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sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

Como se faz uma tese (Parte I), de Umberto Eco

Editora: Intrínseca

ISBN: 978-85-273-1200-4

Tradução: Gilson Cesar Cardoso de Souza

Opinião: ★★★☆☆

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Páginas: 224

Sinopse: Obra Aberta, A Estrutura Ausente, As Formas do Conteúdo, Apocalípticos e Integrados, Tratado Geral de Semiótica, O Signo de Três, Os Limites da Interpretação, Lector in Fabula, O Super-Homem de Massa e seus romances, ou seja, a reflexão crítica e a criação literária do filósofo, ensaísta e teórico da comunicação de massa, do comunicólogo, semioticista, crítico, do romancista – tudo tornou o nome de Umberto Eco referência obrigatória nos debates e na produção cultural de nosso tempo. A eles somou-se, produto de sua experiência como professor universitário e orientador de pesquisas, Como se Faz uma Tese, cuja circulação em nossa tradução brasileira é um fato consagrado no meio universitário. Nesta obra, ora publicada em edição revista, o autor extrai e destila os elementos de sua vivência nos estudos acadêmicos em que relevam os ensinamentos, as sugestões práticas “espertas”, no duplo sentido da palavra, do observador arguto e do redator tarimbado na proposta e confecção de problemas que se apresentam ao pesquisador às voltas com um projeto de trabalho ou tese acadêmica.


 

“Nas universidades desse tipo, a tese é sempre de PhD, tese de doutorado, e constitui um trabalho original de pesquisa, com o qual o candidato deve demonstrar ser um estudioso capaz de fazer avançar a disciplina a que se dedica. E, com efeito, ela não é elaborada, como entre nós, aos 22 anos, mas bem mais tarde, às vezes mesmo aos quarenta ou cinquenta anos (embora, é claro, existam PhDs bastante jovens). Por que tanto tempo? Porque se trata efetivamente de pesquisa original, onde é necessário conhecer a fundo o quanto foi dito sobre o mesmo argumento pelos demais estudiosos. Sobretudo, é necessário “descobrir” algo que ainda não foi dito por eles. Quando se fala em “descoberta”, em especial no campo humanista, não cogitamos de invenções revolucionárias como a descoberta da fissão do átomo, a teoria da relatividade ou uma vacina contra o câncer: podem ser descobertas mais modestas, considerando-se resultado “científico” até mesmo uma maneira nova de ler e entender um texto clássico, a identificação de um manuscrito que lança nova luz sobre a biografia de um autor, uma reorganização e releitura de estudos precedentes que conduzem à maturação e sistematização das ideias que se encontravam dispersas em outros textos. Em qualquer caso, o estudioso deve produzir um trabalho que, teoricamente, os outros estudiosos do ramo não deveriam ignorar, porquanto diz algo de novo sobre o assunto (cf. 2.6.1)”

 

 

“Mas há também uma segunda maneira, que pode ajudar o diretor de um organismo de turismo local em sua profissão mesmo que tenha elaborado uma tese com o título: “De Fermo e Lucia a os Noivos”. Com efeito, elaborar uma tese significa: (1) identificar um tema preciso; (2) recolher documentação sobre ele; (3) pôr em ordem estes documentos; (4) reexaminar em primeira mão o tema à luz da documentação recolhida; (5) dar forma orgânica a todas as reflexões precedentes; (6) empenhar-se para que o leitor compreenda o que se quis dizer e possa, se for o caso, recorrer à mesma documentação a fim de retomar o tema por conta própria.

Fazer uma tese significa, pois, aprender a pôr ordem nas próprias ideias e ordenar os dados: é uma experiência de trabalho metódico; quer dizer, construir um “objeto” que, como princípio, possa também servir aos outros. Assim, o tema da tese não importa tanto quanto a experiência de trabalho que ela comporta. Quem soube documentar-se bem sobre a dupla redação do romance de Manzoni, saberá depois recolher com método os dados que lhe servirão no organismo turístico. O autor destas linhas já publicou uma dezena de livros sobre vários assuntos, mas se logrou executar os últimos nove é porque aproveitou sobretudo a experiência do primeiro, que era uma reelaboração de sua tese de formatura. Sem aquele primeiro trabalho, não teria conseguido fazer os demais. E, bem ou mal, estes refletem ainda a maneira com que aquele foi elaborado. Com o tempo, tornamo-nos mais maduros, vamos conhecendo mais coisas, porém o modo como trabalhamos o que sabemos sempre dependerá da maneira com que estudamos no início muitas coisas que ignorávamos.

Enfim, elaborar uma tese é como exercitar a memória. Temo-la boa quando velhos se a exercitarmos desde a meninice. E não importa se a exercitamos decorando os nomes dos jogadores dos times da Divisão Especial, os poemas de Carducci ou a série de imperadores romanos de Augusto e Rômulo Augusto. Por certo, se o caso for aprimorar a memória, é melhor aprender coisas que nos interessam ou nos sirvam: mas, por vezes, mesmo aprender coisas inúteis constitui bom exercício. Analogamente, embora seja melhor fazer uma tese sobre um tema que nos agrade, ele é secundário, com respeito ao método de trabalho e à experiência daí advinda.

Ainda mais: trabalhando-se bem, não existe tema que seja verdadeiramente estúpido. Conclusões úteis podem ser extraídas de um tema aparentemente remoto ou periférico. A tese de Marx não foi sobre economia política, mas sobre dois filósofos gregos, Epicuro e Demócrito. E isso não foi um acidente de trabalho. Marx foi talvez capaz de analisar os problemas da história e da economia com a energia teórica que conhecemos exatamente porque aprendeu a pensar sobre os seus filósofos gregos.

Diante de tantos estudantes que se iniciam com uma tese ambiciosíssima sobre Marx e acabam num escritório das grandes empresas capitalistas, é preciso rever os conceitos que se têm sobre utilidade, atualidade e empenho dos temas de tese.”

 

 

“Pode acontecer que o candidato faça a tese sobre um tema imposto pelo professor. Tais coisas devem ser evitadas.

Não estamos nos referindo, evidentemente, aos casos em que o candidato busca o conselho do mestre. Aludimos antes ou àqueles em que a culpa é do professor (ver 2.7., “Como evitar que o relator se aproveite de você”), ou àqueles em que a culpa cabe ao candidato, privado de interesse e disposto a fazer mal qualquer coisa para se ver livre dela o mais depressa possível.

Ocupar-nos-emos daquelas situações em que se presume a existência de um candidato movido por certos interesses e um professor disposto a interpretar suas exigências.

Nestes casos, as regras para a escolha do tema são quatro:

1) Que o tema responda aos interesses do candidato (ligado tanto ao tipo de exame quanto às suas leituras, sua atitude política, cultural ou religiosa).

2) Que as fontes de consulta sejam acessíveis, isto é, estejam ao alcance material do candidato;

3) Que as fontes de consulta sejam manejáveis, ou seja, estejam ao alcance cultural do candidato;

4) Que o quadro metodológico da pesquisa esteja ao alcance da experiência do candidato.

Assim expostas, estas quatro regras parecem banais e resumíveis na norma “quem quer fazer uma tese deve fazer uma tese que esteja à altura de fazer”. E, de fato, é exatamente assim, e sabe-se de teses dramaticamente abortadas justo porque não se soube colocar o problema inicial em termos tão óbvios.1

1. 1. Poderemos acrescentar uma quinta regra: que o professor seja adequado. Com efeito, há candidatos que, por razões de simpatia ou preguiça, querem fazer com o docente da matéria A uma tese que em verdade é da matéria B. O docente aceita (por simpatia, vaidade ou desatenção) e depois não se vê à altura de seguir a tese.

 

 

A primeira tentação do estudante é fazer uma tese que fale de muitas coisas. Interessado por literatura, seu primeiro impulso é escrever algo como A Literatura Hoje. Tendo de restringir o tema, escolherá A Literatura Italiana do Pós-guerra aos Anos Sessenta.

Teses desse tipo são perigosíssimas. Estudiosos bem mais velhos se sentem abalados diante de tais temas. Para quem tem vinte anos, o desafio é impossível. Ou elaborará uma enfadonha resenha de nomes e opiniões correntes ou dará à sua obra um corte original e se verá acusado de imperdoáveis omissões. (...)

Com uma tese panorâmica sobre a literatura de quatro décadas, o estudante se expõe a toda sorte de contestações possíveis. Poderá o relator, ou um simples membro da banca, resistir à tentação de alardear seu conhecimento de um autor menor não citado pelo estudante? Bastará que os membros da banca, consultando o índice, descubram três omissões para que o estudante se torne alvo de uma rajada de acusações que farão sua tese parecer um conglomerado de coisas dispersas. Se, ao contrário, ele tiver trabalhado seriamente sobre um tema bastante preciso, estará às voltas com um material ignorado pela maior parte dos juízes. (...)

Passando às faculdades científicas, damos um conselho aplicável a todas as matérias: O tema Geologia, por exemplo, é muito amplo. Vulcanologia como ramo daquela disciplina, é também bastante abrangente. Os Vulcões do México poderiam ser tratados num exercício bom, porém um tanto superficial. Limitando-se ainda mais o assunto, teríamos um estudo mais valioso: A História do Popocatepetl (que um dos companheiros de Cortez deve ter escalado em 1519 e que só teve uma erupção violenta em 1702). Tema mais restrito, que diz respeito a um menor número de anos, seria O Nascimento e a Morte Aparente do Paricutin (de 20 de fevereiro de 1943 a 4 de março de 1952)1.

Aconselharia o último tema. Mas desde que, a esse ponto, o candidato diga tudo o que for possível sobre o maldito vulcão. Há algum tempo, procurou-me um estudante que queria fazer sua tese sobre O Símbolo no Pensamento Contemporâneo. Era uma tese impossível. Eu, pelo menos, não sabia o que poderia ser “símbolo”: esse termo muda de significado conforme o autor, e às vezes, em dois autores diferentes, pode querer dizer duas coisas absolutamente opostas. Não se esqueça que, por símbolo, os lógicos formais ou os matemáticos entendem expressões privadas de significado, e ocupar um lugar definido, uma função precisa, num dado cálculo formalizado (como os a e b ou x e y das fórmulas algébricas); enquanto outros autores entendem uma forma cheia de significados ambíguos, como ocorre nos sonhos, que podem referir-se a uma árvore, a um órgão sexual, ao desejo de prosperar etc. Como, pois, fazer uma tese com semelhante título? Seria preciso analisar todas as acepções do símbolo na cultura contemporânea, fazer uma lista que pusesse em evidência as afinidades e discrepâncias dessas acepções, esmiuçar se sob as discrepâncias não existe um conceito unitário fundamental, recorrente em cada autor e cada teoria, e se as diferenças não tornam incompatíveis entre si as teorias em questão. Pois bem, nenhum filósofo, linguista ou psicanalista contemporâneo conseguiu ainda fazer uma obra dessa envergadura de modo satisfatório. Como poderá se sair melhor um estudante que mal começa a terçar armas e que, por precoce que seja, não tem mais de seis ou sete anos de leitura adulta nas costas? Poderia ele, ainda, fazer um discurso parcialmente inteligente, mas estaríamos de novo no mesmo caso da literatura italiana de Contini. Ou poderia propor uma teoria pessoal do símbolo, deixando de lado tudo quanto haviam dito os demais autores: no parágrafo 2.2, todavia, diremos quão discutível é essa escolha. Conversamos com o estudante em questão: seria o caso de elaborar uma tese sobre o símbolo em Freud e Jung, abandonando todas as outras acepções e confrontando unicamente as destes dois autores. Mas descobrimos que o estudante não sabia alemão (e sobre o problema do conhecimento de línguas estrangeiras voltaremos a falar no parágrafo 2.5). Decidiu-se então que ele se limitaria ao termo O Conceito de Símbolo em Peirce, Frye e Jung. A tese examinaria as diferenças entre três conceitos homônimos em outros tantos autores, um filósofo, um crítico e um psicólogo; mostraria como, em muitas análises sobre estes três autores, são cometidos inúmeros equívocos, pois se atribui a um o significado usado por outro. Só no final, a título de conclusão hipotética, o candidato procuraria extrair um resultado para mostrar se e quais analogias existiam entre aqueles três conceitos homônimos, aludindo também a outros autores de seu conhecimento, dos quais, por explícita limitação do tema, não queria e não podia ocupar-se. Ninguém poderia dizer-lhe que não levara em conta o autor k, porque a tese era sobre x, y e z, nem que citara o autor j apenas em tradução, pois se tratara de simples menção, para concluir, ao passo que a tese pretendia estudar amplamente e no original unicamente os três autores citados no título.

Eis aí como uma tese panorâmica, sem se tornar rigorosamente monográfica, se reduzia a um meio termo, aceitável por todos.

Fique claro, ainda, que o termo “monográfico” pode ter uma acepção mais vasta que a usada aqui. Uma monografia é a abordagem de um só tema, como tal se opondo a uma “história de”, a um manual, a uma enciclopédia. Daí ser também monográfico um tema como O Tema do “Mundo às Avessas” nos Escritores Medievais. Muitos são os escritores analisados, mas apenas do ponto de vista de um tema específico (isto é, da hipótese imaginária proposta a título de exemplo, de paradoxo ou de fábula, de que os peixes voam, os pássaros nadam etc.). Se bem executado, esse trabalho poderia dar uma ótima monografia. Mas, para tanto, é preciso levar em conta todos os escritores que trataram o tema, em especial os menores, aqueles de quem ninguém se lembra. Assim, tal tese se classificaria como monognírico-panorâmica e seria dificílima: exigiria uma infinidade de leituras. Caso se pretendesse fazê-la de qualquer modo, seria então forçoso restringir o campo: O Tema do “Mundo às Avessas” nos Poetas Carolíngios. Um campo restringe-se quando se sabe o que conservar e o que escoimar.

Claro está que é muito mais excitante fazer a tese panorâmica, pois que antes de tudo parece aborrecido ocupar-se durante um, dois ou três anos sempre do mesmo autor. Mas deve-se ter em mente que fazer uma tese rigorosamente monográfica não significa perder de vista o panorama. Fazer uma tese sobre a narrativa de Fenoglio significa ter presente o realismo italiano, não deixar de ler Pavese ou Vittorini, bem como analisar escritores americanos lidos e traduzidos por Fenoglio. Só explicamos e entendemos um autor quando o inserimos num panorama. Mas uma coisa é usar um panorama como pano de fundo, e outra elaborar um quadro panorâmico. Uma coisa é pintar o retrato de um cavalheiro sobre o fundo de um campo cortado por um regato, e outra pintar campos, vales e regatos. Tem de mudar a técnica, tem de mudar, em termos fotográficos, o foco. Partindo-se de um único autor, o panorama pode augurar-se um tanto desfocado, incompleto ou de segunda mão.

Em suma, recordemos este princípio fundamental: quanto mais se restringe o campo, melhor e com mais segurança se trabalha. Uma tese monográfica é preferível a uma tese panorâmica. É melhor que a tese se assemelhe a um ensaio do que a uma história ou a uma enciclopédia.”

1. C. W. Cooller e E. J. Robins. The Term Paper: A manual·and Model. Stanford University Press. 4.ª ed., 1967, p. 3.

 

 

“2.2 TESE HISTÓRICA OU TESE TEÓRICA

Essa alternativa só vale para algumas matérias. Com efeito, em disciplinas como história da matemática, filologia românica ou história da literatura alemã, uma tese só pode ser histórica. Em outras, como composição arquitetônica, física do reator nuclear ou anatomia comparada, fazem-se comumente teses teóricas ou experimentais. Mas há outras disciplinas, como filosofia teorética, sociologia, antropologia cultural, estética, filosofia do direito, pedagogia e direito internacional, onde é possível fazer os dois tipos de tese.

Uma tese teórica é aquela que se propõe atacar um problema abstrato, que pode já ter sido ou não objeto de outras reflexões: natureza da vontade humana, o conceito de liberdade, a noção de papel social, a existência de Deus, o código genético. Enumerados assim, estes temas fazem imediatamente sorrir, pois se pensa naqueles tipos de abordagem a que Gramsci chamava “breves acenos ao universo”. Insignes pensadores, contudo, se debruçaram sobre esses temas. Mas, afora raras exceções, fizeram-no como conclusão de um trabalho de meditação de várias décadas.

Nas mãos de um estudante com experiência científica necessariamente limitada, tais temas podem dar origem a duas soluções. A primeira (que é ainda a menos trágica) é fazer a tese definida (no parágrafo anterior) como “panorâmica”. É tratado o conceito de papel social, mas em diversos autores. E, a este respeito, valem as observações já feitas. A segunda solução preocupa mais, porque o candidato presume poder resolver, no âmbito de umas poucas páginas, o problema de Deus e da definição de liberdade. Minha experiência me diz que os estudantes que escolhem temas do gênero acabam por fazer teses brevíssimas, destituídas de apreciável organização interna, mais próximas de um poema lírico que de um estudo científico. E, geralmente, quando se objeta ao candidato que o discurso está demasiado personalizado, genérico, informal, privado de verificações historiográficas e citações, ele responde que não foi compreendido, que sua tese é muito mais inteligente que outros exercícios de banal compilação. Isto pode ser verdade; contudo, ainda uma vez, a experiência ensina que quase sempre essa resposta provém de um candidato com ideias confusas, sem humildade científica nem capacidade de comunicação. O que se deve entender por humildade científica (que não é uma virtude dos fracos, mas, ao contrário, uma virtude das pessoas orgulhosas) será dito no parágrafo 4.2.4. É certo que não se pode excluir que o candidato seja um gênio que, com apenas 22 anos, tenha compreendido tudo, e é evidente que estou admitindo essa hipótese sem qualquer sombra de ironia. Sabe-se que quando um gênio desses surge na face da Terra a humanidade não toma consciência dele de uma hora para outra; sua obra é lida e digerida durante alguns anos antes que se descubra a sua grandeza. Como pretender que uma banca ocupada em examinar não uma, mas inúmeras teses, se aperceba imediatamente da magnitude desse corredor solitário?

Mas suponhamos a hipótese de o estudante estar cônscio de ter compreendido um problema capital: dado que nada provém do nada, ele terá elaborado seus pensamentos sob a influência de outros autores. Transforma então sua tese teórica em tese historiográfica, isto é, deixa de lado o problema do ser, a noção de liberdade ou o conceito de ação social, para desenvolver lemas como O Problema do Ser no Primeiro Heidegger, A Noção de Liberdade em Kant ou O Conceito de Ação Social em Parsons. Se tiver ideias originais, estas virão à tona também no confronto com as ideias do autor tratado: muita coisa nova se pode dizer sobre a liberdade estudando-se a maneira como outro a abordou. E, se quiser, aquilo que deveria ser a tese teorética do candidato se tornará o capítulo final de sua tese historiográfica. O resultado será que todos poderão controlar o que ele disse, pois os conceitos (referidos a um pensador precedente) que põe em jogo serão publicamente controláveis. É difícil mover-se no vácuo e instituir um discurso ab initio. Cumpre encontrar um ponto de apoio, principalmente para problemas tão vagos como a noção de ser ou de liberdade. Mesmo para o gênio, e sobretudo para ele, nada há de humilhante em partir de outro autor, pois isto não significa fetichizá-lo, adorá-lo, ou reproduzir sem crítica as suas afirmações; pode-se partir de um autor para demonstrar seus erros e limitações. A questão é ter um ponto de apoio. Os medievais, com seu exagerado respeito pela autoridade dos autores antigos, diziam que os modernos, embora ao seu lado fossem “anões”, apoiando-se neles tornavam-se “anões em ombros de gigantes”, e, deste modo, viam mais além do que seus predecessores.

Todas essas observações não são válidas para matérias aplicadas e experimentais. Numa tese de psicologia a alternativa não é entre O Problema da Percepção em Piaget e O Problema da Percepção (ainda que algum imprudente quisesse propor um tema tão genericamente perigoso). A alternativa para a tese historiográfica é, antes, a tese experimental: A Percepção das Cores em um Grupo de Crianças Deficientes. Aqui, o discurso muda, pois há o direito de enfrentar experimentalmente uma questão a fim de obter um método de pesquisa e trabalhar em condições razoáveis de laboratório, com a devida assistência. Mas um estudioso experimental imbuído de coragem não começa a controlar a reação de seus temas sem antes haver executado pelo menos um trabalho panorâmico (exame de estudos análogos já feitos), porquanto de outra forma se arriscaria a descobrir a América, e demonstrar algo já amplamente demonstrado ou a aplicar métodos que já se revelaram falíveis (embora possa constituir objeto de pesquisa o novo controle de um método que ainda não tenha dado resultados satisfatórios). Portanto, uma tese de caráter experimental não pode ser feita com recursos inteiramente próprios, nem o método pode ser inventado. Mais uma vez se deve partir do princípio de que, se for um anão inteligente, é melhor subir aos ombros de um gigante qualquer, mesmo se for de altura modesta, ou mesmo de outro anão. Haverá sempre ocasião de caminhar por si mesmo, mais tarde.”

 

 

“Todavia, não é raro o caso do estudante que, aconselhado pelo professor de literatura italiana a fazer sua tese sobre um petrarquiano quinhentista ou sobre um árcade, prefira temas como Pavese, Bassani, Sanguineti. Muitas vezes essa escolha nasce de uma autêntica vocação e é difícil contestá-la. Outras provêm da falsa impressão de que um autor contemporâneo é mais fácil e agradável.

Digamos desde já que o autor contemporâneo é sempre mais difícil. É certo que geralmente existe uma bibliografia mais reduzida, os textos são de mais fácil acesso, a primeira fase da documentação pode ser consultada à beira-mar com um bom romance nas mãos, em vez de fechado numa biblioteca. Mas ou se faz uma tese remendada, simplesmente repetindo o que disseram outros críticos e então não há mais nada a dizer (e, se quisermos, podemos fazer uma tese ainda mais remendada sobre um petrarquiano quinhentista), ou se faz algo de novo, e então apercebemo-nos de que sobre o autor antigo existem pelo menos esquemas interpretativos seguros aos quais podemos nos referir, enquanto para o autor moderno as opiniões ainda são vagas e contraditórias, a nossa capacidade crítica é falseada pela falta de perspectiva e tudo se torna extremamente difícil.

Não há dúvida que o autor antigo impõe uma leitura mais fatigante, uma pesquisa bibliográfica mais atenta, mas os títulos são menos dispersos e existem quadros bibliográficos já completos. Contudo, se a tese for entendida como a ocasião para aprender a elaborar uma pesquisa, o autor antigo coloca maiores obstáculos.

Se, além disso, o estudante inclinar-se para a crítica contemporânea, pode a tese constituir-se na derradeira oportunidade de um confronto com a literatura do passado, para exercitar o próprio gosto e a capacidade de leitura. Eis por que não se deve deixar escapar semelhante oportunidade. Muitos dos grandes escritores contemporâneos, mesmo de vanguarda, jamais fizeram teses sobre Montale ou Pound, mas sobre Dante ou Foscolo. Não há, decerto, regras precisas, e um valente pesquisador pode levar a cabo uma análise histórica ou estilística sobre um autor contemporâneo com a mesma acuidade e exatidão filológica exigidas para um autor antigo.”

 

 

“Digamo-lo desde já: não mais de três anos e não menos de seis meses. Não mais de três anos porque, se nesse prazo não se conseguiu circunscrever o tema e encontrar a documentação necessária, uma destas três coisas terá acontecido:

1) escolhemos a tese errada, superior às nossas forças;

2) somos do tipo incontentável, que deseja dizer tudo, e continuamos a martelar a tese por vinte anos, ao passo que um estudioso hábil deve ser capaz de ater-se a certos limites, embora modestos, e dentro deles produzir algo de definitivo;

3) fomos vítimas da “neurose da tese”; deixamo-la de lado, retomamo-la, sentimo-nos irrealizados, entramos num estado de depressão, valemo-nos da tese como álibi para muitas covardias, não nos formamos nunca.”

 

 

Preciso escolher uma tese que não implique o conhecimento de línguas que não sei ou que não estou disposto a aprender. Muitas vezes escolhe-se uma tese ignorando os riscos que se vai correr. Examinemos alguns elementos imprescindíveis:

1) Não se pode fazer uma tese sobre um autor estrangeiro se este não for lido no original. A coisa parece evidente ao se tratar de um poeta, mas muitos supõem que para uma tese sobre Kant, Freud ou Adam Smith tal precaução é desnecessária. Mas não o é, e por duas razões: nem sempre se traduziram todas as obras daquele autor, e às vezes o desconhecimento de um escrito menor compromete a compreensão de seu pensamento ou de sua formação intelectual; em seguida, a maior parte da bibliografia sobre determinado autor está escrita em sua própria língua, e, se ele é traduzido, o mesmo pode não suceder a seus intérpretes; por fim, nem sempre as traduções fazem justiça ao pensamento do autor, e fazer uma tese significa exatamente redescobrir esse pensamento original lá onde as traduções e divulgações de todo livro o falsearam; fazer uma tese significa ir além das fórmulas popularizadas pelos manuais escolares, do tipo “Foscolo é clássico e Leopardi é romântico”, ou “Platão é idealista e Aristóteles é realista”, ou ainda “Pascal defende o coração e Descartes a razão”.

2) Não se pode fazer uma tese sobre determinado assunto se as obras mais importantes a seu respeito foram escritas numa língua que ignoramos. Um estudante que soubesse bem o alemão e nada do francês não estaria à altura, hoje, de discorrer sobre Nietzsche, que, não obstante, escreveu em alemão, e isso porque, de dez anos para cá, algumas das mais interessantes revalorizações de Nietzsche foram compostas em língua francesa. O mesmo vale para Freud: seria difícil reler o mestre vienense sem levar em conta o trabalho dos revisionistas americanos e dos estruturalistas franceses.

3) Não se pode fazer uma tese sobre um autor ou sobre um tema lendo apenas as obras escritas nas línguas que conhecemos. (...)

Conclui-se, pois, que antes de estabelecer o tema de uma tese é preciso dar uma olhada na bibliografia existente e avaliar se não existem dificuldades linguísticas significativas. (...)

Em todo caso, não se sabendo outras línguas e na impossibilidade de aproveitar a preciosa ocasião da tese para aprendê-las, a solução mais razoável é trabalhar sobre um tema especificamente pátrio, que não remeta a literaturas estrangeiras, bastando o recurso a uns poucos textos já traduzidos.”

 

 

“Um estudo é científico quando responde aos seguintes requisitos:

1) O estudo debruça-se sobre um objeto reconhecível e definido de tal maneira que seja reconhecível igualmente pelos outros. O termo “objeto” não tem necessariamente um significado físico. A raiz quadrada também é um objeto, embora ninguém jamais a tenha visto. A classe social é um objeto de estudo, ainda que algumas pessoas possam objetar que só se conhecem indivíduos ou médias estatísticas e não classes propriamente ditas. Mas, nesse sentido, nem a classe de todos os números inteiros superiores a 3725, de que um matemático pode muito bem se ocupar, teria realidade física. Definir o objeto significa então definir as condições sob as quais podemos falar, com base em certas regras que estabelecemos ou que outros estabeleceram antes de nós. (...)

2) O estudo deve dizer do objeto algo que ainda não foi dito ou rever sob uma óptica diferente o que já se disse. Um trabalho matematicamente exato visando demonstrar com métodos tradicionais o teorema de Pitágoras não seria científico, uma vez que nada acrescentaria ao que já sabemos. Tratar-se-ia, no máximo, de um bom trabalho de divulgação, como um manual que ensinasse a construir uma casinha de cachorro usando madeira, pregos, serrote e martelo. Como já dissemos em 1.1., mesmo uma tese de compilação pode ser cientificamente útil na medida em que o compilador reuniu e relacionou de modo orgânico as opiniões já expressas por outros sobre o mesmo tema. Da mesma maneira, um manual de instruções sobre como fazer uma casinha de cachorro não constitui trabalho científico, mas uma obra que confronte e discuta todos os métodos conhecidos para construir o dito objeto já apresenta algumas modestas pretensões à cientificidade.

Apenas uma coisa cumpre ter presente: um trabalho de compilação só tem utilidade científica se ainda não existir nada de parecido naquele campo. Havendo já obras comparativas sobre sistemas de construção de casinhas de cachorro, fazer outra igual é pura perda de tempo, quando não plágio.

3) O estudo deve ser útil aos demais. Um artigo que apresente nova descoberta sobre o comportamento das partículas elementares é útil. Um artigo que narre como foi descoberta uma carta inédita de Leopardi e a transcreva na íntegra é útil. Um trabalho é científico se (observados os requisitos 1 e 2) acrescentar algo ao que a comunidade já sabia, e se todos os futuros trabalhos sobre o mesmo tema tiverem que levá-lo em conta, ao menos em teoria. Naturalmente, a importância científica se mede pelo grau de indispensabilidade que a contribuição estabelece. Há contribuições após as quais os estudiosos, se não as tiverem em conta, nada poderão dizer de positivo. E há outras que os estudiosos fariam bem em considerar, mas, se não o fizerem, o mundo não se acabará. (...)

4) O estudo deve fornecer elementos para a verificação e a contestação das hipóteses apresentadas e, portanto, para uma continuidade pública. Esse é um requisito fundamental. Posso tentar demonstrar que existem centauros no Peloponeso, mas para tanto devo: (a) fornecer provas (pelo menos um osso da cauda, como se disse); (b) contar como procedi para achar o fragmento; (c) informar como se deve fazer para achar outros; (d) dizer, se possível, que tipo de osso (ou outro fragmento qualquer) mandaria ao espaço minha hipótese, se fosse encontrado.

Desse modo, não só forneci as provas para minha hipótese, mas procedi de maneira a permitir que outros continuem a pesquisar, para contestá-la ou confirmá-la.

O mesmo sucede com qualquer outro tema.”

 

 

“Já dissemos que a experiência de pesquisa imposta por uma tese serve sempre para nossa vida futura (profissional ou política, tanto faz), e não tanto pelo tema escolhido quanto pela preparação que isso impõe, pela escola de rigor, pela capacidade de organização do material que ela requer.”

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