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quinta-feira, 8 de abril de 2021

Monstros e Monstrengos do Brasil (Parte II), de Afonso de Escragnolle Taunay

Editora: Companhia das Letras

ISBN: 978-85-7164-792-3

Organização: Mary del Priore

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 270

Sinopse: Ver Parte I


 

“Águas havia ótimas para reforçar a memória de seus ingestores e outras, desmemoriadoras terríveis. Uma fonte perto de Chevreu era perigosíssima. Os sujeitos que dela se servissem arriscavam-se a ficar desdentados, mas sem fluxão nem dor. Num rio da Ásia fazia a água arrebentar qualquer recipiente em que fosse deitada, exceto se o vaso fosse feito de casco de mulas.

Na Irlanda existia um lago de tão esquisitas virtudes que, cravando-se-lhe uma estaca ao fundo, a parte enterrada se transformava em pedra e a banhada em ferro! A que se achava fora d’água continuava madeira. Provavelmente haveria ali uma cuba gigantesca de galvanoplastia... Feijó, que não discutia o caso mas lhe admitia a veracidade, afirmava que na Polônia fontes existiam capazes de transformar o ferro em cobre.

Também havia árvores que destilavam chuva, como no caso de imenso madeiro da ilha do Ferro, que se achava sempre coberto de uma nuvem e em 24 horas fornecia dois grandes tanques d’água, coisa a respeito da qual o insigne Feijó se mostrava cético.

Da existência de pessoas que se sustentavam de água, exclusivamente, ninguém podia duvidar, à vista de tantas testemunhas corroborantes. Quem também se atreveria a contestar uma legião de doutos quando todos concordes admitiam a existência de homens e mulheres marinhos?

Que se desse de barato a autoridade de grandes vultos das ciências naturais, como Plínio, Eliano, Pausânias. Bastava a documentação moderna.

Em 1671, a uma légua da Martinica, muitos franceses haviam visto um tritão legítimo, perfeita figura de homem da cintura para cima, de cabelos brancos e bem penteados, rosto cheio, barba preta, nariz chato, tez branca, cútis delicada. Da cintura para baixo era perfeito peixe, acabado por grossa cauda bífida.

Em 1725, aparecera no porto de Brest outro tritão, que 32 pessoas haviam visto, inclusive o capitão Olivier Morin, perfeitamente proporcionado, mas de mãos e pés palmados.

As Memórias de Trévoux relatavam que este monstro, vendo a figura feminina da proa de uma embarcação, fizera diligência para a abraçar.

Correra o contramestre do navio a buscar uma espingarda para matar o bruto, mas desistira do intento a imaginar que ele poderia ser a reencarnação de um suicida oficial de bordo.

A propósito deste abantesma, lembrava Feijó a seguinte circunstância: fazendo escárnio da gente do navio, “voltara-lhe o monstro as costas e levantando alguma coisa da água exonerara o ventre à vista de todos”.

O padre Antonio de Faria, oratoriano, varão cheio de virtudes, e incapaz de mentir, achando-se sobre uma montanha, de onde se avistava o mar, vira um monstro marinho, semi-homem, de cabelos verdes, que ao avistá-lo mergulhara.

E quem contestava o caso daqueles conselheiros do rei da Dinamarca, que, em 1619, haviam capturado, nos Skager Rack, um homem marinho? Posto a bordo do navio, em que Suas Excelências viajavam, pusera-se a barrar tão descompassadamente, e a proferir tais ameaças, se o não libertassem logo, que a maruja, gente supersticiosa, resolvera logo soltá-lo.

“Este é o único exemplo de homem marinho que falasse”, comenta o nosso Aucourt e Padilha. Mas se ainda dos centauros – coisa abonada por doutos e santos – se duvidava de tal propriedade, como a podiam atribuir a este monstro? O único autor que dele tratara era, aliás, João Avelino no seu Tratado da Europa.

Na Noruega sabia-se de muitos casos de homens marinhos. Em Portugal apanhara-se um no Algarve que um marquês de Niza mandara mostrar ao rei d. Pedro II. Este era perfeitamente homem, mas jamais falara.

Em 1560 haviam uns pescadores do Ceilão mostrado a jesuítas portugueses o produto de uma de suas redadas, em que figuravam sete homens marinhos e nove mulheres. Nada menos! Em Paris conservava-se uma mão de sereia. Enfim! Não valia a pena discutir. (...)

É verdade que se sabia de anomalias notáveis sucedidas a diversos homens. Monsieur Vinslow e monsieur Bruhier contavam de uma suíça que passara três dias de baixo d’água e no entanto não morrera! E quem duvidaria da palavra de sábios como monsieur Vinslow e monsieur Bruhier?

Mas casos ainda mais extraordinários relatava outro cientista ilustre! Paulo Zaquias! Paulo Zaquias!!

O sapientíssimo marquês de Saint Aubin achara a mais natural das explicações para estes fatos: alguns humanos tinham tal disposição preternatural que lhes era prolongada a faculdade da respiração fatal! Nada mais simples! E realmente nada mais simples!

No capítulo dos peixes monstruosos vemos novas novidades de vulto: o caso do pescado de Peniche, em 1575, com quarenta côvados de comprido (26,40m) e não era baleia! Quem dizia que o fosse? Contaram-lhe dezesseis dentes com palmo e meio de diâmetro e cada qual separado dos seguintes de um palmo!

Outro ainda em Peniche aparecera em 1616. Um médico do lugar o descrevera em sua Peixeologia, que infelizmente não se imprimira, com grave detrimento para o avanço das ciências.”

 

 

“As raridades da natureza em matéria aérea deram azo a nosso autor para que largamente demonstrasse os belos conhecimentos da erudição.

Em primeiro lugar, era sabido o que vinha a ser a influência dos meteoros gasosos sobre o temperamento, o gênio, as qualidades físicas, etc.

Quem ignorava o que se dizia, desde muito, das fêmeas que concebiam do vento, como as éguas de certos lugares, as lebres de outros, etc.? Já, porém, Santo Agostinho repelira semelhante abusão e os naturalistas modernos, estes então eram categóricos em desmenti-la. Parecia incontestável, porém, que a variedade das cores de camaleão se devia à diversidade do ar.

Quanto às figuras que os ares frequentemente apresentavam, eram elas tão numerosas, desde longínquos séculos, quanto, por vezes, extraordinárias. Ainda em 1514, todo o exército de Próspero Colona vira, durante nada menos de três horas, dois soldados armados esgrimirem nas nuvens um contra o outro.

Já por diversas vezes tinham aparecido no horizonte três sóis simultâneos e três luas!, como em Roma, no tempo do imperador Cláudio. Um autor honesto, como Mezeray, não se atrevia a mentir e, no entanto, em sua história de França, se relata que, em certa ocasião, um exército francês vira na atmosfera companhias de soldados, vestidos de branco, caminhando no ar, junto à terra, em que se identificavam as figuras dos oficiais e dos tambores.

Fato incontestável o seguinte: nas altas camadas atmosféricas, criavam-se animais.

No império de Carlos IV desabara certa vez verdadeiro dilúvio de bichinhos, que devastara províncias inteiras. Nas regiões aquilonares nada raro era verificar-se uma chuva de ratões.

Na Noruega, segundo Escalígero e o bispo upsalense, “mui frequentemente choviam animais ali chamados linmeres, mais prejudiciais que as lagartas e maiores do que ratos”.

Explicando estes casos, dizia Bonamigo que estes bichos todos se formavam com a saraiva.

E Nierenberg afirmava da ave menocodiato, vivente de ar e de orvalho, que o macho tinha às costas uma cova onde a fêmea fazia ninhos e incubava.

Professavam os menocodiatos a mais extraordinária fidelidade ao seu rei. Se, acaso, a este matavam, preferiam todos morrer a desamparar o monarca.

Chuvas prodigiosas também figuravam entre os mais célebres fenômenos aéreos: como as de cabelos nas cidades de Jacai e Uzaka, no Japão, em 1596; de leite, sangue, carne e ferro, e até de ladrilhos cozidos, como atestavam os mais célebres autores romanos!

Em Portugal, a 8 de junho de 1757 em Gondemar, Tarouca e Lalim, comarca de Lamego, desabara forte saraiva de pedrinhas não de gelo, e sim de açúcar! Era pelo menos o que ao nosso autor informara o respeitável capitão-mor do Tabaco, pessoa, pelo seu nascimento e honra, incapaz de mentir.”

 

 

“Apenas referiremos (segundo, sempre, meia dúzia de graves autores, como Pedro Hispano, Amaro Lusitano e Alexandre Napolitano) quanto era positivo que o melhor meio de salvar os picados da tarântula vinha a ser aplicar-lhes doses sucessivas de música, conforme afirmava o douto Metioro.

A enumeração destas “graves autoridades”, identificadas pelos seus gentílicos, é coisa que realmente nos edifica.”

 

 

“Fogos havia-os, e de muitas naturezas, uns errantes, outros nascendo em caniçais, e em corpos de animais, como em gados e cavalos, que andavam à noite, em tempo chuvoso, e até em entes humanos.

Assim se dava com aquela mulher de Verona, em cuja testa havia sempre uma labareda pequena, como o atestava o douto Pedro de Castro, em seu tratado Ignis labens. Fogos havia que por si mesmos se acendiam e fogos de muito esquisita espécie. Assim, o fogo do vulcão islandês Hecla consumia a água, mas não a estopa! A pedra galatias não se deixava vencer do fogo no meio das chamas e conservava-se fria. O fogo do Etna não derretia as neves de seu pico! Na Lícia sabia-se de um fogo que não queimava as mãos!

Em compensação, a pedra petites apertada na mão queimava como brasa ardente! E os dentes do javali, logo depois de morto o selvático suídeo, tinham tanto fogo que queimavam cabelos e outras substâncias facilmente inflamáveis. Coisa estranhíssima o que se dava no delfinado; ali havia certa fonte “que em se lhe chegando uma vela apagada acendia e estando acesa se apagava”.

A própria Academia de Ciências de França, no ano de 1699, proclamara a novidade desta fonte, que representava a expressão hidrodinâmica do espírito de contradição, ao que parece.

Quem seria capaz de negar a existência de pessoas cujos corpos exalavam fogo? Uma reunião de graves e doutos autores aí estava para lhe rebater tal pretensão. O padre Teodorico, de si próprio, afirmava tal prodígio, sempre que se friccionava. Dois personagens, Antonio Ciancio e Máximo Aquilano, estes, quando esfregados, pareciam fuzis batidos por pederneira!

E o grande Feijó contava de uma dama Cassandra Buri, senhora italiana que era muito mais incendiável do que os seus patrícios acima citados. Quando se esfregava com um lenço não só lhe saíam faíscas, como labaredas!

Outra italiana, a nobre condessa Cornélia Bandi, fora achada reduzida a cinzas no próprio leito. Extraordinário, porém, este caso: ficara-lhe a roupa da cama absolutamente intacta! O colossal Feijó explicava este sucesso estranhíssimo do modo mais plausível: é que a digna fidalga fora consumida pelas exalações que ela própria evaporava.

Aliás, se sabia, desde a mais remota Antiguidade, que Alexandre Magno ganhara uma de suas grandes batalhas porque os inimigos, os indianos, fugiram espavoridos ao perceberem que o macedônio exalava faíscas!

De indivíduos alcoólatras, que deitavam chamas, ninguém duvidava. O nosso Aucourt cita diversos destes casos. O mais pitoresco é o do sujeito que conseguira debelar um princípio de incêndio em si, mas, como este fosse na garganta, isto lhe valera a perda da voz! (...)

Assim como o amianto era substância incombustível, também neste particular ocorriam prodígios na espécie humana. Aí estava Plutarco nos relatar o caso da incombustibilidade do polegar de certo rei do Épiro quando lhe queimaram o cadáver, e Tácito o mesmo fato em relação ao coração de Germânico.

Plutarco e Tácito! Quem destes grandes homens poderia descrer?

E entre os judeus, ensinavam os rabinos, ninguém duvidava do seguinte: todos os entes humanos têm, no fim do espinhaço, um osso que não pode o fogo consumir, nem força alguma quebrar. Nele se conserva a base da ressurreição da carne

Por que razão vivia a salamandra indene das chamas que a envolviam? Por causa de sua natureza não fria, mas frigidíssima! O Journal des Sçavans (seria bom não esquecê-lo: o Journal des Sçavans!), ainda em abril de 1667, espalhara com a sua grande autoridade a notícia das experiências do cavalheiro Corvini com salamandras indianas.

Percebera a razão da indiferença ao fogo do fantástico batráquio: é que vomitava uma gosma lembrando a clara dos ovos de galinha, tão gélida que neutralizava as brasas! Durara a experiência duas horas completas e o bicho ainda vivera nove meses depois dela.

Verdade é que o mesmo Journal des Sçavans, 63 anos mais tarde, relatara novas séries de experiências, do mesmo gênero, com salamandras e péssimos resultados. Haviam umas morrido logo e outras ficado pavorosamente queimadas! (...)

Os grandes mestres das ciências naturais na Antiguidade, como Aristóteles, Plínio, Eliano, Agrícola, abonavam a existência das moscas de fogo, as pyraustas, que morriam instantaneamente, ao deixarem o elemento ígneo.

Mas era preciso lembrar que o caso devia ser admitido com ceticismo, porque o fogo vinha a ser ambiente incompatível com a propagação das espécies de animais, não admitindo a geração.

Se ninguém, contudo, podia duvidar da existência dos gêneros de insetos que viviam, exclusivamente, de roer pedra, como negar, por mero preconceito, a possibilidade de viverem salamandras no elemento ígneo? Tornava-se necessário recorrer às palavras de algum grande comentador dos fenômenos da natureza. E, nesta categoria, quem melhor se achava em condições de falar do que Feijó, o ilustre, o doutíssimo Feijó? Assim, ele, Aucourt e Padilha, discípulo respeitoso de tão grande mestre, repetia-lhe os conceitos: “Os homens, sem razão alguma, e contra toda a razão, estreitam a onipotência divina segundo o limitado das suas experimentais ideias. Não há repugnâncias em que Deus crie alguma espécie que se conserve no fogo”.

Mas disto não se tratava, objetariam os céticos. O que se tornava preciso demonstrar era a existência de tais ignícolas. “Assim fala um homem como Feijó – termina o nosso Pedro Norberto, com este último argumento decisivo –, sem embargo que não abraça o que se diz da Salamandra e dos espelhos ustórios”.

Singular aproximação! A salamandra e os espelhos ustórios! “Apesar da ardente impressão do fogo”, a arte a ela sabia resistir” com leves e fáceis remédios. De tal dera o grande Ambrósio Paré os mais notáveis exemplos, como em sua célebre experiência das cebolas. Untava as mãos com o sumo do bulbo querido da gente de Israel, saudosa da terra dos faraós, e depois, sobre elas, e sem dor alguma, derramava o toucinho derretido de uma pá afogueada”.

“Artifícios de fogo” havia-os inúmeros, muitos deles maravilhosos até, como os que se obtinham com o fósforo da Alemanha, também chamado de “monsieur Kurcler”, que estava sempre pronto a arder, desde que o tirassem do vidro com água em que devia ficar bem guardado.

Que mania incendiária! E interessante caso: esta substância, que parecia cera, provinha da destilação da urina, segundo descobrira certo alquímico alemão que, durante toda a vida, trabalhara na pesquisa da pedra filosofal.

A química, ou antes, a alquimia do nosso Padilha andava, pelo que vemos por este pano de amostra, atrasadota. Mas a sua física nem de longe corria parelhas com a ciência que já era, aliás, a de Lavoisier e Cavendish, Priestley e Scheele: “Por um acaso achou um rústico que dois vidros de óculos atraíam os objetos distantes. E este foi o princípio que ensinou de fazer óculos de ver ao longe. E semelhante foi o do barômetro em 1643 (sic!)”.

Acerca dos espelhos ustórios parecia Padilha mais informado. Se Descartes os fizera passar por imaginários, a Academia de Ciências de França lhes demonstrara a exequibilidade.

E, advertindo os céticos lusitanos, severamente arguia o nosso autor: “Os senhores críticos modernos fazem zombaria desta notícia, ou, como eles dizem, desta patranha, porém, aquele cientíssimo congresso da Academia de Ciências de França, antes que aprove ou refute as coisas, sabe pesá-las maduramente ao juízo e examiná-las na experiência”.

Depois de um capítulo sensaborão sobre a câmara clara, ou “olho artificial”, como lhe chama, e de outro, insignificante, sobre o invento da pólvora, termina Aucourt e Padilha o seu tratado por uma digressão sobre a máquina elétrica, onde um fenômeno novo, “abismo de maravilhas jamais visto nem imaginado, faz duvidar de tudo que antes estava como certo”.

Nada mais certo do que a mofa da natureza e filosofia. Desde tempos imemoriais andavam os homens inquirindo as causas dos efeitos naturais e muitos séculos havia que a natureza se obstinava em lhes revelar os efeitos, apenas, escondendo-lhes as causas.

Aos filósofos desenganava Bacon. Enquanto teimassem em encerrar-se no campo de ideias abstratas e metafísicas, nada conseguiriam. Era preciso “aplicarem-se ao exame do mecanismo”.

Que demonstração mais evidente do que já forneciam as extraordinárias experiências de eletricidade? Quem dos antigos imaginaria que este fenômeno lançasse e tirasse fogo de todos os corpos? O grande Feijó atribuía à matéria elétrica positiva identidade com a do raio por serem ambas sulfúreo-nitrosas. Uma tirava faíscas barulhentas dos corpos e o nitro também crepitava estrepitosamente.

Existiam raios benignos e malignos. Por exemplo, os dois que tinham atingido Mitridates, ambos haviam apenas chamuscado o famoso rei imunizado ao arsênico. Outras vezes, as mais das vezes, como tanto se sabia, os raios determinavam “ímpetos terríveis”. Que o dissessem os dois famosos físicos monsieur Muschenbroek, de Holanda, e monsieur Réaumur, de Paris! Quase vítimas de sua temeridade em pretender arrebatar os raios aos céus!, antecipando-se a Benjamim Franklim sem contudo se republicanizarem, como quer o célebre sceptrumque tyrannis.

Receoso de se aventurar em terreno tão difícil, sob o ponto de vista científico, concluía modestamente o nosso autor: “Estes fenômenos, assim como produzem uma grande admiração em todos os espectadores, assim é justo que neles suspendamos as pernas, para que o assombro possa ser a melhor cláusula desta obra”.

Aos seus oito tratados, tão científicos quanto profundos, como acabamos de ver, encerrou o fidalgo cavaleiro da Ordem de Cristo por um discurso sobre a magia natural e artificial, complemento muito natural dos assuntos ventilados nas 481 páginas das suas Raridades da natureza e da arte, dividias pelo quatro elementos, escritos e dedicados à majestade d’El-Rei Nosso Senhor d. Joseph.”

 

 

“Guiada por dois índios da tribo da índia Rola, caminhou rapidamente a escolta até meio-dia. Era esta hora perigosíssima, não só por causa dos enormes carnívoros, pumas e jaquares (sic), como pela presença de numerosas cascavéis.

Mas o perigo maior, o perigo terrível, era o do possível encontro com a “monstruosa e fatal ibibaboka”.

Os bravos dragões (soldados), contudo, não se mostravam intimidados. Depois do descanso de uma hora para o almoço, penetrou a tropa no tremendo labirinto daquela “selva escuríssima”.

Não haviam exagerado os índios de todo. Começaram a aparecer as cascavéis pelo trilho, mas fugiam, velocíssimas (!), apenas viam os homens. O mesmo se deu com “aquelas hediondas bestas feras pumas e jaquares”, que a cada passo surgiam, saltando atrás dos troncos das árvores.

Caminhou a escolta até quase a hora do poente. Atingira o cume de uma montanha, onde deveria, a conselho dos guias, passar a noite, quando de repente ouviram-se os mais lancinantes brados de pedido de socorro.

Guiados pela voz dos que clamavam, galopara Browne e os soldados. Qual não foi o horror e pasmo quando se lhes defrontou “a feroz e venenosíssima ibibaboka, enlaçada ao tronco de majestosíssima palmeira”.

Três entes humanos, perseguidos atrozmente pelo minhocão, ali estavam refugiados, na copa da árvore. Avalia-se o estarrecimento de Browne, quando neles reconheceu o amigo, sua jovem esposa e a índia Rola!

Acossados pela sucuri descomunal, haviam de ter revelado, naturalmente, qualidades até agora desconhecidas e insuspeitadas de inigualáveis ginastas. Não fora assim, como teriam podido subir às grimpas da palmeira? Com uma agilidade de caxinguelê ou de quati? Muito pode o amor ao pelo...

Verdade é que o nosso narrador John Browne não explica como se haviam dado estes prodígios acrobáticos.

Os cavalarianos, de espadas desembainhadas, achavam-se, contudo, atrapalhadíssimos para avançar. Os cavalos, espavoridos, empinavam e saltavam como se camurças fossem.

E, enquanto isso, o tremendo bicharoco, coleando-se ao tronco da palmeira, lentamente alteava a monstruosa cabeça, escancarando as imensas fauces e os olhos, vulcanicamente chamejantes, para as desgraçadas presas.

Foi então que Browne se decidiu! Impassível! Heroico! Sublime! Descavalgou, ergueu a carabina e apontou...

Ante tão prodigiosa demonstração de ânimo, vários soldados o imitaram. Ainda não fixava bem o herói a pontaria, quando a situação se complicou ainda mais e atingiu a culminância daquela cena que na selva brasileira repetia o caso laocoôntico.

Conseguira o monstro apreender a barra da saia de Olimpia (a que as brisas agitavam) e, soltando então pavoroso urro, tentava arrancar a pobre rapariga aos braços do terno e amado esposo! Aqui só faltava o horresco referens.

Desorientados mostravam-se os soldados, que ao som terrível haviam escutado. Ao peito as carabinas apertavam, em vez de as apontar... Viu Brownie a mísera mocinha, vítima do seu amor, desaparecer na goela, necessariamente hiante, do sucuriju.

Seu marido Parr, a ela atracado, puxava-a com todas as forças e sentia-se disposto a fazer de profeta Jonas. Nunca abandonaria quem por ele, por seu amor, ia morrer. Pediria a cena hoje o acompanhamento da música do último ato da Aída... “Morir si pura e bella...”.

Uma nuvem perpassou pelos olhos de Brownie. Sentiu mesmo ligeiro desmaio. Mas qual!, veio logo a reação àquele homem de nervos de aço.

Não havia um único segundo a perder. Firmou a pontaria e... fogo! Prodigiosa pontaria!, digna de patrício do inigualável arqueiro Robin Hood!

Foi a bala, certeira, apanhar o bulbo do minhocão. E tal a felicidade dos dois amantes, que a cabeça do monstro, depois de oscilação gigantesca, pendeu para o lado oposto àquele em que estava! “Porque senão a pestífera influência de seu hálito lhes teria sido fatal à vida”.

Desabou a monstruosa serpe de modo fragoroso e aí a soldadesca, criando ânimo, caiu-lhe de espada em cima. Dentro em breve expirava. Tinha 27 pés, mais de nove metros de comprimento.

Bem diz o nosso velho adágio, que é bem mais fácil apanhar aos que faltam à verdade do que aos coxos...”

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