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segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

Quem manda no mundo? (Parte II), de Noam Chomsky

Editora: Crítica

ISBN: 978-85-4221-019-4

Tradução: Renato Marques

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 400

Sinopse: Ver Parte I

 

“Considerações semelhantes nos levam diretamente para a segunda questão de maior relevância, analisada na capa da edição de novembro/dezembro de 2011 da revista Foreign Affairs, já citada anteriormente: o conflito Israel-Palestina. Nessa arena seria difícil demonstrar de maneira mais evidente o medo dos EUA em relação à democracia. Em janeiro de 2006 foram realizadas eleições na Palestina, pleito que monitores internacionais consideraram livre e justo. A reação instantânea dos Estados Unidos (e, claro, de Israel), acompanhados de perto pela cortês Europa, foi impor duras penalidades aos palestinos por votarem errado.

Isso não é inovação nenhuma. Está plenamente de acordo com o princípio geral reconhecido pelas correntes dominantes do pensamento acadêmico: os Estados Unidos apoiam a democracia se, e somente se, os resultados estiverem em consonância com seus objetivos estratégicos e econômicos – a pesarosa conclusão de Thomas Carothers, o mais meticuloso e respeitado analista erudito das iniciativas de “promoção da democracia”.”

 

 

“A Coreia do Norte talvez seja o país mais louco do mundo; é um bom concorrente a esse título. Mas faz todo sentido tentar compreender o que se passa na cabeça das pessoas quando estão agindo loucamente. Por que se comportam da forma como se comportam? Basta imaginar-se na situação delas. Imagine o que significou, nos anos da Guerra da Coreia na década de 1950, ver seu país ser totalmente arrasado – tudo destruído por uma mastodôntica superpotência, a qual estava se regozijando com suas ações. Imagine a marca que isso deixaria.

Tenhamos em mente que a liderança norte-coreana à época provavelmente leu as publicações militares públicas dessa superpotência explicando que, uma vez que tudo na Coreia do Norte havia sido devastado, a força aérea foi enviada para lá a fim de destruir as represas norte-coreanas, enormes represas que controlavam o abastecimento de água da nação – um crime de guerra, aliás, pelo qual pessoas foram enforcadas em Nuremberg. E essas publicações oficiais discorriam entusiasticamente sobre como era maravilhoso ver a água jorrando e arrasando os vales, e o corre-corre dos “asiáticos” em sua tentativa de sobreviver.[5] As publicações exultavam com o que isso significava para aqueles asiáticos – horrores além da nossa imaginação. Significava a destruição de suas colheitas de arroz, o que queria dizer fome e morte. Que magnífico! Não está em nosso banco de memórias, mas está no deles.

Voltemos ao presente. Há uma interessante história recente: em 1993, Israel e Coreia do Norte caminhavam para um acordo no qual a Coreia do Norte interromperia o envio de todo e qualquer tipo de míssil e tecnologia militar para o Oriente Médio e em contrapartida Israel reconheceria o país. O presidente Clinton interveio e bloqueou o acordo.[6] Pouco depois, em retaliação, a Coreia do Norte realizou um teste de mísseis de pequena envergadura. Os Estados Unidos e a Coreia do Norte chegaram a um acordo estrutural em 1994, que interrompeu o programa nuclear norte-coreano e foi mais ou menos honrado por ambos os lados. Quando George W. Bush assumiu a presidência, a Coreia do Norte tinha talvez uma arma nuclear e comprovadamente não estava produzindo outras mais.

Bush imediatamente lançou seu militarismo agressivo, ameaçando a Coreia do Norte (“Eixo do Mal” e tudo mais), de modo que os norte-coreanos retomaram seu programa nuclear. Quando Bush deixou a Casa Branca, a Coreia do Norte possuía de oito a dez armas nucleares e um sistema de mísseis, outra formidável realização neoconservadora.[7] No meio, outras coisas aconteceram. Em 2005, os Estados Unidos e a Coreia do Norte chegaram efetivamente a um acordo por meio do qual a Coreia do Norte cessaria todo o desenvolvimento de armamentos nucleares e de mísseis; em troca, o Ocidente – mas principalmente os Estados Unidos – forneceria um reator de água leve para suas necessidades médicas e daria fim às suas declarações agressivas. A seguir, ambos firmariam um pacto de não agressão e caminhariam para a conciliação.

O acordo era muito promissor, mas quase imediatamente Bush o sabotou. O presidente retirou a oferta do reator de água leve e iniciou programas para coagir os bancos a pararem de realizar transações financeiras norte-coreanas, até mesmo as que fossem perfeitamente legais.[8] Os norte-coreanos reagiram retomando seu programa de armas nuclear. E é assim que a coisa vem seguindo.

O jargão é bem conhecido. Qualquer um pode lê-lo na produção acadêmica norte-americana dominante. Sem meias palavras, o que se diz é: trata-se de um regime bastante louco, mas que segue uma política do olho por olho, dente por dente. Você faz um gesto hostil e nós responderemos na mesma moeda, com o nosso próprio gesto louco. Você faz um gesto conciliador, e nós retribuímos da mesma forma.

Recentemente, o comando militar dos EUA e da Coreia do Sul realizaram exercícios militares de grande escala na península coreana, o que do ponto de vista do norte deve parecer ameaçador. Nós acharíamos ameaçador se manobras desse tipo estivessem acontecendo no Canadá, com armas apontadas para nós. Durante esses exercícios, os mais avançados bombardeiros da história, Stealth B-2 e B-52, simularam ataques de bombardeio nuclear bem nas fronteiras da Coreia do Norte.[9]

Isso fez soarem os sinos de alarme do passado. Os norte-coreanos lembram-se de algo daquele passado, por isso estão reagindo de forma bastante agressiva e extremada. Bem, o que chega ao Ocidente é o quanto os líderes norte-coreanos são loucos e terríveis. Sim, eles são – mas isso está longe de ser a história completa, e é assim que o mundo tem caminhado.

Não é que não haja alternativas. As alternativas simplesmente não estão sendo levadas em consideração. Isso é perigoso. Então, se me perguntarem o que acontecerá com o mundo e como vejo a feição do mundo no futuro, a imagem não é nada boa. A menos que as pessoas façam algo a respeito. Sempre podemos.”

5. Sobre o bombardeio de diques como crime de guerra, ver por exemplo Gabriel Kolko, “Report on the Destruction of Dikes: Holland, 1944-45 and Korea, 1953”, in Against the Crime of Silence: Proceedings of the Russell International War Crimes Tribunal, Estocolmo e Copenhague, 1967, ed. John Duffett (Nova York: O’Hare Books, 1968), 224-26; ver também Jon Halliday e Bruce Cumings, Korea: The Unknown War (Nova York: Viking, 1988), 195-96; Noam Chomsky, Towards a New Cold War: Essays on the Current Crisis and How We Got There (Nova York: Pantheon, 1982), 121-22 (edição brasileira: Rumo a uma Nova Guerra Fria – Política Externa dos EUA, do Vietnã a Reagan, São Paulo: Record, 2007).

6. Oded Granot, “Background on North Korea-Iran Missile Deal”, Ma’ariv, 14 de abril de 1995.

7. Fred Kaplan, “Rolling Blunder: How the Bush Administration Let North Korea Get Nukes”, Washington Monthly, maio de 2004.

8. Shreeya Sinha e Susan C. Beachy, “Timeline on North Korea’s Nuclear Program”, The New York Times, 19 de novembro de 2014; Leon Sigal, “The Lessons of North Korea’s Test”, Current History 105, nº 694 (novembro de 2006).

9. Bill Gertz, “U.S. B-52 Bombers Simulated Raids over North Korea During Military Exercises”, Washington Times, 19 de março de 2013.

 

 

“Há graves barreiras e empecilhos a superar na luta por justiça, liberdade e dignidade, mesmo além da cruel e implacável luta de classes incessantemente conduzida pelo mundo corporativo – que tem elevada consciência de classe – com o “apoio indispensável” dos governos que em larga medida são controlados pelas corporações. Ware discute algumas dessas insidiosas ameaças da forma como eram entendidas pela classe trabalhadora. Ele discorre sobre o pensamento de trabalhadores qualificados de Nova York 170 anos atrás, que repetiam a opinião comum de que um salário diário é uma forma de escravidão e alertavam, com aguçado discernimento, que chegaria um dia em que os escravos do salário “terão até certo ponto se esquecido tanto daquilo que se deve à humanidade como à glória, em um sistema que lhes é impingido por sua necessidade e em oposição a seus sentimentos de independência e autorrespeito”.[17] Eles tinham a esperança de que esse dia estivesse “bem distante”. Hoje, são comuns os sinais desse dia, mas as demandas por independência, respeito próprio, dignidade pessoal e controle de cada indivíduo sobre o próprio trabalho e a própria vida, tal qual a velha toupeira de Marx, continuam a cavar e a circular incessantemente por baixo da terra, não muito longe da superfície, pronta para irromper bruscamente quando é despertada pelas circunstâncias e pelo ativismo militante.

17. Ware, The Industrial Worker 1840-1860.

 

 

“Outros eventos importantes ocorreram imediatamente após a queda do Muro de Berlim, dando fim à Guerra Fria. Um deles aconteceu em El Salvador, o maior beneficiário de auxílio militar dos Estados Unidos em todo o mundo – com exceção de Israel e do Egito, uma categoria à parte – e um país com os piores históricos de desrespeito aos direitos humanos já registrados no planeta. Essa é uma correlação frequente e bastante estreita.

O alto comando salvadorenho deu ordens para que o Batalhão Atlacatl invadisse a universidade jesuíta e assassinasse seis destacados intelectuais latino-americanos, todos eles padres jesuítas, incluindo o reitor, o teólogo e filósofo frei Ignacio Ellacuría e todas as testemunhas, a saber, a governanta e a filha dela. O batalhão já havia deixado um rastro sangrento de milhares de vítimas – as habituais – no decurso da campanha de terror patrocinada pelos Estados Unidos em El Salvador, parte de uma campanha mais ampla de terror e tortura em toda a região.[4] Tudo rotina, tudo ignorado e praticamente esquecido pelos EUA e por seus aliados – como sempre, rotina. Mas isso nos diz muita coisa sobre os fatores que conduzem a política, se nos dermos ao trabalho de observar o mundo real.

Outro evento importante se deu na Europa. O presidente soviético Mikhail Gorbachev concordou em permitir a unificação da Alemanha e a integração da Alemanha unificada como membro da OTAN, uma aliança militar hostil. À luz da história recente, foi uma concessão espantosa. Houve uma troca justa, um toma lá dá cá: o presidente Bush e o secretário de Estado James Baker estavam de acordo que a OTAN não se expandiria “um centímetro que fosse para o leste”, querendo dizer Alemanha Oriental. No mesmo instante, os dois expandiram a OTAN Alemanha Oriental adentro.

Gorbachev ficou obviamente enfurecido, mas, quando reclamou, Washington esclareceu que a coisa toda havia sido apenas um compromisso verbal, um acordo de cavalheiros, portanto sem força alguma.[5] Se Gorbachev foi ingênuo o bastante a ponto de acreditar na palavra de líderes norte-americanos, era problema dele.

Tudo isso também era rotina, bem como a silenciosa aceitação e aprovação da expansão da OTAN nos Estados Unidos e no Ocidente em geral. A seguir, o presidente Bill Clinton expandiu ainda mais a OTAN até as fronteiras da Rússia. Hoje, o mundo encara uma grave crise, em larga medida um resultado dessas políticas.”

4. Ver Noam Chomsky, Hopes and Prospects (Chicago: Haymarket Books, 2010), capítulo 12.

5. Ibid.

 

 

O fascínio de saquear os pobres

Outra fonte de provas são os registros históricos dessegredados e disponibilizados ao conhecimento público. Eles contêm explicações reveladoras dos reais motivos da política de Estado. A história é farta e complexa, mas alguns temas persistentes desempenham o papel dominante. Um deles foi articulado com clareza numa conferência para o hemisfério Ocidental convocada pelos Estados Unidos e realizada no México em fevereiro de 1945, ocasião em que Washington impôs uma “Carta Econômica das Américas”, cujo intuito era eliminar o nacionalismo econômico “em todas as suas formas”.[6] Havia uma condição tácita: o nacionalismo econômico seria bom para os EUA, cuja economia depende pesadamente de uma substancial intervenção do Estado.

A eliminação do nacionalismo econômico para os outros entrou em nítido e acentuado conflito com a posição latino-americana naquele momento, o que os funcionários do alto escalão do Departamento de Estado descreveram como “a filosofia do Novo Nacionalismo [que] adota políticas concebidas para ocasionar uma distribuição mais ampla de riqueza e aumentar o padrão de vida das massas”.[7] Como acrescentaram analistas políticos norte-americanos, “os latino-americanos estão convencidos de que os primeiros beneficiários do desenvolvimento dos recursos de um país devem ser o povo desse país”.[8]

Isso, é claro, não poderia acontecer. Washington entende que os “primeiros beneficiários” devem ser os investidores norte-americanos, enquanto cabe à América Latina cumprir sua função de oferecer serviços e propiciar recursos. Como as administrações Truman e Eisenhower deixariam bem claro, a América Latina não poderia passar por um “desenvolvimento industrial excessivo” que talvez prejudicasse os interesses dos EUA. Assim, o Brasil poderia produzir aço de baixa qualidade com o qual as empresas norte-americanas não precisavam se incomodar, mas cuja produção seria considerada “excessiva” caso viesse a concorrer com siderúrgicas norte-americanas.

Preocupações semelhantes ressoaram ao longo do período pós-Segunda Guerra Mundial. O sistema global que seria dominado pelos Estados Unidos estava ameaçado por aquilo que documentos internos chamam de “regimes radicais e nacionalistas” que responderam a pressões populares por desenvolvimento independente.[9] Foi essa a preocupação que motivou a derrubada dos governos parlamentaristas do Irã e da Guatemala em 1953 e 1954, bem como inúmeros outros golpes. No caso do Irã, uma das principais preocupações foi o impacto potencial da independência iraniana sobre o Egito, então em turbulência por causa das práticas coloniais britânicas. Na Guatemala, além do crime cometido pela nova democracia ao dar poder à maioria camponesa e as expropriações de latifúndios da United Fruit Company – o que por si só já era suficientemente ofensivo –, o que inquietava Washington eram a agitação dos trabalhadores e a mobilização popular em ditaduras vizinhas apoiadas pelos EUA.

Em ambos os casos, as consequências chegam até o presente. Literalmente, não se passou um dia desde 1953 sem que os Estados Unidos tivessem deixado de torturar o povo do Irã. A Guatemala continua sendo uma das mais perversas câmaras de horror do mundo; até hoje há maias fugindo dos efeitos das quase genocidas campanhas dos governos militares no país, respaldadas pelo presidente Ronald Reagan e seus comandantes do alto escalão. Como relatou em 2014 um médico guatemalteco, diretor da Oxfam no país: “Está em curso uma drástica deterioração do contexto político, social e econômico. Ataques contra defensores [dos direitos humanos] aumentaram em 300% no último ano. Há claras evidências de uma estratégia muito bem organizada pelo setor privado e o Exército; ambos capturaram o governo a fim de manter o status quo e impor o modelo econômico extrativista, expulsando dramaticamente os povos nativos de suas próprias terras, ocupadas pela indústria de mineração e por plantações de dendezeiros e cana-de-açúcar. Além disso, o movimento social que defende as terras e os direitos dos nativos foi criminalizado, muitos líderes estão presos e muitos outros foram assassinados”.[10]

Nada disso chega ao conhecimento das pessoas nos Estados Unidos, e a causa óbvia desses fatos continua sendo abafada.

Na década de 1950, o presidente Eisenhower e o secretário de Estado John Foster Dulles explicaram o dilema enfrentado pelos Estados Unidos. Eles reclamaram do fato de que os comunistas contavam com uma vantagem injusta: tinha a habilidade de “apelar diretamente às massas” e “obter o controle dos movimentos de massa, coisa que nós não temos a capacidade de reproduzir. É com os pobres que eles falam diretamente, e sempre quiseram saquear os ricos”.[11]

Isso causa problemas. De uma forma ou de outra os Estados Unidos, com sua doutrina segundo a qual os ricos devem saquear os pobres, encontram dificuldades para falar diretamente aos pobres.”

6. “U.S. Economic and Industrial Proposals Made at Inter-American Conference”, The New York Times, 26 de fevereiro de 1945.

7. David Green, The Containment of Latin America: A History of the Myths and Realities of the Good Neighbor Policy (Nova York: Quadrangle Books, 1971), 175.

8. Ibid., VII.

9. “United States Objectives and Courses of Action with Respect to Latin America”, Foreign Relations of the United States, 1952-1954, vol. IV, Documento 3, 18 de março de 1953.

10. Luis Paiz a Noam Chomsky, 13 de junho de 2014, de posse do autor.

11. Dwight Eisenhower, conforme citado por Richard Immerman em “Confession of an Eisenhower Revisionist: An Agonizing Reappraisal”, Diplomatic History 14, nº 3 (verão de 1990); John Foster Dulles em telefonema a Alan Dulles, “Minutes of Telephone Conversations of John Foster Dulles and Christian Herter”, 19 de junho de 1958, Biblioteca Presidencial Dwight D. Eisenhower.

 

 

Atrocidade

Praticamente todos os dias somos bombardeados por notícias de crimes horríveis, mas alguns são tão hediondos, tão horrendos e malignos que fazem com que todos os demais pareçam menores. Um desses raros eventos ocorreu quando o voo MH17 da Malaysia Airlines foi derrubado no leste da Ucrânia, matando 298 pessoas.

O Guardião da Virtude na Casa Branca condenou o episódio como “uma atrocidade de proporções indescritíveis”, que ele atribuiu a “apoio russo”.[1] Na ONU, a embaixadora dos EUA denunciou, aos berros, que “quando 298 civis são mortos” na “horrível derrubada” de um avião civil, “devemos trabalhar de forma irrefreável para determinar quem são os responsáveis e levá-los à justiça”. Ela também conclamou Vladimir Putin a acabar com seus vergonhosos esforços de se evadir de sua claríssima responsabilidade.[2]

Verdade seja dita, aquele “homenzinho irritante” com “cara de rato” – como Timothy Garton Ash o descreveu – tinha exigido uma investigação independente, mas isso só poderia ter acontecido por causa das sanções do único país suficientemente corajoso para impô-las, os Estados Unidos.[3]

Na CNN, o ex-embaixador norte-americano na Ucrânia, William Taylor, assegurou ao mundo que aquele homenzinho irritante é “claramente responsável [...] pela derrubada dessa aeronave”.[4] Durante semanas, as manchetes, matérias de capa e principais reportagens noticiaram a agonia das famílias, a vida das vítimas assassinadas, os esforços internacionais para reclamar os corpos e a fúria suscitada pelo horrível crime que “chocou o mundo”, de acordo com o que a imprensa veiculava diariamente, com profusão de detalhes, o criminoso desastre.

Toda pessoa alfabetizada, e todos os editores, comentaristas e analistas deveriam instantaneamente ter recordado outro caso em que um avião civil foi abatido com um número comparável de perda de vidas: o voo 655 da Iran Air, em que morreram todas as 290 pessoas a bordo, entre elas 66 crianças; a aeronave foi derrubada em espaço aéreo iraniano, numa rota comercial claramente identificada. O agente responsável sempre foi do conhecimento de todos: um míssil guiado disparado pelo cruzador norte-americano Vincennes, operando em águas iranianas no golfo Pérsico.

O comandante de uma embarcação norte-americana que estava nos arredores, David Carlson, escreveu na revista do Instituto Naval dos EUA, Proceedings, que “se surpreendeu, incrédulo” quando “o Vincennes anunciou suas intenções” de atacar um alvo que era uma aeronave civil. Ele especulou que o “cruzador robô”, como o Vincennes era chamado por causa de seu comportamento agressivo, “sentiu necessidade de provar a viabilidade do Aegis (o sofisticado sistema antiaéreo do cruzador) no golfo Pérsico, e que estava ansioso por mostrar seu equipamento.[5]

Dois anos depois, o comandante do Vincennes e o oficial encarregado do equipamento antiaéreo foram agraciados com a Legião de Mérito por “conduta excepcionalmente meritória na execução de extraordinários serviços” e pela “atmosfera calma e profissional” mantida durante o período em que o avião de passageiros iraniano foi derrubado. A destruição do avião não foi mencionada na cerimônia de entrega da comenda.[6]

O presidente Ronald Reagan culpou os iranianos pelo desastre e defendeu as ações do navio de guerra, que “seguiu ordens padrão e procedimentos amplamente divulgados, disparando para se proteger contra um possível ataque”.[7] Seu sucessor, George H. W. Bush, proclamou que “jamais pedirei desculpas pelos Estados Unidos – não me importo com os fatos. [...] Não sou o tipo de cara que pede desculpas em nome dos EUA”.[8]

Nenhuma evasão de responsabilidade aqui, ao contrário dos bárbaros do Leste.

À época, as reações foram mínimas: nenhum furor, nenhuma busca desesperada por vítimas, nenhuma acusação veemente e apaixonada dos responsáveis, nenhum lamento eloquente da embaixadora dos EUA na ONU sobre a perda “imensa e pesarosa” quando o avião de passageiros foi derrubado. As condenações iranianas foram esporadicamente mencionadas, mas logo descartadas como “ataques de praxe contra os Estados Unidos”, conforme definiu Philip Shenon no jornal The New York Times.[9]

Não é de surpreender, portanto, que esse insignificante evento anterior tenha merecido apenas algumas escassas linhas na mídia dos EUA durante o vasto furor por causa de um crime real, no qual o demoníaco inimigo talvez estivesse diretamente envolvido.

Uma exceção foi o jornal londrino Daily Mail, onde Dominic Lawson escreveu que, embora os “apologistas de Putin” talvez pudessem trazer à baila o ataque ao avião da Iran Air, a comparação demonstra os nossos altos valores morais em contraste com os dos miseráveis russos, que tentam, com mentiras, eximir-se de sua responsabilidade no caso do MH17, ao passo que Washington anunciou de imediato que o navio de guerra havia derrubado a aeronave iraniana – de modo correto e moralmente justo.[10] Qual evidência mais poderosa poderia haver da nossa nobreza e da perversidade dos russos?

Sabemos por que ucranianos e russos estão em seus próprios países, mas é o caso de se perguntar o que exatamente o Vincennes estava fazendo em águas iranianas. A resposta é simples: a belonave estava defendendo o grande amigo de Washington, Saddam Hussein, em sua assassina agressão contra o Irã. Para as vítimas, a derrubada do avião não foi uma questão rasa. Foi um fator de considerável peso na aceitação por parte do Irã de que já não podia seguir lutando, de acordo com o historiador Dilip Hiro.[11]

Vale a pena lembrar a extensão da devoção de Washington por seu amigo Saddam. Reagan retirou o nome de Saddam da lista de terroristas do Departamento de Estado, de modo que assim fosse possível enviar ajuda para acelerar o ataque de Hussein ao Irã, e mais tarde ambos negaram seus terríveis crimes contra os curdos, incluindo o uso de armas químicas, e Reagan bloqueou a condenação por parte do Congresso a esses crimes. Reagan também cedeu a Saddam um privilégio que só havia sido dado a Israel: não houve reação relevante quando o Iraque atacou com mísseis Exocet o USS Stark, matando 37 membros da tripulação, num caso muito parecido ao que aconteceu quando o USS Liberty foi repetidamente atacado por jatos e torpedeiros israelenses em 1967, matando 34 tripulantes.[12]

O sucessor de Reagan, George H. W. Bush, cedeu a Saddam um amparo maior ainda, auxílio de que Hussein precisava após a guerra contra o Irã, iniciada por ele. Bush também convidou engenheiros nucleares iraquianos para passar uma temporada nos Estados Unidos a fim de receber treinamento avançado em produção de armamentos. Em abril de 1990, Bush despachou uma delegação de alto escalão do Senado, encabeçada por Bob Dole, futuro candidato Republicano à presidência, para transmitir a seu amigo Saddam as mais calorosas saudações e reassegurar que ele deveria desprezar as críticas irresponsáveis da “imprensa arrogante e mimada”, e que os torpes canalhas desse calibre haviam sido retirados da Voz da América.[13] A adulação a Saddam continuou até que ele tornou-se um novo Hitler meses depois, quando desobedeceu a ordens, ou talvez as tenha entendido mal, e invadiu o Kuwait, com claras consequências que devo deixar de lado aqui.

Desde então, outros precedentes do MH17 foram descartados como fatos sem importância e mandados para dentro do buraco da memória: vejamos, por exemplo, o episódio do avião de passageiros líbio (voo 114 da Libyan Arab Airlines) que, em fevereiro de 1973, se perdeu numa tempestade de areia e foi abatido por jatos israelenses fornecidos pelos EUA, a dois minutos de chegar a seu destino, em sua rota regular de Trípoli ao Cairo.[14] Nessa ocasião, o número total de mortos foi de apenas 110. Israel culpou o capitão francês do avião líbio, com o endosso do jornal The New York Times, que acrescentou que o ato israelense foi “na pior das hipóteses [...] um ato de insensibilidade que nem mesmo a selvageria das ações árabes prévias pode desculpar”.[15] O incidente foi rapidamente ignorado nos Estados Unidos e passou em brancas nuvens, com poucas críticas. Quando a primeira-ministra Golda Meir chegou a Washington quatro dias depois, enfrentou algumas perguntas embaraçosas e voltou para casa levando alguns novos presentinhos militares. A reação foi basicamente a mesma quando a organização terrorista angolana favorita de Washington, a União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA) reivindicou ter derrubado dois aviões civis.”

1. Katie Zezima, “Obama: Plane Crash in Ukraine an ‘Outrage of Unspeakable Proportions’”, Washington Post, 18 de julho de 2014.

2. “Explanation of Vote by Ambassador Samantha Power, US Permanent Representative to the United Nations, After a Vote on Security Council Resolution 2166 on the Downing of Malaysian Airlines Flight 17 in Ukraine”, Missão dos Estados Unidos nas Nações Unidas, 21 de julho de 2014, http://usun.state.gov/remarks/6109.

3. Timothy Garton Ash, “Putin’s Deadly Doctrine”, Opinion, The New York Times, 18 de julho de 2014.

4. William Taylor, entrevista a Anderson Cooper, CNN, 18 de julho de 2014, transcrição publicada em http://www.cnn.com/TRANSCRIPTS/1407/18/acd.01.html.

5. United Press International, “Vincennes Too Aggressive in Downing Jet, Officer Writes”, Los Angeles Times, 2 de setembro de 1989.

6. David Evans, “Vincennes Medals Cheapen Awards for Heroism”, Daily Press, 15 de abril de 1990.

7. Ronald Reagan, “Statement on the Destruction of an Iranian Jetliner by the United States Navy over the Persian Gulf”, 3 de julho de 1988. Disponibilizado online por Gerhard Peters e John T. Woolley, The American Presidency Project, http://www.presidency.ucsb.edu/ws/?pid=36080.

8. Michael Kinsley, “Rally Round the Flag, Boys”, Time, 12 de setembro de 1988.

9. Philip Shenon, “Iran’s Chief Links Aid to Better Ties”, The New York Times, 6 de julho de 1990.

10. Dominic Lawson, “Conspiracy Theories and the Useful Idiots Who Are Happy to Believe Putin’s Lies”, Daily Mail (Londres), 20 de julho de 2014.

11. Dilip Hiro, The Longest War: The Iran-Iraq Military Conflict (Nova York: Psychology Press, 1989).

12. John Crewdson, “New Revelations in Attack on American Spy Ship”, Chicago Tribune, 2 de outubro de 2007.

13. Miron Rezun, Saddam Hussein’s Gulf Wars: Ambivalent Stakes in the Middle East (Westport: Praeger, 1992), 58f.

14. Michael Omer-Man, “This Week in History: IAF Shoots Down Libyan Flight 114”, Jerusalem Post, 25 de fevereiro de 2011.

15. Edward W. Said e Christopher Hitchens, Blaming the Victims: Spurious Scholarship and the Palestinian Question (Nova York: Verso, 2001), 133.

 

 

Para a Cisjordânia, a norma tem sido Israel prosseguir com a sua construção ilegal de assentamentos e de infraestrutura, de modo que possa anexar e integrar tudo o que tiver valor, ao passo que os palestinos recebem os cantões inviáveis e são submetidos a intensa repressão e violência. Nos últimos catorze anos, a norma tem sido Israel matar mais de duas crianças palestinas por semana. Um recente episódio de violência israelense teve início em 12 de junho de 2014, quando foram brutalmente assassinados três meninos israelenses de um assentamento ocupado na Cisjordânia. Um mês antes, dois meninos palestinos haviam sido mortos a tiros na cidade de Ramallah, na Cisjordânia. Isso despertou pouca atenção, o que é compreensível, já que é rotineiro. “O desprezo institucionalizado pela vida palestina no Ocidente ajuda a explicar não somente por que os palestinos recorrem à violência”, segundo Mouin Rabbani, o respeitado analista do Oriente Médio, “mas também o mais recente ataque de Israel na Faixa de Gaza”.[21]

21. Mouin Rabbani, “Institutionalised Disregard for Palestinian Life”, blog LRB, 9 de julho de 2014.

 

 

Se alguma espécie extraterrestre estivesse compilando uma história do Homo sapiens, poderia muito bem dividir o seu calendário em duas eras: AAN (antes das armas nucleares) e EAN (era das armas nucleares). Esta última, claro, teve início em 6 de agosto de 1945, o primeiro dia na contagem regressiva para o que pode ser o inglório fim desta estranha espécie que teve inteligência para descobrir os meios efetivos de destruir a si mesma, mas – assim mostram as evidências – não capacidade moral e intelectual de controlar seus piores instintos.”

 

 

“É importante ter em mente que os republicanos abandonaram há muito tempo o fingimento de funcionar como um partido parlamentar normal. Conforme observou o respeitado comentarista político conservador Norman Ornstein, do direitista Instituto Empresarial Norte-americano (American Enterprise Institute – AEI, na sigla em inglês), os republicanos tornaram-se uma “insurgência radical” que mal e mal procura participar da política normal no Congresso.[6] Desde os dias do presidente Ronald Reagan, a liderança do partido mergulhou tão fundo nos bolsos dos ricaços e do setor corporativo que só consegue atrair votos mobilizando partes da população que anteriormente não foram arregimentadas em forças políticas organizadas. Entre esses setores estão os cristãos evangélicos extremistas, que hoje devem constituir a maioria dos eleitores republicanos; remanescentes dos antigos estados escravagistas; nativistas que estão aterrorizados com o fato de que “eles” estão roubando de nós o nosso país, branco, cristão e anglo-saxão; e outros que transformam as primárias republicanas em espetáculos distantes das tendências dominantes das sociedades modernas – embora não do mainstream do país mais poderoso da história mundial.”

6. Thomas E. Mann e Norman J. Ornstein, “Finding the Common Good in an Era of Dysfunctional Governance”, Daedalus 142, nº 2 (primavera de 2013).

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