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sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

As origens da pós-modernidade (Parte IV), de Perry Anderson

Editora: Edições 70

ISBN: 978-972-44-1845-2

Tradução: Artur Morão

Opinião: ★★★☆☆

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Páginas: 186

Sinopse: Ver Parte I


“Noutras áreas, a inflexão surge mais aguda. Sobretudo no excelente e longo ensaio sobre “transformações da imagem”, no centro de The Cultural Turn. Aqui, Jameson regista um amplo retorno, dentro do pós-moderno, de temas outrora teoricamente por ele proscritos: reintrodução da ética, regresso do sujeito, reabilitação da ciência política, debates renovados sobre a modernidade e – acima de tudo – uma redescoberta da estética. Na medida em que o pós-modernismo, em sentido amplo, enquanto lógica do capitalismo triunfante à escala mundial, baniu o espectro da revolução, este giro recente representa, na leitura de Jameson, o que se poderia chamar uma “restauração dentro da restauração”. O objecto principal desta crítica é o reavivamento de uma pronunciada estética da beleza no cinema. Os exemplos que ele discute vão desde Jarman ou Kieslowski num nível, passando por realizadores como Corneau ou Solas noutro, até aos habituais filmes de acção de Hollywood; para não falar da temática da arte e da religião associada à nova produção do belo. A sua conclusão é draconiana: onde outrora a beleza podia ser um protesto subversivo contra o mercado e as suas funções utilitárias, hoje, a mercantilização universal da imagem absorveu-a como uma aura traiçoeira da ordem estabelecida. “A imagem é hoje a mercadoria; é, pois, inútil esperar dela uma negação da lógica da produção de mercadorias; eis porque, no fim de contas, toda a beleza é hoje prostituída”(140).

A ferocidade desta expressão não tem equivalente nos escritos de Jameson sobre arquitectura, a qual, até na sua maior reserva, é muito mais indulgente perante as pretensões de esplendor visual. Que é que poderia explicar essa diferença? Deveremos, porventura, pensar na posição contrastada das duas artes — cinema e arquitectura – no seio da cultura popular. A primeira foi virtualmente, desde o começo, o seu elemento central, enquanto a segunda nunca deparou na realidade com uma firme implantação. Não existe nenhuma contrapartida cinematográfica do funcionalismo. Neste campo mais rarefeito, um desvio para o decorativo seria menos manchado pela associação imediata a uma estética, há muito implantada, do entretenimento do que na mais sedutora de todas as artes comerciais. No ensaio “Transformações da Imagem”, Jameson vai buscar os seus exemplos da estética da beleza a filmes marcadamente experimentais, premeditadamente de cultura média ou de todo populares. Mas se é difícil ver Latino Bar ou Yeelen da mesma maneira que Azul ou O Padrinho (O poderoso chefão no Brasil), a pressão em vista da sua assimilação deriva da categoria dos últimos. Isto pode ver-se a partir do foco do ataque original de Jameson à beleza cinematográfica – o inautêntico “culto da imagem sofisticada” nos nostálgicos filmes de bilheteira, cuja “diáfana beleza pode parecer obscena” como “uma derradeira embalagem da Natureza em papel celofane, que uma loja elegante desejasse pôr nas suas montras”. É notável que nesta ocasião, na fonte das suas objecções, Jameson especificasse o seu oposto: os “momentos e lugares históricos em que a conquista da beleza foi um acto político violento: a intensidade alucinatória da cor manchada na letargia suja da rotina, o gosto agridoce do erótico num mundo de corpos brutalizados e exaustos”(141).

Se, hoje, tais possibilidades diminuíram, a razão reside na “distância imensa entre a situação do modernismo e a dos pós-modernos ou de nós próprios”, ditada pela mutação generalizada da imagem em espectáculo — pois, hoje, “o que caracteriza a pós-modernidade na área cultural é a suplantação de tudo o que reside fora da cultura comercial, a sua absorção de toda a cultura, superior ou vulgar”, num único sistema(142). Esta transformação cultural, em que o mercado se torna omni-englobante, é acompanhada por uma metamorfose social. A exposição que Jameson faz desta mudança é, pelo menos inicialmente, mais favorável. Ao assinalar os maiores níveis de literacia e a abundância de informação, as maneiras menos hierárquicas e a dependência mais universal do trabalho assalariado, ele usa um termo brechtiano para apreender o consequente processo de nivelamento: não democratização, o que implicaria uma soberania política que constitutivamente está ausente, mas “plebeização”— uma evolução a que, com todos os seus limites, a Esquerda só pode agradecer(143). Mas, como muitas vezes ocorre em Jameson, as profundezas dialécticas de um conceito só gradualmente se desvelam.

A reflexão ulterior sobre esta alteração toca assim uma tecla algo diferente. Em The Seeds of Time, a plebeização revela outro aspecto — não tanto o estreitar da distância entre classes quanto um cancelamento da diferença social tout court, a saber, a erosão ou a supressão de toda a categoria do outro, no imaginário colectivo. O que outrora podia ser alternadamente representado pela alta sociedade ou pelo submundo, pelo autóctone ou pelo estrangeiro, desvanece-se agora numa fantasmagoria de estatuto intermutável e de mobilidade aleatória em que nenhuma posição, na escala social, está fixa de modo irrevogável, e o estranho se pode apenas projectar, para fora, no replicante ou no extraterrestre. O que corresponde a esta figuração já não é nenhuma igualdade objectiva maior — que, pelo contrário, em toda a parte regrediu no Ocidente pós-moderno — mas sim a dissolução da sociedade civil, como espaço de privacidade e autonomia, numa irregular terra-de-ninguém de pilhagem anónima e de violência incontrolada: o mundo de William Gibson ou Bladerunner(144). Semelhante plebeização, embora não desprovida das suas lúgubres satisfações, não denota necessariamente uma maior ilustração popular, antes novas formas de inebriamento e de engano. É este o terreno natural do crescimento luxuriante das imagens mercantilizadas que Jameson, com tanta força, analisa noutro lugar.

A noção de plebeização provém de Brecht. Mas registar estas ambiguidades é lembrar também um limite frente ao qual, poderíamos dizer, o seu pensamento hesitou. Havia uma realidade imensa que a arte de Brecht nunca conseguiu trasladar: o sinal indicador da sua incerteza perante ela é a trivialização de Arturo Ui. De facto, o III Reich foi também, inegavelmente, uma forma de plebeização — talvez a mais drástica alguma vez conhecida, que não reflectia, mas levava a cabo a erradicação de todo o vestígio do outro. Reparar nisto não é esconjurar perigos renovados do fascismo, um exercício indolente, hoje, tanto da direita como da esquerda. Mas é evocar uma herança alternativa daquele tempo, o exemplo de Gramsci, que, nos seus anos de prisão, enfrentou a força política e o apoio popular do fascismo sem a menor auto-ilusão. Nos seus cadernos de notas é onde, porventura, se pode encontrar a analogia mais sugestiva para a transformação social do pós-moderno.

Como italiano, Gramsci viu-se obrigado a comparar a Renascença e a Reforma – o redespertar da cultura clássica, o florescimento supremo das artes que o seu país conhecera, a racionalização da teologia e a tremenda regeneração da religião que lhe escapou. No plano intelectual e estético, sem dúvida, a Renascença poderia apreciar-se muito antes da Reforma que se lhe seguiu, a qual – numa visão estreita – assistiu, de múltiplos modos, à reincidência num grosseiro filistinismo e no obscurantismo bíblico. Mas a Reforma foi, neste sentido, uma reacção conservadora que suscitou um progresso histórico. Pois a Renascença fora essencialmente uma ocupação da elite, restringida às minorias privilegiadas mesmo entre as pessoas instruídas, ao passo que a Reforma foi uma sublevação de massa que transformou o olhar de metade da população comum europeia. Mas, na passagem de uma à outra reside a condição do Iluminismo(145). De facto, a sofisticação extraordinária da cultura renascentista, confinada aos que acima se nomearam, teve de ser vulgarizada e simplificada, se é que a sua ruptura com o mundo medieval se deveria transmitir como um impulso racional às camadas inferiores. A reforma da religião foi a adulteração necessária, a passagem do progresso intelectual através da experiência da popularização, para uma fundação social mais ampla, mais forte e mais livre.

As qualificações empíricas, exigidas pela exposição de Gramsci, não nos dizem aqui respeito. Pertinente é a configuração do processo por ele descrito. Não se aproximará muito disto a relação entre o Modernismo e o pós-modernismo, numa visão histórica? A transição de um para o outro, enquanto sistemas culturais, surge marcada por uma análoga combinação de difusão e diluição. “Plebeização” significa, nesta acepção, um amplo alargamento da base social da cultura moderna; mas, pela mesma razão, também um grande estreitamento da sua substância crítica, para produzir a insípida poção pós-moderna. A qualidade foi, mais uma vez, transmutada em quantidade, num processo que se pode considerar alternativamente como emancipação bem-vinda do confinamento de classe ou como contracção desastrosa de energias inventivas. Sem dúvida, o fenómeno da banalização cultural, cujas ambiguidades chamaram a atenção de Gramsci, surge numa exibição global. O turismo de massas, a maior de todas as indústrias do espectáculo, pode figurar como seu monumento, na sua mescla tremenda de libertação e de pilhagem. Mas aqui a analogia levanta também a sua questão. Na época da Reforma, o veículo da descida à vida popular era a religião: as igrejas protestantes é que garantiram a transição da cultura pós-medieval para um mundo mais democrático e secular. Hoje, o veículo é o mercado. Serão os bancos e as empresas candidatos plausíveis para o mesmo papel histórico?

Basta aprofundar um pouco mais a comparação para ver os seus limites. A Reforma foi, de múltiplos modos, um abaixamento social do auge cultural ante alcançado: figuras semelhantes a Maquiavel ou Miguel Ângelo, a Montaigne ou Shakespeare, não se poderiam de novo reproduzir. Mas ela foi também, sem dúvida, um movimento político de energia convulsiva, desencadeando guerras e lutas civis, migrações e revoluções, na maior parte da Europa. A dinâmica protestante era ideológica; impelida por um conjunto de crenças ferozmente associadas à consciência individual, adversa à autoridade tradicional, votada ao literal, hostil ao icónico – um olhar que suscitou os seus próprios pensadores radicais, teológicos no princípio e, em seguida, mais aberta e directamente políticos: abrandamento desde Melanchton ou Calvino até Winstanley ou Locke. Aqui, para Gramsci, o papel progressivo da Reforma é que rasgou o caminho para a época do Iluminismo e da Revolução Francesa. Foi uma insurreição contra a ordem ideológica pré-moderna da Igreja universal.

A cultura do pós-moderno é o inverso. Embora, nos últimos vinte e cinco anos, grandes mudanças políticas se tenham alargado a todo o mundo, só raramente foram o resultado árduo de lutas políticas de massa. A democracia liberal difundiu-se em virtude do exemplo ou da pressão da economia – a “artilharia das mercadorias”, segundo Marx –, e não pela sublevação moral ou pela mobilização social; e como assim fez, a sua substância tendeu a decrescer nos seus países de origem e nos seus novos territórios, à medida que emergiram as percentagens decrescentes da participação dos votantes e o aumento da apatia popular. O Zeitgeist não é abalado: é a hora do fatalismo democrático. Como poderia ser de outro modo, se a desigualdade social cresce pari passu com a legalidade política, e a impotência cívica com um novo sufrágio? O que mexe é apenas o mercado — mas este, a uma velocidade sempre mais acelerada, arrasta após si os hábitos, os estilos, as comunidades e as populações. Nenhum iluminismo predestinado se encontra à espera no termo desta jornada. Um começo plebeu carece de uma ligação automática com um final filosófico. O movimento da reforma religiosa começara com a destruição das imagens; o advento do pós-moderno instalou, como nunca antes, o domínio das imagens. O ícone, outrora derrubado pelos golpes do não-conformista, é agora emoldurado no acrílico como universal ex voto.

A cultura do espectáculo engendrou, claro está, a sua própria ideologia. Esta é a doxa do pós-modernismo que descende do momento de Lyotard. Intelectualmente, não tem grande interesse: uma mescla despretensiosa de noções, cujo resultado final pouco mais é do que um brando e mole convencionalismo. Como a circulação das ideias no corpo social não depende tipicalmente da sua coerência, mas da sua congruência com interesses materiais, a influência desta ideologia permanece considerável – de nenhum modo confinada apenas à vida universitária, mas perpassando em geral a cultura popular. Foi a este complexo que Terry Eagleton consagrou uma crítica cintilante em The Illusions of Postmodernism. Eagleton começa por fazer uma distinção clara entre o pós-moderno enquanto desenvolvimento nas artes e como um sistema de idées reçus, e declara que a sua preocupação se centra exclusivamente no último. Considera então, um após outro, os tropos estandardizados de uma retórica anti-essencialista e antifundacionalista – recusas de toda a ideia de natureza humana; concepções da história como processo aleatório; equações de classe com raça ou género; renúncias à totalidade ou à identidade; especulações de um sujeito indeterminado e, com fina precisão, desmantela uma a uma. Raramente existiu uma dissecção tão eficaz e global do que se poderia chamar, adaptando sardonicamente Gramsci a Johnson, o comum contrassenso da época.

Mas o fito de Eagleton não é apenas um inventário de asneiras. Situa também historicamente a ideologia do pós-modernismo. O capitalismo avançado, argumenta ele, exige dois sistemas contraditórios de justificação: uma metafísica de truísmos impessoais duradouros – o discurso da soberania e do direito, do contrato e da obrigação — na ordem política, e uma casuística das preferências individuais pelas modas em perpétua mutação e pelas gratificações do consumo, na ordem económica. O pós-modernismo dá a este dualismo uma expressão paradoxal; pois, enquanto a sua remoção do sujeito centrado em prol da pululação errática do desejo embate no hedonismo amoral do mercado, a sua negação de quaisquer valores fundamentados ou de verdades objectivas mina as prevalecentes legitimações do Estado. Que é que explica semelhante ambivalência? Aqui, a exposição de Eagleton mostra alguma hesitação. O seu estudo abre com a mais sólida – e até agora, ousada – leitura do pós-modernismo como produto da derrota política, no recinto da esquerda – uma “repulsa definitiva”(146). Mas esta surge mais como uma parábola lúdica do que como uma reconstrução efectiva. Com simpatia característica, Eagleton sugere que o pós-modernismo se não pode reduzir a isto: ele foi igualmente a emergência das minorias humilhadas no cenário teórico, uma “verdadeira revolução” no pensamento acerca do poder, do desejo, da identidade e do corpo, sem cuja inspiração já não é pensável, doravante, nenhuma política radical(147).

A ambivalência ideológica do pós-moderno poderia assim associar-se a um contraste histórico: esquematicamente – derrota do trabalho organizado e rebelião estudantil desembocando numa acomodação económica ao mercado, ascensão dos humilhados e ofendidos que leva ao questionamento político da moralidade e do Estado. Sem dúvida, tal paralelismo está, em parte, latente na exposição de Eagleton. Mas se ele nunca é explicitado, a razão reside num equívoco inicial. Sendo assim, não haveria, aparentemente, uma medida comum entre os dois desenvolvimentos de fundo, atribuídos ao pós-modernismo: um suscitado internamente no capítulo inicial, que estabelece o cenário para todo o livro, o outro — por assim dizer — uma espécie de compensação alusiva em vários parágrafos. A realidade política sugeriria que semelhante proporção revelava bom senso. Mas ajusta-se mal à noção de ambivalência, que implica uma paridade de efeito. Consciente porventura da dificuldade, Eagleton tira momentaneamente com uma mão o que com a outra propõe. A fábula do fracasso político termina com a “mais bizarra de todas as possibilidades”, quando ele pergunta: “Que aconteceria, se esta derrota nem sequer tivesse efectivamente acontecido? Que aconteceria, se ela fosse menos uma questão da esquerda ascendente, obrigada depois a recuar, do que uma desintegração incessante, uma gradual falta de fibra, uma paralisia crescente?” Se esse fosse o caso, então o equilíbrio entre causa e efeito seria restaurado. Mas, embora seja tentado por este devaneio confortante, Eagleton é demasiado lúcido para nele insistir. O seu livro termina como começa, “infelizmente, com uma nota mais ameaçadora”: o ponto essencial do pós-moderno não é um estado de equilíbrio, mas a ilusão(148).

O complexo discursivo, objecto da crítica de Eagleton, é, como ele refere, um fenómeno que se pode abordar independentemente das formas artísticas do pós-modernismo — a ideologia enquanto distinta da cultura, numa acepção tradicional destes termos. Mas, claro está, num sentido mais amplo, os dois não se podem separar de modo tão nítido. Como é que então se deverá conceber a sua relação? A doxa do pós-moderno é definida, como efectivamente mostra Eagleton, por uma afinidade primária com os catecismos do mercado. Aquilo que se nos apresenta é, pois, na prática a contrapartida do “citra” – enquanto corrente dominante na cultura pós-moderna — no campo ideológico. Surpreende que Jameson se tenha com ele preocupado tão pouco. Mas, se nos perguntarmos onde reside o momento antitético da teoria do “ultra”, não há que buscar longe a resposta. Observou-se, muitas vezes, que as artes pós-modernas não abundaram nos manifestos que pontuaram a história do moderno. Isto pode ser um exagero, como revelam os exemplos de Kosuth ou Koolhaas, acima mencionados. Mas se é possível encontrar ainda programas estéticos – embora agora mais frequentemente individuais do que colectivos –, o que decerto tem faltado é uma visão revolucionária do tipo articulado pelas vanguardas históricas. O situacionismo, que previu tantos aspectos do pós-moderno, não teve consequências no seu seio.

Todavia, a instância teorética que a forma vanguardista representava não desapareceu. Pelo contrário, migrou a sua função. Pois que outra coisa é a totalização que Jameson propõe do próprio pós-modernismo? Na época do modernismo, a arte revolucionária engendrou as suas peculiares descrições do tempo ou as intimações do futuro, embora as suas práticas, na maioria dos casos, fossem encaradas com cepticismo ou, quando muito, selectivamente pelos pensadores políticos ou filosóficos da esquerda. A frieza de Trotsky em face do futurismo, a resistência de Lukács à Verfremdung brechtiana, a aversão de Adorno ao surrealismo, foram características dessa conjuntura. No período do pós-modernismo, houve uma inversão de papéis. Não faltaram as correntes radicais nas artes, reclamando ou desenvolvendo as heranças das vanguardas. Mas, em parte, por causa da coexistência desorientadora do citra-moderno, do qual não houve antes equivalente algum, a cultura “ultra-modernista” não suscitou qualquer exposição confiante da época ou um sentido da sua direcção geral. Foi essa a realização de Jameson, na sua teoria do pós-moderno. Aqui, numa visão comparativa, foi onde a ambição crítica e o impulso revolucionário da vanguarda clássica passaram. Neste registo, a obra de Jameson pode interpretar-se como um equivalente contínuo de todas as meteorologias apaixonadas do passado. O totalizador é agora externo; mas esta deslocação insere-se no momento da história que a própria teoria explana. O pós-modernismo é a lógica cultural de um capitalismo não apetrechado, mas complacente, sem precedente algum. A resistência pode apenas iniciar-se encarando esta ordem como ela é.”

(138) “XXL: Rem Koolhaas’s Great Big Buildingsroman’, Village Voice Literary Supplement, Maio 1996.

(139) “Space Wars”, London Review of Books, 4 de Abril 1996.

(140) Ver The Cultural Turn, p. 135.

(141) Signatures of the Visible, p. 85.

(142) Ver The Cultural Turn, P. 135.

(143) Postmodernism, p. 306.

(144) The Seeds of Time, pp. 152-159,

(145) Gramsci foi buscar uma boa parte da sua argumentação a Croce, mas deu-lhe um giro mais pronunciado em prol da Reforma. Para as suas reflexões principais, ver Quaderni del Cárcere, Turim 1977, Vol. 11, pp. 1129-1130, 1293-1294; vol. 111, pp. 1858-1862.

(146) The Illusions o f Postmodernism, Oxford 1997, p. 1.

(147) The Illusions o f Postmodernism, p. 24.

(148) Compare-se The Illusions of Postmodernism, pp. 19, 134.

 

 

“A argumentação de Jameson, porém, não depende da alegação – obviamente absurda — de que o capitalismo contemporâneo criou, em todo o mundo, um conjunto homogéneo de circunstâncias sociais. O desenvolvimento desigual é inerente ao sistema, cuja “abrupta e recente expansão” eclipsou “de modo também desigual” formas mais antigas de desigualdade e multiplicou outras novas “que, por agora, compreendemos menos bem”(154). A verdadeira questão é se esta desigualdade será demasiado grande para sustentar uma lógica cultural comum.

O pós-modernismo emergiu como uma dominante cultural nas sociedades capitalistas, sem quaisquer precedentes na sua riqueza, com níveis médios muito elevados de consumo. O primeiro reconhecimento de Jameson estabelecia uma relação directa entre ele e estas e, desde então, continuou a insistir nas suas origens especificamente americanas. (...)

Seja como for, há outra consideração que, na balança, se deve ponderar. A cultura pós-moderna não é simplesmente um conjunto de formas estéticas, é também um pacote tecnológico. A televisão, que tão decisiva foi na transição para uma nova época, não teve nenhum passado modernista. Tornou-se o meio mais poderoso de todos no próprio período pós-moderno. Mas este poder é muito maior — mais absolutamente desproporcionado ao impacto de todos os outros juntos — no antigo Terceiro Mundo do que até no Primeiro Mundo.

Este paradoxo fará cessar qualquer recusa precipitada da ideia de que os condenados da terra ingressaram também no reino do espectáculo. É improvável ficar isolado. Pois, mesmo à frente, reside o impacto das novas tecnologias de simulação — ou prestidigitação — cujo advento é recentíssimo, inclusive nas culturas ricas. Temos agora delas um diorama estranhamente grandioso no notável Gargantua de Julian Stallabrass. Aqui, de modo inesperado, cumpriu-se a exigência de Jameson de uma sequência à “indústria da cultura” de Adorno e Horkheimer para abordar formas subsequentes de manipulação. Nenhuma obra, desde aquela famosa análise, correspondeu de modo tão estreito à sua ambição, ou constituiu uma sucessão tão adequada; embora aqui a influência antagónica de Benjamin leve um projecto adorniano a inclinar-se, de um plano declaradamente sistemático, para um plano fenomenal mais pontilhista. Stallabrass examina a fotografia digital, o intercâmbio com o ciberespaço e os jogos de computadores – bem como uma paisagem mais familiar de automóveis, centros comerciais, grafitos, detritos, a própria televisão – enquanto prefigurações de uma futura cultura de massa, que ameaça suplantar o próprio espectáculo, como até agora conhecido, apagando as fronteiras entre o percebido e o realizado. Com este desenvolvimento, as novas técnicas conjuram a possibilidade de um universo estanque de simulação, capaz de ocultar — e, portanto, isolar — a ordem do capital de um modo mais completo do que antes. Uma serena gravidade de tom e a precisão do pormenor caracterizam este argumento intempestivo.

Mas a sua lógica está em desacordo, num aspecto significativo, com o seu enquadramento. Stallabrass pouco terá a ver com qualquer discurso do pós-moderno e adere a uma separação radical entre as zonas ricas e pobres do mundo – cuja ocultação, sugere ele, é uma das funções cruciais da cultura de massa(157). Mas uma dedução mais plausível indica outro caminho. As tecnologias que ele explora são, no tempo e no efeito, preeminentemente pós-modernas, se é que o termo tem qualquer significado; e, decerto, não permanecerão confinadas ao Primeiro Mundo, como ele, por vezes, parece supor. Os jogos de computador já possuem um mercado muito próspero no Terceiro. Também aqui, como aconteceu com a televisão, a chegada de novos tipos de conexão e de simulação tenderá mais a unificar do que a dividir os centros urbanos do próximo século, mesmo apesar das diferenças muito grandes nos rendimentos médios. Enquanto prevalecer o sistema do capital, cada novo avanço na indústria das imagens aumenta o raio do pós-moderno. Neste sentido, pode afirmar-se, a sua dominância global está virtualmente predestinada.”

(154) Late Marxism, p. 249.

(157) Gargantua – Manufactered Mass Culture, Londres 1997, pp. 6-7, 10-11, 75-77, 214, 230-231.

 

 

“Mas se o adágio poético não deixa espaço autónomo para o político, este aparece de modo proeminente noutro lugar da obra teórica mais sistemática de Jameson, no campo da litetatura. The Political Unconscious abre com as palavras: “Este livro afirmará a prioridade da interpretação política dos textos literários. Não concebe a perspectiva política como um método suplementar, como um auxiliar funcional para outros métodos interpretativos hoje correntes psicanalítico, mito-crítico, estilístico, estrutural mas como horizonte absoluto de toda a leitura e de toda a interpretação”. Jameson adverte que esta posição se afigurará extrema. Mas o seu significado explica-se algumas páginas mais à frente, com a declaração: “Nada existe que não seja social e histórico — de facto, tudo é, «em última instância», político”(164). Eis o sentido global do termo, que confere a sua força ao título do livro. Contudo, dentro da estratégia interpretativa a que ele procede, há outro espaço menor do político, entendido num sentido mais restritivo. Jameson adverte assim que há “três enquadramentos concêntricos que assinalam o sentido do fundo social de um texto, através das noções, primeiro, de história política, no sentido estreito de acontecimento pontual e de ocorrências narrativas no tempo; em seguida, de sociedade, no sentido agora já menos diacrónico e vinculado ao tempo de uma tensão e luta constitutivas entre as classes sociais; e, por fim, de história concebida agora no seu mais amplo sentido de sequência dos modos de produção, da associação e do destino das diversas formações sociais humanas, desde a vida pré-histórica até qualquer futuro longínquo, que a história nos reserva”(165).

Existe aqui uma clara hierarquia, que se estende da fundamental à superficial: económica => social => política. Na última, “a história é reduzida” – o verbo indica o que provavelmente se irá seguir – “à agitação diacrónica de ano após ano, aos anais narrativos da ascensão e queda dos regimes políticos e das modas sociais, e à imediatidade apaixonada das lutas entre os indivíduos históricos”(166). O que isto evoca talvez mais do que qualquer outra coisa é a descrição que Braudel faz da histoire événementielle, na sua famosa série dos tempos históricos — essa espuma evanescente de episódios e de incidentes, que ele comparou à escuma no cimo das ondas desde África, rebentando imemorialmente nas praias da Baía, sob a luz pálida das estrelas. As semelhanças formais entre os dois esquemas tripartidos, em vista de uma ênfase mais geográfica do que económica da histoire immobile, são assaz evidentes. O que ambos parecem partilhar é uma reserva em face do político, concebido num sentido forte — a saber, como um domínio autónomo da acção, prenhe das suas próprias consequências.”

(164) The Political Unconscious, pp. 17, 20.

(165) The Political Unconscious, p. 75.

(166) The Political Unconscious, pp. 76-77.

 

 

““O tema mais profundo da utopia” revela-se justamente “como a nossa incapacidade de a conceber, a nossa impotência de a produzir como uma visão, o nosso fiasco em projectar o Outro daquilo que é, um fiasco que, tal como o fogo-de-artifício se esvanece no céu nocturno, nos deve, mais uma vez, deixar sós com esta história”(177). Semelhante impotência, insiste Jameson, é constitutiva. O que a cultura de massa pode intimar não o consegue concretizar a ficção utópica. Haverá uma medida comum entre Independence Day e Chevengur, ou tratar-se-á de uma aporia? O ponto mais relevante reside, talvez, noutro lugar. Não se fornece nenhum critério político para discriminar entre as diferentes figurações do anelo utópico, no disfarce comercial ou na imaginação profética. Mas como é que semelhantes formas se podem separar da sua substância – a forma de um sonho político? Será possível, entre elas, evitar o juízo? Aqui, enunciado na sua forma mais aguda, reside o problema mais geral levantado pela inserção do pós-moderno entre a estética e a economia.

Nesta bifurcação falta um sentido da cultura enquanto campo de batalha, que divide os seus protagonistas. Esse é o plano da política, entendida como um espaço autónomo. Não temos de nos render a tentações sectárias dentro do marxismo ou às concepções exageradas de uma vanguarda, para de tal nos darmos conta. Semelhante compreensão remonta a Kant, para o qual a própria filosofia se constituiu como um Kampfplatz — uma noção que andava no ar no tempo do Iluminismo alemão, cuja teorização militar chegou, uma geração mais tarde, com Clausewitz. Um importante pensador da Direita é que forneceu a expressão consequente a esta ênfase no campo da política. A definição que Schmitt fez do político como inseparável de uma divisão entre o amigo e o inimigo não é, decerto, exaustiva. Mas é indubitável que capta uma dimensão ineliminável de toda a política; e é este sentido do político que se faz sentir na cultura do pós-moderno. Lembrar isto não é suscitar intrusão alguma. O estético e o político não se devem identificar ou confundir. Mas, se podem ser mediados, é porque partilham uma coisa em comum. Ambos estão inerentemente empenhados no juízo crítico: a discriminação entre obras de arte e formas de Estado. A abstenção da crítica equivale, em ambos, a uma subscrição. O pós-modernismo, tal como o modernismo, é um campo de tensões. O empenhamento nele tem por condição inevitável a divisão.”

(177) The Ideologies of Theory, Vol. 2, p. 101.

 

 

“Estas teses são intervenções políticas em pleno. No passado, os escritos de Jameson foram, por vezes, acusados de escasso empenhamento no mundo real dos conflitos materiais – lutas de classe ou sublevações nacionais – e tidos, assim, por “apolíticos”. Tratou-se sempre de uma incompreensão deste pensador inabalavelmente empenhado. Aqui, realçámos uma reserva teórica em face do puramente “eventual”, a qual poderia levar à totalização histórica sem divisões pontuais na arena cultural atribuível, sem dúvida, a uma renitência em conferir autonomia ao político, mas que é o oposto da sua abnegação: ao invés, é a sua absorção no verdadeiro marco da própria totalidade. Esta alterou-se em direcção a uma maior triagem. Mas considerações como estas referem-se intrinsecamente a problemas de teoria cultural enquanto tal. Na relação mais ampla deste corpo de escritos ao mundo externo, a voz de Jameson não teve paralelo na claridade e na eloquência da sua resistência ao rumo da época. Quando a Esquerda era mais numerosa e confiante, a sua obra teórica manteve uma certa distância em relação aos eventos imediatos. A medida que a Esquerda ficou mais isolada, cercada e menos capaz de imaginar uma alternativa à ordem social existente, Jameson dirigiu-se, de modo cada vez mais directo, ao carácter político da época, rompendo com o encantamento do sistema.”

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