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segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

Quem manda no mundo? (Parte I), de Noam Chomsky

Editora: Crítica

ISBN: 978-85-4221-019-4

Tradução: Renato Marques

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 400

Sinopse: O mais importante ativista intelectual do mundo oferece neste livro um aprofundado exame das mudanças do poder norte-americano, as ameaças à democracia e o futuro da ordem global. Meticulosamente documentado, “Quem manda no mundo?” é um guia indispensável para entender a situação internacional atual. Com clareza e oferecendo diversos exemplos, Chomsky mostra como os Estados Unidos continuam sendo a voz mais forte, mesmo com a ascensão da Europa e da Ásia. O envolvimento americano com China e Cuba, as sanções contra o Irã, os conflitos no Iraque, Afeganistão e Israel/Palestina, a relação com a América Latina e África e o aquecimento global são alguns dos pontos discutidos no livro. Chomsky escreveu um posfácio sobre a eleição de Donald Trump, o referendo Brexit e a ascensão dos partidos ultranacionalistas de extrema direita na Europa. Sua conclusão sobre o futuro do mundo é alarmante.



É claro que os “mestres do universo” estão muito longe de ser representativos das populações das potências dominantes. Mesmo nos Estados mais democráticos, as populações exercem um impacto apenas limitado acerca de diretrizes políticas. Nos Estados Unidos, pesquisadores renomados forneceram evidências contundentes de que “elites econômicas e grupos organizados representantes de interesses comerciais causam substanciais impactos independentes sobre as políticas governamentais dos EUA, ao passo que cidadãos comuns e grupos de interesse de massas exercem pouca ou nenhuma influência independente”. Os resultados de seus estudos, concluem os autores, “propiciam substancial sustentação a teorias de Dominação da Elite Econômica e Teorias de Pluralismo Tendencioso, mas não para teorias de Democracia Eleitoral Majoritária ou Pluralismo Majoritário”. Outros estudos já demonstraram que a ampla maioria da população, na ponta mais baixa do espectro de renda/riqueza, é efetivamente excluída do sistema político, suas opiniões e atitudes são ignoradas por seus representantes formais, ao passo que um ínfimo setor que ocupa o topo da escala tem um grau de influência esmagador. Esses estudos também apontaram que, no decorrer de um longo período, o financiamento de campanha é um extraordinário previsor das decisões políticas.[2]”

2. Martin Gilens e Benjamin Page, “Testing Theories of American Politics: Elites, Interest Groups, and Average Citizens”, Perspectives on Politics 12, nº 3 (setembro de 2014), http://www.princeton.edu/~mgilens/Gilens%20homepage%20materials/Gilens%20and%20Page/Gilens%20and%20Page%202014-Testing%20Theories%203-7-14.pdf; Martin Gilens, Affluence and Influence: Economic Inequality and Political Power in America (Princeton: Princeton University Press, 2010); Larry Bartels, Unequal Democracy: The Political Economy of the New Gilded Age (Princeton, Princeton University Press, 2008); Thomas Ferguson, Golden Rule: The Investment Theory of Party Competition and the Logic of Money-Driven Political Systems (Chicago: University of Chicago Press, 1995).

 

 

“O venerando termo “dissidente” é usado seletivamente. Não se aplica, é óbvio, com suas conotações favoráveis a intelectuais orientados por valores ou aos que combatem a tirania respaldada pelos EUA no exterior. Vejamos o interessante caso de Nelson Mandela, cujo nome só foi excluído da lista oficial de terroristas do Departamento de Estado em 2008, o que lhe permitiu viajar para os Estados Unidos sem autorização especial. Vinte anos antes, Mandela era o líder criminoso de um dos “mais notórios grupos terroristas” do mundo, de acordo com um relatório do Pentágono. [12] Foi por essa razão que o presidente Reagan teve de apoiar o regime do apartheid, aumentando o comércio com a África do Sul em violação de sanções do Congresso e apoiando os atos hostis dos sul-africanos em países vizinhos, que resultaram, segundo um estudo da ONU, em 1,5 milhão de mortes.[13] Esse foi apenas um episódio da guerra ao terrorismo que Reagan declarou para combater “a praga da era moderna”, ou como definiu o secretário de Defesa George Scultz, “uma volta à barbárie na era moderna”.[14] Poderíamos acrescentar as centenas de milhares de cadáveres na América Central e dezenas de milhares mais no Oriente Médio, entre outras façanhas.”

12. “Terrorist Group Profiles”, Departamento de Estado, janeiro de 1989. Ver também Robert Pear, “US Report Stirs Furor in South Africa”, The New York Times, 14 de janeiro de 1989.

13. Força-Tarefa Interagências das Nações Unidas, Programa de Recuperação da África/Comissão Econômica da ONU para a África, South African Destabilization: The Economic Cost of Frontline Resistance to Apartheid, 1989, 13.

14. Noam Chomsky, “The Evil Scourge of Terrorism” (discurso à Sociedade Internacional Erich Fromm, Stuttgart, Alemanha, 23 de março de 2010).

 

 

Uma vez que mal somos capazes de enxergar o que se passa diante de nossos olhos, não surpreende que eventos a uma distância mínima sejam completamente invisíveis. Um exemplo instrutivo: o envio de 79 soldados de uma força de elite ao Paquistão em maio de 2011 para executar o que foi evidentemente o assassinato premeditado do principal suspeito das atrocidades terroristas de 11 de Setembro, Osama bin Laden.[28] Embora o alvo da operação, desarmado e sem nenhuma proteção, pudesse ter sido detido e capturado vivo com facilidade, ele foi sumariamente executado, e seu corpo atirado ao mar, sem autópsia – uma “ação justa e necessária”, lemos na imprensa de esquerda.[29] Não haveria julgamento, como ocorreu no caso dos criminosos de guerra nazistas – fato que não foi ignorado pelas autoridades legais no exterior, que aprovaram a operação, mas apresentaram objeções ao procedimento. Conforme nos lembra a professora de Harvard Elaine Scarry, a proibição do assassinato nas normas elementares do direito internacional remonta a uma veemente denúncia contra a prática feita por Abraham Lincoln, que em 1863 condenou a mobilização para o assassínio como “banditismo internacional”, uma “abominável atrocidade” que as “nações civilizadas” veem com “horror” e que merece “a mais severa retaliação”.[30] Avançamos muito desde então.”

25. Daniel Wilkinson, “Death and Drugs in Colombia”, The New York Review of Books, 23 de junho de 2011.

26. Anthony Lewis, “Abroad at Home”, The New York Times, 2 de março de 1990.

27. Mary McGrory, “Havel’s Gentle Rebuke”, Washington Post, 25 de fevereiro de 1990.

28. Mark Mazzetti, Helene Cooper e Peter Baker, “Behind the Hunt for Bin Laden”, The New York Times, 2 de maio de 2011.

29. Eric Alterman, “Bin Gotten”, Nation, 4 de maio de 2011.

30. Elaine Scarry, “Rules of Engagement”, Boston Review, 8 de novembro de 2006.

 

 

Inúmeros analistas observaram que Bin Laden obteve enormes êxitos em sua guerra contra os Estados Unidos. “Ele afirmou repetidamente que a única maneira de expulsar os EUA do mundo islâmico e derrotar seus sátrapas era arrastar os norte-americanos para uma série de pequenas mas dispendiosas guerras que, ao fim e ao cabo, os arruinaria e os levaria à bancarrota”, escreve o jornalista Eric Margolis. “Os Estados Unidos, primeiro sob George W. Bush e depois Barack Obama, precipitaram-se diretamente na armadilha de Bin Laden [...] Orçamentos e gastos militares grotescamente inchados e o vício compulsivo em dívidas [...] talvez sejam o mais pernicioso legado do homem que julgou ser capaz de derrotar os Estados Unidos.”[33] Um relatório do projeto Custos de guerra do Instituto Watson para estudos internacionais e públicos da Universidade Brown estima que a conta final será de 3,2 a 4 trilhões de dólares.[34] Um feito impressionante de Bin Laden.

Que Washington tinha toda a resoluta intenção de cair na armadilha de Bin Laden logo ficou evidente. Michael Scheuer, o analista sênior da CIA responsável por perseguir e rastrear os passos de Bin Laden de 1996 a 1999, escreveu que “Bin Laden, com precisão cirúrgica, mostrou aos Estados Unidos as razões pelas quais está desencadeando sua guerra contra nós”. O líder da al-Qaeda, continuou Scheuer, estava “determinado a alterar de forma drástica as políticas dos EUA e do Ocidente em relação ao mundo islâmico”.

E, conforme explica Scheuer, Bin Laden foi muito bem-sucedido. “As forças e as políticas dos EUA estão completando a radicalização do mundo islâmico, algo que Osama bin Laden vem tentando fazer com sucesso substancial, porém incompleto, desde o início dos anos 1990. O resultado, parece-me justo concluir, é que os Estados Unidos da América continuam a ser o único aliado indispensável de Bin Laden”.[35] E possivelmente continuam a sê-lo, mesmo após a morte do líder da Al-Qaeda.

Existem bons motivos para acreditar que o movimento jihadista pudesse ter sido dividido e minado após o 11 de Setembro, que recebeu severas críticas dentro do próprio movimento. Além disso, o “crime contra a humanidade”, como foi corretamente rotulado, poderia ter sido tratado como um crime, com uma operação internacional para capturar os presumíveis suspeitos. Essa ideia foi aceita logo após o ataque, mas a sua execução nem sequer foi cogitada pelos tomadores de decisões em Washington. Parece que não se levou a sério a oferta provisória feita pelo Talibã – ainda que não tenhamos como avaliar o grau de seriedade dessa oferta – de apresentar os líderes da al-Qaeda para que fossem submetidos a um processo judicial.

À época, citei a conclusão de Robert Fisk de que o horrendo crime de 11 de Setembro foi cometido com “maldade e crueldade impressionantes” – um juízo exato. Os crimes poderiam ter sido ainda piores: suponhamos, por exemplo, que o voo 93, derrubado por corajosos passageiros na Pensilvânia, tivesse ido tão longe a ponto de atingir a Casa Branca, matando o presidente? Suponhamos que os criminosos planejassem e lograssem impor uma ditadura militar que matasse milhares e torturasse dezenas de milhares. Suponhamos que a nova ditadura estabelecesse, com o apoio dos criminosos, um centro de terror internacional que ajudasse a instalar em outros países regimes de tortura e terror similares e, a cereja do bolo, trouxesse uma equipe de economistas – vamos chamá-los de “os meninos de Kandahar” – que rapidamente conduzisse a economia a uma das piores depressões de sua história. Claramente, isso teria sido muito pior do que o 11 de Setembro.”

33. Eric S. Margolis, “Osama’s Ghost”, American Conservative, 20 de maio de 2011.

34. Daniel Trotta, “Cost of War at Least $3.7 Trillion and Counting”, Reuters, 29 de junho de 2011.

35. Michael Scheuer, Imperial Hubris: Why the West Is Losing the War on Terror (Washington: Potomac Books, 2004).

 

 

“Quanto à responsabilidade dos intelectuais, a meu ver não parece haver muito a dizer além de algumas verdades simples: os intelectuais são geralmente privilegiados; o privilégio enseja oportunidades, e a oportunidade confere reponsabilidades. Um indivíduo tem, então, escolhas.”

 

 

A amnésia histórica é um fenômeno perigoso, não só porque mina a integridade moral e intelectual, mas também porque prepara o terreno e estabelece as bases para crimes que ainda estão por vir.”

 

 

“Os EUA e seus aliados ocidentais estão resolvidos a fazer tudo o que puderem para impedir uma democracia autêntica no mundo árabe. Para entender por quê, basta apenas dar uma olhada nas pesquisas de opinião realizadas no mundo árabe por agências norte-americanas de sondagem. Embora os resultados sejam pouco divulgados, são de conhecimento dos responsáveis pelo planejamento político. Revelam que a esmagadora maioria de árabes vê os EUA e Israel como as maiores ameaças que enfrentam: é o que pensam 90% dos egípcios e mais de 75% dos habitantes da região como um todo. A título de contraste, 10% dos árabes consideram o Irã uma ameaça. A oposição às diretrizes políticas dos EUA é tão forte que uma maioria acredita que a segurança melhoraria se o Irã dispusesse de armamento nuclear (é a opinião de 80% dos egípcios).[9] Outros dados de pesquisa mostram resultados semelhantes. Se a opinião pública pudesse influir nas decisões, os EUA não só não poderiam controlar a região, mas seriam expulsos dela junto com todos os seus aliados, o que arruinaria os princípios fundamentais da dominação global.”

9. Centro de Pesquisas Pew, “Egyptians Embrace Revolt Leaders, Religious Party and Military, As Well”, 25 de abril de 2011, http://pewglobal.org/files/2011/04/Pew-Global-Attitudes-Egypt-Report-FINAL-April-25-2011.pdf.

 

 

O desprezo da elite pela democracia revelou-se de maneira eloquente e impactante na reação às revelações e aos vazamentos de informações do WikiLeaks. Os que receberam maior atenção, com comentários eufóricos, foram os cabogramas informando o apoio dos árabes à posição dos EUA acerca do Irã. A referência era aos ditadores no poder das nações árabes; a posição da opinião pública nem sequer recebeu menção.”

 

 

“A imprensa alerta que “os investidores e negociantes chineses estão preenchendo agora um vácuo no Irã, à medida que as empresas de muitas outras nações, notadamente as europeias, saem de cena”, e chama a atenção, em particular, para o fato de que a China está expandindo seu papel dominante nas indústrias energéticas iranianas.[19] Washington reage com uma pitada de desespero. O Departamento de Estado advertiu a China de que, se o país deseja ser aceito na “comunidade internacional” – um termo técnico para se referir aos Estados Unidos e quem mais porventura estiver de acordo com os norte-americanos –, então não pode “esquivar-se e evadir-se das responsabilidades internacionais, [que] são bem claras”: a saber, obedecer às ordens dos EUA.[20] É pouco provável que isso impressione ou abale a China.

É grande também a preocupação acerca da crescente ameaça militar chinesa. Um estudo recente do Pentágono alertou que o orçamento militar chinês aproxima-se de “um quinto do que o Pentágono gastou para planejar e realizar as guerras no Iraque e no Afeganistão” – uma fração do orçamento militar estadunidense, é óbvio. A expansão das forças militares chinesas poderia “tolher a capacidade dos navios de guerra norte-americanos de operar em águas internacionais ao largo da costa chinesa”, acrescentou The New York Times.[21]

Ao largo da costa da China, claro está; ninguém propôs ainda que os Estados Unidos eliminem as forças militares que impedem o acesso dos navios de guerra chineses ao Caribe. A incapacidade chinesa para compreender as regras da civilidade internacional é ilustrada de maneira mais patente por suas objeções aos planos para que o avançado porta-aviões nuclear da Marinha norte-americana George Washington se junte aos exercícios navais realizados a poucas milhas da costa da China, o que supostamente o colocaria em posição propícia para bombardear Pequim.

Em contraste, o Ocidente compreende que essas operações estadunidenses são, todas elas, levadas a efeito para defender a “estabilidade” e sua própria segurança. A revista liberal de esquerda The New Republic expressa a sua preocupação porque “a China enviou dez navios de guerra por meio de águas internacionais ao largo da ilha japonesa de Okinawa”.[22] Isso é, de fato, uma provocação – ao contrário do fato, não mencionado, de que Washington converteu a ilha em uma grande base militar, numa afronta aos veementes protestos da população de Okinawa. Isso não é uma provocação, conforme o princípio tácito de que nós somos os donos do mundo.”

19. Clayton Jones, “China Is a Barometer on Whether Israel Will Attack Nuclear Plants in Iran”, Christian Science Monitor, 6 de agosto de 2010.

20. Kim Ghattas, “US Gets Serious on Iran Sanctions”, BBC News, 3 de agosto de 2010.

21. Thom Shanker, “Pentagon Cites Concerns in China Military Growth”, The New York Times, 16 de agosto de 2010.

22. Joshua Kurlantzick, “The Belligerents”, The New Republic, 17 de fevereiro de 2011.

 

 

Na década de 1970 deu-se também uma drástica mudança na economia norte-americana, no sentido da financeirização e exportação da produção. Vários fatores convergiram para criar um círculo vicioso de extrema concentração da riqueza, primordialmente na fração do 1% mais abastado da população: altos executivos e presidentes de empresas, gestores de fundos de investimento de alto risco e afins. Isso levou à concentração do poder político, e por conseguinte políticas estatais para o favorecimento do incremento da concentração econômica; políticas fiscais, normas de governança corporativa, desregulamentação etc. Nesse ínterim, os custos das campanhas eleitorais subiram vertiginosamente, empurrando os partidos políticos para dentro dos bolsos do capital concentrado, cada vez mais financeiros: os republicanos, agindo por reflexo; os democratas – que agora são o que antes costumávamos chamar de republicanos moderados – não muito atrás.”

 

 

Enquanto a população em geral se mantiver passiva, apática, entretida com o consumismo ou distraída pelo ódio contra os vulneráveis, os poderosos continuarão fazendo o que lhes der na telha, e aos que sobreviverem não restará senão contemplar o resultado.”

 

 

“Embora as políticas de longa data dos Estados Unidos permaneçam em larga medida estáveis, com ajustes táticos, sob Obama houve algumas mudanças significativas. O analista militar Yochi Dreazen e seus coautores observaram na revista The Atlantic que, enquanto a política de Bush era capturar (e torturar) suspeitos, Obama simplesmente os assassina, incrementando o uso de armas de terror (drones) e comandos das Forças Especiais, muitos deles esquadrões de extermínio.[13] O cronograma das unidades das Forças Especiais prevê a atuação dessas tropas de elite em 120 países.[14] Agora do tamanho de todo o contingente militar do Canadá, essas forças são, a bem da verdade, um exército privado do presidente, questão discutida em detalhes pelo jornalista investigativo norte-americano Nick Turse no site Tom Dispatch.[15] A equipe que Obama enviou para assassinar Osama bin Laden já havia realizado talvez uma dúzia de missões similares no Paquistão. Como este e muitos outros fatos importantes ilustram, ainda que a hegemonia dos Estados Unidos tenha diminuído, sua ambição não definhou.

Outro tema comum, pelo menos entre aqueles que não são intencionalmente cegos, é que o declínio americano é, em grande medida, autoinfligido. A ópera-bufa em cartaz em Washington, cujo enredo gira em torno da decisão de “paralisar” ou não o governo, o que enoja o país (a grande maioria do qual considera que o Congresso deveria ser dissolvido) e desconcerta o mundo, tem poucos análogos nos anais da democracia parlamentar. O espetáculo está chegando inclusive a apavorar os patrocinadores da farsa. Os poderes corporativos estão agora preocupados, temendo que os extremistas que eles ajudaram a eleger possam acabar optando por derrubar o edifício do qual dependem a sua própria riqueza e seus privilégios, o poderoso Estado-babá que atende a seus interesses.

Certa vez, o eminente filósofo social norte-americano John Dewey descreveu a política como “a sombra que os grandes negócios lançam sobre a sociedade”, advertindo que “a atenuação da sombra não mudará a substância”.[16] Desde a década de 1970, a sombra tornou-se uma nuvem escura encobrindo a sociedade e o sistema político. O poder corporativo, a essa altura composto em larga medida de capital financeiro, chegou a um ponto em que ambas as organizações políticas, republicanos e democratas – que agora mal se assemelham a partidos tradicionais –, estão bem à direita da população nos temas mais importantes em debate.

Para o povo, a principal preocupação é a grave crise do desemprego. Nas atuais circunstâncias, esse problema crítico só poderia ser superado por um significativo estímulo governamental, muito além do que Obama iniciou em 2009, e que mal se equiparou à queda dos gastos estaduais e municipais, embora mesmo assim tenha salvado milhões de empregos. Para as instituições financeiras, a principal preocupação é o déficit. Portanto, somente o déficit está em discussão. A grande maioria da população (72%) é favorável a uma política de enfrentamento do déficit por meio da taxação dos muito ricos.[17] Os cortes nos programas de saúde enfrentam a oposição da esmagadora maioria (69% no caso do Medicaid, 78% para o Medicare).[18] O resultado provável é, portanto, o oposto.

Divulgando os resultados de um estudo sobre como o povo estadunidense eliminaria o déficit, Steven Kull, diretor do Programa para Consultas Públicas, que conduziu a análise, escreve que “tanto a administração como a Câmara liderada pelos republicanos estão fora de sintonia com os valores e as prioridades da opinião pública em relação ao orçamento [...] A maior diferença é que o povo é a favor de cortes profundos nos gastos de defesa, ao passo que o governo e a Câmara propõem aumentos modestos [...] A opinião pública também apoia gastos maiores em formação e capacitação profissional, educação e controle da poluição do que propõem o governo ou a Câmara”.[19]

Estima-se que os custos das guerras de Bush e Obama no Iraque e no Afeganistão cheguem a 4,4 trilhões de dólares – uma tremenda vitória para Osama bin Laden, cujo objetivo anunciado era levar os Estados Unidos à falência, arrastando o país para uma armadilha.[20] O orçamento militar norte-americano para 2011 – quase equivalente aos gastos com despesas militares do restante do mundo inteiro somado – foi maior em termos reais (ajustado à inflação) do que em qualquer outro momento desde a Segunda Guerra Mundial, e está programado para subir ainda mais.”

13. Yochi Dreazen, Aamer Madhani e Marc Ambinder, “The Goal Was Never to Capture Bin Laden”, The Atlantic, 4 de maio de 2011.

14. Nick Turse, “Iraq, Afghanistan, and Other Special Ops ‘Successes’”, TomDispatch, 25 de outubro de 2015, http://www.tomdispatch.com/blog/176060/.

15. Ver também Nick Turse, The Changing Face of Empire: Special Ops, Drones, Spies, Proxy Fighters, Secret Bases, and Cyberwarfare (Chicago: Haymarket Books/ Dispatch Books, 2012) e Nick Turse, Tomorrow’s Battlefield: U.S. Proxy Wars and Secret Ops in Africa (Chicago: Haymarket Books/Dispatch Books, 2015).

16. Robert Westbrook, John Dewey and American Democracy (Ithaca: Cornell University Press, 1991), 440.

17. Jennifer Epstein, “Poll: Tax Hike Before Medicare Cuts”, Politico, 20 de abril de 2011.

18. Jon Cohen, “Poll Shows Americans Oppose Entitlement Cuts to Deal with Debt Problem”, Washington Post, 20 de abril de 2011.

19. University of Maryland–College Park, “Public’s Budget Priorities Differ Dramatically from House and Obama”, comunicado à imprensa, Newswise.com, 2 de março de 2011, http://www.newswise.com/articles/publics-budget-priorities-differ-dramatically-from-house-and-obama.

20. Catherine Lutz, Neta Crawford e Andrea Mazzarino, “Costs of War”, Instituto Watson para Assuntos Internacionais e Públicos da Universidade Brown, http://watson.brown.edu/costsofwar/.

 

 

“Tais golpes autoinfligidos, ainda que cada vez mais potentes, não são uma inovação recente. Remontam à década de 1970, quando a política econômica nacional passou por transformações decisivas, dando fim ao que é chamado “a idade de ouro do capitalismo [de Estado]”. Dois elementos de peso foram a financeirização e o offshoring de produção (ou transferência de plantas industriais),* ambos relacionados ao declínio da taxa de lucros na indústria fabril e ao desmantelamento do sistema de Bretton Woods de controles de capital e moedas regulamentadas. O triunfo ideológico das “doutrinas de livre mercado”, seletivas como sempre, aplicou golpes adicionais, na medida em que essas doutrinas se traduziram em desregulamentação, regras de governança corporativa vinculando polpudas recompensas pagas a altos executivos de empresas a lucros de curto prazo e outras decisões políticas afins. A resultante concentração da riqueza rendeu maior poder político, acelerando um círculo vicioso que levou a uma extraordinária riqueza para uma ínfima minoria, enquanto para a grande maioria os rendimentos reais praticamente estagnaram.”

* O termo offshoring designa a transferência da atividade produtiva e respectivos postos de trabalho de regiões com consideráveis custos de produção para regiões onde o custo de produção é significativamente mais baixo, principalmente no que diz respeito à mão de obra e matérias-primas. (N. T.)

 

 

“Alguns aniversários significativos são comemorados de forma solene – o do ataque japonês à base aérea e naval norte-americana de Pearl Harbor, por exemplo. Outros são ignorados, e podemos aprender com eles valiosas lições sobre o que o futuro provavelmente nos reserva.

Não houve comemoração nenhuma do 50º aniversário da decisão do presidente John F. Kennedy de desferir o mais assassino e destrutivo ato de agressão do período pós-Segunda Guerra Mundial: a invasão do Vietnã do Sul e, depois, de toda a Indochina, o que deixou milhões de mortos e quatro países devastados, e o número de baixas ainda hoje aumenta progressivamente, por causa dos efeitos de longo prazo da exposição do Vietnã do Sul aos carcinógenos mais letais conhecidos, despejados com o intuito de destruir a cobertura vegetal e a produção de alimentos.

O primeiro alvo foi o Vietnã do Sul. A seguir, a agressão se espalhou para o Norte, e depois para a remota sociedade camponesa do norte do Laos, até finalmente chegar ao rural Camboja, bombardeado em níveis impressionantes, equivalente a todas as operações aéreas aliadas realizadas na região do Pacífico durante a Segunda Guerra Mundial, incluindo as duas bombas atômicas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki. Neste caso, as ordens do consultor de Segurança Nacional de Henry Kissinger estavam sendo obedecidas – “jogar qualquer coisa que voe sobre tudo que se mova”, um chamamento aberto para o genocídio como raras vezes se viu na história.[1] Pouco disso é lembrado. A maior parte desses fatos mal é conhecida fora dos estreitos círculos de ativistas.”

1. Elizabeth Becker, “Kissinger Tapes Describe Crises, War and Stark Photos of Abuse”, The New York Times, 27 de maio de 2004.

 

 

“A vitória mais importante das guerras da Indochina deu-se em 1965, quando um golpe de Estado militar liderado pelo general Suharto e respaldado pelos EUA resultou numa criminosa matança que a CIA comparou às chacinas de Hitler, Stálin e Mao. O “assombroso morticínio”, segundo a descrição no jornal The New York Times, foi noticiado com exatidão de detalhes por toda a mídia dominante, e com incontida euforia.[17]

Foi um “brilho de luz na Ásia”, de acordo com o que escreveu o renomado comentarista de esquerda James Reston, no Times.[18] O golpe deu fim à ameaça de democracia ao demolir o partido político de massas, dos pobres, instituindo uma ditadura que compilaria os piores registros de violações dos direitos humanos na história do mundo e que escancarou as riquezas do país para os investidores ocidentais. Não é de surpreender que, mesmo depois de tantos horrores, inclusive a quase genocida invasão do Timor Leste, Suharto tenha sido recebido de bom grado numa visita à Casa Branca em 1995, ocasião em que a administração Clintou saudou-o como “nosso tipo de homem”.[19]”

17. Seymour Topping, “Slaughter of Reds Gives Indonesia a Grim Legacy”, The New York Times, 24 de agosto de 1966.

18. James Reston, “A Gleam of Light in Asia”, The New York Times, 19 de junho de 1966.

19. David Sanger, “Why Suharto Is In and Castro Is Out”, The New York Times, 31 de outubro de 1995.

 

 

“A Primavera Árabe, outro acontecimento de importância histórica, talvez pressagie pelo menos uma “perda” parcial do MENA. Os Estados Unidos e seus aliados vêm tentando com afinco evitar esse resultado – até aqui, com considerável sucesso. Sua política com relação às revoltas populares aferrou-se com unhas e dentes às diretrizes padrão: apoiar as forças mais dóceis e submissas à influência e ao controle dos EUA.

Os ditadores favorecidos devem ser respaldados durante o tempo em que conseguirem manter o controle (como os principais Estados produtores de petróleo). Quando isso já não for possível, descarte-os e tentem restaurar o antigo regime da forma mais completa possível (como na Tunísia e no Egito). O padrão geral é conhecido em outros lugares do mundo, por ser praticado por Somoza, Marcos, Duvalier, Mobutu, Suharto e muitos outros. No caso da Líbia, as três tradicionais potências imperiais, violando a resolução do Conselho de Segurança da ONU que elas mesmas tinham acabado de endossar, tornaram-se a força aérea dos rebeldes, aumentando de forma acentuada o número de baixas civis e criando um desastre humanitário e caos político à medida que o país descambava para a guerra civil e abundantes quantidades de armamento caíam nas mãos de jihadistas na África Ocidental e outras regiões.[21]”

21. Alan J. Kuperman, “Obama’s Libya Debacle”, Foreign Affairs 94, nº 2 (março/abril de 2015).

Um comentário:

  1. A tradução do livro é bem problemática.
    Para dar um exemplo simples (há muitas outras escolhas bem questionáveis), a expressão “back channel to Cuba” é traduzido de distintas formas na página 247 (Vias escusas para Cuba) e 254 (Bastidores de Cuba).

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