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sábado, 27 de novembro de 2021

O homem sem qualidades (Parte II), de Robert Musil

Editora: Nova Fronteira

ISBN: 978-85-2094-276-5

Tradução: Lya Luft e Carlos Abbenseth

Opinião: ★★★★☆

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Páginas: 1248

Sinopse: Ver Parte I


 

“Parece que o bravo homem prático e realista jamais ama a realidade, nem a leva a sério. Em criança, rasteja debaixo da mesa quando os pais não estão, para transformar o quarto deles numa aventura com esse truque tão simples e genial; quando menino, deseja ardentemente um relógio; quando adolescente, com relógio de ouro, deseja uma mulher que combine com ele; quando homem com relógio e mulher, anseia por uma posição elevada; e quando conseguiu, feliz, realizar esse pequeno círculo de desejos, e balança dentro dele calmamente para lá e para cá como um pêndulo, sua provisão de sonhos insatisfeitos não parece ter diminuído.”

 

 

“Depois que o diretor Fischel se afastara depressa, ele ficou novamente entretido com a pergunta da sua juventude: por que todas as manifestações ilegítimas e realmente inverídicas são tão estranhamente favorecidas pelo mundo? “Mentindo a gente sempre avança um passo”, pensou ele. “Eu devia ter-lhe dito isso.”

Ulrich era um homem de paixões, mas por paixão não se deve entender aquilo que em particular se chama de paixões. Devia haver algo que o impelira para elas, e talvez fosse paixão, mas, quando excitado, sua postura sempre fora a um tempo apaixonada e indiferente. Tivera praticamente todas as experiências que existem, e sentia que ainda poderia se lançar, a qualquer momento, nalguma coisa que não precisava ter sentido desde que excitasse seu impulso de ação. Por isso, podia dizer de sua vida, sem muito exagero, que nela tudo se passara como se as coisas se ligassem mais umas às outras do que a ele. Depois de A sempre vem B, fosse na luta ou no amor. E ele devia acreditar que as qualidades pessoais que assim obtinha se ligavam mais umas às outras do que a ele; cada uma delas, examinando bem, não se ligava mais intimamente a ele do que a outras pessoas que também a poderiam possuir.

Mas sem dúvida, apesar disso, elas nos determinam, e nelas consistimos, ainda que não sejamos identificados com elas; e assim, às vezes, num momento calmo, nos sentimos tão esquisitos quanto num momento de nervosismo. Se Ulrich tivesse de dizer como era na verdade, ficaria embaraçado; pois, como muitas pessoas, nunca se analisara senão no cumprimento de alguma tarefa, e em relação a ela. Sua consciência de si mesmo não fora danificada, nem era mimada ou vaidosa, e não conhecia a necessidade daquela manutenção e lubrificação que se chamava exame de consciência. Era um homem forte? Não sabia; talvez estivesse muito enganado quanto a isso. Mas certamente sempre fora um homem que confiava em sua força. Também agora não duvidava de que essa diferença entre a posse das próprias experiências e qualidades, e o alheamento em relação a elas, é apenas uma diferença de postura, de certa forma uma decisão da vontade, ou o lugar entre generalidade e pessoalidade, em que se resolveu viver.

Em palavras simples, podemos encarar as coisas que nos acontecem, ou que fazemos, de um modo mais geral ou mais pessoal. Podemos sentir um golpe, além de como dor, também como ofensa, o que aumenta intoleravelmente; mas também o podemos aceitar com espírito esportivo, como um obstáculo que não nos deve nem intimidar nem nos deixar cegos de raiva, e então, não raro, nem o percebemos. Mas, neste segundo caso, nós apenas o inserimos num contexto geral, isto é, no combate, e sua natureza depende da tarefa que ele tem a cumprir. E é exatamente esse fenômeno, de que uma experiência adquire sentido pela sua posição numa cadeia de atos coerentes, que acontece em toda pessoa que não encara o golpe como um fato pessoal, mas como um desafio à sua força espiritual. Também ela sentirá menos o que faz; mas, singularmente, aquilo que, no boxe, se julga força mental superior, é considerado frieza e insensibilidade quando decorre de uma postura mental de pessoas que não lutam boxe. Existe aí toda sorte de distinções, para se empregar e exigir uma postura pessoal ou geral conforme a situação. Num assassino, considera-se especial crueza um procedimento objetivo; num professor que continue resolvendo suas equações nos braços da esposa, diz-se que é frieza de pedra; num político que sobe na vida, passando por cima de outros, diz-se que é baixeza ou grandeza, conforme o resultado; de soldados, carrascos e cirurgiões, porém, exige-se essa imperturbabilidade que se condena em outros. Sem se aprofundar mais na moral destes exemplos, nota-se a insegurança com que se sela um compromisso entre postura objetivamente correta e pessoalmente correta.

Essa insegurança conferia um amplo pano de fundo à indagação pessoal de Ulrich. Antigamente, ser uma pessoa deixava a gente com a consciência mais tranquila. As pessoas pareciam-se com espigas de cereal; talvez fossem mais violentamente abaladas por Deus, granizo, fogo, peste e guerra do que agora, mas o eram em conjunto, como cidade, campo, país; e o que restava de movimento pessoal à espiga isolada era uma responsabilidade que se podia tomar, algo claramente delimitado. Hoje, em contrapartida, a responsabilidade já não tem seu centro de gravidade no homem, mas em contextos objetivos. Não notaram que as vivências agora independem das pessoas? Transferiram-se para os teatros, os livros, os relatórios dos centros de pesquisa e viagens de estudos, estão nas comunidades ideológicas ou religiosas, que desenvolvem certos tipos de vivência à custa de outros, como uma tentativa experimental no campo social. E na medida em que hoje as vivências não se situam no trabalho, ficam no ar; quem ainda pode dizer, hoje em dia, que sua raiva é realmente sua raiva, quando tantas pessoas se metem no assunto e entendem mais do que ela?! Surgiu um mundo de qualidades sem homem, de vivências sem quem as vive, e quase parece que, num caso ideal, o ser humano já não vive mais nada pessoalmente, e o amável peso da responsabilidade pessoal se dilui num sistema de fórmulas de significados possíveis. Provavelmente a diluição do comportamento antropocêntrico que julgou o homem centro do universo, mas há séculos está desaparecendo, por fim chegou ao próprio eu; pois a crença de que o mais importante na vivência é que se a viva, e na ação o mais importante é que aja, começa a parecer ingenuidade para a maioria das pessoas. Mas ainda há quem viva de maneira inteiramente pessoal. Eles dizem: “ontem estivemos aqui ou ali”, ou “hoje vamos fazer isso ou aquilo”, e se alegram, sem que seja necessário que tudo isso tenha outro conteúdo ou significação. Gostam de tudo o que podem tocar com os dedos, e são tão absolutamente indivíduos particulares quanto é possível ser; o mundo torna-se particular assim que tem a ver com eles, e brilha como um arco-íris. Talvez sejam muito felizes; mas esse tipo de gente habitualmente parece absurdo aos outros, embora não se saiba por quê.

E de repente, pensando nisso, Ulrich teve de admitir, sorrindo, que ele era um caráter, sem ter caráter algum.”

 

 

““Por que não me tornei um peregrino?”, pensou Ulrich de repente. Uma vida pura, independente, de um frescor áspero como ar muito claro oferecia-se aos seus sentidos. Quem não quer dizer sim à vida, pelo menos devia dizer o não dos santos: mas era impossível pensar seriamente nisso. Tampouco ele podia se tornar aventureiro, embora a vida pudesse ter então algo de uma lua de mel eterna, e seu corpo e seu ânimo desejassem isso. Não tinha podido tornar-se poeta nem uma dessas pessoas ressentidas que só acreditam em dinheiro e poder, embora tivesse uma certa tendência para tudo isso. Esquecia sua idade, imaginava ter vinte anos; apesar disso, também decidira intimamente que não poderia se tornar nenhuma dessas coisas; algo o atraía para todas essas possibilidades, mas algo mais forte o impedia de as realizar. Por que vivia assim, obscura e indefinidamente? Sem dúvida, pensou, o que o prendia dentro de uma existência isolada e inominada não era senão a obrigação de afrouxar e amarrar o mundo, designada por uma palavra que não se gosta de ver sozinha: espírito. Nem o próprio Ulrich sabia por quê, mas de repente ficou triste, e pensou: “Eu simplesmente não me amo.” No corpo frio e petrificado da cidade ele sentiu pulsar, bem no fundo, seu próprio coração. Havia nele alguma coisa que não queria permanecer em lugar algum, que apalpara as paredes do mundo, e pensara: existem outros milhões de paredes; aquela ridícula gota do Eu, que esfriava lentamente, não queria entregar seu fogo à minúscula semente de ardor.

O espírito percebe que a beleza torna alguém bom, mau, tolo ou fascinante. O espírito disseca um carneiro ou um penitente, e encontra nos dois humildade e paciência. Examina uma substância e reconhece que ela consta de muito veneno, e um pouquinho de prazer. Sabe que a mucosa dos lábios é aparentada com a mucosa do intestino, mas também sabe que a humildade desses lábios é aparentada com a humildade de todas as coisas sagradas. Ele confunde, separa e religa outra vez. Bem ou mal, em cima e embaixo, não são para ele ideias céticas e relativas, mas membros de uma função, valores que dependem do contexto em que se encontram. Aprendeu durante séculos que vícios podem se tornar virtudes, e virtudes vícios, e no fundo julga apenas falta de habilidade não se conseguir, no curso de uma vida, transformar um criminoso numa pessoa útil. Não reconhece nada permitido ou ilícito, pois tudo pode ter uma qualidade através da qual um dia participará de alguma nova e grande estrutura. Secretamente odeia, como à morte, tudo o que finge ser definitivo, os grandes ideais e leis, e sua pequena imitação petrificada, que é o caráter satisfeito. Ele não considera nada sólido: nem o eu, nem ordem alguma; porque nossos conhecimentos podem se modificar a cada dia, ele não crê em nenhuma ligação, e tudo possui o valor que tem apenas até o próximo ato da criação, como um rosto com quem se fala e se vai modificando com nossas palavras.

O espírito é o grande oportunista, mas não o podemos agarrar em parte alguma, é de acreditar que seu efeito seja a deterioração. Cada avanço é um lucro no detalhe e uma laceração no todo; é um aumento de poder desembocando em progressiva impotência, e não há como fugir. Ulrich recordava aquele corpo de fatos e descobertas que cresce praticamente a cada hora, do qual o espírito contempla hoje o mundo se quiser examinar bem qualquer problema. Esse corpo cresce afastando-se do seu interior. Incontáveis conceitos, opiniões, pensamentos reguladores de todas as zonas e épocas, de todas as formas de cérebros sadios e doentes, lúcidos e sonhadores, repassam-no como mil nervinhos sensíveis, mas o ponto de irradiação onde se reúnem não existe. O ser humano sente o perigo de se repetir nele o destino daquelas raças de animais gigantescos da pré-história, que sucumbiram vítimas do seu próprio tamanho; mesmo assim, não pode deixar de fazer o que faz.”

 

 

“Ulrich parecia ter se enganado ao presumir que ele próprio não existia ainda para o universo policial, pois ao erguer a cabeça de novo, o policial o encarou, as últimas linhas escritas brilhavam úmidas, sem serem enxugadas, e o caso Ulrich de repente pareceu ter já há muito existência oficial. Nome? Idade? Profissão? Residência?... Era o interrogatório.

Ulrich pensou ter entrado numa máquina que o dividia em pedaços impessoais antes que se falasse em culpa ou inocência. Seu nome, aquelas duas palavras mais pobres de conteúdo mas ricas de emoção da língua, não significava nada ali. Seus trabalhos, que lhe tinham conseguido honrarias no mundo científico, que passava por ser tão sólido, não existiam naquele mundo; nem uma só vez lhe perguntaram por eles. Seu rosto valia apenas como referência; antigamente nunca pensara que seus olhos eram cinzentos, um dos quatro tipos de olhos oficialmente reconhecidos, que existiam aos milhões; seus cabelos eram louros, estatura alta, rosto oval, e não tinha sinais particulares, embora pensasse de maneira diferente. Sentia que era grande, ombros largos, o tórax como vela inflada no mastro, e as articulações de seu corpo cerravam os músculos, como delgadas peças de aço, sempre que se aborrecia ou brigava, ou que Bonadeia se aconchegava nele; mas era pequeno, delicado, escuro e flexível como uma medusa boiando na água, sempre que lia um livro que o comovesse, ou era tocado pelo sopro do grande amor apátrida cujo estar-no-mundo jamais conseguira entender. Por isso, mesmo naquele momento, ainda via graça no desencantamento estatístico de sua pessoa, e o procedimento de medir e descrever do órgão policial entusiasmava-o como um poema de amor inventado por Satanás. O mais singular era que a polícia não apenas pode desmembrar uma pessoa a ponto de nada sobrar dela, mas pode reconstruí-la de novo com essas pecinhas insignificantes, tornando-a única e por elas identificável. Para isso basta que se acrescente essa coisa imponderável chamada suspeita.”

 

 

“Podemos ficar parados ou andar, como quisermos; o essencial não é o que se tem, vê, ouve, quer, agarra, domina logo à frente. A coisa jaz diante de nós como horizonte, como semicírculo; mas as pontas desse semicírculo são ligadas por um tendão, e esse tendão atravessa o mundo no meio. O rosto e as mãos espiam para fora dele, na frente, as emoções e esforços correm adiante dele, e ninguém duvida: o que estamos fazendo é sempre sensato, ou, ao menos, feito com paixão. Quer dizer, as circunstâncias externas condicionam nossas atitudes tornando-as compreensíveis; e quando, tomados de paixão, fazemos algo incompreensível, também isso tem uma estrutura. Por mais que tudo pareça compreensível e acabado, é acompanhado de uma obscura sensação de incompletude. Falta equilíbrio, e o ser humano avança, oscilante, como um aramista. E avançando pela vida, deixando atrás de si coisas vividas, as coisas ainda por viver, e as já vividas, formam uma parede, e o caminho dele finalmente parece o de um verme na madeira, que se pode mover à vontade, até voltar atrás, mas sempre deixa em seu rastro o espaço vazio. E por essa horrenda sensação de um espaço cego e amputado atrás de tudo o que está pleno, por essa metade que sempre falta quando tudo já está inteiro, percebemos finalmente o que é isso que chamamos alma.

Pensamos, pressentimos, sentimos o tempo todo sua presença adicional, nas mais diversas formas de sucedâneos, e conforme o temperamento de cada pessoa. Na juventude, como nítida sensação de insegurança em tudo o que se faz, não sabendo se é certo ou errado. Na velhice, como espanto ao ver como se fez pouco do que na verdade se pretendia. No meio dessas duas fases, como consolo de pensar que se é um sujeito ótimo e capaz, embora nem tudo o que se faça tenha justificativa, ou que o mundo não é como devia ser, de modo que no fim tudo o que se fez de errado acaba se justificando; e, por fim, muitas pessoas até pensam num Deus, que carrega no bolso aquele pedacinho que lhes falta. Mas só o amor assume diante de tudo isso uma posição especial; nesse caso excepcional é que cresce a segunda metade. A pessoa amada parece estar ali onde sempre faltara alguma coisa. As almas se unem, por assim dizer, dorso a dorso, e com isso se tornam supérfluas. Motivo por que a memória das pessoas depois de passado o grande amor da juventude já não sente mais falta da alma, e essa pretensa loucura cumpre sempre uma grata missão social.”

 

 

“Pois também a beleza de uma pessoa não consta de detalhes e coisas comprováveis, e sim de um fascinante Algo, que até se serve dos pequenos defeitos; e exatamente assim, a profunda bondade e o profundo amor, a dignidade e a grandeza de uma criatura, são quase independentes daquilo que ela faz; são mesmo capazes de enobrecer tudo o que ela possa fazer. De maneira misteriosa, o todo está à frente dos detalhes, na vida. Portanto, ainda que pessoas comuns sejam feitas de virtudes e erros, o grande homem é que confere categoria às suas qualidades; e se o segredo do seu sucesso for que nenhum de seus méritos ou qualidades explica esse sucesso, a existência de uma força maior do que qualquer de suas manifestações externas é o segredo no qual repousa tudo o que é grande na vida.”

 

 

“— Mas será que hoje existe alguma coisa que se possa chamar de realmente grande e importante, a ponto de se desejar concretizá-la com todas as forças?

— É característica de uma época que perdeu a segurança interior de tempos saudáveis — comentou Arnheim —, dificilmente se encontrará nela algo da maior grandeza e importância.”

 

 

“Então lembrava-se da noite. (...) De noite a pessoa veste só um camisolão, logo por baixo aparece o caráter. Nem esperteza nem conhecimentos profissionais o protegiam. Toda a sua personalidade em jogo. Nada mais.”

 

 

“O ser humano suporta tão pouco a suspeita quanto o papel de seda suporta a chuva.”

 

 

“Lembrou-se da frase de Voltaire, de que as pessoas empregam palavras para esconder seus pensamentos e utilizam pensamentos para fundamentar seus erros.”

 

 

“Depois de refletir um pouco, Ulrich prosseguiu: — Os especialistas nunca concluem sua tarefa. Não apenas não estão prontos hoje, mas nem conseguem imaginar o término de sua atividade. Talvez nem mesmo o desejem. Pode-se imaginar, por exemplo, que a pessoa ainda tenha uma alma depois que aprendeu a entendê-la totalmente do ponto de vista biológico e psicológico, e aprendeu a tratá-la? Apesar disso, desejamos esse estado de coisas! É isso. Saber é um comportamento, uma paixão. No fundo, um comportamento proibido; pois assim como o vício da bebida, do sexo e da violência, também a obsessão de saber forma um caráter desequilibrado. E não é certo que o pesquisador procura a verdade, é ela que o persegue. Ele a suporta. A verdade é verdadeira e o fato é real, sem se importarem com o pesquisador; este apenas tem paixão por eles, tem o vício dos fatos, que marca seu caráter, e pouco lhe importa que suas constatações formem ou não um todo, algo humano e perfeito. Sua natureza é contraditória, sofredora, mas incrivelmente enérgica!”

 

 

“Nem eu mesmo sei se estou mentindo.”

 

 

“Uma águia bateria poucas vezes as asas para ir de um telhado a outro; mas para a alma moderna, que atravessa brincando oceanos e continentes, nada é tão impossível quanto encontrar a ligação com as almas que moram na outra esquina.”

 

 

“Compreendeu que vivia numa época memorável, pois era uma época cheia de grandes ideias; mas era inacreditável a dificuldade em concretizar as maiores, e mais importantes, pois havia todas as condições para isso, menos uma: qual delas escolher! Sempre que Diotima estava quase se decidindo por uma das ideias, notava que o contrário dela também seria grandioso. As coisas são assim, e não havia o que fazer. Ideais têm qualidades singulares, entre elas a de se transformarem no seu contrário quando os queremos concretizar escrupulosamente.”

 

 

“Diotima não imaginava uma vida sem verdades eternas, mas agora, admirada, percebia que todas as verdades eternas são duplas e múltiplas. Por isso, o homem sensato, como o subsecretário Tuzzi, que assim até ficava reabilitado, sente uma profunda desconfiança contra verdades eternas; jamais negará que são indispensáveis, mas está convencido de que pessoas que as tomam ao pé da letra são doidas. Na sua opinião — abundantemente relatada à esposa —, os ideais humanos são desmedidamente exigentes, o que tem de trazer a ruína se forem levados demasiadamente a sério. A melhor prova disso, segundo Tuzzi, era que palavras como “ideale “verdade eterna” jamais aparecem em repartições que tratam de assuntos sérios. Um relator que se permitisse usá-las num processo seria imediatamente aconselhado a pedir férias por motivo de saúde.”

 

 

“Os meios de comunicação rápidos de hoje exigem mais vítimas do que todos os tigres da Índia juntos, e sem dúvida a inescrupulosidade, inconsciência e negligência com que toleramos isso nos traz por outro lado sucessos inegáveis.”

 

 

“Essa postura mental tão arguta quanto ao que está próximo e tão cega para o todo tem sua mais importante expressão num ideal que se poderia chamar ideal da obra de uma vida que não conste de mais de três tratados. Há atividades intelectuais em que não são os grandes livros que fazem o orgulho de um homem, mas os pequenos tratados. Se, por exemplo, alguém descobrisse que em circunstâncias ainda não observadas as pedras podem falar, não precisaria senão de poucas páginas para descrever e explicar um fenômeno tão revolucionário. Em contrapartida, sobre as justas concepções morais se podem escrever livros e mais livros, e não se trata apenas de erudição, mas de um método, com o qual nunca conseguimos ter clareza quanto às questões mais importantes da vida. Poderíamos dividir as atividades humanas segundo a quantidade de palavras de que precisam; quanto mais palavras, tanto pior o caráter das atividades. Todos os conhecimentos através dos quais nossa espécie passou, das roupas de pele de animais até a aviação, não ocupariam, com suas provas acabadas, mais do que uma biblioteca de bolso; mas um armário de livros do tamanho da Terra não bastaria nem de longe para conter todo o resto, sem falar naquela discussão vastíssima que não se realizou com a pena, mas com espadas e correntes. É de pensar que conduzimos muito irracionalmente nossos assuntos humanos, se não os atacamos conforme a ciência, que teve um progresso tão exemplar.”

 

 

“A experiência demonstra que depois de uma orientação sempre se segue outra, oposta. E embora fosse imaginável e desejável que essa mudança se efetuasse à maneira do parafuso, que a cada mudança de direção se subisse mais, por razões desconhecidas a evolução raramente ganha mais do que perdeu pelo desvio e destruição.”

 

 

“Assim como a palavra duro designa quatro coisas diferentes, caso dureza se relacione com amor, grosseria, ambição ou severidade, todos os fatos morais lhe pareciam, em seu significado, funções dependentes de outras. Assim, surgia um infinito sistema de relações em que não havia mais quaisquer significados independentes como a vida comum se atribui, numa primeira aproximação grosseira, aos atos e qualidades; o que parecia ser sólido tornava-se pretexto permeável para muitos outros significados, o que acontecia tornava-se símbolo de algo que talvez nem acontecesse, mas que era sentido; e o ser humano enquanto resumo de suas possibilidades, o ser potencial, o poema não escrito de sua existência, opunha-se ao ser humano como texto, realidade e caráter.

No fundo, nessa concepção Ulrich sentia-se capaz de qualquer virtude ou maldade, e o fato de tanto os vícios quanto as virtudes serem de modo geral, embora inconfesso, considerados igualmente indesejáveis numa sociedade equilibrada provava-lhe exatamente isso que sempre acontece na natureza: que com o tempo todo o jogo de forças busca um valor médio e um estado médio, uma compensação e uma cristalização. A moral no sentido comum não era, para Ulrich, senão a forma envelhecida de um sistema de forças que não pode ser confundido com ela sem perda de força ética.

Talvez também esses conceitos expressassem certa insegurança na vida; mas por vezes a insegurança não é senão insatisfação diante das seguranças comuns, e deve-se lembrar que mesmo alguém tão experiente como a humanidade aparentemente age segundo princípios bem parecidos com esses. Ela revoga constantemente tudo o que já fez, e coloca outra coisa em seu lugar; também para ela, com o tempo crimes se transformam em virtudes ou vice-versa; ela elabora grandes contextos de ideias com tudo o que acontece, e depois de algumas gerações deixa-os desmoronar de novo; mas isso vem em sequência, em vez de transcorrer num único sentimento de vida, e a cadeia dessas tentativas não revela ascensão. Porém um ensaísmo humano consciente teria mais ou menos a tarefa de transformar em vontade essa desleixada consciência do mundo. E muitas linhas isoladas de evolução indicam que isso poderia acontecer em breve.”

 

 

“Mas foi exatamente nos anos que o deviam ter estimulado que lhe aconteceu algo singular. Ele não era filósofo. Filósofos são déspotas que não dispõem de nenhum exército, por isso submetem o mundo todo encerrando-o num sistema. Provavelmente por isso, nos tempos dos tiranos houve grandes filósofos, enquanto nos tempos de civilização mais avançada e democrática não se consegue produzir nenhuma filosofia convincente; pelo menos isso se deduz das lamentações que se ouvem a respeito. Por isso, hoje se fala tanto em filosofia, que só em armazéns ainda se pode comprar alguma coisa sem filosofia de vida, mas ao mesmo tempo reina desconfiança em relação às grandes filosofias. Simplesmente as consideramos impossíveis, e Ulrich não estava livre disso; sim, baseado em suas experiências científicas, até ironizava um pouco a filosofia. Era isso que orientava seu comportamento, de modo que tudo o que via o levava à reflexão, mas, ao mesmo tempo, ele tinha receio de pensar demais.”

 

 

“A questão fundamental não era encarada por Ulrich apenas como pressentimento, mas também de modo muito lúcido, na seguinte forma: o homem que quer a verdade torna-se erudito; o homem que quer liberar sua subjetividade torna-se, talvez, escritor; mas o que fará um homem que quer qualquer coisa entre esses dois polos?”

 

 

“Ulrich não conseguia entregar-se a pressentimentos vagos com tanta facilidade como uma pessoa dessa espécie, mas, de outro lado, não podia também esconder que anos a fio, vivendo com pura exatidão, apenas vivera contra si próprio; e desejava que lhe acontecesse algo de imprevisto, pois quando fazia aquilo que ironicamente chamava suas “férias da vida”, não tinha nem numa nem noutra direção nada que lhe desse paz.

Talvez se pudesse alegar, em sua defesa, que a vida em certas fases transcorre com incrível rapidez. Mas o dia em que precisamos começar a viver nossa última vontade, antes de largarmos seus restos, está muito à nossa frente e não pode ser adiado. Ele via isso com uma nitidez ameaçadora, agora que se passara quase meio ano sem nenhuma mudança. Esperava, enquanto se movia de um lado para outro naquela atividade insignificante e tola que se propusera, falava, tinha prazer em falar demais, vivendo com a desesperada tenacidade de um pescador que abaixa suas redes no rio vazio, pois não fazia nada que correspondesse à pessoa que era, e agia assim intencionalmente. Esperava atrás de sua própria pessoa, na medida em que essa palavra designa a parte de um ser humano formada pelo mundo e pelo curso da vida; e seu desespero calmo, retido atrás dela, aumentava a cada dia. Estava na pior situação de sua vida, e desprezava a si próprio por suas omissões. Grandes provações serão privilégio de grandes naturezas? Teria gostado de acreditar nisso, mas não é correto, pois também as mais simples naturezas nervosas têm suas crises. Assim, na verdade não lhe restava naquele grande abalo senão o resto inabalável que possuem todos os heróis e criminosos, que não é coragem, não é vontade, não é confiança, é simplesmente capacidade de agarrar-se tenazmente em si mesmo, tão difícil de extirpar quanto é difícil extirpar a vida de um gato, mesmo quando já está todo despedaçado pelos cães.”

 

 

“Pessoas que facilmente se descontrolam são muito desagradáveis. Só quando nós mesmos não estamos em jogo podemos ser imparciais com elas. Nesse caso, despertam nossa simpatia, julgamos que são vítimas do destino ou da sociedade. Você tem de admitir que ninguém se julga culpado de seus próprios erros; no pior dos casos, considera-os um engano, ou qualidades negativas num conjunto que nem por isso é menos bom; e naturalmente ele terá toda a razão!”

 

 

““O que foi feito de mim?”, pensou Ulrich amargurado. “Talvez uma pessoa corajosa e insubornável, que imagina respeitar poucas leis exteriores por amor à liberdade interior. Mas essa liberdade interior consta de poder pensar tudo, saber em qualquer situação humana por que não nos precisamos prender a ela, e nunca saber em que nos gostaríamos de prender!” Naquele momento infeliz, em que a singular pequena onda de emoções que o dominara por um segundo se desfazia novamente, estava disposto a admitir que só possuía uma capacidade, a de descobrir em cada coisa dois aspectos, aquela ambivalência moral que caracterizava quase todos os seus contemporâneos e constituía a tendência de sua geração, ou o seu destino.”

 

 

“— Veja bem, o dinheiro é um poder extremamente intolerante.

— Em tudo o que as pessoas fazem com todo o empenho provavelmente há certa intolerância.”

 

 

“As pessoas precisam ou não concordar com seu corpo?”

 

 

“Enquanto o espírito artístico quer ser admirado como Goethe e Michelangelo, Napoleão e Lutero, praticamente ninguém mais sabe o nome do homem que deu à humanidade a indizível bênção da anestesia, ninguém pesquisa procurando uma sra. Von Stein na vida de Gauss, Euler ou Maxwell, e apenas uma ínfima minoria se interessa em saber onde nasceram ou morreram Lavoisier e Cardanus. Em vez disso, aprende-se como suas ideias e descobertas foram desenvolvidas por outras pessoas igualmente desinteressantes, e nos ocupamos exclusivamente com suas realizações, que continuam vivas em outra pessoa, depois que a breve chama da primeira se consumiu.”

 

 

“Quem é imparcial tem de poder suportar uma palavra dura de vez em quando.”

 

 

“— Mas diga-me, Gerda, aonde vai nos levar tudo isso?

O problema era que não se amavam. Antigamente, tinham jogado tênis juntos várias vezes, ou encontravam-se em festas, tinham andado juntos, simpatizado um com o outro, e assim, imperceptivelmente, haviam transposto o limite que distingue uma pessoa em quem confiamos, e a quem nos mostramos com toda a nossa confusão emocional, de todas as outras pessoas, diante das quais fingimos ser perfeitos. Sem querer, tinham ficado íntimos como duas pessoas que se amam há muito tempo, ou mesmo que já quase nem se amam mais; mas dispensaram o amor. Brigavam a ponto de se pensar que se detestavam, isso era, porém, a um tempo obstáculo e ponto de contato. Sabiam que faltava apenas uma pequena centelha para desencadear um incêndio. Se a diferença de idade fosse menor, ou Gerda uma mulher casada, provavelmente a ocasião teria feito o ladrão, e do roubo teria nascido a paixão, pois a gente se persuade do amor como da ira quando se começa a praticá-lo. Mas exatamente por saberem disso, não o faziam. Gerda continuava virgem, e incomodava-se intensamente por isso.”

 

 

“Hoje, quando se mistura tudo quanto é possível e profetas e vigaristas usam a mesma linguagem, exceto por diferenças muito pequenas que nenhuma pessoa ocupada tem tempo de investigar, e as redações são continuamente importunadas por alguém que se considera um gênio, é muito difícil reconhecer corretamente o valor de uma pessoa ou uma ideia; temos de nos fiar em nosso ouvido, para reconhecermos quando o rosnado e arrastar de pés diante da porta da redação é forte a ponto de poder ser admitido como voz do povo.”

 

 

“A felicidade multiplica a capacidade de realizações.”

 

 

“— Você gostaria de viver segundo suas ideias — começou Ulrich —, e gostaria de saber como se faz isso. Mas uma ideia é o maior paradoxo do mundo. A carne se liga às ideias como um fetiche. Torna-se mágica quando há uma ideia presente. Uma vulgar bofetada pode se tornar mortal pela ideia da honra, castigo e coisas assim. Mas as ideias jamais se mantêm no estado em que são mais fortes; são como aquelas substâncias que em contato com o ar imediatamente se transformam em outra, mais durável, mas corrompida. Você viu isso muitas vezes. Surge uma ideia; é você; num determinado estado. Alguma coisa sopra em você; como um súbito rumor de cordas, surge um som; alguma coisa se coloca diante de você como uma miragem; da confusão de sua alma formou-se um cortejo infinito, e todas as belezas do mundo parecem estar paradas à beira da estrada. Muitas vezes uma só ideia provoca isso. Mas depois de algum tempo, ela começa a se parecer com todas as outras ideias que você já teve, submete-se a elas, torna-se parte de suas concepções e do seu caráter, de seus princípios ou de seus estados de alma; ela perdeu as asas, e assumiu uma solidez totalmente desprovida de mistérios.”

 

 

“— A grande vileza, na atualidade, não acontece porque a cometemos, mas porque a permitimos. Ela cresce no vazio.”

 

 

“Uma ideia sem objetivo prático não é uma ocupação muito decente.”

 

 

“Em grande parte, porém, a história acontece sem autores. Ela surge, não de um centro, mas da periferia. De pequenas causas. Provavelmente nem é preciso tanto quanto se imagina para transformar o homem gótico ou o grego antigo no moderno homem civilizado. Pois o ser humano é tão capaz de canibalismo quanto de crítica da razão pura; pode realizar as duas coisas com as mesmas convicções e qualidades, quando a situação exige, e diferenças exteriores muito grandes correspondem a diferenças interiores muito reduzidas.”

 

 

“Ulrich elaborava o programa de viver-se uma história de ideias em vez de uma história do mundo. Pressupunha que a diferença estaria menos nos acontecimentos do que no significado que lhes conferissem, na intenção que ligassem a eles, no sistema que abrangesse os acontecimentos isolados. O sistema agora vigente era o da realidade, e parecia uma peça de teatro ruim. Não era à toa que se dizia “teatro do mundo”, pois na vida sempre surgem os mesmos papéis, tramas e fabulações. A gente ama, porque e do modo que o amor existe; sentimos orgulho como os índios, os espanhóis, as virgens ou o leão; assassinamos até, em noventa por cento dos casos, apenas porque isso se considera trágico e grandioso. E principalmente as figuras políticas bem-sucedidas da realidade, com grandes exceções, têm muito em comum com os autores de sucessos de bilheteria: os vivazes acontecimentos que produzem nos entediam pela falta de espírito e novidade, mas exatamente por isso nos deixam naquele estado inerte e sonolento em que aceitamos qualquer mudança. Considerada sob esse aspecto, a história consta de rotina ideal e de ideal indiferença, e a realidade consta principalmente de não acontecer nada em favor das ideias. Segundo Ulrich, isso se podia resumir dizendo que pouco nos interessa o que acontece, interessa-nos demais a quem, onde e quando acontece, de modo que não é o espírito dos acontecimentos mas sua fabulação, não o surgimento de novo conteúdo de vida mas a distribuição do já existente que importam, exatamente como na diferença entre peças de teatro boas, e outras apenas populares. Daí resultaria ser necessário fazer o contrário e renunciar primeiro à nossa avidez pessoal de experiências. Seria preciso encará-las menos do ponto de vista pessoal e real, e mais como algo geral e imaginado, com tanta isenção pessoal como se fossem pintadas ou cantadas. Não devemos querer relacionar essas experiências conosco mesmos, mas dirigi-las para fora, e para cima. E se isso valia individualmente, também deveria acontecer, coletivamente, alguma coisa que Ulrich não sabia descrever bem, mas que chamava de guardar, envelhecer e fermentar o licor espiritual, sem o qual o indivíduo naturalmente só pode sentir-se impotente e à mercê de seu próprio arbítrio. Enquanto falava assim, Ulrich lembrou o instante em que dissera a Diotima que era preciso eliminar a realidade.”

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