mesmo marcada pela exigência de autovalorização constante, mediada pela lógica da mercadoria. Num quadro de extrema heteronomia, os indivíduos são alçados a agentes autônomos, capazes de agir livremente para satisfazer seus interesses. Sendo cada um convertido em “capital”, os sujeitos passam a se compreender como empresas submetidas à insegurança típica da dinâmica dos mercados. Em uma sociedade competitiva, os indivíduos comparam e hierarquizam constantemente coisas e pessoas, sendo eles mesmos passíveis de (des)classificação a todo momento. “Especialista dele mesmo, empregado dele mesmo, inventor dele mesmo, empresário dele mesmo: a racionalidade neoliberal pressiona o eu a agir sobre ele mesmo no sentido de seu próprio reforço para seguir na competição. Todas as atividades devem se comparar a uma produção, a um investimento, a um cálculo de custo. A economia se torna uma disciplina pessoal” (Dardot; Laval, 2010, p. 412).

Esse investimento extremo sobre si e suas capacidades aparece, ao mesmo tempo, como plena realização individual e como disciplina inflexível – tomando aqui disciplina em sentido lato. Quando o indivíduo é colocado como centro da dinâmica, na verdade pesa sobre ele com máximo vigor uma lei externa, a lei da valorização do capital. Ao internalizá-la, é o próprio indivíduo que passa a exigir de si mesmo ser um empreendedor bem-sucedido, buscando “otimizar” o potencial de todos os seus atributos capazes de ser “valorizados”, tais como imaginação, motivação, autonomia, responsabilidade. Essa subjetividade ilusoriamente inflada provoca inevitavelmente, no momento de seu absoluto esvaziamento, frustração, angústia associada ao fracasso e autoculpabilização; a patologia típica nesse contexto é a depressão.1 A “autonomia”, no sentido de dar a si mesmo o princípio de sua ação, converte-se na mera internalização das injunções do mercado, tal como a “liberdade de empreender”, que envolve “transformar os trabalhadores em empreendedores de suas próprias tarefas. É na figura do empreendedor, no homem empreendedor, que se focaliza a autonomia. O espírito de empresa, a ação de empreender, é a pedra de toque da transformação da gestão de recursos humanos, ou seja, da gestão das relações entre a empresa e seus empregados” (EHRENBERG, 2010, p. 86).

Mas é importante sublinhar que a concepção de sujeito neoliberal guarda elementos de contradição, inflexão e ambivalência, sendo impossível traçar uma linha evolutiva contínua, sem quebras, de seu desenvolvimento. Na medida em que seus teóricos preconizam o mundo como um grande mercado, onde sujeitos racionais agem livremente em busca de satisfação, essa suposta ação espontânea corresponde sempre à lógica da valorização do capital, do qual cada sujeito é portador. Dessa forma, a “razão humana”, que caracteriza esse agir, é concebida como a razão dos mercados, sendo o capitalismo o resultado natural desse agir espontâneo. No entanto, essa exaltação da liberdade humana corre em paralelo com a elaboração de modos de controle cada vez mais sofisticados. Sob o neoliberalismo, a coerção é internalizada, de modo que os sujeitos se autorreificam sob a égide da lógica da mercadoria. Essa forma de autogoverno é, como diz Ehrenberg, a mais efetiva, pois “só são eficazes os sistemas de governo que nos ordenam ser nós mesmos, saber empregar nossas próprias competências, nossa própria inteligência, ser capazes de autocontrole. A gestão pós-disciplinar é uma tentativa de forjar uma mentalidade de massa que economiza ao máximo o recurso às técnicas coercivas tradicionais” (EHRENBERG, 2010, p. 89).”

1 Ver “A hipótese depressiva”, de Christian Dunker, neste volume.

 

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A psiquiatria sob o neoliberalismo: da clínica dos transtornos ao aprimoramento de si, de Antonio Neves, Augusto Ismerim, Fabrício Donizete da Costa, Luckas Reis Pedroso dos Santos, Mario Senhorini, Nelson da Silva Junior, Paulo Beer, Renata Bazzo, Sonia Pitta Coelho e Viviane Cristina Rodrigues Carnizelo

 

“É nesse sentido que se pode argumentar que quando o neoliberalismo altera nossa relação com o sofrimento psíquico, tal como ele o faz com os ideais, conforme demonstrado no capítulo anterior, ele produz performaticamente novos sujeitos (SILVA JUNIOR, Epistemologia psiquiátrica e marketing farmacêutico, 2016). Assim, temos de compreender a psiquiatria hoje nessa nova produção de subjetividades, na qual os indivíduos tomam a si próprios como empresas a serem geridas. Esse é o argumento deste livro: as formas de expressão e produção do sofrimento são implicadas pela transformação dos próprios sujeitos realizada pelo neoliberalismo. Claro está que a psiquiatria a um só tempo atuou como beneficiária dos sofrimentos gerados pela reorganização neoliberal da sociedade e também os produziu, inaugurando uma nova etapa em sua relação secular com a doença mental: não apenas descrever, compreender e tratar os sofrimentos psíquicos, como também produzi-los para então tratá-los. Mas pode-se dizer que, mesmo nesse caso, a psiquiatria continua a se organizar e se definir a partir dos sofrimentos e seus tratamentos. Ora, nas últimas duas décadas, pode-se dizer que, aprofundando cada vez mais suas articulações com o neoliberalismo, a psiquiatria se emancipou dessa definição de si própria baseada em sua relação com o sofrimento.”

 

 

“Como vemos, com a psiquiatria biológica não podemos mais pensar, como fez Freud, o sofrimento psíquico no conflito entre as exigências sociais de uma sociedade e as inclinações imorais do paciente, no atrito entre normas sociais hegemônicas e a sexualidade disruptiva (FREUD, Moral sexual “cultural” e o nervosismo, [1908] 2015). Com a biologização da psiquiatria, o sofrimento psíquico é equalizado como um déficit biológico desvinculado do entorno social. Aqui vem um segundo aspecto importante da psiquiatria biológica: esse desarranjo orgânico é visto como objeto de correção objetiva sem maiores compromissos políticos. Reificada no orgânico, a doença deixa de ser pensada como fenômeno político comprometido com questões como a da adequação às exigências sociais que circundam o indivíduo. Em uma palavra: a disorder, em sua reificação orgânica, toma como natural a order à qual faz oposição e, assim, retira a psiquiatria do campo da política e do conflito.”

 

 

“É verdade que, à primeira vista, a fundamentação da intervenção médica no patológico seria extinta junto com o desaparecimento da noção de doença como baliza da prática clínica. Porém, o impulso que leva o sujeito doente em busca de tratamento médico não é, fundamentalmente, distinto do impulso que move aquele que busca por tecnologias de enhancement humano. Os dois encontram-se num desarranjo entre as expectativas de autorrealização como sujeito e as condições disponíveis para efetivá-las. Nesse sentido, ambos partem de um fundo patológico no sentido original desse termo: aquele de sofrimento. A mudança fundamental, porém, ao nosso ver, é como o pathos ganha uma nova condição com o neoliberalismo. Em uma fórmula rápida: se o sofrimento no liberalismo e no capitalismo industrial de produção era por privação, ou seja, dava-se no conflito entre as normas sociais vigentes e os desejos impedidos do sujeito, o sofrimento no neoliberalismo e no capitalismo de consumo pode ser melhor entendido na dinâmica do gozo, em que a questão não é a da adequação a normas sociais postas, mas a da autossuperação dos limites do sujeito a todo momento (SAFATLE, Cinismo e a falência da crítica, 2008).

O que está em jogo aqui é a busca por um bem-estar, com toda carga fantasiosa de um estado de vida melhor do que aquele que se vive no presente. Trata-se de viver uma vida melhor, da busca por uma wellness que está para além da cura e de sua promessa de reestabilização de uma pretensa normalidade do funcionamento orgânico. Mas no campo do gozo, as definições do que seria uma vida melhor já não são oriundas dos desequilíbrios internos de cada sujeito. Essas definições são marcadas por dinâmicas e interesses que lhes escapam, mas que lhes chegam como ideais a serem buscados. Ora, o conjunto desses ideais, tal como vimos no caso do ideal de liberdade presente nas matrizes psicológicas do neoliberalismo, é definido segundo os interesses econômicos da lógica neoliberal.

Esse é o novo horizonte a partir do qual intervenções médicas não mais focadas na noção de doença retiram seu sentido. Ainda que isso não seja novidade (a cirurgia plástica e a dermatologia cosmética estão aí para nos lembrar disso), essa tendência na medicina parece ter se acentuado nos últimos anos e ganhou maior atenção da comunidade médica. Existe hoje toda uma sorte de demandas em saúde que explicitam não uma vontade do paciente em se livrar de uma doença devidamente classificada, mas sim de uma insatisfação mais etérea com a própria existência, uma vontade de estar melhor. Em uma tentativa de dar conceitos para essas mudanças, podemos dizer que essa prática médica para além da doença se apoia em um mal-estar não relacionado a uma nosologia. O tema da utilização de soluções médico-tecnológicas para a resolução de conflitos dessa natureza e sua interface com a economia já foi trabalhada em relação às modificações corporais.19

19 Os primeiros movimentos acerca dessa compreensão já foram realizados na última publicação do Latesfip, Patologias do social: arqueologias do sofrimento psíquico. Desenvolvidos no terceiro capítulo, sob a dicotomia: corpos commodities x corpos capital-fixo, articulam a busca pela eliminação de uma falta constitutiva do sujeito através de modificações corporais com uma nova face da mais-valia. Desse modo, como um autoinvestimento financeiro a fim de multiplicar o próprio capital humano, o sujeito faz uso de soluções do mercado para aumentar, sua eficiência e seu valor “no mercado”. No texto, observa-se que as mudanças corporais supostamente ofereceriam uma solução do impasse neurótico. Ao nosso ver, essa mesma dicotomia presente na apropriação dos corpos pelo neoliberalismo, a saber, entre corpos commodities e corpos capital-fixo, também pode ser reencontrada em sua apropriação do psiquismo.

 

 

“Formulando de uma maneira sintética e radical: estamos diante de uma medicina sem pacientes e sem médicos, que recebe diuturnamente ofertas supostamente promotoras de melhoramento humano como artigos de mercadoria. Tais mercadorias agem como intervenções biológicas para esses indivíduos, mesmo aqueles classificados como saudáveis pela medicina tradicional, mas que ainda assim desejam mudar a si mesmos, não necessitando, contudo, da chancela dos saberes médicos para ter acesso a toda tecnologia médica, pois a acessam como consumidores. Aqui se desnuda uma íntima relação entre economia e ciência, mais especificamente, entre a psiquiatria com seus saberes e o neoliberalismo com sua lógica de produção de tamponamentos para as fragilidades, inconsistências e precariedades humanas segundo o critério da produtividade máxima a todo momento.”

 

 

“Ora, a mudança descrita da medicina moderna para medicina contemporânea, a diluição da noção de doença e a intensificação das práticas médicas de aprimoramento, parecem obedecer à mesma estrutura que essa mudança vista no mundo empresarial. Aqui não existe mais o braço de ferro entre norma e desvio, saúde doença, trabalho e anseios pessoais etc. Há, antes, uma busca de performance e autossuperação através das tecnologias disponíveis, em que podemos ser sempre uma versão melhor de nós mesmos: mais saudáveis, mais dispostos, mais inteligentes ou criativos. O enhancement humano parece ser uma marca, presente na psiquiatria contemporânea, de sua íntima relação com a lógica neoliberal de gestão do sofrimento, cujo denominador comum entre os saberes psis e a prática neoliberal seria o processo de esvaziamento e de dissolução dos conflitos.

Mais especificamente, é possível depreender que não se trata, em tal política de dissolução dos conflitos, somente de uma íntima relação entre psiquiatria e neoliberalismo, mas justamente da psiquiatria enquanto um campo de efetivação do projeto neoliberal. Se tomarmos o caminho percorrido nesta apresentação e o articularmos ao que já foi exposto nos capítulos anteriores deste livro, veremos que as modificações que a psiquiatria têm sofrido nas últimas décadas obedecem a uma dupla inscrição da lógica neoliberal. Por um lado, vê-se que há uma correspondência naquilo que poderia ser reconhecido enquanto dimensão valorativa da atuação social, em que é delineado um horizonte cada vez mais calcado na valorização do caráter individual da produtividade e num regime de compensação baseado na indiferenciação entre os objetivos demandados do trabalhador e aqueles que seriam por ele desejados. É isso que foi possível demonstrar no direcionamento da psiquiatria a uma prática de aperfeiçoamento e seu efeito de apagamento da dimensão conflitiva, uma vez que realiza a efetiva adaptação do horizonte desejante da força de trabalho aos interesses dos detentores dos meios de produção. Esse apagamento recobre a clivagem entre os interesses das diferentes classes, como se ao fim fosse realmente possível tomar como verdade que o sucesso dos proprietários dos meios de produção corresponderia ao bem dos trabalhadores. Exemplo de aplicação imediata daquilo que por tanto tempo foi defendido por autores como Ayn Rand, Milton Friedman e Friedrich Hayek sobre a busca do sucesso individual e da maximização do lucro como o melhor meio de se chegar ao bem comum.

Por outro lado, o segundo momento da inscrição da lógica neoliberal que se realiza na psiquiatria consiste na naturalização dos pilares da ideologia neoliberal como ponto de partida da reflexão sobre a experiência social. Prática comum a autores do neoliberalismo canônicos, como Hayek ou Becker, que não partem em seus textos de uma discussão sobre uma teoria do sujeito, mas que apresentam suas teorias do sujeito enquanto dados estabelecidos e inquestionáveis.27 Nesse sentido, a psiquiatria pode ser tomada enquanto um campo de realização da lógica neoliberal na medida em que efetiva, a partir de seus saberes e práticas, um modo específico de experiência que não se apresenta enquanto questionável. Não por acaso, uma discursividade calcada em ideais como liberdade e autonomia parece paradoxalmente produzir como efeito uma redução intensa das possibilidades de atuação e de experiência dos sujeitos. Se podemos ver em Freud ([1908] 2015) o reconhecimento de articulação entre conflito psíquico e moral civilizada e o apontamento de que a diminuição do sofrimento deve ser pensada a partir de atuações sobre o social, o que se vê na psiquiatria contemporânea enquanto efetivação da lógica neoliberal é justamente o seu oposto, uma lógica em que a adequação desenfreada aos ideais culturais é tomada enquanto horizonte necessário, isto é, sem alternativa possível.

Finalizando essa reflexão, há de se insistir no caráter não fortuito do direcionamento da psiquiatria para esse horizonte. Não é surpresa que a produção de conhecimento nesse campo não goze de autonomia em relação a seu contexto e às demandas do poder. De fato, embora travestida de um discurso de cientificidade que se apresenta enquanto uma produção desinteressada por influências exteriores às suas questões epistemológicas ou clínicas, a inseparabilidade entre o caminho traçado pela psiquiatria e o desenvolvimento das práticas sociais neoliberais nas últimas décadas parece inegável. Inquietante confirmação de posições como a de Isabelle Stengers (As políticas da razão, 2000) sobre a inseparabilidade entre ciência e política.

Claro está que esse movimento recente da psiquiatria não deve ser tomado somente enquanto um efeito de um modo de organização neoliberal, mas sim como uma importante frente estratégica de implementação dessa racionalidade a partir da definição e do tratamento do sofrimento psíquico, dado o seu alto potencial crítico e contestatário. De fato, a adaptação do horizonte geral de expectativas aos interesses do poder econômico não pode prescindir do controle, da produção e da condução da experiência do sofrimento. O deslocamento da dimensão conflitiva do sofrimento para aquela de uma necessidade de aperfeiçoamento adaptativo, capaz de retroalimentar incessantemente o funcionamento do consumo, não deve ser assim subestimado como peça estratégica exemplar do discurso neoliberal.

Sabe-se que os modos de sofrimento não somente dependem de seu reconhecimento social, mas que também são produzidos e expressados a partir de elementos simbólicos disponíveis na cultura*. Mais do que isso, como bem define Hacking (Ontologia histórica, 2009), os saberes produzidos sobre indivíduos exercem um efeito retroativo sobre esses mesmos indivíduos, modificando as possibilidades de experiência de sua existência. Nesse sentido, a psiquiatria não somente cria produtos psicoativos e ministra tratamentos, como também produz uma discursividade sobre um modo de subjetividade indispensável ao funcionamento neoliberal, precisamente aquela que diz respeito à sua capacidade de gestão do sofrimento. A fragilidade das bases psicológicas do pensamento neoliberal encontra na psiquiatria do aprimoramento de si um aliado institucional e uma prática insubstituível, capaz de amparar com prescrições médicas e soluções identificatórias aquilo que a bidimensionalidade de seu discurso não pode oferecer, notadamente, um suposto saber sobre o sofrimento (DUNKER, 2015; BEER, A questão da verdade na produção de conhecimento sobre sofrimento psíquico 2020).

Eventualmente, o fracasso desse modo de gestão do sofrimento talvez seja um ponto de potencial ruptura. Os recorrentes fracassos da psiquiatria (ROSE, Our Psychiatric Future, 2018) carregam, de alguma maneira, essa tensão: por um lado reforçam a impossibilidade desse projeto, mas por outro são um ponto exemplar de como o horizonte normativo neoliberal consegue reduzir seus enunciados normalizantes ao máximo, a saber, à sua mera enunciação prescritiva. O que parece, de fato, ser o funcionamento geral dessa lógica, que esconde aquilo que é precisamente ao mostrar todo o tempo aquilo que verdadeiramente é (SAFATLE, 2008). No caso da psiquiatria do aprimoramento de si, esse funcionamento se encarna em um discurso que apresenta como estando à mão a experiência de liberdade, fruição e aperfeiçoamento, que esconde a finalidade servil e alienante de tal liberdade para empreender e enfrentar riscos individualmente e assim gerar lucros sem risco aos investidores. Redução cínica e radical das possibilidades de ser, de sofrer e, principalmente, de transformar o mundo.”

*: FREUD, Conferências introdutórias à psicanálise, [1917] 2014; HACKING, Making Up People, 2000; Mad Travelers, 1998; Ontologia histórica, 2009; DUNKER, Mal-estar, sofrimento e sintoma, 2015; SILVA JUNIOR, Fernando Pessoa e Freud, 2019b.

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