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terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Por Marx (Parte I), de Louis Althusser

Editora: Unicamp

ISBN: 978-85-268-1232-1

Opinião: ★★☆☆☆☆

Páginas: 216

Sinopse: Esta coletânea de artigos, publicada pela primeira vez em 1965 pelas Éditions François Maspero, teve um sucesso excepcional para uma obra teórica. Como notava Élisabeth Badinter no jornal Combat de 25 de abril de 1974: “Os estudantes e os intelectuais marxistas descobriram Althusser e, por seu intermédio, se não um novo Marx, ao menos uma nova maneira de o ler. Desde a Crítica da razão dialética de Sartre, Althusser é o único filósofo a propor uma interpretação verdadeiramente original das obras de Marx.” A partir da década de 1960, os estudos marxistas não puderam ignorar esta abordagem que estabelecia um “corte epistemológico” na obra marxiana, separando os textos ideológicos do Jovem Marx da obra científica da maturidade. Ela oferecia também outra avaliação do aporte de Hegel a Marx e não hesitava em se inspirar nas reflexões filosóficas de Mao Tsé-Tung para alimentar sua própria filosofia. Raros são os livros tendo suscitado tantas paixões teóricas e provocado tantos debates.

 

“Os breves clarões das “Teses sobre Feuerbach“ inundam de luz todos os filósofos que delas se aproximam, mas todos sabem que um clarão ofusca mais do que ilumina, e que nada é mais difícil de situar no espaço da noite do que um relâmpago que a atravessa. Um dia será preciso tornar visível o enigmático dessas onze teses falsamente transparentes.”

 

 

“Com efeito, não é somente depois de 1845 que Marx desenvolve uma crítica sistemática de Hegel, mas desde o segundo momento de seu período de juventude, como se pode ver na crítica da filosofia do Estado de Hegel (Manuscrito de 1843), no prefácio à Crítica da filosofia do direito de Hegel (1843), nos Manuscritos de 1844 e n’A sagrada família. Ora, essa crítica a Hegel não é outra coisa senão, nos seus princípios teóricos, a retomada, o comentário, ou o desenvolvimento e a extensão, da admirável crítica a Hegel formulada várias vezes por Feuerbach. É uma crítica da filosofia hegeliana como especulação, como abstração, uma crítica conduzida em nome dos princípios da problemática antropológica da alienação; uma crítica que recorre do abstrato-especulativo ao concreto-materialista, ou seja, que permanece serva da problemática idealista da qual se quer libertar; uma crítica que pertence então, de fato, à problemática teórica com a qual Marx vai romper em 1845.”

 

 

“Que tal definição não se possa ler diretamente nos textos de Marx, que todo um aparato crítico prévio seja indispensável para identificar o lugar de residência dos conceitos próprios de Marx em sua maturidade; que a identificação desses conceitos seja uma e a mesma coisa que a identificação de seu lugar; que todo esse trabalho crítico, pré-requisito absoluto de toda interpretação, suponha a aplicação de um mínimo de conceitos teóricos marxistas provisórios, abordando a natureza das formações teóricas e sua história; que a leitura de Marx tenha então como condição prévia uma teoria marxista da natureza diferencial das formações teóricas e de sua história, ou seja, uma teoria da história epistemológica, que é a própria teoria marxista; que essa operação constitui em si um círculo indispensável, em que a aplicação da filosofia marxista a Marx aparece como a condição prévia absoluta da inteligência de Marx e, ao mesmo tempo, como a condição mesma da constituição e do desenvolvimento da filosofia marxista, isso é claro. Mas o círculo dessa operação não é, como todo círculo desse gênero, senão o círculo dialético da pergunta feita a um objeto sobre sua natureza, a partir de uma problemática teórica que, pondo seu objeto à prova, se põe à prova de seu objeto. Que o marxismo possa e deva ser ele mesmo o objeto da questão epistemológica e que essa questão epistemológica só possa ser feita em função da problemática teórica marxista são pontos absolutamente necessários para uma teoria que se define dialeticamente não apenas como ciência da história (materialismo histórico), mas também e simultaneamente como filosofia, capaz de explicar a natureza das formações teóricas, e de sua história, portanto capaz de dar conta de si mesma, tomando-se a si mesma por objeto. O marxismo é a única filosofia que enfrenta teoricamente esse teste.”

 

 

“Marx se separou de Feuerbach quando tomou consciência de que a crítica feuerbachiana de Hegel era uma crítica “do seio mesmo da filosofia hegeliana”, que Feuerbach era ainda um “filósofo”, que “invertera”, é certo, o corpo do edifício hegeliano, porém conservara sua estrutura e seus fundamentos últimos, ou seja, seus pressupostos teóricos. Aos olhos de Marx, Feuerbach ficara na terra hegeliana, permanecia prisioneiro dela embora fizesse sua crítica, não fazia mais do que voltar contra Hegel os princípios do próprio Hegel. Não trocara de “elemento”. A verdadeira crítica marxista de Hegel supõe justamente que se tenha trocado de elemento, ou seja, que se tenha abandonado essa problemática filosófica da qual Feuerbach permanecia prisioneiro rebelde.”

 

 

“Essa exigência metodológica implica primeiramente um conhecimento efetivo e não alusivo da substância e da estrutura desse campo ideológico fundamental. Ela implica que não se fique satisfeito com a representação de um mundo ideológico tão neutro como um palco, ao qual compareceriam, em encontros de circunstância, personagens tão célebres quanto inexistentes. O destino de Marx nos anos 1840-1845 não se define num debate ideal entre personagens que se chamam Hegel, Feuerbach, Stirner, Hess, entre outros. O destino de Marx não se define entre esses mesmos Hegel, Feuerbach, Stirner, Hess, tais como eles aparecem nas obras de Marx desse período. Menos ainda nas evocações muito gerais que farão mais tarde Engels e Lenin. Ele se define entre personagens ideológicos concretos aos quais o contexto ideológico impõe uma figura determinada – que não coincidem necessariamente com sua identidade histórica literal (por exemplo, Hegel), que extravasam amplamente a representação explícita que Marx dá deles nos próprios textos em que são citados, invocados, criticados (por exemplo, Feuerbach) e, evidentemente, as características gerais resumidas que Engels oferecerá deles 40 anos mais tarde.

Para ilustrar essas observações com exemplos concretos, direi que o Hegel com o qual se debate o Jovem Marx desde sua tese de doutorado não é o Hegel de biblioteca sobre o qual podemos meditar na solidão de 1960: é o do movimento neo-hegeliano, um Hegel já invocado para fornecer aos intelectuais alemães dos anos 1840 os meios para pensar sua própria história e suas esperanças; é um Hegel já posto em contradição consigo mesmo, invocado contra si mesmo, a despeito de si mesmo. Essa ideia de uma filosofia tornando-se vontade, saindo do mundo da reflexão para transformar o mundo político, na qual se poderia ver a primeira rebelião de Marx contra seu mestre, está em perfeito acordo com a interpretação dominante dos neo-hegelianos.28 Não discordo que Marx exerça, já em sua tese, aquela sensibilidade aguda para os conceitos, aquele rigor implacável do traço e aquele gênio de concepção que lhe trará a admiração de seus amigos. Mas essa ideia não é criação sua. Seria mesmo muito imprudente reduzir a presença de Feuerbach nos textos de Marx entre 1841 e 1844 unicamente à sua menção explícita, pois numerosas passagens reproduzem ou parafraseiam diretamente desenvolvimentos feuerbachianos, sem que o nome Feuerbach seja citado. A passagem extraída por Togliatti dos Manuscritos de 1844 vem diretamente de Feuerbach; poder-se-iam invocar muitas outras cujo mérito se atribui um pouco depressa a Marx. Mas por que Marx devia citar Feuerbach quando todos o conheciam, e, sobretudo, quando ele se apropriara de seu pensamento e pensava nos pensamentos dele como nos seus próprios? Mas é preciso, ver-se-á num instante, ir ainda além da presença não mencionada dos pensamentos de um autor vivo, é preciso avançar até a presença da possibilidade de seus pensamentos: até sua problemática, ou seja, até a unidade constitutiva dos pensamentos efetivos que compõem esse domínio do campo ideológico existente, com o qual um autor singular se explica em seu próprio pensamento. Percebe-se logo que, se não se pode pensar sem o campo ideológico a unidade de um pensamento singular, esse campo por sua vez exige, para ser pensado, que se pense essa unidade.

28 Cf. A. Cornu, Karl Marx et F. Engels, tomo I, PUF. Os anos de infância e de juventude. A esquerda hegeliana. [Les années d’enfance et de jeunesse. La gauche hégélienne.] Capítulo sobre “a formação da esquerda hegeliana”, particularmente p. 141 e ss. Cornu insiste muito justamente no papel de von Cieskowski na elaboração de uma filosofia da ação de inspiração neo-hegeliana, adotada por todos os jovens intelectuais liberais do movimento.

 

 

“Não posso abordar aqui um estudo dos conceitos em ação nas análises d’A ideologia alemã. Eis um simples texto, que diz tudo. Trata-se da “crítica alemã”: “Todas as suas questões brotaram no terreno de um sistema filosófico determinado, o hegelianismo. Não somente em suas respostas, mas já nas próprias perguntas havia uma mistificação”. Não se poderia dizer melhor que não é a resposta que faz a filosofia, mas a própria pergunta colocada pela filosofia, e que é na pergunta, ou seja, na maneira de refletir sobre um objeto (e não nesse objeto) que é preciso procurar a mistificação ideológica (ou, ao contrário, a relação autêntica com o objeto).”

 

 

“A compreensão de um desenvolvimento ideológico implica, no nível da própria ideologia, o conhecimento conjunto e simultâneo do campo ideológico no qual surge e se desenvolve um pensamento; e a atualização da unidade interna desse pensamento: sua problemática. O conhecimento do campo ideológico supõe o conhecimento das problemáticas que aí se compõem ou se opõem. É o relacionamento da problemática própria do pensamento individual considerado com as problemáticas próprias dos pensamentos pertencentes ao campo ideológico que pode mostrar qual é a diferença específica de seu autor, ou seja, se surge um sentido novo. Evidentemente, a história real ronda todo esse processo complexo.”

 

 

“Os intelectuais alemães de 1830 a 1840 olham para a França e a Inglaterra como para terras da liberdade e da razão, sobretudo após a Revolução de Julho e a lei eleitoral inglesa de 1832. Ainda uma vez, em vez de vivê-lo, eles pensam o que outros fizeram. Mas como o pensam dentro do elemento da filosofia, a constituição francesa e a lei inglesa tornam-se, para eles, o reino da Razão – e é então da Razão, acima de tudo, que aguardam a revolução liberal alemã.42 Tendo o fracasso de 1840 desvelado a impotência da Razão (alemã) por si mesma, procuram auxílio fora; e vê-se aparecer entre eles esse tema incrivelmente ingênuo e comovente, que é a própria confissão de seu atraso e de sua ilusão, mas uma confissão no seio mesmo da ilusão, que o futuro cabe à união mística da França e da Alemanha, à união do senso político francês e da teoria alemã.43 São, portanto, perseguidos por realidades que apenas percebem mediante seu próprio esquema ideológico, mediante sua própria problemática, e que são por ela deformadas.44 E quando, em 1843, decepcionado com o fracasso da tentativa de ensinar aos alemães a Razão e a Liberdade, Marx decide enfim partir para a França, é ainda em grande medida em busca de um mito que ele parte, como podia, há alguns anos, partir em busca de seu mito da França, a maioria dos estudantes dos países coloniais ou dominados.45 Mas então produziu-se esta descoberta fundamental: a descoberta de que a França e a Inglaterra não correspondem a seu mito, a descoberta da realidade francesa e da realidade inglesa, das mentiras da política pura, a descoberta da luta de classes, do capitalismo em carne e osso e do proletariado organizado. Uma extraordinária divisão do trabalho fez Marx descobrir assim a realidade da França, e Engels, a realidade da Inglaterra. Aí também é preciso falar de uma volta atrás (e não de uma “superação”), ou seja, da volta do mito à realidade, de uma experiência efetiva, que rasgou os véus da ilusão na qual Marx e Engels viviam, pelo fato de seu próprio começo.

Mas essa volta atrás da ideologia para a realidade começava a coincidir com a descoberta de uma realidade radicalmente nova, da qual Marx e Engels não encontravam nenhum eco nos textos da “filosofia alemã”. O que Marx descobriu na França foi a classe operária organizada, e Engels na Inglaterra o capitalismo desenvolvido e uma luta de classes que seguia suas próprias leis, prescindindo da filosofia e dos filósofos.46

Foi essa dupla descoberta que desempenhou o papel decisivo na evolução intelectual do Jovem Marx: a descoberta, para aquém da ideologia que a deformara, da realidade de que ela falava, e a descoberta, para além da ideologia contemporânea que a ignorava, de uma realidade nova. Marx tornou-se ele mesmo ao pensar essa dupla realidade dentro de uma teoria rigorosa, mudando de elemento, e ao pensar a unidade e a realidade desse novo elemento. Evidentemente, é preciso compreender que essas descobertas foram inseparáveis da experiência pessoal de Marx no seu conjunto, que é inseparável da história alemã que ele vivia diretamente. Pois, apesar de tudo, acontecia algo na Alemanha. Não se percebia somente o eco atenuado dos acontecimentos do estrangeiro. A ideia de que tudo se passava fora e nada dentro era, ela mesma, uma ilusão do desespero e da impaciência: pois a história que fracassa, não avança ou se repete é, sabemo-lo bem, ainda uma história.”

42 É o momento “liberal” do movimento jovem hegeliano. Ver Corou, op. cit., cap. IV, p. 132 e ss.

43 Tema amplamente desenvolvido pelos neo-hegelianos. Cf. Feuerbach, Teses provisórias para a reforma da filosofia, parágrafos 46 e 47 (PUF, pp. 1 1 6- 1 17).

44 Essa problemática implica, no fundo, a deformação dos problemas históricos reais em problemas filosóficos. O problema real da revolução burguesa, do liberalismo político, da liberdade de imprensa, do fim da censura, da luta contra a Igreja etc. é transformado em problema filosófico: o do reino da Razão, cujo triunfo a História deve assegurar, a despeito das aparências da realidade. Essa contradição da Razão, que é a essência interna e o fim da história, e da realidade da história presente, eis o problema fundamental dos neo-hegelianos. Essa proposição do problema (essa problemática) comanda evidentemente suas soluções: se a Razão é o fim da História e sua essência, basta fazer com que ela seja reconhecida até em suas aparências contrárias: toda a solução reside, portanto, na onipotência crítica da filosofia que deve tornar-se prática dissipando as aberrações da História em nome de sua verdade. Pois denunciar as desrazões da história real é apenas enunciar sua própria razão atuando nas suas desrazões mesmas. Assim, o Estado é a verdade em ato, a encarnação da verdade da História. Basta convertê-lo a essa verdade. É por isso que essa “prática” se reduz definitivamente à crítica filosófica e à propaganda teórica: basta denunciar as desrazões para que elas cedam, e dizer a razão para que ela vença. Tudo depende, portanto, da filosofia, que é por excelência a cabeça e o coração (depois de 40 será apenas a cabeça ... o coração será francês !) da Revolução. Isso no que diz respeito às soluções requeridas pela maneira de propor o problema fundamental. Mas o que é infinitamente mais esclarecedor, e ainda a respeito dessa problemática, é descobrir, comparando-a aos problemas reais propostos pela história aos neo-hegelianos, que essa problemática, embora responda a problemas reais, não corresponde a nenhum desses problemas reais; que nada se decide entre a razão e a desrazão, que a desrazão não é uma desrazão e não é uma aparência, que o Estado não é a liberdade em ato etc. Ou seja, que os objetos sobre os quais essa ideologia parece refletir, através de seus problemas, nem mesmo são representados em sua realidade “imediata”. Quando se chega ao fim dessa comparação, não só as soluções trazidas pela ideologia a seus próprios problemas caem (elas são apenas a reflexão desses problemas sobre si mesmos), mas a problemática mesma cai; o que aparece, então, é a deformação ideológica em toda a sua extensão: mistificação dos problemas e dos objetos. Compreende-se assim o que Marx queria dizer ao falar da necessidade de abandonar o terreno da filosofia hegeliana, pois “não somente em suas respostas, mas já nas próprias perguntas havia uma mistificação”.

45 Cf. “Carta a Ruge” [Lettre à Ruge] (set. 1843). Ed. Costes das Obras filosóficas de Marx, p. 205.

46 Cf. o artigo de Engels (1844) “Umrisse zu einer Kritik der Nazionaloekonomie”; esse artigo, que Marx mais tarde declarou “genial”, exerceu sobre ele influência muito profunda. Em geral, sua importância é subestimada.

 

 

“Tudo acontece, com efeito, como se a necessidade que Marx teve de se libertar de seu começo – ou seja, de atravessar e dissipar esse mundo ideológico extraordinariamente pesado que o recobria – tivesse tido não só uma significação negativa (a libertação das ilusões), mas também uma significação de algum modo formadora, apesar dessas mesmas ilusões. Pode-se certamente considerar que a descoberta do materialismo histórico estava “no ar”, e que, em muitos aspectos, Marx despendeu uma soma prodigiosa de esforços teóricos para chegar a uma realidade e atingir verdades que já haviam sido, em parte, reconhecidas ou conquistadas. Teria havido assim uma “via curta” da descoberta (a de Engels no artigo de 1844, por exemplo,48 ou mesmo aquela cuja pista Marx admirava em Dietzgen) e uma “via longa”, a que Marx seguiu. O que Marx ganhou então nessa “longa marcha” teórica que lhe foi imposta pelo seu próprio começo? O que ganhou então por ter começado tão longe do final, por ter permanecido tanto tempo na abstração filosófica e ter percorrido tais espaços para reencontrar a realidade? Provavelmente, ter exercitado seu espírito crítico como ninguém, ter adquirido esse incomparável “olho clínico” para a história, alerta para a luta de classes e para as ideologias; mas também, no contato de Hegel, sobretudo, ter adquirido o sentido e a prática da abstração, indispensável à constituição de toda teoria científica, o sentido e a prática da síntese teórica, e da lógica de um processo cujo “modelo” abstrato e puro” a dialética hegeliana lhe oferecia. Indico aqui essas referências, sem pretender trazer ainda uma resposta a essa pergunta; mas elas permitem talvez definir, ainda pendente a confirmação pelos estudos científicos em curso, qual pode ter sido o papel dessa ideologia alemã, e mesmo da “filosofia especulativa” alemã na formação de Marx. Estaria inclinado a ver aí menos um papel deformação teórica do que um papel deformação para a teoria, uma espécie de pedagogia do espírito teórico por meio das formações teóricas da própria ideologia. Como se, dessa vez, mas numa forma alheia à sua pretensão, esse sobredesenvolvimento ideológico do espírito alemão tivesse servido duplamente de propedêutica ao Jovem Marx: ao mesmo tempo pela necessidade que lhe impôs criticar toda a sua ideologia para atingir o aquém de seus mitos e pelo treinamento que lhe deu para manejar as estruturas abstratas de seus sistemas, independentemente da validade deles. E se se aceitar tomar alguma distância em relação à descoberta de Marx, considerar que ele fundou uma nova disciplina científica, que esse próprio surgimento é análogo a todas as grandes descobertas científicas da história, é preciso convir que nenhuma grande descoberta se fez sem que fosse evidenciado um novo objeto ou um novo domínio, sem que aparecesse um novo horizonte de sentido, uma nova terra, de onde são banidos os antigos mitos e as antigas imagens. Contudo, ao mesmo tempo, é preciso reconhecer como absolutamente necessário que o inventor desse novo mundo tenha exercitado o espírito nas formas antigas mesmas, que as tenha aprendido e praticado; que, na sua crítica, tenha adquirido o gosto e aprendido a arte de manejar formas abstratas em geral, sem a familiaridade das quais não teria podido conceber outras novas para pensar seu novo objeto. No contexto geral do desenvolvimento humano que torna por assim dizer urgente, se não inevitável, toda grande descoberta histórica, o indivíduo que se torna seu autor está submetido à condição paradoxal de ter que aprender a arte de dizer o que vai descobrir com aquilo mesmo que deve esquecer. É talvez também essa condição que dá às obras de juventude de Marx esse aspecto trágico da iminência e da permanência, essa extrema tensão entre o começo e o fim, entre a linguagem e o sentido, dos quais não se poderia fazer uma filosofia sem esquecer que o destino que envolvem é irreversível.”

 

 

“E visto que é preciso expor-se, gostaria, por minha conta e risco, de tentar refletir um instante sobre o conceito marxista de contradição, a propósito de um exemplo preciso: o tema leninista do “elo mais fraco”.

Lenin dava, antes de tudo, um sentido prático a essa metáfora. Uma corrente vale o que vale seu elo mais fraco. Quem quer, em geral, controlar uma dada situação, cuidará para que nenhum ponto fraco torne vulnerável o conjunto do sistema. Quem quer, ao contrário, atacá-lo, ainda que as aparências da potência estejam contra ele, basta-lhe descobrir a única fraqueza, a qual torna precária toda essa força. Até aí, nada que seja uma revelação quando se leu Maquiavel ou Vauban, que conheciam tanto a arte de defender quanto a de arruinar uma praça-forte, julgando toda defesa por sua falha.

Mas aqui está o núcleo do problema. Se a teoria do elo mais fraco guia evidentemente Lenin em sua teoria do partido revolucionário (cuja consciência e cuja organização serão uma unidade sem falha para escapar a todo golpe adversário, abatendo ele mesmo o inimigo), ela inspira também sua reflexão sobre a própria revolução. Por que a revolução foi possível na Rússia, por que foi vitoriosa? Ela foi possível na Rússia por uma razão que ultrapassava a Rússia: porque, com o desencadeamento da guerra imperialista, a humanidade entrara numa situação objetivamente revolucionária. 1 O imperialismo perturbara a cara “pacífica” do velho capitalismo. A concentração dos monopólios “industriais e a submissão destes aos monopólios financeiros aumentaram a exploração operária e colonial. A concorrência dos monopólios tornava a guerra inevitável. Mas essa mesma guerra, recrutando para seus sofrimentos intermináveis massas imensas, e até povos coloniais dos quais se tiravam tropas, jogava sua gigantesca infantaria não só nos massacres, mas também na história. A experiência e o horror da guerra iam, em todos os países, servir de retransmissor e de revelador do longo protesto de um século inteiro contra a exploração capitalista; de ponto de fixação também, dando-lhe enfim a evidência fulgurante e os meios efetivos de ação. Mas essa conclusão, para a qual a maioria das massas populares da Europa foi arrastada (revoluções na Alemanha e na Hungria, motins e grandes greves na França e na Itália, os sovietes em Turim), não provocou o triunfo da revolução senão na Rússia, precisamente no país “mais atrasado” da Europa. Por que essa exceção paradoxal? Pela razão fundamental de que a Rússia representava, no “sistema de Estados” imperialistas,8 o ponto mais fraco. A Grande Guerra precipitou e agravou essa fraqueza: não a criou sozinha. A Revolução de 1905 já havia, com seu próprio fracasso, tomado e mostrado a medida da fraqueza da Rússia czarista. Essa fraqueza resultava deste traço específico: a acumulação e a exasperação de todas as contradições históricas então possíveis num único Estado. Contradições de um regime de exploração feudal reinando, sob a impostura dos popes, sobre uma enorme massa camponesa “inculta”,9 no alvorecer do século XX, tanto mais ferozmente quanto a ameaça crescia circunstância que aproximou singularmente a revolta camponesa da revolução operária. 10 Contradições da exploração capitalista e imperialista desenvolvidas em larga escala nas grandes cidades e em suas periferias, nas regiões mineradoras, petrolíferas etc. Contradições da exploração e das guerras coloniais, impostas a povos inteiros. Contradição gigantesca entre o grau de desenvolvimento dos métodos da produção capitalista (em particular quanto à concentração operária: a maior fábrica do mundo, a fábrica Putilov, reunindo 40 mil operários e auxiliares, ficava então em Petrogrado) e o estado medieval do campo. Exasperação da luta de classes em todo o país, não só entre exploradores e explorados, mas no interior das próprias classes dominantes (grandes proprietários feudais, apegados ao czarismo autoritário, policial e militarista; pequenos nobres fomentando constantemente conjurações; grandes burgueses e burguesia liberal em luta contra o czar; pequenos burgueses oscilando entre o conformismo e o “esquerdismo” anarquizante). Ao que se vieram juntar, no decorrer dos acontecimentos, outras circunstâncias “excepcionais”,11 ininteligíveis fora desse “emaranhado” das contradições internas e externas da Rússia. Por exemplo: o caráter ‘‘avançado” da elite revolucionária russa coagida pela repressão czarista ao exílio, onde se “cultivou” e colheu toda a herança da experiência política das classes operárias da Europa ocidental (e antes de tudo: o marxismo) – circunstância que não foi alheia à formação do partido bolchevique, que ultrapassava de longe em consciência e em organização todos os partidos “socialistas” ocidentais;12 o “ensaio geral” da Revolução de 1905, que lançou uma luz crua sobre as relações de classe, cristalizou-as, como ocorre geralmente em todo período de crise grave, permitindo também a “descoberta” de uma nova forma de organização política das massas: os sovietes;13 por fim, e não é o menos singular, o “descanso” inesperado que o esgotamento das nações imperialistas ofereceu aos bolcheviques para que abrissem “sua brecha” na história, o apoio involuntário, mas eficaz, da burguesia franco-inglesa, que, querendo se livrar do czar, fez, no momento decisivo, o jogo da revolução.14 Em suma, e até nesses pormenores, a situação privilegiada da Rússia perante a revolução possível deve-se a uma acumulação e uma exasperação de contradições históricas tais, que elas teriam sido ininteligíveis em qualquer outro país que não estivesse, como a Rússia, concomitantemente, atrasado pelo menos um século, em relação ao mundo do imperialismo, e à sua frente.

Lenin disse tudo isso em inúmeros textos,15 que Stalin resumiu em termos particularmente nítidos em suas conferências de abril de 1924.16 A desigualdade do desenvolvimento do capitalismo desembocou, através da guerra de 1914, na Revolução Russa porque a Rússia era, no período revolucionário aberto diante da humanidade, o elo mais fraco da corrente dos Estados imperialistas: porque ela acumulava a maior soma de contradições históricas então possível; porque era, ao mesmo tempo, a nação mais atrasada e a mais avançada, contradição gigantesca que suas classes dominantes, divididas entre si, não podiam ignorar, mas não podiam resolver. Noutros termos, a Rússia estava uma revolução burguesa em atraso na véspera de uma revolução proletária, grávida então de duas revoluções, incapaz, mesmo adiando uma, de conter a outra. Lenin via perfeitamente ao discernir nessa situação excepcional e “sem saída” (para as classes dirigentes)” as condições objetivas para uma revolução na Rússia, e ao forjar, nesse partido comunista que foi uma corrente sem elo fraco, as condições subjetivas, o meio de assalto definitivo contra esse elo fraco da corrente imperialista. (...)

Como resumir então essas provas práticas e seu comentário teórico, a não ser dizendo que toda a experiência revolucionária marxista demonstra que, se a contradição em geral (mas ela já é especificada: a contradição entre as forças produtivas e as relações de produção, encarnada essencialmente na contradição entre duas classes antagonistas) basta para definir uma situação em que a revolução está “na ordem do dia”, ela não pode, por sua simples virtude direta, provocar uma “situação revolucionária” e, com mais razão, uma situação de ruptura revolucionária e o triunfo da revolução. Para que essa contradição se torne “ativa” no sentido forte, princípio de ruptura, é preciso tal acumulação de “circunstâncias” e de “correntes” que, seja qual for a origem e o sentido (e muitas delas são necessariamente, por sua origem e seu sentido, paradoxalmente alheias, até “absolutamente opostas” à revolução), elas “fundem-se” numa unidade de ruptura: quando atingem esse resultado de agrupar a imensa maioria das massas populares no assalto de um regime que suas classes dirigentes são incapazes de defender.19 Essa situação supõe não só a “fusão” das duas condições fundamentais numa “crise nacional única”, mas cada condição, tomada (abstratamente) à parte, supõe também a “fusão” de uma “acumulação” de contradições. De outro modo, como seria possível que as massas populares, divididas em classes (proletários, camponeses, pequeno-burgueses), possam, consciente ou confusamente, se lançar juntas num assalto geral contra o regime existente? E como seria possível que as classes dominantes – que sabem, por uma longa experiência ·e igualmente seguro instinto, selar entre si, a despeito de suas diferenças de classe (senhores feudais, grandes burgueses, industriais, financistas etc.), a união sagrada contra os explorados – possam ser assim reduzidas à impotência, dilaceradas no instante supremo, sem solução nem dirigentes políticos sobressalentes, privadas de seus apoios de classe no estrangeiro, desarmadas dentro da própria fortaleza de seu aparelho de Estado e subitamente submersas por esse povo que controlavam tão bem pela exploração, pela violência e pela impostura? Quando nessa situação entra em jogo, no mesmo jogo, uma prodigiosa acumulação de “contradições” das quais algumas são radicalmente heterogêneas e não têm todas a mesma origem, nem o mesmo sentido, nem o mesmo nível e lugar de aplicação, e que, no entanto, “se fundem” numa unidade de ruptura, não é mais possível falar da única virtude simples da “contradição” geral. Decerto, a contradição fundamental que domina esse tempo (em que a revolução “está na ordem do dia”) está ativa em todas essas “contradições”, e até em sua ‘‘fusão”. Mas não se pode, contudo, pretender com todo o rigor que essas “contradições” e sua “fusão” sejam apenas seu puro fenômeno. Pois as “circunstâncias” ou as “correntes” que a realizam são mais do que seu puro e simples fenômeno. Elas dependem das relações de produção, que são um dos termos da contradição, mas, ao mesmo tempo, sua condição de existência; dependem das superestruturas, instâncias que dela derivam, mas têm sua consistência e eficácia próprias; dependem da própria conjuntura internacional, que intervém como determinação desempenhando seu papel específico.20 Quer dizer que as “diferenças” que constituem cada uma das instâncias em jogo (e que se manifestam nessa “acumulação’’ de que fala Lenin), se elas se “fundem” numa unidade real, não se “dissipam” como um puro fenômeno na unidade interior de uma contradição simples. A unidade que constituem nessa “fusão” da ruptura revolucionária,21 elas a constituem com sua essência e sua eficácia próprias, a partir do que são e segundo as modalidades específicas de sua ação. Ao constituir essa unidade, elas reconstituem e realizam a unidade fundamental que as anima, mas ao fazê-lo indicam também sua natureza: que a “contradição” é inseparável da estrutura do corpo social como um todo, no qual ela se exerce, inseparável de suas condições formais de existência, e mesmo das instâncias que governa; que é, portanto, a própria contradição, em seu âmago, afetada por elas, determinante mas igualmente determinada num único e mesmo movimento, e determinada pelos diversos níveis e pelas diversas instâncias da formação social que ela anima: poderíamos chamá-la sobredeterminada em seu princípio.22

Não tenho especial apreço pelo termo sobredeterminação (emprestado de outras disciplinas), mas emprego-o na falta de melhor, ao mesmo tempo como um índice e um problema, e também porque permite bastante bem ver porque lidamos com outra coisa que não a contradição hegeliana.

A contradição hegeliana, com efeito, nunca é realmente sobredeterminada, embora tenha com frequência todas as aparências disso. Na fenomenologia, por exemplo, que descreve as “experiências” da consciência, culminando sua dialética no advento do Saber absoluto, a contradição não parece simples, mas, pelo contrário, muito complexa. Rigorosamente, só a primeira contradição pode ser dita simples: a da consciência sensível e de seu saber. Mas quanto mais se avança na dialética de sua produção e quanto mais a consciência se torna rica, mais complexa é a contradição. Porém, poder-se-ia mostrar que essa complexidade não é a complexidade de uma sobredeterminação efetiva, mas a complexidade de uma interiorização cumulativa, que tem apenas as aparências da sobredeterminação. Com efeito, a cada momento de seu devir, a consciência vive e experimenta sua própria essência (que corresponde ao grau que ela atingiu) através de todos os ecos das essências anteriores que ela foi e através da presença alusiva das formas históricas correspondentes. Hegel indica com isso que toda consciência tem um passado suprimido-conservado (aufgehoben) em seu próprio presente e um mundo (o mundo cuja consciência ela poderia ser, mas que permanece como à margem na fenomenologia, com uma presença virtual e latente) – e, portanto, que ela tem também como passado os mundos de suas essências superadas. Mas essas formas passadas da consciência e esses mundos latentes (correspondentes a essas formas) jamais afetam a consciência presente como determinações efetivas diferentes dela mesma: essas formas e esses mundos dizem-lhe respeito apenas como ecos (recordações, fantasmas de sua historicidade) do que ela se tornou, ou seja, como antecipações de si ou alusões a si. É porque o passado nunca é mais do que a essência interior (em-si) do futuro que ele encerra, que essa presença do passado é a presença ante si da própria consciência, e não uma verdadeira determinação exterior a ela. Círculo de círculos, a consciência tem apenas um centro, o único a determiná-la: precisaria de círculos tendo outro centro que não ela, círculos descentrados, para que ela fosse afetada em seu centro pela eficácia deles, em suma, que sua essência fosse sobredeterminada por eles. Mas não é o caso.

Essa verdade é ainda mais clara na filosofia da história. Também nela se encontram as aparências da sobredeterminação: não é toda sociedade histórica constituída de uma infinidade de determinações concretas, das leis políticas à religião, passando pelos costumes, usos, regimes financeiro, comercial, econômico, sistema de educação, artes, filosofia etc.? No entanto, nenhuma dessas determinações é, em sua essência, exterior às outras, não só porque elas constituem todas juntas uma totalidade orgânica original, mas ainda e acima de tudo porque essa totalidade se reflete num princípio interno único, que é a verdade de todas essas determinações concretas. Assim Roma: sua gigantesca história, suas instituições, suas crises e seus empreendimentos não são mais do que a manifestação no tempo e depois a destruição do princípio interno da personalidade jurídica abstrata. Esse princípio interno contém nele como ecos todos os princípios das formações históricas superadas, mas como ecos de si mesmo, e é por isso que ele também não tem senão um centro, que é o centro de todos os mundos passados conservados em sua recordação – é por isso que ele é simples. E é nessa simplicidade mesma que aparece sua própria contradição: em Roma, a consciência estoica, como consciência da contradição inerente ao conceito da personalidade jurídica abstrata, que visa bem ao mundo concreto da subjetividade, mas falha. É essa contradição que fará explodir a própria Roma e produzirá seu futuro: a forma da subjetividade no cristianismo medieval. Toda a complexidade de Roma não sobredetermina então em nada a contradição do princípio simples de Roma, que não é senão a essência interior dessa infinita riqueza histórica.

Basta então perguntar-se por que os fenômenos de mutação histórica são pensados por Hegel mediante esse conceito simples de contradição, para colocar justamente a questão essencial. A simplicidade da contradição hegeliana não é possível, com efeito, a não ser pela simplicidade do princípio interno, que constitui a essência de todo período histórico. É porque de direito é possível reduzir a totalidade, a infinita diversidade de uma sociedade histórica dada (a Grécia, Roma, o Sacro Império, a Inglaterra etc.) a um princípio interno simples, que essa mesma simplicidade, adquirida assim de direito à contradição, pode se refletir aí. É preciso ser ainda mais claro? Essa redução mesma (cuja ideia Hegel tomou emprestada de Montesquieu), a redução de todos os elementos que fazem a vida concreta de um mundo histórico (instituições econômicas, sociais, políticas, jurídicas, costumes, moral, arte, religião, filosofia, até os acontecimentos históricos: guerras, batalhas, derrotas etc.) a um princípio de unidade interna, essa redução só é possível com a condição absoluta de considerar toda a vida concreta de um povo como a exteriorização-alienação (Entäusserung-Entfremdung) de um princípio espiritual interno, que jamais é, em última análise, senão a forma mais abstrata da consciência de si desse mundo: sua consciência religiosa ou filosófica, ou seja, sua própria ideologia. Percebe-se, penso eu, em que sentido a “ganga mística” afeta e contamina o “núcleo” – visto que a simplicidade da contradição hegeliana nunca é senão a reflexão da simplicidade desse princípio interno de um povo, ou seja, não de sua realidade material, mas de sua mais abstrata ideologia. Aliás, é por isso que Hegel pode nos representar como “dialética”, ou seja, movida pelo jogo simples de um princípio de contradição simples, a História Universal desde o longínquo Oriente até nossos dias. É por isso que não há nunca, no fundo, para ele, verdadeira ruptura, fim efetivo de uma história real, nem começo radical. É também por isso que sua filosofia da história está recheada de mutações todas uniformemente “dialéticas”. Ele não pode defender essa concepção estupefaciente a não ser mantendo-se no cimo do Espírito, onde pouco importa que um povo morra, visto que encarnou o princípio determinado de um momento da Ideia, que há outros às suas ordens, e visto que, encarnando-o, também o despojou, para legá-lo a essa Memória de Si que é a História, e na mesma ocasião a tal outro povo (mesmo que sua relação histórica com ele seja muito fraca!) o qual, refletindo-o na sua substância, encontrará aí a promessa de seu próprio princípio interno, ou seja, como por acaso o momento logicamente consecutivo da Ideia etc. É preciso compreender de uma vez que todas essas arbitrariedades (mesmo iluminadas por instantes por visões verdadeiramente geniais) não estão milagrosamente confinadas só à “concepção do mundo”, só ao “sistema” de Hegel, mas que elas se refletem de fato na estrutura, nas próprias estruturas de sua dialética, e particularmente nessa “contradição” que tem a tarefa de mover magicamente para seu Fim ideológico os conteúdos concretos desse mundo histórico.

É por isso que a “inversão” marxista da dialética hegeliana é outra coisa que uma extração pura e simples. Com efeito, se se perceber claramente a relação íntima estreita que a estrutura hegeliana da dialética mantém com a “concepção do mundo” de Hegel, ou seja, com sua filosofia especulativa, é impossível descartar verdadeiramente essa “concepção do mundo”, sem se obrigar a transformar profundamente as estruturas dessa mesma dialética. Senão, quer se queira quer não, arrastar-se-ão ainda, 150 anos depois da morte de Hegel, e 100 anos depois de Marx, os farrapos do famoso “invólucro místico”.”

7 Lenin, Obras escolhidas [CEuvres choisies], tomo XXIII, p. 400: “Foram as condições objetivas reunidas pela guerra imperialista que levaram a humanidade inteira a um impasse e a colocaram diante do dilema: deixar perecer ainda milhões de homens e aniquilar a civilização europeia ou transmitir o poder em todos os países civilizados ao proletariado revolucionário, realizar a revolução socialista”.

8 Lenin, “Relatório do CC ao VIII Congresso”, Obras, tomo XXIV, p. 122 (ed. russa).

9 Lenin, “Feuillets de bloc-notes”, Obras escolhidas, tomo II, p. 1.010 (ed. francesa).

10 Lenin, “A doença infantil do comunismo”, Obras escolhidas, tomo II, p. 732 (ed. francesa); “A Terceira Internacional”, Obras..., tomo XXIX, p. 313 (ed. francesa).

11 Lenin, “Sobre nossa revolução”, Obras escolhidas, tomo II, p. 1.023.

12 Lenin, “A doença infantil do comunismo”, Obras..., tomo II, p. 695.

13 Lenin, “A Terceira Internacional”, Obras..., tomo XXIX, pp. 313-3 14 (ed. francesa).

14 Lenin, “Conferência de Petrogrado”, Obras..., tomo XXIV, pp. 135-136 (ed. francesa).

15 Ver, em particular, “A doença infantil...”, Obras escolhidas, tomo II, pp. 964-965; 732, 751-752; 756; 760-76 1; “A Terceira Internacional”, Obras..., tomo XXIX, pp. 31J-312; “Sobre nossa revolução”, Obras..., tomo II, p. 1.023 e ss.; Cartas de longe: “Carta I”, Obras ..., tomo XXIII, p. 325 e ss.; “Carta de despedida aos operários suíços”, Obras..., tomo XIII, p. 396 e ss. etc. A notável teoria leninista das condições de uma revolução (“A doença infantil...”, Obras escolhidas, tomo II, pp. 750-751; 760-762) abarca perfeitamente os efeitos decisivos da situação específica da Rússia.

16 Stalin, Princípios do leninismo [Príncipes du léninisme] (Ed. Sociales), tomo II, pp. 12-15; 25-27; 70-71; 94-95; 106; 112. Textos notáveis em vários aspectos, apesar de sua secura “pedagógica”.

17 Lenin, “Sobre nossa revolução’’, Obras escolhidas, tomo II, p. 1.024.

19 Sobre toda essa passagem, ver: (1) Lenin, “A doença infantil...” (pp. 750-75 1; pp. 760-762), em particular: “é somente quando ‘os de baixo’ não querem mais viver e que ‘os de cima’ não podem mais continuar a viver da maneira antiga, é então somente que a revolução pode triunfar...” (p. 75 1). Essas condições formais são ilustradas, pp. 760-762; (2) Lenin, Cartas de longe, I, Obras... (ed. francesa), tomo XXIII, pp. 330-33 1, sobretudo: “se a revolução triunfou tão rapidamente [...] foi unicamente porque, em razão de uma situação histórica de extrema originalidade, correntes totalmente diferentes, interesses de classe totalmente heterogêneos, tendências sociais e políticas totalmente opostas se fundiram com uma coerência surpreendente [...]” (p. 330; grifado por Lenin).

20 Lenin chega até a considerar, entre as causas do triunfo da revolução soviética, as riquezas naturais do país e a vastidão de seu espaço; abrigo da revolução e de seus inevitáveis “recuos” militares e políticos.

21 A situação de “crise” desempenha, como disse Lenin frequentemente, um papel revelador da estrutura e da dinâmica da formação social que a vive. O que é dito da situação revolucionária diz respeito também, portanto, guardadas todas as proporções, à formação social numa situação anterior à crise revolucionária.

22 Cf. o desenvolvimento dedicado por Mao Tsé-tung ao tema da distinção das contradições antagônicas (explosivas, revolucionárias) e das não antagônicas (Sobre a contradição, Editora Pekin, 1960, p. 67 e ss.).

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