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sexta-feira, 22 de outubro de 2021

História da vida privada (II): da Europa Feudal à Renascença (Parte II) — Philippe Ariès e Georges Duby (org.)

Editora: Companhia das Letras

ISBN: 978-85-359-1378-1

Tradução: Maria Lúcia Machado

Organização: Georges Duby

Opinião: ★★★★☆

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Páginas: 680

Sinopse: Ver Parte I


 

4. Problemas: Os arranjos do espaço privado nos séculos XIV-XV – Philippe Contamine

 

 

A emergência do indivíduo: A solidão nos séculos XI-XIII – Georges Duby

 

O DESEJO DE ESTAR SÓ: PROMISCUIDADE NECESSÁRIA

 

Proximidade, promiscuidade, por vezes multidão — na época feudal, o espaço, com efeito, jamais estava previsto, no interior das grandes moradas, para a solidão individual, senão no breve instante do trespasse, da grande passagem para o outro mundo. Quando as pessoas se arriscavam fora da clausura doméstica, era ainda em grupo. Todas as viagens eram feitas pelo menos em dupla, e se os companheiros não eram parentes, ligavam-se pelos ritos da fraternidade, constituindo, pela duração do deslocamento, uma família artificial. Desde que, por volta dos sete anos, considerados desde então como sexuados, os meninos da aristocracia saíam do universo das mulheres, eram lançados na aventura, mas permaneciam, e por toda a sua vida, no sentido mais forte do termo, englobados — se estavam destinados a servir a Deus, reunidos em uma escola, sob a condução de um mestre; senão, reunidos em uma equipe de estrutura semelhante, imitando os gestos de um patrono, seu novo pai, acompanhando-o quando deixava sua casa para defender seu direito pelas armas, pela palavra, ou para perseguir a caça na floresta. Terminado o aprendizado, os novos cavaleiros recebiam suas armas em grupo ainda, em enxame organizado como uma família, já que geralmente o filho do senhor era sagrado cavaleiro em companhia dos filhos dos vassalos. Eles não se deixavam mais, associados na glória ou na vergonha, respondendo uns pelos outros, oferecendo-se como reféns uns pelos outros. Seu bando, franqueado por uma criadagem e frequentemente por clérigos para as orações, corria de um torneio ao outro, de uma querela, de uma escaramuça à outra, indissociável, arvorando os sinais de sua coesão, cores ou um grito de reunião, o devotamento de todos esses camaradas a envolver o corpo de seu chefe em uma vestimenta indispensável de familiaridade doméstica: uma família itinerante. Assim, na sociedade feudal, o espaço privado aparece, na realidade, desdobrado, constituído de duas áreas distintas: uma fixa, em torno do lar, murada; a outra, deslocando-se no espaço público, não menos coerente, apresentando em seu seio as mesmas hierarquias, reunida pelos mesmos procedimentos de controle. No interior dessa célula móvel, a paz, a ordem encontravam-se mantidas da mesma maneira, por um poder de mesma natureza, cuja missão era organizar a defesa contra as agressões do poder público e que para isso erguia para o exterior um muro invisível tão sólido quanto a cerca da casa. Esse poder encerrava, retinha em seu interior os indivíduos, submetia-os à disciplina comum. Ele era coercitivo. E se vida privada significa segredo, esse segredo, necessariamente partilhado por todos os membros da família ampla, era frágil, logo descoberto; se vida privada significa independência, também essa independência era coletiva. A investigação deve, portanto, encerrar-se com esta pergunta: discerne-se, nos séculos XI e XII, no seio do privado coletivo, um privado pessoal?

A sociedade feudal era de estrutura tão granulosa, formada de grumos tão compactos que todo indivíduo que tentasse se libertar do estreito e muito abundante convívio que constituía então a privacy, isolar-se, erigir em torno de si sua própria clausura, encerrar-se em seu jardim fechado, era imediatamente objeto, seja de suspeita, seja de admiração, tido ou por contestador ou então por herói, em todo caso impelido para o domínio do “estranho”, o qual, atentemos às palavras, era antítese do “privado”. Quem se retirava a distância, com efeito, se não era deliberadamente para fazer o mal, estava destinado, a despeito de si mesmo, a fazê-lo inevitavelmente, por seu próprio isolamento que o tornava mais vulnerável aos ataques do Inimigo. Só se expunham desse modo os desencaminhados, os possuídos, os loucos: segundo a opinião comum, um dos sintomas da loucura era vaguear sozinho. Testemunha-o a atitude em relação aos homens e às mulheres sem escolta com quem se cruzava pelos caminhos: eles próprios se haviam oferecido como presa; tinha-se o direito de tomar-lhes tudo; em todo caso, era fazer obra pia reintroduzi-los, embora se irritassem, em uma comunidade, restabelecê-los à força no espaço ordenado, claro, gerido como apraz a Deus, dividido entre as cercas do privado e as áreas intersticiais, públicas, onde as pessoas se deslocam em cortejo. Isso explica o papel desempenhado, no vivido e no imaginário, por essa outra parte do mundo visível, as extensões incultas onde já não se encontram nem famílias nem casas, a charneca, a floresta, fora da lei, perigosas e sedutoras, locais dos encontros insólitos, onde quem se aventura sozinho arrisca-se a se encontrar a sós diante do homem selvagem ou da fada. Era nesses espaços da desordem, da angustia e do desejo que se considerava que os criminosos, os heréticos fossem buscar refúgio, ou então aqueles que a paixão transportava fora do senso, na desmedida. Como Tristão, arrastando Isolda culpada, mergulhando com ela na selvageria: sem pão, sem sal, andrajos, covis de ramagens. Mas quando o efeito do filtro, do “veneno” que os enlouquecera se dissipou, quando voltaram à razão, esta ordenou--lhes retornar à ordem, sair do estranho, isto é, do isolamento. A volta à cultura significou para eles retorno ao privado, à corte, isto é, à vida gregária.

No entanto, eles a isso retornaram renovados pela prova. Com efeito, atravessar, voluntariamente ou não, o perigo, a tribulação maior que era a solidão, parecia, para os mais fortes, para os eleitos, a ocasião de caminhar para o melhor. Foi assim que Godeliève, “desolada”, abandonada pelo marido, privada de “companhia”, mas resistindo pela graça divina às tentações, avançou passo a passo para a santidade. E aquele que escolhia livremente se atracar sozinho com os maus, que conseguia sair vencedor do encontro, ganhava um valor do qual se beneficiavam todos os da família da qual ele se afastara por um momento. Aí está o que ocorria ao vencedor triunfante de um único adversário em duelo, em combate singular na liça da batalha, ao pecador purgado de sua falta pelo isolamento penitencial, aos reclusos voluntários, como aqueles dois de Colônia dos quais se diz que “seu santo propósito de vida espalhava em toda a cidade o mais doce odor de boa reputação”. Aí está o que ocorria aos heróis dos romances, cavaleiros errantes, mas que escapavam ao habitual porque em princípio vagavam solitários e não por loucura. Entretanto, se a literatura de evasão empenhava-se em retirar suas figuras exemplares do inevitável convívio, não era porque alguns começavam, no século XII, a considerá-lo por demais pesado? As pessoas não se abandonavam cada vez mais naturalmente, na boa sociedade a que, por necessidade, o presente estudo se limitou, ao sonho de evadir-se, enquanto o movimento geral da civilização levava irresistivelmente a libertar pouco a pouco a pessoa do gregarismo doméstico?

 

 

DESEJO DE AUTONOMIA

 

As marcas evidentes das conquistas de uma autonomia pessoal se multiplicam no decorrer do século XII, isto é, no momento em que se acelera a distensão da economia, em que o crescimento agrícola chega ao ponto, reanimando estradas, mercados, aldeias, de transportar pouco a pouco para a cidade todos os sistemas de controle e os fermentos de vitalidade, em que a moeda começa a desempenhar no mais cotidiano da vida um papel capital, em que por toda parte se difunde o uso da palavra ganhar. É então que se descobrem, cada vez mais numerosas, menções de arcas ou de bolsas nos documentos de arquivos, restos de chaves nos canteiros de escavações, indícios de uma vontade manifesta de guardar para si bens naturalmente móveis, de poupar e de tornar-se, assim, menos dependente de seus familiares. Liberdade, espaço aberto aos empreendimentos individuais. Eles se manifestam no povo, na frente dos arroteamentos e entre esses subúrbios urbanos povoados de traficantes, de artesãos, alguns dos quais fazem rápida fortuna. Mas eles se manifestam não menos vivamente, não o esqueçamos, na classe dominante onde se veem fazer fortuna igualmente rápida certos clérigos que põem a serviço dos príncipes sua perícia administrativa, certos cavaleiros que acumulam denários a mancheias, na noite dos torneios, negociando suas presas. Tal movimento, a mobilização das iniciativas e das riquezas, suscitou a valorização progressiva da pessoa.

Ela se manifesta por inúmeros sinais. Assim, nas imagens que essa sociedade quis dar da perfeição humana. Parece que, por volta de 1125-1135, no pórtico de Saint-Lazare d’Autun, por exemplo, os entalhadores de imagens receberam dos idealizadores do programa iconográfico a instrução de se libertar das abstrações, de animar cada personagem com uma expressão pessoal; dez anos mais tarde, no pórtico real de Chartres, os lábios, os olhares se tornam realmente vivos; depois são os corpos que vemos, por sua vez, libertar-se do caráter hierático; enfim, muito mais tarde, no último terço do século XIII, uma nova etapa é transposta, decisiva, quando irrompe na escultura o retrato, a busca da semelhança. Essa evolução, na longa duração, dos procedimentos de figuração plástica aparece em perfeita sincronia com todas as mudanças que se podem observar em outros níveis do edifício cultural. No limiar do século XII opera-se, assim, na escola, a passagem da lição magistral ao “debate”: uma justa, um duelo, um combate singular, duas pessoas em confronto que rivalizam entre si como no torneio. No mesmo momento, enquanto a vida penetra o rosto das estátuas-colunas, toma corpo, entre os sábios que meditam sobre o texto da Escritura, a ideia perturbadora de que a salvação não é alcançada apenas pela participação em ritos, numa passividade submissa, mas se “ganha” por uma transformação de si mesmo. É um convite à introspecção, à exploração da própria consciência, pois que a falta já não parece residir no ato mas na intenção, pois se considera que ela se refugia na intimidade da alma. Para o interior do ser, em um espaço privado que não tem mais nada de comunitário, transportam-se os procedimentos de regulação moral. Lava-se a mácula pela contrição, pelo desejo sobretudo de se renovar, por um esforço sobre si, de razão, diz Abelardo, de amor, diz são Bernardo, ambos de acordo sobre a necessidade de uma emenda pessoal. Bastante paralelas se mostram as reflexões conduzidas nas escolas urbanas a propósito do casamento; elas fazem admitir pouco a pouco que a união conjugal é atada por consentimento mútuo, portanto que o compromisso pessoal de cada um dos dois cônjuges prevalece sobre a decisão tomada coletivamente no privado gregário pelos dirigentes das famílias. O florescimento da autobiografia, no começo do século XII, é um outro sintoma; por certo, um Abelardo, um Guibert de Nogent imitam modelos da Antiguidade; mas essas obras literárias afirmam com brilho a autonomia da pessoa, senhora de suas próprias lembranças, como o é de seu próprio pecúlio. O eu reivindica uma identidade no seio do grupo, o direito de deter um segredo, distinto do segredo coletivo. Não é indiferente que os heróis do embate espiritual, os santos, tenham sido muitas vezes celebrados por sua habilidade em dissimular sua intenção, esquivando assim as pressões hostis de seu círculo: a mentira como proteção de um privado mais íntimo, a mentira de são Simão subtraindo à vista de seus familiares o cilício oculto sob sua couraça, a mentira de santa Hildegonde mascarando sua feminilidade sob o hábito cisterciense.

Essa evolução coincide exatamente com a dissociação progressiva das grandes “famílias”, atestada pelos textos e pela prospecção arqueológica, com o arranjo de emprego para os cavaleiros domésticos, a dissolução das comunidades de cônegos, isolando-se cada um em sua casa particular no interior do claustro catedral, com a multiplicação dos casamentos de caçulas na aristocracia. Ela coincide com os progressos de uma colonização intersticial às margens das antigas regiões aldeãs. Em todas as categorias do edifício social, a tendência contínua durante a época feudal foi para a fragmentação, a dispersão, a desbastação das células da vida privada. Tal movimento, no entanto, conduzia a individualizar famílias, não pessoas. Estas permaneceram por muito tempo prisioneiras. Para apreender até o seu termo, até a liberação do indivíduo, os progressos incertos da segmentação, é preciso concentrar novamente a atenção em dois setores estreitos da sociedade. Antes do século XIV, esses progressos não são claramente visíveis senão em dois níveis, o da instituição monástica e o dos sonhos e jogos da cavalaria.

 

 

ANACORETAS

 

A regra de são Bento se apresentava como uma “pequena regra para principiantes”. Propunha a vida cenobítica a homens que não eram considerados bastante fortes ainda para as provas do anacoretismo. Mas ficava entendido que existia um grau superior de perfeição a que se chegava na solidão, ponto extremo da ruga fora do mundo carnal a que o monge era convidado, e a regra instituía as condições favoráveis aos primeiros passos na direção desse ideal. Na verdade, tratava-se menos de circunscrever espaços do que tempos que isolassem material e fisicamente a pessoa, a fim de que pudesse concentrar-se em si. Assim, pela obrigação do silêncio, experiência de retiro, de encerramento, o indivíduo rompendo as comunicações com o grupo, proposta como uma privação, mas também como projeto de uma ascensão espiritual. Sem dúvida, para esses principiantes que eram os monges beneditinos, a prova do silêncio sofria atenuações. Vivendo em comunidade, precisavam trocar mensagens, e para isso elaborara-se em Cluny uma complexa linguagem gestual. Por outro lado, a proibição de falar caía cotidianamente durante a reunião capitular e em certos dias, no claustro, após a hora da sesta; no verão, ela era retirada todos os dias depois da hora de noa e da distribuição de uma colação. Contudo, as conversações “privadas”, como diziam os costumes clunisianos, eram suspensas nos tempos fortes da penitência, durante as quaresmas, enquanto se via exaltado o grande silêncio da noite, garantia, para são Bernardo, da mais alta elevação da alma. Ademais, uma parte dos tempos de silêncio era ocupada pela leitura individual, expressamente designada como “privada”, outro exercício de recolhimento em si mesmo, diálogo místico com a Escritura, isto é, com Deus. Enfim, a regra de são Bento convidava a orações “privadas”, intensas, breves, mas frequentes.

A bem dizer, a interpretação clunisiana do propósito beneditino conduzira a reduzir os momentos de autonomia individual em proveito da salmodia, o ato coletivo em que a comunidade se reunia mais estreitamente no uníssono do cantochão gregoriano.

Entretanto, desde o começo do século XI, como resultado da descompartimentação do mundo e de uma incitação vinda das cristandades orientais, diante da concepção propriamente latina do monarquismo, a de Bento de Núrsia, uma outra concepção era proposta, gabando a solidão e concentrando o privado na pessoa. Propagado a partir da península italiana, o apelo à condução da luta contra o demônio, não mais na segurança da companhia, mas a sós, no pleno perigo, acabou por invadir o Ocidente inteiro nas últimas décadas do século XI. Tal desejo de atingir mais perfeição no deserto, no isolamento, levou Robert de Molesmes a afastar-se dos usos clunisianos. Ele fundou Citeaux. Os cistercienses pretendiam retornar à letra das prescrições de são Bento; portanto, permaneceram fiéis ao princípio da vida comunitária. Quiseram, contudo, afastar-se mais dos tumultos do mundo, protegendo-se atrás de uma barreira mais estanque, essa auréola de solidão rude cuja integridade defenderam ciosamente em torno de cada abadia; além disso, exigiram ao menos do dirigente de cada equipe que levasse mais longe o retiro individual: dando o exemplo, o abade cisterciense isolava-se no tempo do maior perigo, à noite, em uma cela; ele escalava um degrau a mais na prova, sendo seu dever velar só, nos postos avançados. Os cisterciences ativeram-se a isso. Os cartuxos foram mais longe: não escolheram apenas retirar-se em um deserto mais escarpado, viver entre os animais selvagens, na montanha, espaço simbólico da ascensão espiritual; sua regra limitou para todos a vida comum a períodos muito curtos, alguns exercícios litúrgicos, algumas refeições festivas; fora desses episódios, cada religioso encerrado no silêncio de sua própria cabana devia orar e trabalhar como verdadeiro monge, isto é, sozinho.

A cartuxa representa a forma menos anárquica de uma aspiração à solidão, cuja vaga de assalto, nos anos que se seguiram à conversão de são Bruno, foi fulgurante: por toda parte, mais numerosos talvez no Oeste da França, eremitas partiram para o retiro nas extensões selvagens. Triunfando sobre todos os obstáculos, superando as reticências episcopais, o propósito eremítico teve tal sucesso que se infiltrou no próprio cenobitismo.

Muito expressiva com relação a isso é a atitude de Cluny, onde era muito firme a reserva no que diz respeito ao individualismo (Guillaume de Volpiano a denunciara como uma forma de orgulho: “o orgulho”, dizia ele, “nasceu quando alguém disse que se manteria secreto e não se dignaria ver ou visitar seus irmãos”): no segundo quartel do século XII, um lugar foi ali institucionalmente arranjado para experiências limitadas de anacoretismo. Os mais avançados dos monges foram autorizados a estabelecer-se por um tempo em cabanas no meio dos bosques, à distância da abadia; o próprio abade Pierre, o Venerável, gostava de retirar-se por determinados períodos. Isolamento, portanto, mas escrupulosamente dosado na medida da força respectiva de cada um desses atletas da redenção, pois permanecia a inquietude. São Bernardo a exprimia, dirigindo-se, é verdade, a um ser mais frágil, uma religiosa, uma mulher: “O deserto, a sombra da floresta e a solidão dos silêncios oferecem em abundância a oportunidade de fazer o mal [...], o Tentador se aproxima em segurança”. E para Elisabeth de Schonau: “Alguns amam a solidão menos pela esperança de uma colheita de boas obras que pela liberdade de sua própria vontade”. Com efeito, onde determinar o limite entre o propósito dos eremitas tentados pela independência, como Adão, tomados pelo mesmo orgulho, e o desses contestadores resolutos que eram ditos heréticos, também eles fugindo para o deserto, levados pela esperança de um contato mais estreito, mais pessoal, com o Espírito?

 

 

CAVALEIROS ERRANTES

 

No último terço do século XII, nas narrativas oferecidas ao divertimento cavalheiresco e cuja oficina mais fecunda se situa então no Noroeste da França, o eremita desempenha um papel de primeiro plano, e por duas razões principais: porque a floresta é um dos dois lugares maiores da ação romanesca, o das provas da aventura, e o eremita tinha naturalmente, nessa época e nessa região, seu lugar em um cenário silvestre; e porque, sobretudo, as canções, os romances eram compostos para oferecer uma compensação onírica às frustrações que amadureciam no seio do privado feudal, do qual se sabe a que ponto comprimia as aspirações à liberdade da pessoa. Essas obras põem em cena no imaginário aquilo de que, na realidade, os homens jovens que constituíam a parte mais receptiva do auditório estavam privados, exaltando o desabrochar do indivíduo e celebrando sua liberação em relação a todas as coerções. Coerções da moral religiosa, e ali está o eremita, só, incontrolado, portador de um cristianismo pleno de indulgência e, sobretudo, subtraído à constrição dos rituais. Coerções da promiscuidade doméstica, e ali está o cavaleiro errante, solitário, levado só por seu desejo. Essa literatura informa portanto, em primeiro lugar, sobre aquilo que ela renega e propõe esquivar; mostra em negativo os poderes de sufocação do gregarismo doméstico. Mas o historiador não pode duvidar de que tenha aguçado a necessidade de intimidade, de que tenha ajudado a saciá-la ao apontar as fissuras pelas quais o indivíduo podia evadir-se, convidando cada um a seguir o exemplo de seus heróis. O historiador deve também considerar que, para ser cativante, a intriga romanesca não podia desprender-se totalmente da realidade, por conseguinte, que o ideal que ela alimentava não era inteiramente inacessível. Incontestavelmente, a sociedade cortês, como a sociedade monástica, atribuía cada vez mais valor à experiência individual e conferia-lhe os meios de se desenvolver.

Cumprindo uma função pedagógica, a literatura cavalheiresca apelava à superação de si mesmo, propunha o itinerário de uma formação progressiva pela travessia de uma sequência de tribulações, progredindo a pessoa, por etapas, até a plenitude. Em paralelo com a mística cisterciense ou cartusiana, ela convidava o indivíduo a provar-se sozinho, passo a passo, no silêncio. A figura exemplar que ela projetava na frente da cena era então a do cavaleiro em marcha, longe dos outros, no deserto selvagem, lugar do perigo, afrontando sozinho a mulher inquietante, a fada. Contudo, longe dos olhares, quem então ia julgá-lo, apreciar seu valor, conceder-lhe o prêmio? É por isso que a ação romanesca se desenvolve em cenas sucessivas diante de dois cenários opostos, um solitário, o outro superpovoado: a floresta, a corte. A literatura que utilizo é dita muito justamente cortês; ela expõe com predileção o silvestre, mas o mostra como um avesso, o contravalor do mundo real. Na realidade, a corte era o lugar dessa pedagogia da qual os romances constituíam um dos instrumentos, e o da promoção cavalheiresca; ali, sob o olhar do mestre, tratava-se de sobrepujar concorrentes; os cavaleiros viviam em comunidades privadas tão fechadas quanto as clunisianas, mas onde, para os caçulas que não podiam esperar herança, toda a dinâmica social se fundava na distinção. O que a literatura de evasão evoca por meio da imagem da floresta são os procedimentos de seleção pelos quais, no interior do grupo, alguns chegavam a distinguir-se. Destacando-se do rebanho em que estavam perdidos, indistintos, afirmando sua própria valentia por uma proeza individual assim como os heróis da santidade que a iconografia dos santuários dotava no mesmo momento de um rosto personalizado, eles haviam, vitoriosos, mas de uma vitória pública, notória, exibido sua façanha singular e colhido sozinhos a recompensa, também ela singular.

Proezas de armas, mas também proezas de amor. Convém avançar do lado do amor para alcançar aquilo que corresponde, na sociedade cavalheiresca, a esses alojamentos florestais onde certos monges clunisianos, em meados do século XII, faziam retiro longe da fraternidade, para chegar até o mais íntimo, ao espaço do privado pessoal conquistado sobre o território do privado coletivo. Na biografia que escreveu sobre Robert, o Piedoso, no começo do século XI, o monge Helgaud relata uma anedota, na qual Hugo Capeto lança de passagem seu manto sobre um casal que fornicava entre duas portas de seu palácio: o mais privado de todos, o ato sexual, escandaloso se não era noturno, devia, com efeito, necessariamente escapar aos olhares, dissimular-se na obscuridade, no encerramento. Refiro-me, porque as informações, nesse ponto, são raríssimas, aos depoimentos que fez diante do inquisidor a dama de Montaillou, Béatrice de Planissoles. Ela confessa ter sido violada, durante a vida de seu primeiro marido, de dia, mas em seu quarto, ao abrigo do tabique; que, viúva e livre em seu castelo, seu mordomo, uma tarde, ao cair da noite, a esperava, escondido sob a cama e, apagadas as lareiras, introduziu-se em seu leito furtivamente, enquanto ela punha ordem na casa, que ela gritou, chamando as criadas que “dormiam perto dela, em outras camas, em seu quarto” (nas trevas, a promiscuidade, como se vê, não era um obstáculo); que, casada de novo, cedeu a um padre, de dia, mas na adega, ficando uma criada na espreita; que, novamente viúva, atraiu para sua casa um outro padre, entregou-se a ele na entrada, perto da porta, à noite, e que, quando repetiu o ato de dia, esperou que suas filhas e suas criadas se tivessem afastado. Tal era o real da fornicação nessas casas povoadas, abertas; os amores ilícitos acomodavam-se muito bem ao gregarismo familiar, e era preciso que o amor fosse louco como o de Tristão e Isolda para que incitasse a fugir no espaço da estranheza, da desrazão.

O amor que dizemos cortês, o puro amor, tendia ao mesmo objetivo e se manifestava nos mesmos lugares. Contudo, era um jogo, de sociedade, conduzido necessariamente no meio de um grupo e cujas regras se ajustavam tão estreitamente às estruturas do privado doméstico que a busca amorosa pode ser considerada como um dos procedimentos de seleção e de promoção individual no concurso permanente de que a grande casa aristocrática era o local. Tudo se passava como se o senhor dessa casa delegasse à sua esposa, a dama, o poder de eleger o melhor, de isolar por sua escolha esse indivíduo do grupo no qual todos os membros procuravam brilhar diante de seus olhos: pelo amor cortês, sem dúvida mais do que pela competição esportiva, o desejo de autonomia pessoal foi exaltado no seio da confusão comunitária. Tanto mais que uma das primeiras regras do jogo de amor era a obrigação da discrição, do segredo. Os amantes deviam dissimular, retirar-se a dois, não para uma dessas breves conjunções sexuais de que se acaba de tratar, mas duradouramente no interior de uma clausura invisível, construindo assim, em meio à balbúrdia dos familiares, como que uma célula mais privada, refúgio para o amor constantemente ameaçado pelos invejosos. Bem jogado, o amor cortês era necessariamente criador de intimidade, obrigando ao silêncio, a comunicar-se por sinais, como em Cluny: gestos, olhares trocados, cores escolhidas, emblemas. Como os santos cavaleiros escondiam seu cilício, os amantes deviam mascarar seus sentimentos. Quando, voltando à razão, Tristão e Isolda perguntam ao eremita Ogrin como reintroduzir-se nas ordenações sociais, este lhes aconselha em primeiro lugar purificar-se pela contrição, o remorso íntimo, a resolução pessoal de resistir doravante à tentação, e depois, quando estiverem de volta à corte, dissimular, muito simplesmente: “Para a vergonha aliviar e o mal encobrir, convém um pouco mentir”. Doravante, a mentira no meio dos outros. Para aqueles que não se evadiram nas liberdades da floresta, que jogaram o jogo no palco amplamente aberto que lhe convém, na promiscuidade do quarto e da sala, a lei de amor é calar-se. André, o Capelão, o prescreve em seu tratado; “Aquele que deseja conservar seu amor por muito tempo intacto deve zelar antes de tudo para que ele não seja divulgado a ninguém, e mantê-lo oculto aos olhos de todos. Pois se várias pessoas começam a dele ter conhecimento, ele deixa imediatamente de se desenvolver naturalmente e conhece o declínio”. Do mesmo modo, “os amantes não devem de maneira nenhuma dirigir-se mutuamente sinais, salvo se estiverem seguros de estar ao abrigo de toda cilada”. Os jogos amorosos instituíram no interior da sociedade cortês as mais firmes estruturas do recolhimento, impondo aos amantes viver a dois uma solidão oculta, como se nada tivesse acontecido, no seio da família, envoltos em segredo, em uma clausura que os maldosos empenhavam-se incessantemente em forçar. Foi aí talvez, nos refinamentos da relação do masculino com o feminino e pela prova, difícil, da discrição e do silêncio, que se abriu desde o fim do século XII, na sociedade profana, o primeiro botão do que se tornará para nós a intimidade.”

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