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sábado, 3 de julho de 2021

O Capital: crítica da economia política. Livro III: o processo global da produção capitalista (Parte II), de Karl Marx

Editora: Boitempo

Edição: Friedrich Engels

ISBN: 978-85-7559-390-5

Tradução: Rubens Enderle

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 984

Sinopse: Ver Parte I


 

Enquanto tudo corre bem, a concorrência, tal como se revela no nivelamento da taxa geral de lucro, atua como uma confraria da classe capitalista, que reparte o butim coletivo comunitariamente e em proporção à grandeza da participação de cada um de seus membros. Quando já não se trata de dividir o lucro, e sim as perdas, cada um procura reduzir o máximo possível sua participação e transferi-las a outrem. As perdas são inevitáveis para a classe. Mas a parte que cabe a cada indivíduo nessas perdas, a participação de cada um no cômputo geral, torna-se uma questão de poder e astúcia, e aqui a concorrência converte-se numa luta entre irmãos inimigos. Deflagra-se, então, o antagonismo entre o interesse de cada capitalista individual e o da classe capitalista, do mesmo modo como antes se impunha praticamente a identidade desses interesses por meio da concorrência.

Como reequilibrar as partes em conflito e restabelecer as condições correspondentes ao movimento “saudável” da produção capitalista? A maneira de chegar a esse equilíbrio já está contida na simples enunciação do conflito que se trata de dirimir. Ela inclui uma inativação, até mesmo uma destruição parcial de capital, no montante de valor de todo o capital adicional ΔC ou de uma parcela dele. Ainda que, como já se depreende da exposição do conflito, a distribuição dessas perdas não se estenda de modo nenhum de maneira uniforme aos diversos capitais particulares, mas seja decidida numa luta concorrencial, distribuindo-se de forma muito desigual e diversa conforme as vantagens particulares ou as posições já conquistadas, de modo que um capital se vê inativado, outro destruído, um terceiro experimenta apenas uma perda relativa ou sofre apenas uma desvalorização transitória etc.

Sob qualquer circunstância, o equilíbrio se estabeleceria por inativação e, em maior ou menor medida, mesmo por aniquilação de capital. Isso se estenderia, em parte, à substância material do capital; isto é, uma parte dos meios de produção, capital fixo e circulante, não funcionaria, não atuaria como capital; uma parte dos empreendimentos produtivos iniciados ficaria paralisada. Ainda que, sob esse aspecto, o tempo ataque e deteriore todos os meios de produção (com exceção do solo), teríamos aqui, em decorrência da paralisação das funções, uma destruição real muito mais intensa de meios de produção. No entanto, o efeito principal, sob esse aspecto, seria o de que esses meios de produção deixariam de atuar como tais; uma destruição mais breve ou mais prolongada de sua função como meios de produção.

A destruição principal, com o caráter mais agudo, teria lugar com relação ao capital e, na medida em que este possui atributo de valor, com relação aos valores de capital. A parte do valor de capital que só se encontra na forma de indicações de futuras participações no mais-valor, no lucro – de fato, como meros títulos de dívida sobre a produção sob diversas formas –, é imediatamente desvalorizada com a diminuição das entradas sobre as quais está calculada. Uma parte do ouro e da prata cunhados encontra-se inativa, não funciona como capital. Uma parte das mercadorias que se encontram no mercado só pode completar seu processo de circulação e reprodução por meio de uma enorme contração de seus preços, isto é, da desvalorização do capital que essa parte representa. Também os elementos do capital resultam mais ou menos desvalorizados. A isso se acrescenta que determinadas relações pressupostas de preços condicionam o processo de reprodução e que, em virtude disso, esse processo, devido à baixa geral dos preços, entra num estado de paralisação e desequilíbrio. Essa perturbação e esse estancamento paralisam a função do dinheiro como meio de pagamento – função dada simultaneamente com o desenvolvimento do capital e baseada naquelas relações pressupostas de preços –, interrompem em inúmeros pontos a cadeia das obrigações de pagamento em determinados prazos e são intensificados pelo conseguinte colapso do sistema de crédito desenvolvido simultaneamente ao capital, o que conduz a violentas e agudas crises, a súbitas desvalorizações forçadas, a um estancamento e uma perturbação reais do processo de reprodução e, com isso, a uma redução efetiva da reprodução.

Ao mesmo tempo, porém, outros agentes teriam entrado em jogo. A paralisação da produção teria inativado uma parte da classe trabalhadora e, com isso, colocado a parte ocupada numa situação em que ela teria de tolerar uma queda do salário, mesmo que abaixo da média; uma operação cujo efeito, para o capital, é exatamente o mesmo que se obteria se, mantendo-se o salário médio, o mais-valor relativo ou absoluto tivesse sido aumentado. (...)

Por outro lado, a queda de preços e a luta concorrencial teriam estimulado todo capitalista a reduzir o valor individual de seu produto total abaixo de seu valor geral mediante o emprego de novas máquinas, de novos métodos aperfeiçoados de trabalho, de novas combinações, isto é, a incrementar a força produtiva de dada quantidade de trabalho, diminuir a relação entre o capital variável e o constante e, com isso, liberar trabalhadores; em suma, a criar uma superpopulação artificial. Além disso, a desvalorização dos elementos do capital constante seria ela mesma um elemento a implicar a elevação da taxa de lucro. A massa do capital constante empregado teria aumentado em relação à massa do capital variável, mas o valor daquela massa poderia ter diminuído. A paralisação verificada na produção teria preparado uma ulterior ampliação desta última, dentro dos limites capitalistas.

E assim se percorreria novamente o círculo. Uma parte do capital, desvalorizada pela paralisação de suas funções, recuperaria seu antigo valor. Além disso, o mesmo círculo vicioso seria outra vez percorrido com condições de produção ampliadas, um mercado expandido e uma força produtiva aumentada.

Porém, mesmo sob o pressuposto extremo do qual partimos, a superprodução absoluta de capital não é uma superprodução absoluta em geral, uma superprodução absoluta de meios de produção. É uma superprodução de meios de produção somente na medida em que eles funcionam como capital e, por conseguinte, devem implicar – em proporção a seu valor, que aumenta ao aumentar sua massa – uma valorização desse valor, isto é, devem gerar um valor adicional.

Apesar disso, ela seria superprodução, porque o capital seria incapaz de explorar o trabalho num grau de exploração condicionado pelo desenvolvimento “saudável”, “normal”, do processo de produção capitalista, num grau de exploração que aumenta pelo menos a massa de lucro ao aumentar a massa do capital empregado, isto é, que exclui o fato de que a taxa de lucro decresce na mesma medida em que cresce o capital ou mesmo que a taxa de lucro decresce mais rapidamente do que cresce o capital.

A superprodução de capital não significa outra coisa senão a superprodução de meios de produção – meios de trabalho e de subsistência – que podem atuar como capital, isto é, que podem ser empregados para a exploração do trabalho em dado grau de exploração, uma vez que a queda desse grau de exploração abaixo de certo ponto provoca perturbações e paralisações do processo de produção capitalista, crises e destruição de capital. Não constitui uma contradição o fato de essa superprodução de capital ser acompanhada de uma superpopulação relativa maior ou menor. As mesmas circunstâncias que elevaram a força produtiva do trabalho aumentaram a massa dos produtos-mercadorias, expandiram os mercados, aceleraram a acumulação do capital, em relação tanto a sua massa como a seu valor, e rebaixaram a taxa de lucro; essas mesmas circunstâncias geraram e geram constantemente uma superpopulação relativa, uma superpopulação de trabalhadores que o capital excedente deixa de empregar em virtude do baixo grau de exploração do trabalho, único grau em que ela poderia ser empregada, ao menos em virtude da baixa taxa de lucro que ela proporcionaria como grau dado de exploração.

Se capital é mandado para o exterior, isso não ocorre por ser impossível ocupá-lo no interior, mas porque no exterior pode-se investi-lo com uma taxa de lucro mais alta. Mas esse é um capital absolutamente excedente para a população trabalhadora ocupada e para o país em geral. Ele existe como tal junto à população relativamente excedente, e isso é um exemplo de como ambos coexistem e se condicionam de maneira recíproca.

Por outro lado, a queda da taxa de lucro, vinculada à acumulação, provoca necessariamente uma luta concorrencial. A compensação da queda da taxa de lucro mediante o aumento da massa do lucro vale apenas para o capital total da sociedade e para os grandes capitalistas já consolidados. O novo capital adicional, de funcionamento autônomo, não encontra dada nenhuma dessas condições compensatórias; deve lutar por conquistá-las e, desse modo, a queda na taxa de lucro suscita a luta concorrencial entre os capitais, e não o inverso. No entanto, essa luta concorrencial é acompanhada de um aumento transitório dos salários e, como consequência desse aumento, de uma diminuição temporária da taxa de lucro. O mesmo se manifesta na superprodução de mercadorias, no abarrotamento dos mercados. Como o fim do capital não é a satisfação das necessidades, mas a produção de lucro, e como ele só alcança esse objetivo em virtude de métodos que regulam o volume da produção com relação à escala da produção, e não o inverso, deve produzir-se constantemente uma cisão entre as dimensões restritas do consumo sobre a base capitalista e uma produção que tende constantemente a superar essa barreira que lhe é imanente. Além disso, o capital se compõe de mercadorias, razão pela qual a superprodução de capital implica a superprodução de mercadorias. Daí o curioso fenômeno de os mesmos economistas que negam a superprodução de mercadorias admitirem a de capital. Quando se diz que nos diversos ramos da produção não ocorre uma superprodução geral, mas uma desproporção, isso significa apenas que, no interior da produção capitalista, a proporcionalidade entre os diversos ramos da produção se estabelece como um processo constante a partir da desproporcionalidade, na medida em que aqui a relação da produção total se impõe aos agentes da produção como uma lei cega, e não como uma lei compreendida e, portanto, dominada por sua inteligência associada, que submeta o processo de produção a seu controle coletivo. Além disso, exige-se que países onde o modo de produção capitalista não está desenvolvido consumam e produzam numa medida adequada aos países do modo de produção capitalista. Quando se diz que a superprodução é relativa, isso é totalmente correto; mas o modo de produção capitalista inteiro é apenas um modo de produção relativo, cujos limites não são absolutos, mas que o são para ele, sobre sua base. De outro modo, como poderia faltar a demanda das mesmas mercadorias das quais carece a massa do povo e como seria possível buscar essa demanda no exterior, em mercados mais distantes, para poder pagar aos trabalhadores do próprio país a média dos meios de subsistência? Porque é somente nesse contexto específico, capitalista, que o produto excedente assume uma forma em que seu possuidor só pode colocá-lo à disposição do consumo enquanto esse produto se reconverter para ele em capital. Por fim, ao se afirmar que os capitalistas têm apenas de intercambiar entre si suas mercadorias e consumi-las, esquece-se de todo o caráter da produção capitalista e também de que se trata da valorização do capital, não de seu consumo. Em suma, todas as objeções contra os fenômenos palpáveis da superprodução (fenômenos que não se preocupam com tais objeções) tendem a indicar que os limites da produção capitalista não são limites da produção em geral e que, por isso, tampouco são limites desse modo específico de produção, o capitalista. Mas a contradição desse modo de produção capitalista consiste precisamente em sua tendência ao desenvolvimento absoluto das forças produtivas, em permanente conflito com as condições específicas de produção em que o capital se move e tem necessariamente de se mover.

Não se produzem demasiados meios de subsistência em proporção à população existente. Pelo contrário. Produzem-se muito poucos para satisfazer a massa da população de maneira digna e humana.

Não se produzem demasiados meios de produção para ocupar a parte da população capaz de trabalhar. Pelo contrário. Em primeiro lugar, produz-se uma parte excessivamente grande da população que, na realidade, não se encontra em condições de trabalhar e que, pelas circunstâncias, depende da exploração do trabalho alheio ou de atividades que só se podem considerar como trabalho dentro de um modo miserável de produção. Em segundo lugar, não se produzem meios de produção suficientes para que toda a população em condições de trabalhar possa fazê-lo sob as condições mais produtivas, isto é, para que seu tempo absoluto de trabalho seja abreviado pela massa e pela eficácia do capital constante que se emprega durante esse tempo de trabalho.

O que ocorre é que se produzem periodicamente meios de trabalho e meios de subsistência numa quantidade excessiva para ser empregados como meios de exploração dos trabalhadores a uma taxa de lucro determinada. Produzem-se demasiadas mercadorias para realizar o valor e o mais-valor nelas contidos sob as condições de distribuição e consumo dadas pela produção capitalista e reconvertê-los em novo capital, isto é, para efetuar esse processo sem explosões sempre recorrentes.

Não é que se produza demasiada riqueza. O que ocorre é que se produz periodicamente demasiada riqueza sob suas formas capitalistas antagônicas.

O limite do modo de produção capitalista se manifesta:

1.      No fato de que o desenvolvimento da força produtiva do trabalho gera, com a queda da taxa de lucro, uma lei que, em certo ponto, opõe-se do modo mais hostil ao desenvolvimento dessa força produtiva e que, por isso, tem de ser constantemente superada por meio de crises.

2.     No fato de que é a apropriação de trabalho não pago e a proporção entre este último e o trabalho objetivado em geral – dito em termos capitalistas, o lucro e sua proporção entre esse lucro e o capital empregado, ou seja, certo nível da taxa de lucro – que decidem se a produção deve ser expandida ou restringida, e não a relação entre a produção e as necessidades sociais, as necessidades de seres humanos socialmente desenvolvidos. Por isso, a produção, ao atingir determinado grau de expansão, encontra limitações que, sob outros pressupostos, seriam absolutamente insuficientes. Ela fica paralisada não no ponto em que isso se impõe pela satisfação das necessidades, mas naquele em que isso é exigido pela produção e pela realização de lucros.

Se a taxa de lucro diminui, vemos que, de um lado, o capital é tensionado para que o capitalista individual possa comprimir o valor individual de suas distintas mercadorias abaixo de seu valor social médio mediante a utilização de melhores métodos etc. e, desse modo, com um preço de mercado dado, obter um lucro extra; de outro lado, há um movimento de especulação e um estímulo geral à especulação, mediante apaixonados ensaios de novos métodos de produção, novos investimentos de capital e novas aventuras para garantir um lucro extra que seja independente da média geral e se eleva acima dessa média.

A taxa de lucro, isto é, o incremento proporcional de capital, é especialmente importante para todas as novas ramificações do capital que se agrupam de maneira autônoma. Tão logo a formação de capital caísse exclusivamente nas mãos de uns poucos grandes capitais já estruturados, para os quais a massa do lucro compensa a taxa deste último, o fogo que anima a produção se extinguiria por completo. A produção adormeceria. A taxa de lucro é a força motriz na produção capitalista, na qual só se produz aquilo que se pode produzir com lucro e na medida em que se possa produzi-lo com lucro. Daí o medo dos economistas ingleses diante da diminuição da taxa de lucro. O fato de que a mera possibilidade de tal diminuição inquiete Ricardo demonstra precisamente sua profunda compreensão das condições da produção capitalista. Aquilo que nele se reprova, a saber, o fato de que, ao tratar da produção capitalista, ele não se preocupa com os “seres humanos” e leva em conta apenas o desenvolvimento das forças produtivas – não se importando com o custo desse desenvolvimento em termos de sacrifícios de seres humanos e de valores de capital –, é justamente o que esse autor tem de importante. O desenvolvimento das forças produtivas do trabalho social é a missão histórica e a justificação do capital. É precisamente com esse desenvolvimento que o capital cria inconscientemente as condições materiais para uma forma superior de produção. O que inquieta Ricardo é que a taxa de lucro, estímulo da produção capitalista, condição e força motriz da acumulação, seja posta em perigo pelo próprio desenvolvimento da produção. Aqui, a proporção quantitativa é o essencial. Na realidade, isso se baseia em algo mais profundo, que Ricardo mal vislumbra. Aqui se mostra de maneira puramente econômica, isto é, do ponto de vista burguês, dentro dos limites do entendimento capitalista, do ponto de vista da própria produção capitalista, sua limitação, sua relatividade, o fato de não ser um modo de produção absoluto, mas apenas um modo de produção histórico, correspondente a certa época de desenvolvimento limitado das condições materiais de produção.”

 

 

“{O valor da mercadoria está determinado pelo tempo total de trabalho, pretérito e vivo, que é nela incorporado. O incremento da produtividade do trabalho consiste precisamente em diminuir a parte do trabalho vivo e aumentar a do trabalho pretérito, mas de tal modo que diminua a soma total do trabalho contido na mercadoria, isto é, de modo que o trabalho vivo diminua mais do que aumenta o trabalho pretérito. O trabalho pretérito contido no valor de uma mercadoria – a parcela do capital constante – consiste, em parte, no desgaste do capital constante fixo e, em parte, no capital constante circulante, incorporado por completo na mercadoria sob a forma de matérias-primas e materiais auxiliares. A parcela de valor proveniente das matérias-primas e dos materiais auxiliares tem de sofrer uma redução com [o aumento d]a produtividade do trabalho, uma vez que, no que diz respeito a esses materiais, essa produtividade revela-se precisamente no decréscimo do valor destes últimos. Em contrapartida, o que caracteriza o aumento da força produtiva do trabalho é justamente o fato de que a parte fixa do capital constante experimenta um forte aumento – o mesmo ocorre com a parcela de valor desse capital constante que se transfere às mercadorias por meio do desgaste. Ora, para que um novo método de produção possa significar um aumento real da produtividade, a parcela adicional de valor que ele transfere à mercadoria individual por meio do desgaste de capital fixo tem de ser menor que a parcela de valor que se economiza em consequên­cia da diminuição de trabalho vivo; em outras palavras, ele tem de reduzir o valor da mercadoria. E tem de fazê-lo, evidentemente, ainda que – como ocorre em alguns casos – entre na formação de valor da mercadoria, além da parte adicional de desgaste do capital fixo, uma parcela adicional de valor relativa ao aumento ou encarecimento das matérias-primas ou dos materiais auxiliares. Todos esses acréscimos de valor precisam ser mais do que compensados pelo decréscimo de valor resultante da redução do trabalho vivo.

Desse modo, a redução da quantidade total de trabalho que entra na mercadoria parece ser a marca essencial do aumento da força produtiva do trabalho, sejam quais forem as condições sociais sob as quais essa redução se produz. Numa sociedade em que os produtores regulassem sua produção segundo um plano traçado de antemão, nele incluída até mesmo a produção simples de mercadorias, a produtividade do trabalho também seria medida incondicionalmente segundo esse padrão. Mas o que ocorre na produção capitalista?”

 

 

Um desenvolvimento das forças produtivas que reduzisse o número absoluto dos trabalhadores, isto é, que, de fato, capacitasse a nação inteira a efetuar sua produção total num intervalo de tempo menor, provocaria uma revolução, pois deixaria fora de atividade a maior parte da população. Nisso se manifesta, uma vez mais, a limitação específica da produção capitalista e o fato de que ela não é de modo nenhum uma forma absoluta para o desenvolvimento das forças produtivas e a geração de riqueza, mas uma forma que, ao contrário, tão logo atinge certo ponto, entra em colisão com esse desenvolvimento. Essa colisão se manifesta parcialmente em crises periódicas, que decorrem do fato de tornar-se supérflua, ora esta parte da população trabalhadora, ora aquela, em seu antigo modo de ocupação. A limitação da produção capitalista é o tempo excedente dos trabalhadores. O tempo excedente absoluto que a sociedade ganha não lhe importa de modo nenhum. O desenvolvimento da força produtiva só é importante para ela na medida em que aumenta o tempo de mais-trabalho da classe trabalhadora, e não na medida em que reduz em geral o tempo de trabalho para a produção material; a produção capitalista se move, assim, no interior de uma antítese.

Vimos que a crescente acumulação do capital implica uma crescente concentração deste último. Assim cresce o poder do capital, a autonomização das condições sociais da produção, personificadas no capitalista em face dos produtores reais. O capital se mostra cada vez mais como um poder social, cujo funcionário é o capitalista, e que já não guarda nenhuma relação com o que o trabalho de um indivíduo isolado possa criar – mas se apresenta como um poder social estranhado, autonomizado, que se opõe à sociedade como uma coisa, e como poder do capitalista através dessa coisa. A contradição entre o poder social geral em que se converte o capital e o poder privado dos capitalistas individuais sobre essas condições sociais de produção desenvolve-se de maneira cada vez mais gritante e implica a dissolução dessa relação, na medida em que implica ao mesmo tempo a transformação das condições de produção em gerais, coletivas, sociais. Essa transformação está dada pelo desenvolvimento das forças produtivas sob a produção capitalista e pela maneira como se opera esse desenvolvimento.”

 

 

O capital comercial não é senão aquele que atua dentro da esfera da circulação. O processo de circulação constitui uma fase do processo global da reprodução. Mas no processo da circulação não se produz nenhum valor, por conseguinte, tampouco mais-valor. Nele ocorrem apenas alterações de forma da mesma massa de valor. Com efeito, nele não ocorre mais do que a metamorfose das mercadorias, que, como tal, não guarda qualquer relação com a criação ou a modificação de valor. Se na venda da mercadoria produzida se realiza um mais-valor, é porque esse mais-valor já existia nessa mercadoria; no segundo ato, portanto, em que se volta a intercambiar o capital monetário por mercadoria (elementos de produção), tampouco o comprador realiza um mais-valor; esse ato não faz mais do que iniciar a produção de mais-valor mediante o intercâmbio de dinheiro por meios de produção e força de trabalho. Pelo contrário, na medida em que essas metamorfoses consomem tempo de circulação – tempo no qual o capital não produz absolutamente nada, tampouco mais-valor –, o que esse tempo faz é limitar a criação de valor, e o mais-valor, enquanto taxa de lucro, se expressa precisamente na proporção inversa da duração do tempo de circulação. Por conseguinte, o capital comercial não cria valor nem mais-valor, não diretamente. Na medida em que contribui para a abreviação do tempo de circulação, ele pode ajudar indiretamente a aumentar o mais-valor produzido pelo capitalista industrial. Na medida em que ajuda a expandir o mercado e em que medeia a divisão do trabalho entre os capitais, isto é, em que capacita o capital a trabalhar em maior escala, sua função promove a produtividade do capital industrial e sua acumulação. Na medida em que abrevia o tempo de curso, ele eleva a proporção entre o mais-valor e o capital adiantado, isto é, a taxa de lucro. Na medida em que coloca na esfera da circulação uma parte menor do capital como capital monetário, ele aumenta a parte do capital diretamente investida na produção.”

 

 

Está claro, então, que o lucro do capitalista industrial equivale ao excedente do preço de produção da mercadoria acima de seu preço de custo e que, diferentemente desse lucro industrial, o lucro comercial equivale ao excedente do preço de venda acima do preço de produção da mercadoria, o que constitui seu preço de compra para o comerciante; que, no entanto, o preço real da mercadoria é = seu preço de produção + o lucro mercantil (comercial). Assim como o capital industrial só realiza lucro que já está incorporado como mais-valor no valor da mercadoria, o capital comercial o realiza tão somente porque o mais-valor ou o lucro no preço da mercadoria realizado pelo capitalista industrial ainda não está realizado no mais-valor ou no lucro em sua totalidade[39]. O preço de venda do comerciante não é, portanto, superior ao preço de compra porque está acima do valor total, mas sim porque se encontra abaixo dele.

Por conseguinte, o capital comercial entra na equalização de mais-valor para formar o lucro médio, apesar de não entrar na produção desse mais-valor. Daí que a taxa geral de lucro já contenha a dedução do mais-valor correspondente ao capital comercial, ou seja, uma dedução do lucro do capital industrial.”

[39] John Bellers.

 

 

As rotações do capital comercial são mais longas ou mais breves; seu número anual é, portanto, maior ou menor em diferentes ramos comerciais. Dentro do mesmo ramo, a rotação é mais rápida ou mais lenta em diversas fases do ciclo econômico. No entanto, verifica-se um número médio de rotações, o qual é encontrado por meio da experiência.

Vimos anteriormente que a rotação do capital comercial é distinta daquela do capital industrial. Isso decorre da natureza da coisa: uma fase isolada na rotação do capital industrial aparece como a rotação completa de um capital comercial próprio ou como parte dela. Além disso, ela também se relaciona de maneira diferente com a determinação do lucro e do preço.

No caso do capital industrial, a rotação expressa, por um lado, a periodicidade da reprodução, e disso depende, portanto, a massa de mercadorias que se lançam no mercado num período determinado. Por outro lado, o tempo de circulação constitui um limite, certamente elástico, que, ao influir no volume do processo de produção, influi também de maneira mais ou menos restritiva na formação do valor e do mais-valor. Por isso, a rotação entra de maneira decisiva, não como elemento positivo, mas restritivo, na massa do mais-valor anualmente produzido e, portanto, na formação da taxa geral de lucro. Em contrapartida, a taxa média de lucro constitui uma grandeza dada para o capital comercial. Este não contribui diretamente para a criação do lucro ou do mais-valor e só exerce uma influência determinante na formação da taxa geral de lucro na medida em que, de acordo com sua participação no capital total, ele extrai seus dividendos da massa do lucro produzido pelo capital industrial.”

 

 

Se – como o leitor terá descoberto, para seu desapontamento – a análise das conexões internas e efetivas do processo de produção capitalista é uma questão muito intricada e um trabalho extremamente minucioso e se compete à ciência reduzir o movimento visível, meramente aparente, ao movimento real interno, é evidente que na mente dos agentes da produção e da circulação capitalistas terão necessariamente de se formar ideias sobre as leis da produção que divirjam inteiramente dessas leis e que sejam apenas a expressão consciente do movimento aparente. As ideias de um comerciante, de um especulador da Bolsa ou de um banqueiro são necessariamente falsas por completo. As dos fabricantes foram falseadas pelos atos de circulação, aos quais está submetido seu capital, e pelo nivelamento da taxa geral de lucro[41]. Na mente desses indivíduos, a concorrência também assume necessariamente um papel equivocado por completo. Se os limites do valor e do mais-valor estão dados, é fácil vislumbrar como a concorrência dos capitais transforma valores em preços de produção e, mais ainda, em preços comerciais, e o mais-valor em lucro médio. Sem esses limites, porém, é absolutamente impossível vislumbrar por que a concorrência reduz a taxa geral de lucro a esse limite, em vez de àquele outro – a 15%, em vez de a 1.500%. No máximo, ela pode reduzi-la a certo nível. Mas nela não há absolutamente nenhum elemento que permita determinar esse nível.”

[41] Uma afirmação muito ingênua, mas ao mesmo tempo bastante exata: “Sem dúvida, também o fato de que a mesma mercadoria possa ser obtida de diferentes vendedores a preços bastante divergentes se deve muito frequentemente a um cálculo incorreto” ([Friedrich Ernst] Feller e [Carl Gustav] Odermann, Das Ganze der kaufmännischen Arithmetik, [7. ed., Leipzig, O. A. Schulz,], 1859) [p. 451]. O que demonstra até que ponto a determinação dos preços é algo puramente teórico, abstrato.

 

 

Em seus primórdios, o capital comercial é meramente o movimento mediador entre extremos que ele não domina e entre pressupostos que ele não cria.

Assim como o dinheiro surge da mera forma da circulação de mercadorias – M-D-M – não só como medida do valor e meio de circulação, mas como forma absoluta da mercadoria e, com isso, da riqueza, como tesouro, de tal maneira que sua conservação e seu crescimento como dinheiro se transformam num fim em si mesmo, assim também o dinheiro, o tesouro, surge da mera forma de circulação do capital comercial – D-M-D’ – como algo que se conserva e se multiplica por mera alienação.

Os povos comerciantes da Antiguidade existiam nos intermúndios, como os deuses de Epicuro* ou, seria possível dizer ainda, como os judeus nos poros da sociedade polonesa. O comércio das primeiras cidades e dos povos comerciais independentes e altamente desenvolvidos se baseava, como puro comércio de transporte de mercadorias, na barbárie dos povos produtores, entre os quais atuavam como intermediários.

Nos estágios iniciais da sociedade capitalista, o comércio domina a indústria; na sociedade moderna, ocorre o inverso. Naturalmente, o comércio exercerá um efeito retroativo maior ou menor sobre as comunidades entre as quais ele se desenvolve e submeterá cada vez mais a produção ao valor de troca, fazendo com que os desfrutes e a subsistência dependam mais da venda que do uso direto do produto. Desse modo, ele dissolve as antigas relações e incrementa a circulação monetária. Ele não se limita mais a apoderar-se do excedente da produção, mas devora paulatinamente a própria produção, fazendo com que ramos inteiros desta última passem a estar sujeitos a ele. No entanto, esse efeito dissolvente depende muito da natureza da comunidade produtora.

Por todo o tempo em que o capital comercial medeia a troca de produtos de comunidades não desenvolvidas, o lucro comercial não só aparece como logro e vantagem abusiva, mas, em grande parte, resulta realmente destes últimos. Além de explorar a diferença entre os preços de produção de diferentes países (contribuindo, assim, para nivelar e fixar os valores das mercadorias), aqueles modos de produção contam com o fato de que o capital comercial se apropria de uma parte predominante do mais-produto, por um lado, como intermediário entre comunidades cuja produção ainda se encontra fundamentalmente orientada para o valor de uso e para cuja organização econômica a venda da parte do produto que entra realmente na circulação – isto é, em geral, a venda dos produtos por seu valor – tem uma importância secundária; por outro lado, pelo fato de que naqueles modos de produção mais antigos os principais possuidores do mais-produto, com os quais o comerciante negocia – o proprietário de escravos, o senhor feudal e o Estado (por exemplo, o déspota oriental) –, representam a riqueza fruitiva que o comerciante busca abocanhar, como já pressentira corretamente Adam Smith com relação à época feudal, na passagem citada. Portanto, onde quer que o capital comercial exerça um poder preponderante, ele constitui um sistema de saqueio[48], do mesmo modo que seu desenvolvimento nos povos comerciantes, tanto dos tempos antigos como dos mais recentes, vincula-se diretamente à pilhagem violenta, à pirataria, ao roubo de escravos e ao subjugamento nas colônias; assim foi em Cartago, em Roma e, mais tarde, entre venezianos, portugueses, holandeses etc.

A evolução do comércio e do capital comercial desenvolve por toda parte a orientação da produção para o valor de troca, aumenta seu volume, multiplica-a e cosmopolitiza-a, desenvolvendo o dinheiro em dinheiro mundial. Por isso, o comércio tem, em toda parte, uma ação mais ou menos dissolvente sobre as organizações preexistentes da produção, as quais, em todas as formas distintas, estão orientadas principalmente para o valor de uso. Em que medida ele provoca a dissolução do antigo modo de produção depende, antes de mais nada, da firmeza e da estrutura interna deste último. E onde esse processo de dissolução desembocará, isto é, que novo modo de produção ocupará o lugar do antigo, é algo que não depende do comércio, mas do caráter do próprio modo de produção antigo. No mundo antigo, o desenvolvimento do comércio e do capital comercial sempre resultou na economia escravista; dependendo do ponto de partida, seu resultado foi apenas a transformação de um sistema escravista patriarcal, voltado à produção de meios diretos de subsistência, num sistema voltado à produção de mais-valor. No mundo moderno, em contrapartida, esse desenvolvimento desemboca no modo de produção capitalista. Depreende-se daí que esses mesmos resultados foram condicionados ainda por circunstâncias totalmente distintas do que pelo desenvolvimento do capital comercial.

Reside na natureza das coisas que, tão logo a indústria urbana se separa da agrícola, seus produtos sejam, desde já, mercadorias, cuja venda requer, pois, a mediação do comércio. Nessa medida, compreende-se que o comércio se apoie no desenvolvimento urbano e que, por sua vez, este último seja condicionado pelo comércio. No entanto, saber até onde o desenvolvimento industrial mantém o mesmo ritmo do desenvolvimento do comércio é algo que depende inteiramente de outras circunstâncias. Na Roma Antiga, na época republicana tardia, o capital comercial foi desenvolvido num grau maior do que jamais havia sido em todo o mundo antigo, sem que tenha ocorrido nenhum progresso no desenvolvimento da indústria, ao passo que, em Corinto e em outras cidades gregas da Europa e da Ásia Menor, uma indústria altamente desenvolvida acompanhou o desenvolvimento do comércio. Por outro lado, inversamente ao desenvolvimento das cidades e de suas condições, o espírito comercial e o desenvolvimento do capital comercial costumam ser características de povos nômades, não sedentários.

Não resta dúvida – e precisamente esse fato gerou pontos de vista totalmente falsos – de que nos séculos XVI e XVII as grandes revoluções ocorridas no comércio graças aos descobrimentos geográficos e que incrementaram rapidamente o desenvolvimento do capital comercial constituem um fator fundamental no favorecimento da transição do modo de produção feudal para o modo de produção capitalista. A súbita expansão do mercado mundial, a diversificação das mercadorias em circulação, a disputa entre as nações europeias por apoderar-se dos produtos asiáticos e dos tesouros americanos, o sistema colonial, tudo isso contribuiu de maneira essencial para derrubar as barreiras feudais da produção. No entanto, em seu primeiro período, o da manufatura, o modo de produção moderno só se desenvolveu onde as condições para isso haviam surgido durante a Idade Média. Comparemos, por exemplo, Holanda com Portugal[49]. Se no século XVI e, em parte, ainda no século XVII, a súbita expansão do comércio e a criação de um novo mercado mundial contribuíram de maneira preponderante para o declínio do antigo modo de produção e a ascensão do modo de produção capitalista, isso ocorreu, inversamente, sobre a base do modo de produção capitalista, uma vez que este havia sido criado. O próprio mercado mundial constitui a base desse modo de produção. Por outro lado, a necessidade imanente que este último possui de produzir em escala cada vez maior gera um impulso à constante expansão do mercado mundial, de modo que, nesse caso, não é o comércio que revoluciona a indústria, mas é ela que revoluciona constantemente o comércio. Também o domínio comercial encontra-se agora vinculado ao maior ou ao menor predomínio das condições da grande indústria. Comparemos, por exemplo, Inglaterra e Holanda. A história do declínio da Holanda como nação comercial dominante é a história da subordinação do capital comercial ao capital industrial. Os obstáculos que a firmeza e a estruturação internas dos modos de produção nacionais pré-capitalistas impõem à ação dissolvente do comércio mostram-se decisivos no tráfico dos ingleses com a Índia e a China. A ampla base do modo de produção é aqui formada pela unidade da pequena agricultura e da indústria doméstica, às quais, na Índia, acrescenta-se ainda a forma das comunas aldeãs – que também na China constituíam a forma primitiva – baseadas na propriedade comum do solo. Na Índia, os ingleses também empregaram seu poder político e econômico direto, como governantes e rentistas da terra, para aniquilar essas pequenas comunidades econômicas[50]. Se aqui se pode falar em um efeito revolucionador de seu comércio sobre o modo de produção, é apenas na medida em que, por meio do baixo preço de suas mercadorias, eles aniquilam as atividades de fiação e de tecelagem, que constituem, desde tempos antiquíssimos, uma parte integrante dessa unidade da produção agrícola-industrial e, com isso, desagregam essas comunidades. Mesmo nesse caso eles só conseguem realizar esse trabalho de dissolução muito paulatinamente – em especial na China, onde não recebem o auxílio do poder político direto. A grande economia de tempo que resulta da combinação direta de agricultura e manufatura oferece aqui a mais obstinada resistência aos produtos da grande indústria, em cujo preço entram os faux frais [custos mortos] do processo de circulação que os atravessa por toda parte. Já o comércio russo, diferentemente do inglês, deixa intactos os fundamentos econômicos da produção asiática[51].

A transição do modo de produção feudal se efetua de duas maneiras. O produtor se torna mercador e capitalista, em contraposição à economia natural agrícola e ao artesanato – organizado em corporações – da indústria urbana medieval. Essa é a via de fato revolucionária. Ou, então, o mercador se apodera diretamente da produção. Ainda que esta última via funcione historicamente como transição – como é o caso, por exemplo, do clothier [comerciante têxtil] inglês do século XVII, que coloca sob seu efetivo controle os tecelões nominalmente independentes, vendendo-lhes lã e comprando tecido deles –, ela não produz, por si mesma, a alteração radical [Umwälzung] do antigo modo de produção, mas, antes, o conserva e o mantém como seu pressuposto. Assim, por exemplo, em sua maior parte, e ainda até meados deste século, o fabricante na indústria francesa da seda ou na indústria inglesa de meias e de rendas era apenas nominalmente um fabricante, pois, na realidade, ele era um simples mercador, que mantinha os tecelões trabalhando à antiga maneira fragmentária e exercia apenas o domínio do mercador, para quem, de fato, eles trabalhavam[52]. Esse sistema se apresenta em toda parte como um obstáculo ao modo de produção capitalista e desaparece com o desenvolvimento deste último. Sem revolucionar o modo de produção, ele só faz agravar a situação dos produtores diretos, convertendo-os em meros assalariados e proletários sob condições mais precárias que as dos diretamente subsumidos ao capital, e se apropria de seu mais-trabalho sobre a base do antigo modo de produção. A mesma relação subsiste, um pouco modificada, numa parte da fabricação londrina de móveis, operada de maneira artesanal. Ela é praticada especialmente nos Tower Hamlets[b], em escala muito ampla. A produção inteira está dividida em diversos ramos de atividade independentes entre si. Uma empresa faz somente cadeiras; a outra, somente mesas; a terceira, somente armários etc. Mas essas empresas, embora sejam operadas de maneira mais ou menos artesanal, por um pequeno mestre com uns poucos oficiais, produzem numa quantidade grande demais para que possam trabalhar diretamente para clientes particulares. Seus compradores são os donos de lojas de móveis. Aos sábados, o mestre vai visitá-los e vende seu produto, que tem o preço regateado tal como numa casa de penhores se regateia o valor de tal ou qual objeto. Esses mestres dependem da venda semanal para comprar a matéria-prima que será utilizada na semana seguinte e poder pagar os salários. Sob essas circunstâncias, eles são, na realidade, apenas intermediários entre o mercador e seus próprios trabalhadores. O mercador é o verdadeiro capitalista, que embolsa a maior parte do mais-valor[53]. Semelhante é o que acontece quando transitam para a manufatura aqueles ramos que até então eram operados de forma artesanal ou como ramos acessórios da indústria rural. A depender do desenvolvimento técnico que ostente essa pequena empresa autônoma – onde quer que se utilizem máquinas que permitam uma operação de tipo artesanal –, tem lugar também uma transição para a grande indústria; a máquina não é movida à mão, mas a vapor, tal como ocorre ultimamente, por exemplo, no ramo inglês de fabricação de meias.

Tem-se, assim, uma tripla transição: primeiro, o comerciante converte-se diretamente em industrial; é o que ocorre nas indústrias fundadas no comércio, em especial naquelas de artigos de luxo, os quais os mercadores importam do estrangeiro junto com as matérias-primas e os trabalhadores, como ocorria no século XV, quando se importava de Constantinopla para a Itália. Segundo, o mercador transforma os pequenos mestres em seus intermediários (middlemen) ou compra diretamente do produtor autônomo; este continua a ser nominalmente autônomo, e seu modo de produção fica inalterado. Terceiro, o industrial converte-se em mercador e produz em grande escala, diretamente para o comércio.

Na Idade Média, o mercador, como diz corretamente Poppe[c], é apenas um “contratador” [Verleger] das mercadorias produzidas, seja pelos artesãos reunidos em corporações, seja pelos camponeses. O mercador torna-se industrial ou, antes, faz com que a indústria artesanal – sobretudo a pequena indústria rural – trabalhe para ele. Por outro lado, o produtor torna-se mercador. Em vez de, por exemplo, o mestre tecelão receber lã do mercador, aos poucos e em pequenas porções, e trabalhar com seus oficiais para este último, ele mesmo compra a lã ou o fio e vende tecido ao mercador. Os elementos de produção entram no processo de produção como mercadorias compradas por ele mesmo. Em vez de produzir para o mercador individual ou para determinados clientes, agora o tecelão de pano produz para o mundo do comércio. O produtor é, ele mesmo, mercador. O capital comercial realiza apenas o processo de circulação. Originalmente, o comércio foi o pressuposto para a transformação da indústria corporativa e doméstico-rural e da agricultura feudal em empresas capitalistas. O comércio desenvolve o produto, transforma-o em mercadoria, em parte criando para ele um mercado e em parte introduzindo novos equivalentes-mercadorias [Waarenäquivalente] e agregando novas matérias-primas e materiais auxiliares à produção. Com isso, ele inaugura novos ramos de produção, fundados desde o início no comércio, tanto no que diz respeito à produção para o mercado doméstico e o mercado mundial como no que diz respeito às condições de produção que têm origem no mercado mundial. Tão logo a manufatura se fortalece de alguma maneira – e, mais ainda, a grande indústria –, ela cria um mercado para si mesma, conquista-o por meio de suas mercadorias. Agora o comércio se converte em servidor da produção industrial, para a qual a constante expansão do mercado é condição vital. Uma produção em massa, cada vez mais ampla, inunda o mercado existente e, assim, promove constantemente a expansão desse mercado, a derrubada de suas barreiras. O que limita essa produção em massa não é o comércio (na medida em que ele expressa apenas uma demanda existente), mas a grandeza do capital atuante e a força produtiva desenvolvida do trabalho. O capitalista industrial tem sempre diante de si o mercado mundial; ele confronta e tem de confrontar constantemente seus próprios preços de custo com os preços de mercado, não só aqueles praticados em seu país, mas no mundo inteiro. Na época anterior, realizar essa comparação era algo que competia quase exclusivamente aos mercadores, que assim asseguravam a supremacia do capital comercial sobre o capital industrial.

A primeira abordagem teórica do modo de produção moderno – o sistema mercantilista – teve necessariamente de partir dos fenômenos superficiais do processo da circulação, tais como se apresentam autonomizados no movimento do capital comercial. Por isso, essa abordagem só capturou a aparência, em parte pelo fato de o capital comercial ser o primeiro modo livre de existência do capital em geral, em parte devido a sua preponderância no primeiro período de revolucionamento da produção feudal, o nascimento da produção moderna. A verdadeira ciência da economia moderna só nasce quando a consideração teórica passa do processo de circulação ao processo de produção. É verdade que o capital portador de juros também constitui uma forma extremamente antiga do capital. Adiante, veremos a razão pela qual o mercantilismo não parte dessa forma, mas, ao contrário, polemiza contra ela.”

*: Segundo Epicuro, os deuses habitam os “intramundos”, isto é, os espaços que separam os diferentes mundos uns dos outros; eles não exercem qualquer influência sobre o desenvolvimento do mundo ou sobre a vida dos homens. (N. E. A. MEGA)

[48] “Da parte dos mercadores, ouve-se agora uma grande queixa contra cavaleiros ou ladrões. Reclamam de ser obrigados a comerciar em condições muito perigosas e de, além disso, ser aprisionados, golpeados, despojados e saqueados. Mas, se padecessem tudo isso por amor à justiça, os mercadores certamente seriam gente muito santa […]. Considerando-se que no mundo inteiro grandes injustiças como essas e muitos furtos e roubos anticristãos são cometidos pelos próprios mercadores, inclusive uns contra os outros, quem poderia ficar surpreso se Deus cuidasse que tais e tais bens, tendo sido obtidos com injustiça, voltassem a ser perdidos ou roubados e que, ainda por cima, seus próprios possuidores fossem golpeados nas cabeças ou aprisionados? […] Aos príncipes caberia, pelo uso da legítima violência, castigar e proibir tão injusto comércio, de modo que seus súditos não fossem tão vergonhosamente defraudados pelos mercadores. Como não o fazem, Deus necessita de cavaleiros e ladrões, que Lhe servem como diabos, por meio dos quais Ele castiga a iniquidade dos mercadores. Do mesmo modo como assola com diabos a terra do Egito e o mundo inteiro, ou o destrói com inimigos, Deus faz com que um velhaco aniquile o outro, sem que, com isso, dê a entender que os cavaleiros sejam ladrões de menor monta que os mercadores, porquanto estes roubam diariamente o mundo inteiro, enquanto um cavaleiro o faz uma ou duas vezes ao ano, assaltando uma ou duas pessoas.” “Guiai-vos pelas palavras de Isaías: teus príncipes tornaram-se companheiros dos ladrões. Enquanto mandam enforcar ladrões que roubaram um ou meio florim, os príncipes fazem negócios com aqueles que roubam o mundo inteiro, e roubam com maior segurança que todos os demais, fazendo valer o ditado: os grandes ladrões enforcam os pequenos. Como disse o senador romano Catão: ladrões comuns jazem em masmorras e cadafalsos, mas os ladrões públicos se vestem de ouro e seda. O que dirá Deus, por fim, de tudo isso? Ele fará aquilo que anuncia pela boca de Ezequiel: fundirá príncipes e mercadores, um ladrão ao outro, como o chumbo e o cobre, do mesmo modo como uma cidade se consome em chamas por completo, sem que dela restem príncipes ou mercadores” (Martinho Lutero, Bücher vom Kaufhandel und Wucher. Vom Jahr 1527) [Martin Luther, “Von Kauffshandlung und Wucher”, em Der sechste Teil der Bücher des Ehrwirdigen Herrns Doctoris Martini Lutheri, Wittemberg, 1589, p. 296-7. – N. T.].

[49] O grande predomínio que – abstraindo de todas as outras circunstâncias – teve no desenvolvimento da Holanda a base estabelecida na pesca, na manufatura e na agricultura já foi exposto por alguns escritores do século XVIII. Ver, por exemplo, Massie. Em contraste com a concepção anterior, que subestimava o volume e a importância do comércio asiático, antigo e medieval, tornou-se moda superestimá-los extraordinariamente. A melhor maneira de curar-se dessa concepção é examinar exportações e importações inglesas no início do século XVIII e confrontá-las com as atuais. No entanto, elas eram incomparavelmente maiores que as de qualquer povo comercial anterior. (Ver Anderson, History of Commerce [p. 261 e seg.].)

[50] Mais do que qualquer outro povo, a administração inglesa na Índia oferece a história de experimentos malogrados e realmente ridículos (na prática, infames). Em Bengala, os ingleses criaram uma caricatura da grande propriedade rural inglesa; no sudoeste da Índia, uma caricatura da propriedade parcelária; no noroeste, na medida em que foi possível, transformaram a comuna econômica indiana, com sua propriedade comum da terra, numa caricatura de si mesma.

[51] Isso também já começa a se modificar, desde o momento em que a Rússia começou a empreender os esforços mais extremos para desenvolver uma produção capitalista própria, orientada exclusivamente ao mercado interno e ao mercado asiático limítrofe. (F. E.)

[52] O mesmo valia para passamanarias e tecelagens de seda na Renânia. Em Krefeld, chegou-se a construir uma ferrovia própria para o intercurso entre esses tecelões manuais rurais e os “fabricantes” urbanos. Mais tarde, porém, essa ferrovia foi desativada, juntamente com os tecelões manuais, pelas tecelagens mecânicas. (F. E.)

[b] Bairro na região leste de Londres. (N. T.)

[53] De 1865 para cá, esse sistema desenvolveu-se numa escala ainda maior. Ver mais detalhes a esse respeito em First Report of the Select Committee of the House of Lords on the Sweating System, Londres, 1888. (F. E.)

[c] Johann Poppe, Geschichte der Technologie seit der Wiederherstellung der Wissenschaften bis an das Ende des achtzehnten Jahrhunderts, t. 1 (Götingen, Bey J. F. Röwer, 1807), p. 70. (N. E. A.)

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