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sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico, de Vladimir Safatle, Nelson da Silva Junior, Christian Dunker (Orgs.) (Parte III)

Editora: Autêntica

ISBN: 978-65-8823-981-0

Opinião: ★★★☆☆

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Páginas: 288

Sinopse: Ver Parte I



A hipótese depressiva, de Christian Dunker

 

“Entre o fim da Segunda Guerra Mundial e os anos 1980, no espaço de 40 anos, a depressão passou de uma coadjuvante tardia no grande espetáculo da loucura, em meados do século XIX, à condição de atriz principal e diva preferencial das formas de sofrimento de nossa época. Esse é também o processo de literalização e de encaixotamento dos pacientes em uma lista de sinais descritivos, isolados de um nexo narrativo sem qualquer conexão entre a emergência e a desaparição de sintomas. Se a depressão nasce envolta em metáforas, carregada nos braços de seus nobres ancestrais filosóficos e poéticos como a melancolia, hoje ela parece ter se reduzido a duas metáforas empobrecidas: “a falta de um ingrediente químico no cérebro” e o “gatilho” que dispara pioras e repetições.”

 

“Mas em meados dos anos 1970 o próprio capitalismo parece ter sofrido uma mutação. Em vez de proteção e narrativização do sofrimento, descobre-se que a administração do sofrimento, em dose correta e de forma adequada, pode ser um forte impulso para o aumento da produtividade. Em 1973, Saleme, Piñera e outros Chicago Boys, ex-alunos de Milton Friedman na universidade americana homônima, assumem a economia chilena. Ganhador do Prêmio Nobel de 1976, autor do livro mais vendido de não ficção em 1980 (A liberdade de escolha) e conselheiro pessoal do presidente Ronald Reagan, Friedman defendia a existência de uma taxa “natural de desemprego”, portanto, que nem todos terão acesso a empregos e que se o governo tentasse agir contra isso, causaria inflação. Entre suas propostas estavam a abolição da licença médica, cupons escolares, câmbio flutuante e a mais completa desregulação da economia. Acabava-se assim a era da negociação mediada pelo Estado e começava um período no qual deveríamos voltar nossa confiança à mão invisível do mercado, tal como descrevera Adam Smith, nos primórdios do liberalismo. Por isso essa teoria ficou conhecida como neoliberalismo.

O neoliberalismo não é apenas uma teoria econômica que acabou por favorecer a financeirização das empresas, o nascimento do capitalismo imaterial, onde o valor da marca pode superar a importância da produção. Ele também não é apenas o reflexo de uma valorização do consumo, como padrão de formação de identidades e como ponto de definição negocial. Ele representou uma nova moralidade que prescreve como devemos sofrer sobre o neoliberalismo, tendo na sua cúspide preferencial a síndrome depressiva. Agora o sofrimento não é mais um obstáculo para o desenvolvimento da indústria, mas pode ser metodicamente produzido e administrado para aumentar o desempenho e é isso que caracteriza o neoliberalismo no contexto das políticas de sofrimento: individualização, intensificação e instrumentalização.

Aqui é preciso retornar a Foucault (A história da sexualidade 1, 1988) e sua conhecida hipótese repressiva. O autor de A história da sexualidade argumentava que boa parte das ideias nas quais a psicanálise se apoiou e ajudou a propagar estavam amplamente disponíveis como complexos culturais e discursivos antes de Freud. A era vitoriana havia construído um padrão de naturalização da mulher, de periculosidade da sexualidade na criança, de perversão adolescente que culminou na convicção generalizada de que nós somos o que somos porque reprimimos partes de nós mesmos que não conseguimos aceitar. A sexualidade como lugar de verdade e negação pode não ser uma “descoberta” de Freud. Ele teria apenas sistematizado uma hipótese, disponível e necessária para criar certos “tipos de pessoa” no quadro de certos processos de individualização. Isso permitiria dizer que incitar o discurso sexual, fazer falar e desenvolver uma ciência do erotismo são partes dessa hipótese repressiva. Se isso é correto, poderíamos dizer que a hipótese repressiva foi substituída pela hipótese depressiva, em meado dos anos 1970, em função de transformações discursivas e econômicas. Chegamos assim a entender a emergência e a dominância da hipótese depressiva como uma redescrição de nossas formas de vida de modo a evitar a hermenêutica do conflito e substituí-la por uma retórica da intensificação ou da desintensificação, da potência e da impotência, em torno das funções do eu. Ora, tais funções desde Freud envolvem a motilidade, a linguagem (no sentido expressivo) e as disposições psíquicas como atenção, memória, pensamento, volição, percepção, sono, sexualidade, alimentação.”

 

 

“Esta nova narrativa de sofrimento individualiza o fracasso, na forma da culpa, sem interiorizá-lo na forma de conflitos. Com isso ela consegue isolar completamente a dimensão política, das determinações objetivas que atacam nossas formas de vida, redimensionando trabalho, linguagem e desejo, do sofrimento psíquico. Isso pode ser ótimo do ponto de vista da explicação social da produção de desviante, fracassados ou excedentes do sistema de produção, no entanto isso só funciona porque tem um enraizamento real na experiência depressiva. Nela a autoavaliação, auto-observação, o juízo comparativo e a apreciação de si mesma ocupa longas extensões de tempo e rapta grande parte da energia psíquica do indivíduo.

Em outras palavras o isolamento social e cognitivo requerido pela separação entre vida e depressão, de tal maneira que os sintomas independem do que o sujeito possa fazer em termos de processos de linguagem, desejo ou trabalho, confirma-se e define o próprio quadro depressivo.

A hipótese depressiva, do ponto de vista da sua etiologia, prescinde de uma teoria do conflito. Dito de outra maneira, do ponto de vista do conflito a depressão seria um sintoma secundário de formações de sintoma ou de angústia baseadas no conflito. Com o dispêndio de trabalho psíquico, assim como o esforço para se adaptar ao sintoma ou para evitar situações indutoras de angústia, a depressão seria um efeito residual das inibições e dos reposicionamentos identificatórios. Ela nos faz pensar que a questão central da existência é saber quem somos, e não o que queremos.

A contraface dessa hipótese requer que também a angústia seja separada da expressão de conflitos. Ela é transformada primeiramente em ansiedade, depois em estresse, para finalmente emergir como mera expressão de uma descompensação cerebral, sem que por outro lado se explique muito bem por que processos ansiosos e processos depressivos costumam andar tão juntos na clínica. Como se a angústia crônica “cansasse” o sujeito e isso o levasse à depressão, assim como se a depressão crônica paralisasse o sujeito e isso o levasse à ansiedade, contudo as duas coisas acontecem sem um nexo lógico ou causal entre elas.

A neuropsiquiatria neoliberal fez desaparecerem inúmeras outras formas de diagnóstico histórico: a paranoia foi gradualmente incluída e subordinada à esquizofrenia, as psicoses da infância foram diluídas no espectro do transtorno autista, a histeria desmembrou-se em transtornos somatoformes, fobia social, anorexias, transtornos de gênero, fibromialgia. Mas não seria possível fazer desaparecerem as antigas neuroses, por isso elas vão aparecer rebaixadas à classe dos transtornos de personalidade. Elas são definidas por uma espécie de entranhamento do sintoma no eu, sem conflito. Dessa forma se poderia dizer que cada uma das antigas categorias definidas pelos sintomas pode agora ser reinterpretada, em formas benignas, ou versões egossintônicas, como espelho dos antigos sintomas: Personalidades Classe A: esquizoide, esquizotípica e paranoide, Personalidades Classe B: histriônica, narcisista e antissocial, ou Personalidades Classe C: dependente, esquiva e obsessivo-compulsiva.”

 

 

“Todo sintoma é um desejo que se realiza de forma deformada, assim também cada narrativa de sofrimento é uma forma de endereçar uma demanda de reconhecimento. Sintomas não são apenas uma avaria que se pode excluir das pessoas impunemente, um a-mais composto de falta de sentido e ausência de verdade. Sintomas são também formas de resistência, por isso a pesquisa sobre a gênese e a emergência de novas formas de sofrimento é uma investigação que localiza modalidades de crítica e de resistência social. Sintomas são uma forma de responder ao Outro assim, como uma maneira de extrair um fragmento adicional de gozo.”

 

 

“Fazia parte do sofrimento pós-revolucionário de 1968 uma onda de intenso desejo de adaptação, conformidade e ajustamento, como no chamado paradigma das donas de casas ansiosas, dependentes e infantilizadas, consumidoras contumazes e crônicas de Valium, sofrendo dentro da border-line da adequação feminina. É porque tornamo-nos “todos-neuróticos” que o sofrimento histérico adquiriu certa invisibilidade ou teve de ser atomizado em pequenos sintomas sem nexo narrativo entre si, de modo a recuperar sua visibilidade e seu potencial de reconhecimento. Lembremos que a histeria se caracterizava, em sua descrição moderna, feita por Charcot e Freud, pela presença de ausências de consciência, por espasmos que denunciam a autonomia do corpo sobre a mente, pela desrazão melancólica ou hipocondríaca e pela fraqueza da experiência de si. É também porque tornamo-nos “todos-narcísicos” que o sofrimento com a imagem de si e sua infinita inadequação tornou-se imperceptível. A partir de então a normalopatia exige a recusa da dignidade do sofrimento daqueles que não são suficientemente ou são exageradamente neuróticos ou narcísicos.”

 

 

“Quando comparamos a personalidade borderline com a depressão, observamos que na segunda há uma tristeza e ausência de sentimentos até o congelamento emocional da experiência, mas tipicamente a agressividade volta-se contra si, ao passo que no borderline aparecerá a acusação e a agressividade dirigidas ao outro.

Se a personalidade borderline é um sintoma normalopático do neoliberalismo, porque explora a indeterminação de fronteiras e limites, ela é também a exageração de seu funcionamento duplo e sincronizado: esquizoide (com alterações normativas e rupturas que não incorporam sua própria história) e narcísica (com seu individualismo avaliacionista e meritocrático). A solda que une esses dois estados de mundo copresentes mas não mutuamente afetáveis é a altíssima idealização cínica, que adia para o futuro e nega a realidade presente em nome de um futuro redentor.

Trata-se de um tipo de individualização que contraria os princípios do utilitarismo, exagerando-os. Seu complexo de inautenticidade infinita, sua hipersensibilidade não ordenada, seu sentimento de ser um “personagem” recusam a política de moldura, a prótese funcional como uma espécie de semblante perpetuamente insustentável.

Sentimentos de menos-valia, de substitutividade, de mesmidade, de falta de amor revelam uma afetação demasiada pelo Outro, sem a conhecida eficácia cínica ou indiferente. Em seu lugar aparece a oscilação entre a idealização maníaca e a reposição depressiva. Em vez de uma maximização, há também uma minimização das fronteiras.

Em vez de uma administração do gozo pelo saber do mercado, a problemática esquizoide exagera a fragmentação do regime jurídico da lei, excessiva, em uma espécie de “flexibilização” ou de ambiguação não calculada da lei. Há uma recusa a fazer a gestão de riscos ou uma não aderência à lógica securitária da evitação de riscos.

Finalmente, a reatividade e a raiva como afeto antídoto contra o medo parecem formar um tipo específico de satisfação, que age na falta de regulação do medo, contra a falta de ordenação da raiva.

Percebe-se assim como a personalidade Borderline é o correlato em termos de personalidade, da hipótese depressiva. Ela é a única forma de Transtorno de Personalidade realmente nova, originada na psicanálise e incorporada à descrição psiquiátrica a partir de 1973. Ela não deriva da “personalização” de sintomas, como o Transtorno de Personalidade Esquiva, Histérica, Paranoide e assim por diante. Por outro lado, ela é o lugar de retorno e preservação do conflito e contradição como razão de uma forma de personalidade. Se nas depressões parece haver um déficit de ação e um excesso de pensamentos as personalidades Borderline são atuativas e não conseguem conter seus impulsos por meio de juízos reflexivos. Se nas depressões os pensamentos são circulares e as crenças limitantes, na situação borderline os pensamentos são abertos demais e as crenças padecem de limitação. Se nas depressões a regulação dos afetos está perturbada pelo rebaixamento da economia do prazer nos estados limites há um uso frequente de substâncias que modulam a paisagem mental ou do sexo como apaziguador da angústia.

Portanto, é nesse cenário de inversão entre figura e fundo com as neuroses e de substituição da narrativa de sofrimento baseada na gramática do conflito pela gramática da esquiva, da adaptação e da inibição que a depressão é elevada à condição de nova normalopatia e a Personalidade Borderline seu contraponto transgressivo. Isso significa que a partir de então todos nos reconheceremos em momentos, fases, propensões mais ou menos depressivas. Ela nos visitará, de forma mais grave ou aguda, em algum momento da vida. Eventualmente ela já está presente, na forma de uma depressão mascarada, aqui e agora.”

 

 

“Junto com o neoliberalismo, o vocabulário econômico sofre uma mutação que enfatizará o medo e a inveja, o otimismo ou o pessimismo dos mercados, operando uma despolitização da política e deslocando a contenda moral para o terreno dos comportamentos de gosto. Ora, essa dissociação entre a produção econômica, identificada com a realidade, e o pensamento ou nossa forma de lê-la e interpretá-la vai operar no fulcro psicológico da depressão, explicando por que ela é o correlato necessário desse tipo de forma econômica.

A individualização do conflito, sua transformação em forma de culpa em associação com o fracasso e a potência produtiva, faz com que a agressividade contra o outro, que motivaria um desejo de transformação da realidade, seja introvertido em uma agressividade orientada para próprio eu. Isso se mostra, como vimos, no raciocínio de auto-observação, de crítica de si mesmo com a inversão em ilações idealizadas. O depressivo é aquele que fracassa e por outro lado tem um sucesso demasiado em se tornar um empreendedor de si mesmo. Ele não consegue usufruir da gramática da competição de todos contra todos, que tornaria a vida uma espécie de esporte permanente, de viagem contínua ou de teatro de estrelas no qual há um prazer em representar.

A anedonia, esse sintoma central da depressão, a incapacidade de experimental prazer com o outro, consigo e no mundo, torna-o uma espécie de ditador de si mesmo, em um impasse com suas próprias ordens, incapaz de entender o porquê de sua greve para iniciar, ou fazer algo que por outro lado lhe parece óbvio, prático e indiscutivelmente desejável. De certa maneira a depressão só descreve, ela não narra, ela luta contra a perda de memória e de concentração, o que a torna um ser de cansaço, ela é a greve e ao mesmo tempo a lei opressiva que a torna possível. Nesse sentido, o reinado da depressão é também um reinado crítico contra a era do “capital humano”, do prazer dócil e flexível no trabalho e da narrativa do talento, do propósito e da autorrealização que sobrecarrega a produção com métricas de desempenho e resultado. Daí que o depressivo não esteja exatamente trazendo um recado da realidade como ela é, mas um fragmento de verdade sobre por que não conseguimos perceber as coisas. Em certa medida ele responde demasiadamente bem à demanda de renunciar a si mesmo, ao se tematizar apenas como um personagem pouco convincente e um ator cansado de seu papel. Sua resposta insiste na coerência, na unidade e na síntese em um universo no qual a produção se torna deslocalizada, em que os manuais de gerenciamento nos ensinam como criar mais sofrimento para incitar mais produção, assim como fragmentam a narrativa do trabalho e do estudo em blocos de potencialidades e listas de traços desejáveis e funcionalmente adequados. Assim como para o neoliberalismo o mercado é um Outro compacto e fechado, idêntico a si mesmo em suas regras imutáveis, o Outro da depressão é composto por uma lei consistente e soberana em relação à qual só podemos nos apresentar como corpos-mercadorias, crianças amparáveis ou narcisos impotentes.”

 

 

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Para uma arqueologia da psicologia neoliberal brasileira, de Christian Dunker, Clarice Paulon, Daniele Sanches, Hugo Lana, Rafael Alves Lima e Renata Bazzo,

 

 

“Novas narrativas de sofrimento emergem com visibilidade social, mas sobretudo individualizando ao extremo o sofrimento psicológico, bem como psicologizando o fracasso laboral, afetivo e discursivo como um problema de moralidade individualizada. É nessa capacidade de se retroalimentar e gerenciar os efeitos de seus próprios fracassos que se localiza a maior força do neoliberalismo.”

 

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O Brasil da barbárie à desumanização neoliberal: do “Pacto edípico, pacto social”, de Hélio Pellegrino, ao “E daí?”, de Jair Bolsonaro, de Nelson da Silva Junior

 

 

“Se o trabalhador for desprezado e agredido pela sociedade, tenderá a desprezá-la e agredi-la até atingir um ponto de ruptura. (...)

É essa a chave psicanalítica para compreensão do surto crescente de violência e delinquência que dilacera o tecido social brasileiro nas grandes cidades. Existe, em nosso País, uma guerra civil crônica sob a forma de assaltos, roubos, assassinatos, estupros – e outras gentilezas do gênero. Esta guerra foi declarada e é mantida pelo capitalismo selvagem brasileiro, pela cupidez e brutal egoísmo das classes dominantes, nacionais e multinacionais, que o sustentaram e expandiram às custas da miséria do povo.” (Hélio Pelegrino)

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