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sexta-feira, 22 de outubro de 2021

História da vida privada (II): da Europa Feudal à Renascença (Parte III), de Philippe Ariès e Georges Duby (org.)

Editora: Companhia das Letras

ISBN: 978-85-359-1378-1

Tradução: Maria Lúcia Machado

Organização: Georges Duby

Opinião: ★★★★☆

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Páginas: 680

Sinopse: Ver Parte I


 

4. Problemas: Os arranjos do espaço privado nos séculos XIV-XV – Philippe Contamine

 

ESPAÇOS URBANOS

 

Se a mania de fechar, verdadeiro habitus da mentalidade medieval nascido talvez de um profundo sentimento de insegurança (que por certo o meio circunstancial vem justificar amplamente e reforçar, na França da Guerra dos Cem Anos), era de vasta difusão no mundo rural, o era do mesmo modo em meio urbano, pois que precisamente uma das características da cidade era de ser limitada por portas e por uma muralha. Contudo, notemos que, mesmo na França, autênticas e inegáveis cidades só se beneficiaram de uma muralha num período bastante tardio, e que arrabaldes abertos, vulneráveis, subsistiram ou se criaram, em especial no prolongamento e na vizinhança das vias de acesso. De resto, desde que o perigo parecia afastar-se e a paz voltar, muitas cidades, por simples razões de economia, tendiam a negligenciar suas muralhas que, a cada vez, transformavam-se rapidamente em passadouros...

Mas talvez o traço maior da cidade medieval e de suas relações com o espaço resida na relativa raridade dos terrenos e das construções com caráter público. Sem dúvida as ruas e as praças eram consideradas dependentes dos poderes municipais, senhoriais, leais. Sem dúvida também os procedimentos de expropriação, mediante uma indenização, com vistas ao interesse geral, não eram desconhecidos. Tem-se a impressão, apesar de tudo, de que o domínio público era restrito, ou mesmo residual, e de que era, além disso, regularmente ameaçado pelas usurpações dos particulares. Usurpações discretas, porque ilícitas, mas por vezes também legalizadas por um ato oficial. Em 1437, mestre Jacques Jouvenel queixou-se a Carlos VII das condenáveis atividades a que se entregavam, bem perto de sua casa, na Île de la Cité, em Paris, “moças de prazer” instaladas em “várias casinhas”. Ora, essas casinhas eram servidas por uma “pequena ruela e via pública chamada Glatigny”, de resto bastante estreita, pois “dita ruela não é de modo algum lugar onde cavalos nem carroças podem passar”, e de maneira nenhuma indispensável à “coisa pública”, dado que outras vias paralelas asseguravam mais comodamente a circulação no bairro. Rendendo-se a essas explicações interessadas, Carlos VII, para fazer um gesto em relação a um membro de uma grande família que lhe permanecera perfeitamente fiel durante todo o tempo das divisões, autorizou a junção da ruela de Glatigny à propriedade de Jacques Jouvenel. Como o diz a carta real, “a qual ruela que era via pública temos redigido e redigimos como coisa privada em proveito do dito mestre Jacques Jouvenel e dos seus”.

Entre 1439 e 1447, em Saint-Flour, um processo opôs os cônsules e habitantes da cidade aos cônegos da colegiada de Notre-Dame. O objeto do litígio era uma pequena rua de quatro a cinco pés de largura (de 1,20 metro a 1,50 metro), atravessando o cemitério do capítulo e dando acesso, noite e dia, a um forno comum. O capítulo pretendia interditar a passagem que o incomodava cercando o cemitério. Ao contrário, a municipalidade de Saint-Flour sustentava não apenas que a via era comum, mas também que na região de Auvergne os cemitérios eram “lugares públicos”, que não havia razão, portanto, de fechar.

Um domínio público reduzido, fragmentado: simples manifestação, na topografia urbana, da fraqueza persistente do Estado em seus meios, seus recursos e suas ambições.

Bastará lembrar aqui a singular estreiteza das ruas, a ponto de uma via de seis ou sete metros de largura impressionar por suas dimensões, a sinuosidade dos traçados, a multidão dos pátios e das ruas sem saída, a exiguidade dos cruzamentos, a raridade das perspectivas e dos espaços livres, o engarrafamento permanente das vias carroçáveis. Nas cidades bretãs do século XV, “muitas vias se identificaram com verdadeiros corredores, escurecidos pelas sacadas das casas” (Jean-Pierre Leguay).

Entretanto, o pitoresco embaralhamento das cidades medievais, com o labirinto de suas sinuosidades e de suas tortuosidades, a abundância de suas passagens abobadadas, a inclinação intempestiva de suas rampas, não era necessariamente percebido como um quadro natural e, em suma, suportável. As pessoas se adaptavam a ele, pela força das coisas, talvez se visse nele uma proteção contra as intempéries, ou contra os intrusos de toda espécie. Mas diferentes indícios sugerem que muitos, sobretudo os dirigentes, desejavam uma melhoria e deploravam os múltiplos inconvenientes nascidos de um crescimento espontâneo ou suscitados por iniciativas privadas. As cidades novas do século XIII, planejadas pelas autoridades responsáveis, mostram ruas sensivelmente mais largas, até onze metros, por exemplo, para a magna carreyra de Libourne, praças arejadas, uma divisão quadriculada geométrica das linhas retilíneas. As raras operações de urbanismo realizadas no final da Idade Média demonstram, por sua vez, um inegável senso do espaço e da harmonia. Assim como as miniaturas que visam representar a cidade ideal. Quando uma cidade tinha a possibilidade de possuir uma praça de boa dimensão, esforçava-se em conservá-la resistindo aos apetites dos construtores e dos “loteadores” e, se necessário, valorizando-a. O olhar dos viajantes exprime eventualmente o que se podia apreciar em uma cidade. Diz Antonio de Beatis, a propósito de Malines:

Cidade soberba, muito grande e muito fortificada. Em parte nenhuma havíamos observado ruas mais espaçosas e mais elegantes. Elas são pavimentadas com pequenas pedras, e os lados se inclinam em declive leve, de tal modo que a água e a lama jamais permaneciam ali. Diante da igreja, que é muito bela, encontra-se uma praça mais comprida e muito mais larga que o Campo dei fiori de Roma, toda pavimentada da mesma maneira que as ruas. Um grande número de canais, cujas águas seguem o movimento do oceano, atravessa a cidade.

Em 1484, a cidade de Troyes, desejosa de obter do rei a sucessão das feiras de Lyon, que acabavam de ser abolidas, apresenta-se, sem excesso de modéstia, como “uma bela e grande cidade com muitas casas e guarnecida de belas e grandes ruas largas e espaçosas, com belas praças, galpões públicos para conter feiras e mercados”.

Ordenações e regulamentos municipais foram promulgados em diversos lugares, no século XV mais do que no século XIV, para favorecer as necessidades da comunidade nos domínios da higiene pública, da circulação dos homens e das mercadorias, e da segurança das pessoas e dos imóveis. Com relação a isso, a França está, aliás, antes a reboque, acompanhando com lentidão e sem muito entusiasmo um exemplo vindo de outras partes. Ao menos uma certa evolução das mentalidades começa a se fazer sentir, quer se explique por uma degradação da situação, a ponto de que se impunha tomar medidas, quer pela chegada de flagelos inéditos, como a peste, ou pela emergência de um autêntico espírito municipal, do qual o “corpo de cidade” era o depositário, com sua vontade de melhor dominar o espaço público e mesmo de impor ao espaço privado um mínimo de coerções. Um pouco por toda parte, edis se reúnem, deliberam. Eles têm sem dúvida meios financeiros menos reduzidos que no passado, dispõem de um pessoal um pouco mais numeroso para tentar fazer aplicar suas decisões. Por certo, os poderes que detêm, exercem-nos no sentido de seus interesses e dos interesses de seu meio; mas não fica excluído que se sintam igualmente responsáveis em relação ao conjunto de seus administradores e mais ainda em relação à cidade cuja gestão reivindicam, não sem orgulho. (...)

E, no entanto, por mais estreita, ruidosa e mesmo malcheirosa que fosse, a rua conservava sua força de atração, pois representava a comunicação, em todos os sentidos da palavra, a distração e a ação. A vida. Para ela as casas voltavam regularmente sua fachada mais cuidada, a mais ornada de “amabilidades”, suas aberturas mais amplas, e, naturalmente, suas tabuletas, assim como a abertura de suas oficinas. Os quartos mais apreciados ficavam do lado da rua, e não do lado do pátio, em particular o do “chefe da casa” e de sua mulher, como levam a admitir alguns inventários. “Ao contrário das cidades do Oriente, cuja estrutura em colmeia de abelha convida o clã, o grupo étnico ou confessional a viver curvado sobre si mesmo”, tudo, nas boas cidades do Ocidente no final da Idade Média, “impele para a rua os membros de uma sociedade urbana extrovertida” (Bernard Chevalier).”

 

 

“O esforço conjugado dos historiadores e dos arqueólogos já permitiu descobrir alguma coisa da evolução arquitetônica da casa rural através da Idade Média. Em linhas gerais, ter-se-ia passado de uma “infraconstrução”, de uma “casa para nada”, de um abrigo transitório, edificado com os meios disponíveis (terra crua, madeira, ramagens e folhagens) para uma construção “durável” que necessita técnicas elaboradas, representando um certo investimento, mas destinada a durar. Nesse segundo tipo, afirmando-se progressivamente a partir do século XII, a célula familiar se sente mais em casa, psicológica e materialmente; beneficia-se de uma melhor proteção contra o frio, contra a água, contra o vento, e pode conservar melhor seus instrumentos de trabalho e de casa, suas provisões, tudo aquilo que a Idade Média classificava sob a expressão estorements d’hôtel. Em certa medida mesmo, a família adere à sua casa, identifica-se com ela, como uma linhagem nobre pode aderir e identificar-se com seu castelo. Simples esboço de um fenômeno que se devia acentuar posteriormente e subsistir até em pleno século XX, como no vale do Engadine.

“Trois choses sont, ce dist ly sage,/ Que l’omme boutent du cotage/ Par fine force et par destresce:/ Ce sont fumee et goute eauage/ Mais plus encore fait le rage/ Du male femme tenceresse.” Assim rima em seu jargão anglo-normando John Gower, no século XIV, dispondo em versos um provérbio comum sob várias formas: “Três coisas afastam o homem sensato de sua casa: casa aberta, chaminé fumarenta e mulher briguenta”. Ou ainda: “Três coisas lançam o homem fora de casa: a fumaça, a goteira e a mulher má”.

Se o historiador é desprovido de meios para apreciar a evolução do último desses três aborrecimentos, pode estimar, em compensação, que entre a Alta e a Baixa Idade Média os dois primeiros tiveram tendência a diminuir de intensidade.

Por mais limitado que tenha sido, semelhante melhoramento teve consequências enormes para os relacionamentos humanos. Ele só se tornou possível por uma transformação das mentalidades, assim como das realidades econômicas e sociais. Talvez tenha havido lenta difusão de um modelo urbano (ao lado do modelo senhorial, já evocado), ao mesmo tempo quanto às técnicas e às classes de trabalhadores empregadas e quanto ao uso social da morada. Foi na cidade que se começou a construir por muito tempo, a investir nos bens imóveis de qualidade corrente, a substituir as lareiras abertas pelas chaminés, os tetos de colmo e de ripas pelos tetos de telha ou de ardósia.”

 

 

“Do mesmo modo que a casa rural, a casa urbana apresenta toda espécie de contrastes. Aqui a pedra domina, ali a madeira, a argila seca, o tijolo. Aqui a ardósia ou a lousa, ali a telha, o que não significa que os telhados com cobertura vegetal tenham desaparecido. Os problemas se colocam diferentemente, em função do clima, da dimensão das cidades, da densidade do habitat, da natureza e da intensidade das atividades, da conjuntura histórica. Cidades viram-se arruinadas ou anemizadas pela guerra, pelas epidemias, pelas transformações econômicas, desde então incapazes de manter seu patrimônio imobiliário, enquanto outras, em plena Guerra dos Cem Anos, souberam manter ou aumentar a cifra de sua população, criar ou captar riquezas, conservar uma corrente regular de construções novas. Em muitos lugares, a segunda metade do século XV, após a profunda miséria do tempo do reino de Bourges, mas antes dos amontoamentos malsãos do século XVI, foi um período feliz em que citadinos ainda não demasiadamente abundantes se beneficiaram de um habitat em plena renovação. É significativo que dessa época datem numerosas casas que ainda subsistem na França atual.

As cidades medievais comportavam uma porcentagem não negligenciável de religiosos, de religiosas e de clérigos, vivendo em comunidade ou separadamente. Palácios eram a residência, permanente ou temporária, de nobres, de grandes senhores, de príncipes ou de reis. Outros podiam abrigar notabilidades: homens de negócios e de lei, financistas, médicos de renome, todos aqueles que os textos englobam com frequência sob o termo de burguês. Infinitamente mais fornidas eram as camadas sociais alojadas de forma miserável ou precária: vagabundos e mendigos “buscando seu pão, morando e permanecendo em toda parte, estendendo-se sob os balcões” (François Villon), dormindo “pelas ruas”, e para os quais, em 1439, em Tournai, a cidade mandou construir barracas cobertas; estudantes não admitidos nos colégios; velhos e velhas; criados, servas e companheiros, quando não viviam na casa de seu senhor. E verdade que o grupo mais representativo do meio urbano, ainda que só participasse muito acessoriamente no governo e na administração da cidade, era o dos homens de ofício — artesãos, lojistas —, organizados ou não em corporações e confrarias, aos quais é preciso acrescentar todos aqueles que gravitavam em torno deles e partilhavam sua existência. Talvez se trate de pelo menos a metade da população urbana. E, sem dúvida, no seio do que se chamava o comum, havia pobres e abastados, grandes e pequenos. Alguns tinham uma atividade mais prestigiosa, mais habilidade, uma melhor clientela. Outros acumulavam as desvantagens: encargos de família pesados demais, idade, doença, acidentes profissionais. Para além desses contrastes, os homens de ofício habitavam normalmente, eles e os seus, casas individuais, que ocupavam na totalidade ou em sua maior parte e que lhes serviam conjuntamente de residência privada, de oficina de produção e de local de venda dos produtos que fabricavam ou que transformavam. A maioria das 3 700 casas de Reims, das 2400 casas de Arras (excluída a parte mais antiga da cidade), das 6 mil casas de Lille correspondia, pode-se pensar, a essa destinação.”

 

 

“Para além de seu caráter díspar, esses diferentes dados caminham aparentemente em uma mesma direção, sobretudo se os aproximarmos da organização das mais belas mansões urbanas, dos castelos mais importantes e dos palácios mais prestigiosos. Uma tendência parece ter-se manifestado então, de um lado para fazer passar para o interior aquilo que outrora se desenrolava mais facilmente no exterior, ao ar livre, de outro lado para substituir espaços polivalentes, multifuncionais, por espaços dotados de uma destinação mais rigorosamente definida.

Um lugar para o jogo, um outro para o trabalho ou para a justiça, para a oração individual ou coletiva, para o ensino ou para a cultura, provisoriamente um lugar para o teatro. Assim se definiria no extremo final da Idade Média o ideal do espaço urbano. E não sem paralelismo com aquilo que os poderes desejavam para o conjunto do corpo social: mais hierarquia, segregação, um enquadramento mais estrito, uma vigilância mais estreita dos comportamentos.

O período dos séculos XII-XVI viu também a lenta emergência, tanto na cidade como no campo, de um habitat corrente de qualidade um pouco melhor. Talvez, paradoxalmente, os grandes distúrbios do fim da Idade Média tenham sido a condição necessária ao estabelecimento desse início de progresso. Por um movimento dialético, a vida privada, menos abandonada a si mesma por poderes públicos de bom grado mais intervencionistas, ia redescobrir sua respiração, suas dimensões, no interior de um “em casa” que se tornou mais acolhedor e mais protegido.

Progresso do individualismo? Talvez. A despeito de tudo, não esqueçamos que ainda na época da Renascença é o habitat coletivo que permanece mais apreciado, quer esse habitat seja destinado a comunidades de religiosos, de escolares, de doentes, de soldados, ou a indivíduos cujos poder, prestígio e riqueza se traduzem em primeiro lugar pela importância da humanidade que gravita permanentemente em torno deles.”

 

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A emergência do indivíduo: A solidão nos séculos XI-XIII – Georges Duby

 

“O envoltório do corpo é, assim, no mundo dos homens, a mais profunda das clausuras, a mais secreta, a mais íntima, e as interdições mais rigorosas proíbem rompê-la. Casa forte, portanto, fortaleza, ermitério, mas incessantemente ameaçado, sitiado, atacado como o é pelo satânico o refúgio dos padres do deserto. Em consequência, é preciso velar sobre esse corpo, e especialmente sobre as passagens que transpassam a muralha e por onde o Inimigo pode infiltrar-se. Os moralistas convocam a montar guarda diante dessas poternas, dessas janelas que são os olhos, a boca, as orelhas, as narinas, já que por aí penetram o gosto pelo mundo e o pecado, a podridão: vigilância assídua, como às portas do mosteiro ou do castelo.

Reflexo do corpo de Adão, mas invertido, como em um espelho (especialmente no que se refere aos órgãos sexuais, que são de mesma estrutura, mas revirados, introvertidos, mais secretos, portanto mais privados, mas também, como aquilo que se oculta, suspeitos), o corpo feminino, mais permeável à corrupção porque menos fechado, requer uma guarda mais atenta, e é ao homem que cabe a sua vigilância. A mulher não pode viver sem o homem, deve estar no poder de um homem. Anatomicamente, ela está destinada a ficar encerrada, em uma cerca suplementar, a permanecer no seio da casa, a só sair dali escoltada, enterrada em um invólucro de vestuário mais opaco. É preciso erguer diante de seu corpo um muro, o muro, precisamente, da vida privada. Por natureza, pela natureza de seu corpo, ela é obrigada ao pudor, ao retiro; deve preservar-se; deve, sobretudo, ser posta sob o governo dos homens, desde o nascimento até a morte, porque seu corpo é perigoso. Em perigo, e fonte de perigo: por ele, o homem perde sua honra, por ele corre o risco de ser desencaminhado, por essa armadilha tanto mais perigosa quanto está mais preparada para seduzir.”

 

 

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A emergência do indivíduo: Abordagens da intimidade nos séculos XIV-XV – Philippe Braunstein

 

“Um último obstáculo nos espera, é a tentação da modernidade, que faria dos últimos séculos da Idade Média um prefácio do futuro, pela única razão de que foram, como a Idade Moderna, mais tagarelas sobre os segredos dos homens. A vida privada pertence sem dúvida ao campo menos certo da história, aquele em que o estudo das estruturas econômicas, sociais, culturais corre o risco de ser um instrumento bem pesado para abordar a diversidade irredutível dos sujeitos individuais; os historiadores são formados nas ideias gerais mais que na escuta das vozes do passado. Ser sensível à voz é deixar-se surpreender pela liberdade de uma confidência, pela audácia de uma expressão, pela fantasia que se desprende de um texto, pelo amor que exala de um queixume sobre uma criança morta. Tudo o que nos aproxima do íntimo de alguns séculos atrás nos dá a tentação de abolir as distâncias que nos separam irremediavelmente de um mundo que perdemos. A armadilha da modernidade é a de descrever o que é velho como o mundo; os homens, quando se exprimem privadamente, não falam a mesma língua através dos séculos?”

 

 

“O capital de memórias só se gera e só se lega se estiver ordenado, e é efetivamente a partir de 1350 que se percebe na loja, no escritório, no studiolo do palácio, a organização progressiva de um material familiar feito de documentos contratuais e contábeis, de listas de nascimentos e de óbitos, de receitas medicinais e propiciatórias, de maços de correspondências, de reconstituições genealógicas. O núcleo original a partir do qual se organizaram e se diversificaram os dossiês do chefe de família foi, parece, no mais das vezes, o conjunto de fichas volantes (veem-se esses mementos presos a um prego atrás dos retratos de comerciantes e de artesãos), depois cadernos e registros, conservando a lembrança de obrigações e de prazos, transformando-se em seguida em um diário de empresa em que a distinção entre o comercial e o doméstico, entre o doméstico e o memorial levou algum tempo para se estabelecer.

As cidades do centro e do Norte da Itália, depois as cidades da alta Alemanha a partir do fim do século XIV foram os lugares onde se elaborou e se difundiu a organização escriturai mais desenvolvida da empresa comercial e bancária; essa organização contábil, multiplicando as remessas de um livro especializado ao outro, expulsou do registro todas as informações que não tinham seu lugar no balanço comercial. Assim nasceram “livros secretos”, “diários dos assuntos próprios”, “memoriais”, “livros domésticos”, diários de família e de recordação que, qualquer que seja seu título, conservam ciosamente, para transmiti-las, informações de natureza privada. Permanece até meados do século XVI ou mais, segundo os níveis de organização intelectual, uma extrema variedade de conteúdo dessas escritas familiares, que conservam, da lenta constituição do memorial a partir das notas do dia-a-dia, a prática caprichosa da inserção mnemônica: desordem orgânica quando, por exemplo, as cláusulas de contratos de casamento sucedem listas de nomes de filhos, ou quando a transmissão de uma receita para curar os cavalos sucede a menção de uma venda em feira. (...)

Na triagem necessária operada a cada geração, dois critérios guiaram essencialmente os comerciantes escritores, quando pretendiam transmitir uma experiência e um saber pelos quais se consideravam responsáveis: a utilidade e a dignidade. Sentados em sua camera privata, diante de seus contemporâneos, de seus descendentes e da posteridade, insistiram no inalienável e no exemplar: de um lado, as decisões e as escolhas que, segundo seu conhecimento, reforçaram ou enfraqueceram a sociedade ou o patrimônio — e a insistência no exemplo pode transformar-se na exaltação de um ancestral ou na confissão de seus próprios erros; e, do outro lado, o conjunto dos saberes necessários à vida do grupo familiar, quer se trate de esvaziar a fossa sanitária da casa ou de conservar de uma geração à outra a rede dos aparentados e das amizades de negócios. (...)

Por essas brechas do natural, avalia-se o caminho percorrido desde o parcimonioso registro de notícias pessoais. Para que se afirme definitivamente o romance de uma vida, para que as últimas reticências em apresentar o íntimo em pintura sejam apagadas, era preciso que triunfasse o sentimento de que o homem deve mais a seus próprios esforços do que às suas origens ou à proteção divina. Para uma história da vida privada, apreendida em seu desenvolvimento orgânico, concorrem poderosamente o orgulho do sucesso e o diálogo entre o passado e o presente narrativo. Mas, à diferença do exame de consciência penitencial que ergue um homem novo diante da desordem e do absurdo do tempo passado, é a história dos verdes anos — a infância muitas vezes séria, por vezes difícil, os anos de formação profissional — que dá à escrita sua sinceridade. Baseada em um diário, em documentos de primeira mão, por vezes posta na perspectiva do curso dramático dos acontecimentos gerais, a biografia não perdeu suas referências familiares, políticas, espirituais: ela reúne todas as correntes que, desde meados do século XIV, conferem à voz individual, à vida pessoal, à experiência, íntimo valor, prestígio, função social. Do mesmo modo que o autorretrato ousa afirmar em um jogo de espelhos a eternidade de um olhar, assim também o livro em que se condensa um destino individual exprime, muitas vezes no declínio de uma vida, a energia criadora da consciência de si.

É esse olhar construtor, por vezes severo, no mais das vezes reconciliado, que constitui o valor das aventuras singulares redigidas no fim do século XV e no começo do século XVI, particularmente no mundo germânico: sabe-se a fortuna que teve ao norte dos Alpes o tema dos anos de aprendizagem e dos romances de formação. Assim, Johannes Butzbach, que terminou sua carreira como prior de Laach, em Eifel, em 1505, insiste, em seu Livro das peregrinações, na dureza de sua infância infeliz; vivendo com suas lembranças sob o olhar de Deus, ele instaura um contraponto entre as tribulações passadas da criança mártir e do órfão e o tranquilo retiro em que espera a morte: os caminhos da Providência são impenetráveis.

Outro exemplo, o de Mattháus Schwarz, de Augsburg, que concebe ainda criança, na idade em que o jovem Dürer faz seu primeiro autorretrato conhecido, o projeto autobiográfico que realizará quinze anos mais tarde. Tornando-se diretor financeiro da sede central da casa Fugger aos 25 anos, conduz conjuntamente o relato de sua vida privada, que intitula O curso do mundo, e um livro feito de vinhetas aquareladas em que se mostra sozinho em cena nos trajes que usou. Não se pode imaginar projeto mais narcísico, pois que esse brilhante espírito, esse confidente de um dos homens mais poderosos de seu tempo escolheu deliberadamente a aparência, a futilidade, o contentamento de si, a despeito da vida cheia que leva. Um outro tempo chegou, o da provocação e do esnobismo, e no entanto o olhar que o homem aprumado lança sobre sua primeira infância, os comentários enternecidos ou picantes com que acompanha essas silhuetas condensam todo o poder do sentimento que, após várias gerações de escrita sobre si, o homem da Renascença demonstra por seu passado.”

 

 

“Se existe uma evolução na descoberta do indivíduo no final da Idade Média, ela se deve aos procedimentos de análise do real, aos instrumentos e ao vocabulário: a prática da dissecação, o hábito da frequente confissão, o uso da correspondência privada, a difusão do espelho, a técnica da pintura a óleo. Mas a multiplicação dos pontos de vista, o virtuosismo na imitação, a decomposição dos mecanismos do corpo não bastam para compreender o indivíduo em seu privado, assim como cubos de vidro colorido não bastam para formar um mosaico.

Para além da descrição realista, de um rosto ou de uma cena de interior, a grande pintura flamenga do século XV fascina porque se inspira em um pensamento, em uma visão simbólica. Diante da superfície lisa do quadro, cabe ao olhar do espectador redescobrir a chave, recompor o indivíduo e traduzir-lhe o segredo.”

 

 

“As sociedades do fim da Idade Média permaneceram fiéis ao esquema trifuncional, mas tornaram-no mais complexo e menos legível. Entre os trabalhadores e os poderosos, o desenvolvimento econômico urbano multiplicou os estatutos; os mais ricos entre os produtores estão em condição de tomar a seu serviço a espada que os defende, e se sentem mais próximos do poder de decidir que do labor que escraviza. Ora, a ambição do sucesso, a ascensão social esfumam as divisões nítidas e, de uma cidade a outra, os estatutos profissionais não estabelecem hierarquias homogêneas: as artes desempenham em Florença, no século XIV, um papel determinante na definição do corpo político e Social; não desempenham nenhum papel em Veneza. Assim, a imagem que as sociedades apresentam de si mesmas reflete os particularismos de sua história; os grupos no poder apreciam e canalizam a fluidez indispensável, aqui ou ali, ao “bem comum”, mas, no final do século XIV, a codificação tende a fixar definitivamente os contornos das classes dominantes na maior parte das cidades da Europa que se governam.

O vestuário é uma das marcas essenciais da conveniência social, tanto que o hábito das assembleias e das procissões destina a cada parte do povo seu papel e seu lugar, localizável pela forma e pela cor. Em consequência, o vestuário é a aposta de um surdo conflito entre a ordem política e o movimento econômico; é o objeto de uma regulamentação que, em nome do “bem comum”, tende a refrear todas as manifestações da arrogância dos particulares; é incontável o número das cidades que publicaram leis suntuárias e aumentaram o rigor, nos séculos XIV e XV, à medida que a abastança dos homens de ofício e o luxo dos ricos faziam elevar-se a maneira de vestir. Mantido em seu lugar, na posição que lhe é destinada pela Providência, cada indivíduo participa da harmonia do corpo social, seja ele poderoso ou miserável: teoria de uma ordem intangível sob o olhar divino, e da qual o vestuário é a expressão. É o que ressalta do volume publicado, com as gravuras dos trajes correspondentes às profissões, por Jost Ammann em Augsburg, em meados do século XVI, sociologia pitoresca fundada na aparência.

Há várias gerações reconhece-se o comerciante por seu aspecto, o senador veneziano pelo negro que ostenta, o judeu por sua estrela, e a mulher de má vida pelo amarelo de seu vestido; um processo veneziano do fim do século XIV evoca a infeliz sequestrada em uma pocilga e socorrida graças aos gritos que lança quando compreende, pelos trajes que lhe vestem, a sorte e a situação que lhe está destinada.

No caso das mulheres públicas, assim como no dos reis, o estereótipo da função social impõe um filtro que reduz a aparência ao signo, com variações. Desse modo, a questão levantada pela representação do vestuário ao historiador é de saber se a vida privada não seria sempre a face oculta das aparências. Do homem público, sabe-se que depõe em um momento ou em outro seus atavios, e a vida privada é seu cotidiano, que só se apreende por acaso, atrás da porta da história. Quanto ao homem de pouco valor, tem mesmo uma vida privada? Em que seu traje pode ajudar-nos a imaginá-lo, já que com exceção dos dias festivos, em que se empertiga, senta-se ou dança, ele usa aos olhos de todos uma roupa prática com a qual trabalha? O trabalho ao ar livre é bem pouco compatível com a intimidade, e quando o camponês se encontra no leito está, como o burguês, completamente nu.”

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