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sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

Luz Sobre a Idade Média (Parte II), de Régine Pernoud

Editora: Publicações Europa-América

ISBN: 978-97-2104-279-7

Opinião: ★★☆☆☆

Páginas: 208

Sinopse: Ver Parte I

 

A Idade Média, tal como se apresentava, corria o risco de nunca conhecer senão o caos e a decomposição. Nascida de um império desmoronado e de vagas de invasões sucessivas, formada por povos desarmônicos que tinham cada um os seus usos, seus quadros e sua ordem social diferentes, quando não opostos, e quase todos um sentido muito vivo das castas, da sua superioridade de vencedores, ela deveria apresentar o mais inconcebível esboroamento, e de fato o apresentou no início.

Contudo, verificamos que nos séculos XII e XIII essa Europa tão dividida, tão perturbada por ocasião do seu nascimento, atravessa uma era de harmonia e de união tal como nunca conhecera, e talvez não conhecerá mais no decorrer dos séculos. Por ocasião da primeira cruzada, vemos príncipes sacrificarem os seus bens e os seus interesses, esquecer as suas querelas para tomarem juntamente a Cruz. Os povos mais diferentes reuniram-se num único exército. A Europa inteira estremeceu à palavra de um Urbano II, de um Pedro, o Eremita, mais tarde de um São Bernardo ou de um Foulques de Neuilly. Vemos monarcas, preferindo a arbitragem à guerra, submeter-se ao julgamento do Papa ou de um rei estrangeiro para regularizar as suas dissensões. Fato ainda mais notável, encontramo-nos perante uma Europa organizada. Ela não é um império, não é uma federação — é a Cristandade.

É preciso reconhecer aqui o papel representado pela Igreja e pelo papado na ordem europeia. Foram, com efeito, fatores essenciais de unidade. A diocese, a paróquia, confundindo-se frequentemente com o domínio, foram durante o período de decomposição da Alta Idade Média as células vivas a partir das quais se reconstituiu a nação. As grandes datas que para sempre marcariam a Europa são as da conversão de Clóvis, assegurando no mundo ocidental a vitória da hierarquia e da doutrina católicas sobre a heresia ariana; e a coroação de Carlos Magno pelo Papa Estêvão II, que consagra o duplo poder espiritual e temporal, cuja união formará a base da cristandade medieval.

É preciso ter em conta, de uma maneira mais geral, a influência do dogma católico que ensina que todos os filhos da Igreja são membros de um mesmo corpo, como o lembram os versos de Rutebeuf:

 

Tous sont un corps en Jésus-Christ,

Dont je vous montre par l’écrit

Que li uns est membre de l’autre.

 

Todos somos um só corpo em Jesus Cristo,

E assim eu vos mostro, pelo que está afirmado,

Que nós somos membros d’Ele.

 

A unidade de doutrina, vivamente sentida na época, jogava a favor da união dos povos. Carlos Magno compreendera-o tão bem que, para conquistar a Saxônia, enviava missionários de preferência a exércitos, e o fazia por convicção, não por simples ambição. A história repetiu-se no Império Germânico com a dinastia dos Otões. A Cristandade pode definir-se praticamente como a “universidade” dos príncipes e dos povos cristãos obedecendo a uma mesma doutrina, animados de uma mesma fé, e reconhecendo desde logo o mesmo magistério espiritual. Esta comunidade de fé traduziu-se numa ordem europeia assaz desconcertante para cérebros modernos, bastante complexa nas suas ramificações, grandiosa contudo quando a examinamos no seu conjunto. A paz na Idade Média foi muito precisamente, segundo a bela definição de Santo Agostinho, “a tranquilidade da ordem”.

Um ponto central permanece fixo – o papado, centro da vida espiritual. Mas muito diversas são as suas relações com os diferentes Estados. Alguns estão ligados à Santa Sé por títulos especiais de dependência. É o caso do Império Romano-Germânico, cujo chefe, sem se encontrar sob a suserania do Papa, ao contrário do que se acreditou frequentemente, deve contudo ser escolhido ou pelo menos confirmado por ele. Isto explica-se, reportando-nos às circunstâncias que presidiram à sua fundação e à parte essencial que aí tinha tomado o papado, que não faz mais do que conferir-lhe o seu título e julgar casos de deposição. Outros reinos são vassalos da Santa Sé, pois num dado momento da sua história pediram aos papas a sua proteção: como os reis da Hungria, entregando-lhe solenemente a sua coroa; ou como os reis da Inglaterra, Polônia ou Aragão, pedindo-lhe que autenticasse os seus direitos, de modo que o selo de São Pedro ratifica doravante e preserva as suas liberdades. Outros enfim, e entre estes a França, não têm nenhum laço de dependência temporal com a Santa Sé, mas aceitam naturalmente as suas decisões em matéria de consciência, e também se submetem de boa vontade à sua determinação arbitral.

Tal é, nas suas grandes linhas, o edifício da Cristandade, como o precisou Inocêncio III numa época em que ela já se encontrava realizada na prática havia vários séculos. Assenta essencialmente numa harmonia de ordem mística entre os povos. Quando examinamos os princípios do equilíbrio europeu, concebidos na altura do tratado de Vestfália, não podemos impedir-nos de achar bastante pobre esta dosagem das nacionalidades, esta agulha de balança fazendo as vezes das sólidas bases sobre as quais se fundava a paz medieval.

Equivocamo-nos frequentemente sobre o caráter destas relações entre a Igreja e os Estados. Estamos habituados a ver na autoridade espiritual e na autoridade temporal dois poderes claramente distintos, e por vezes esta “intrusão” do papado nos assuntos dos príncipes foi julgada intolerável. Tudo se aclara se nos integrarmos na mentalidade da época. Não é a Santa Sé que impõe o seu poder aos príncipes e aos povos, mas os príncipes e os povos que, sendo crentes, recorrem naturalmente ao poder espiritual, quer eles queiram fazer fortalecer a sua autoridade ou respeitar os seus direitos, quer desejem fazer solucionar as suas questões por um árbitro imparcial. Como o enuncia Gregório X: “Se é dever daqueles que dirigem os Estados salvaguardar os direitos e a independência da Igreja, é também dever daqueles que detêm o governo eclesiástico tudo fazer para que os reis e os príncipes possuam a plenitude da sua autoridade”. Os dois poderes, em vez de se ignorarem ou de se combaterem, reforçam-se mutuamente.

O que pôde prestar-se a confusão é que na Idade Média é geral professar um maior respeito pela autoridade religiosa do que pela autoridade laica e julgar uma superior à outra, segundo o dito célebre de Inocêncio III: “Como a alma está para o corpo, ou como o Sol está para a Lua”. Trata-se de hierarquia de valores, que não arrasta necessariamente a uma subordinação de fato.

Além disso, é preciso não esquecer que a Igreja, guardiã da fé, é também juiz no foro íntimo e depositária dos juramentos, o que ninguém na Idade Média teria ousado contestar. Quando é cometido um escândalo público, ela tem o direito e o dever de pronunciar a sua sentença, de absolver o culpado ou de perdoar o arrependido. Portanto, quando excomunga um Roberto, o Piedoso, ou um Raimundo de Toulouse, ela apenas usa de um poder que lhe é universalmente reconhecido. Do mesmo modo, quando ela desobriga do juramento de fidelidade os súditos do rei Filipe Augusto ou do imperador Henrique IV, na sequência da sua conduta repreensível ou das suas exações, ela exerce uma das suas funções soberanas, porque na Idade Média todo juramento toma por testemunha Deus, e por consequência a Igreja, que tem o poder de unir e de desunir.

Que tenha havido abusos da parte da Santa Sé, como da parte do poder temporal, é coisa incontestável, e a história das disputas entre o papado e o império está aí para prová-lo. Mas podemos dizer que no conjunto esta tentativa audaciosa de unir os dois poderes — o espiritual e o temporal — teve um saldo positivo para o bem comum. Era uma garantia de paz e de justiça esse poder moral do qual não se podiam infringir as decisões sem correr perigos precisos — entre outros o de se ver despojado da sua própria autoridade e afastado da estima dos seus súditos. Enquanto Henrique II está em luta com Thomas Beckett, não se sabe qual prevalecerá, mas no dia em que o rei decide desembaraçar-se do prelado por um assassínio, é ele o vencido. A reprovação moral e as sanções que ela provoca têm então mais eficácia que a força material. Para um príncipe interdito, a vida deixa de ser tolerável: os sinos silenciosos à sua passagem, os súditos fugindo à sua aproximação, tudo isto compõe uma atmosfera à qual não resistem até mesmo os caracteres mais fortemente temperados. Até Filipe Augusto acaba finalmente por se submeter, quando nenhum constrangimento exterior o teria podido impedir de deixar a infeliz Ingeburga gemer na prisão.

Durante a maior parte da Idade Média, o direito de guerra privada permanece considerado inviolável, tanto pelo poder civil como pela mentalidade geral. Manter a paz entre os barões e os Estados apresenta, portanto, imensas dificuldades; e se não fosse esta concepção da Cristandade, a Europa correria o risco de nunca passar de um vasto campo de batalha. Mas o sistema em vigor permite opor toda uma série de obstáculos ao exercício da vingança privada. Em primeiro lugar, a lei feudal exige que um vassalo que jurou fidelidade ao seu senhor não possa apresentar armas contra ele. Houve faltas, evidentemente, mas assim mesmo o juramento de fidelidade está longe de ser uma simples teoria ou um simulacro. Quando o rei da França Luís VII vai em socorro do conde Raimundo V, ameaçado em Toulouse por Henrique II da Inglaterra, este retira-se, ainda que dispondo de forças muito superiores e assegurado da vitória, e declara que não pode cercar uma praça em que se encontra o seu suserano. Na ocasião, o laço feudal tinha livrado a realeza francesa de uma situação particularmente perigosa.

Por outro lado, o sistema feudal maneja toda uma sucessão de arbitragens naturais. O vassalo pode sempre recorrer de um senhor ao suserano deste; o rei, à medida que a sua autoridade se estende, exerce cada vez mais o seu papel de mediador; o Papa, enfim, permanece o árbitro supremo. Frequentemente, basta a reputação de justiça ou de santidade de um grande personagem para que se recorra a ele. A história da França nos dá mais do que um exemplo: Luís VII é o protetor de Thomas Beckett e o seu intermediário, quando dos seus conflitos com Henrique II; São Luís impõe-se de igual modo à Cristandade quando pronuncia o célebre Dit d’Amiens, que acalmava os diferendos entre Henrique III da Inglaterra e os seus barões.

Temos ainda que qualquer nobre, por vingança ou por ambição, pode invadir as terras do seu vizinho, e que o poder central não é suficientemente poderoso para substituir pela sua justiça a do indivíduo, sem falar das guerras sempre possíveis entre os Estados. A Idade Média não contestou o problema da guerra em geral, mas restringiu sucessivamente o domínio, as crueldades e as durações da guerra por uma série de soluções práticas e de medidas aplicadas no conjunto da Cristandade. É assim, com leis precisas, que se edificou a Cristandade pacífica.

A primeira dessas medidas foi a Paz de Deus, instaurada desde o fim do século X.* É também a primeira distinção que foi feita, na história do mundo, entre o fraco e o forte, entre os guerreiros e as populações civis. Desde 1023 o bispo de Beauvais faz o rei Roberto, o Piedoso, assumir o juramento da paz. É feita proibição de maltratar as mulheres, as crianças, os camponeses e os clérigos. As casas dos agricultores são, como as igrejas, declaradas invioláveis. Reserva-se a guerra para aqueles que estão equipados para combater. É esta a origem da distinção moderna entre objetivos militares e construções civis – noção totalmente ignorada pelo mundo pagão. A interdição não foi sempre respeitada, mas aquele que a transgredia sabia que se expunha a sanções temporais e espirituais temíveis.

A Trégua de Deus foi inaugurada no início do século XI pelo imperador Henrique II, o rei da França Roberto, o Piedoso, e o Papa Bento VIII. Os concílios de Perpignan e de Elne, de 1041 e 1059, já a haviam renovado. Na sua passagem por Clermont em 1095, Urbano II a define e a proclama solenemente, no decurso deste mesmo concílio que esteve na origem das cruzadas. Ela reduz a guerra no tempo, como a Paz de Deus a reduz no seu objeto: por ordem da Igreja, é proibido qualquer ato de guerra desde o primeiro domingo do Advento até o oitavo da Epifania; desde o primeiro dia da Quaresma até o oitavo da Ascensão; e durante o resto do tempo, da quarta-feira à noite à segunda-feira de manhã. Conseguimos imaginar o que eram essas guerras fragmentadas, aos bocadinhos, que não podiam durar mais de três dias seguidos? Também aqui há infrações, sujeitando o transgressor a todos os riscos e também à vergonha. Quando Oton de Brunswick é derrotado em Bouvines — contra todas as expectativas, pelo exército muito inferior em número de Filipe Augusto — não se deixa de ver aí o castigo daquele que tinha ousado romper a trégua e travar o combate no domingo.

Os príncipes cristãos tomam por vezes iniciativas que completam e secundam as da Igreja. Filipe Augusto, por exemplo, institui a “quarentena-do-rei”, pela qual um intervalo de quarenta dias deve obrigatoriamente decorrer entre a ofensa feita, e devidamente anotada por aquele que a recebeu, e a abertura das hostilidades. Sábia medida, que reserva tempo para a reflexão e as conciliações de comum acordo. Este mesmo intervalo de quarenta dias encontra-se nos prazos concedidos aos que pertencem a uma cidade inimiga, para voltar para a sua terra e pôr os seus haveres em segurança quando rebentar uma guerra. Assim, não poderia na Idade Média existir questão de sequestro ou de campo de concentração.

Mas a grande glória da Idade Média é ter empreendido a educação do soldado, é ter feito do soldado da velha guarda um cavaleiro. Aquele que se batia por amor dos grandes golpes, da violência e da pilhagem tornou-se o defensor do fraco; transformou a sua brutalidade em força útil, o seu gosto pelo risco em coragem consciente, a sua turbulência em atividade fecunda; simultaneamente, o seu ardor vivificou-se e disciplinou-se. O soldado tem doravante um papel a desempenhar, e os inimigos que ele é convidado a combater são precisamente aqueles em quem subsistem os desejos pagãos de massacre, devassidão e pilhagem. A cavalaria é a instituição medieval da qual, com justiça e com maior gosto, se guardou a recordação, pois jamais se teve concepção mais nobre do título de guerreiro. Tal como a encontramos instituída desde o início do século XII, ela é realmente uma ordem e quase um sacramento. Contrariamente à opinião geralmente difundida, ela não se confunde com a nobreza. “Ninguém nasce cavaleiro”, diz um provérbio. A plebeus, mesmo a servos, ela é conferida, e nem todos os nobres a recebem. Mas ser armado cavaleiro é tornar-se nobre, e uma máxima do tempo pretende que “o meio de ser enobrecido sem cartas é ser feito cavaleiro”.

Do futuro cavaleiro exigem-se qualidades precisas, o que se traduz no simbolismo das cerimônias durante as quais se lhe concede o seu título. Deve ser piedoso, dedicado à Igreja, respeitador das suas leis. A sua iniciação começa com uma noite inteira passada em orações diante do altar sobre o qual está deposta a espada que ele cingirá. É a vigília de armas, depois da qual ele toma um banho em sinal de pureza, e depois ouve missa e comunga. Entregam-lhe então solenemente a espada e as esporas, lembrando-lhe os deveres do seu cargo: ajudar o pobre e o fraco, respeitar a mulher, mostrar-se corajoso e generoso; a sua divisa deve ser valentia e generosidade. Vêm em seguida a armadura e a rude colée, a pranchada dada sobre o ombro. Em nome de São Miguel e São Jorge ele é investido cavaleiro.

Para cumprir bem os seus deveres, precisa ser tão hábil como bravo: a cerimônia prossegue então com uma série de provas físicas, que são outros tantos testes destinados a experimentar o seu valor. Ele entra na liça para “correr em alvos” — isto é, estando a cavalo, derrubar um manequim —, e para desmontar em torneio os adversários que o venham desafiar. Os dias em que são armados novos cavaleiros são dias de festa, em que cada um rivaliza em proezas sob os olhos dos castelães, da corte senhorial e do povo miúdo concentrado nas circunvizinhanças do campo de torneios. Destreza e vigor físico, benevolência e generosidade, o cavaleiro representa um tipo de homem completo cuja beleza corporal é acompanhada pelas mais sedutoras qualidades:

 

Tant est prud’homme si comme semble

Qui a ces deux choses ensemble:

Valeur du corps e bonté d’âme.

 

É homem probo, como parece,

Quem possui juntas estas duas coisas:

Valor de corpo e bondade de alma.

 

Aquilo que se espera dele não é apenas, como no ideal antigo, um equilíbrio, um meio termo, mens sana in corpore sano, mas um máximo: ele é convidado a ultrapassar-se a si próprio, a ser ao mesmo tempo o mais belo e o melhor, colocando a sua pessoa a serviço de outrem. Aqueles romances em que quais os heróis da Távola Redonda vão sem cessar em busca do mais maravilhoso feito heroico, traduzem apenas o ideal exaltante oferecido então àquele que sente a vocação das armas. Nada de mais dinâmico (para empregar uma expressão moderna) do que o tipo do bom cavaleiro.

A cavalaria pode ser perdida, do mesmo modo que merecida. Aquele que falta aos seus deveres é destituído publicamente, cortam-lhe as suas esporas de ouro rentes ao salto, em sinal de infâmia. Dizia-se Honni soit hardement où il n’a gentillesse, o que equivalia a exprimir que o puro valor guerreiro não era nada sem nobreza de alma.

De fato, a cavalaria foi o grande entusiasmo da Idade Média. O sentido da palavra cavalheiresco, que ela nos legou, traduz muito fielmente o conjunto de qualidades que suscitavam a sua admiração. Basta percorrer a sua literatura, contemplar as obras de arte que dela nos restam, para ver por todo lado — nos romances, nos poemas, nos quadros, nas esculturas, nos manuscritos com iluminuras — surgir esse cavaleiro do qual a bela estátua da catedral de Bamberg representa um perfeito espécime. Por outro lado, é suficiente ler os nossos cronistas para constatar que esse tipo de homem não existiu apenas nos romances, e que a encarnação do perfeito cavaleiro, realizada no trono de França na pessoa de um São Luís, teve nessa época uma multidão de êmulos.

Nestas condições, compreende-se quais podiam ser as características da guerra medieval. Estritamente localizada, reduz-se frequentemente a um simples passeio militar, à tomada de uma cidade ou de um castelo. Os meios de defesa são então muito superiores aos de ataque: as muralhas, os fossos de uma fortaleza garantem a segurança dos sitiados; uma corrente estendida ao longo da entrada de um porto constitui uma salvaguarda, pelo menos provisória. Para o ataque, a quase nada se recorre, apenas às armas de mão: espada e lança. Se um belo corpo-a-corpo arranca dos cronistas gritos de admiração, eles só têm desdém pelas armas de covardes — o arco ou a besta — que diminuem os riscos, mas também as grandes façanhas.

Para cercar uma praça, utilizam-se máquinas: catapultas, manganelas, como a sapa e a mina, mas confia-se sobretudo na fome e na duração das operações para submeter os sitiados. Também as torres de menagem estão providas adequadamente: enormes provisões de cereais amontoam-se em vastas caves, que a lenda romântica transformou em “masmorras”,** e arranjam-se de modo a ter sempre um poço ou uma cisterna no interior da praça-forte. Quando uma máquina de guerra é demasiado mortífera, o papado proíbe o seu uso: o da pólvora de canhão, cujos efeitos e composição se conhecem desde o século XIII, só começa a propagar-se no dia em que a sua autoridade já não é suficientemente forte, e em que já se começam a esboroar os princípios da Cristandade. Como escreve Orderic Vital, “por temor de Deus, por cavalheirismo, procurava-se aprisionar de preferência a matar. Guerreiros cristãos não têm sede de espalhar sangue”. É corrente, no campo de batalha, ver o vencedor perdoar àquele que desmontou, e que lhe grita “obrigado!”. Cita-se como exemplo a batalha de Andelys, conduzida por Luís VI em 1119, na qual se assinalam somente três mortos entre novecentos combatentes.”

* – O concílio de Charroux, em 989, lança o anátema contra todo aquele que entre pela força numa igreja e dela leve qualquer coisa; contra todo aquele que roube os bens dos camponeses ou dos pobres, as suas ovelhas, o seu boi, o seu burro.

** – Essas vastas caves serviam de reserva. Continham apenas um orifício circular no meio da abóbada, pelo qual se faziam passar os cestos para tirar o grão. Elas existem ainda em certos países, como por exemplo a Argélia.

 

 

A história da igreja está tão intimamente ligada à Idade Média em geral, que é incômodo fazer um capítulo à parte. Seria preferível, sem dúvida, estudar a propósito de cada característica da sociedade medieval, ou de cada etapa da sua evolução, a influência que ela exerceu ou o papel que nela desempenhou.* É impossível, aliás, ter uma visão justa da época se não se possui algum conhecimento da Igreja, não só nas suas grandes linhas, mas também em pormenores como a liturgia ou a hagiografia. E a primeira recomendação que se faz aos aprendizes-medievalistas — isto é, aos alunos da École des Chartes — é de se familiarizarem com eles.

Apreenderemos de imediato a importância do seu papel, se nos reportarmos ao estado da sociedade durante os séculos a que se convencionou chamar a Alta Idade Média — período de esboroamento de forças, durante o qual a Igreja representa a única hierarquia organizada. Face à desagregação de todo o poder civil, um ponto permanece estável, o papado, resplandecendo no mundo ocidental na pessoa dos bispos, e o conjunto da organização permanece sólido mesmo nos períodos de eclipse que a Santa Sé sofreu.

Esse movimento que leva a arraia-miúda a procurar a proteção dos grandes proprietários, a confiar-se a eles por atos de recomendação (commendatio) que vemos multiplicarem-se desde o fim do Baixo Império, só podia funcionar a favor dos bens eclesiásticos, pois agrupava-se à volta dos mosteiros mais facilmente do que à volta dos senhores laicos. “Vive-se bem sob o báculo”, dizia um adágio popular, traduzindo o provérbio latino Jugum ecclesiæ, jugum dilecte. Abadias como Saint-Germain-des-Prés, Marmoutiers, São Vítor de Marselha, viram assim acrescentarem-se as suas possessões. Do mesmo modo, os bispos tornaram-se frequentemente os senhores temporais de toda ou parte da cidade da qual haviam feito a sua metrópole, e cooperam ativamente a defendê-la das invasões. A atitude do bispo Gozlin por ocasião do ataque de Paris pelos normandos está longe de constituir um fato isolado, e frequentemente a própria arquitetura da igreja traz a marca dessa função militar que era então, para todos aqueles que possuíam algum poder, um dever e uma necessidade. É o caso das Santas Marias do Mar ou das igrejas fortificadas da Thiérache.

A grande sabedoria de Carlos Magno foi compreender o interesse que apresentava essa hierarquia solidamente organizada, e que a Igreja podia ser fator de unidade para o império. De fato, a lei católica era a única a poder cristalizar as possibilidades de união, que se revelavam graças ao advento da dinastia carolíngia, a única a poder cimentar uns aos outros esses grupos de homens dispersos, refugiados nos seus domínios. Exatamente como aceitava a feudalidade, achando mais útil servir-se do poder dos barões do que combatê-lo, ele conduziu a exaltação da Cristandade favorecendo a Igreja. A sua coroação em Roma pelo Papa Estêvão II permanece uma das grandes datas da Idade Média, associando para séculos o poder espiritual e o poder temporal. A doação de Pepino acabava de fornecer ao papado o domínio territorial que devia constituir a base do seu magistério doutrinal. Recebendo a sua coroa das mãos do Papa, Carlos Magno afirmava simultaneamente o seu próprio poder e o caráter desse poder, apoiando-se em bases espirituais para estabelecer a ordem europeia. O papado adquirira um corpo, o império adquire uma alma.”

* - Por exemplo, trabalhos recentes valorizaram a origem não apenas religiosa, mas propriamente eucarística das associações medievais: a procissão do Santo Sacramento foi a “causa direta” da fundação das confrarias operárias. Ver, a este propósito, a bela obra de G. Espinas, Les origines du droit d’association (Lille, 1943, t. I, p. 1034).

 

 

Se os ataques param perante a personalidade do Papa, os cardeais são frequentemente acusados dessa afeição ao dinheiro, que faz distribuir as prebendas e os benefícios aos mais ricos, não aos mais dignos. E sabe-se também quantos protestos vigorosos suscita esse nepotismo e o dos bispos:

 

A leurs neveux, qui rien ne valent

Qui en leurs lits encore étalent

Donnent provendes, et trigalent [s’amusent]

Pour les deniers que ils emmallent [encaissent].

 

Aos sobrinhos que nada valem,

Que nos seus leitos ainda se embalam,

Dão prebendas, e divertem-se

Com os dinheiros que recebem.

 

Étienne de Fougères, a quem devemos estes versos, dá conselhos salutares sobre esta questão àqueles que têm a missão de nomear os pastores dos fiéis:

 

Ordonner doit bon clerc et sage

De bonne mœurs, de bom aage,

Et né de loyal mariage;

Peu ne me chaut de quel parage [origine]

Ne doit nul prouvère ordonner,

Se il moustier lui veut donner,

Que il ne sache sermonner,

E la gent bien arraisonner.

 

Deve-se ordenar um bom e sábio clérigo

De bons costumes, de boa idade,

E nascido de honesto casamento,

Pouco importa qual a origem.

Nenhum prior deve ordenar,

Se o mosteiro lhe quiser dar,

Quem não saiba pregar um sermão

E as gentes persuadir.

 

Esta riqueza devia inevitavelmente arrastar uma decadência e um relaxamento nos costumes, dos quais a Igreja se defendeu através de reformas sucessivas. É Rutebeuf ainda que se ergue, entre outros, contra esta apatia de clérigos preocupados antes de tudo em se aproveitarem dos seus bens materiais:

 

Ah! prélats de Saint Église

Qui, pour garder les corps de bise

Ne voulez aller aux matines,

Messire Geoffroy de Sargines

Vous demande delà la mer.

Mais je dis cil fait à blâmer

Qui rien nulle plus vous demande

Fors bons vins et bonnes viandes

Et que le poivre soit bien fort.

 

Ah! prelados da Santa Igreja

Que, para pouparem o corpo ao frio

Não querem ir às matinas,

O distinto Geoffroy de Sargines

Precisa de vós além-mar.

Mas digo-vos que, se aquele vos condena,

Que ninguém mais vos solicite

Excelentes vinhos e excelentes carnes,

E que se carregue bem na pimenta.

 

Estas fraquezas estão na origem das crises que a Igreja medieval atravessa por diversas vezes, e também dos grandes movimentos que a agitam. A evolução do clero regular dá muito exatamente conta da evolução geral da Igreja. Nos primeiros séculos os monges beneditinos realizam um trabalho prático: são cultivadores de baldios, abrindo o caminho ao Evangelho com a relha do seu arado; abatem florestas, secam pântanos, aclimatam a vinha e semeiam o trigo; o seu papel é eminentemente social e civilizador; são eles também que guardam para a Europa os manuscritos da Antiguidade e fundam os primeiros centros de erudição. Respondendo às necessidades da sociedade que evangelizam, foram pioneiros e educadores, ajudando poderosamente o progresso material e moral desta sociedade.

As ordens que se fundam depois têm um caráter completamente diferente: franciscanos, dominicanos, têm um fim em primeiro lugar doutrinal, representam uma reação precisamente contra esse abuso das riquezas que se censura à Igreja do seu tempo, e contra as heresias que a ameaçam. Ao mesmo tempo acentuam o movimento de reforma, já desenhado por duas vezes com os monges negros de Cluny e os monges brancos de Clairvaux e de Citeaux. Assim, a própria Igreja sentira os perigos a que a expunha o seu lugar no mundo medieval e remediava-os, continuando a fazer face às necessidades novas que se apresentavam. Aos perigos que ameaçavam os Lugares Santos, e às dificuldades sentidas pelos peregrinos que os visitam, opõe o auxílio guerreiro dos templários e o auxílio caritativo dos hospitalários. Cada situação nova suscita da sua parte novas iniciativas, através das quais se pode seguir toda a marcha de uma época. Cada estado de fato suscita da sua parte novas iniciativas, através das quais se pode seguir toda a marcha de uma época.

É mais difícil deslindar a influência moral exercida pela Igreja nas instituições privadas, porque a maior parte das noções que lhe são devidas entraram de tal modo nos costumes, que temos dificuldade em nos darmos conta da novidade que elas representavam. A igualdade moral do homem e da mulher, por exemplo, representa um conceito inteiramente estranho à Antiguidade, em que a questão nem sequer se tinha posto. De igual modo, na legislação familiar era uma profunda originalidade substituir o direito do mais forte pela proteção devida aos fracos. O papel do pai de família e do proprietário fundiário encontrava-se completamente modificado. Face ao seu poder, proclamava-se a dignidade da mulher e da criança e fazia-se da propriedade uma função social.

O modo de encarar o casamento, segundo as ideias cristãs, era também radicalmente novo. Até então só se vira a sua utilidade social, e por consequência se admitira tudo o que não provocava desordens deste ponto de vista. Pela primeira vez na história do mundo, a Igreja via o casamento em relação ao indivíduo, e considerava nele não a instituição social, mas a união de dois seres para desabrochamento pessoal, para a realização do seu fim terrestre e sobrenatural. Isto provocava, entre outras consequências, a necessidade de livre adesão em cada um dos cônjuges, que ela tornava ministros de um sacramento, tendo o padre como testemunha e a igualdade de deveres para ambos. Até ao concílio de Trento as formalidades da Igreja são muito reduzidas, visto que basta a troca de juramentos perante um padre — “Tomo-te por esposo. Tomo-te por esposa” — para que o casamento seja válido. É em casa que se passam as cerimônias simbólicas: beber pela mesma taça, comer do mesmo pão:

 

Boire, manger, coucher ensemble

Font mariage, ce me semble.

 

Beber, comer, dormir juntos

Fazem o casamento, parece-me.

 

Este é o adágio de direito consuetudinário, ao qual se acrescenta no século XVI: “Mas é preciso que a Igreja passe por lá”.

Seria ainda necessário assinalar a influência exercida pela doutrina eclesiástica no regime de trabalho. O direito romano apenas conhecia, nos contratos de arrendamento ou de venda, a lei da oferta e da procura, enquanto o direito canônico, e depois dele o direito consuetudinário, submetem a vontade dos contraentes às exigências da moral e à consideração da dignidade humana. Isto devia ter uma profunda influência nos regulamentos dos mestres, que proibiam à mulher os trabalhos demasiado fatigantes para ela — a tapeçaria de tear alto, por exemplo. O resultado foram também todas aquelas precauções de que se rodeavam os contratos de aprendizagem e o direito de visita concedido aos jurados, tendo por finalidade controlar as condições de trabalho do artesão e a aplicação dos estatutos. Sobretudo, é preciso apontar como muito revelador o fato de ter estendido à tarde de sábado o repouso de domingo, no momento em que a atividade econômica se amplifica com o renascimento do grande comércio e o desenvolvimento da indústria.

Uma revolução mais profunda tinha de ser introduzida pelas mesmas doutrinas no concernente à escravatura. Notemos que a Igreja não se ergueu contra a instituição propriamente dita de escravatura, que era uma necessidade econômica das civilizações antigas. Mas lutou para que o escravo, tratado até então como uma coisa, fosse daí em diante considerado como um homem e possuísse os direitos próprios da dignidade humana. Uma vez obtido este resultado, a escravatura encontrava-se praticamente abolida, sendo a evolução facilitada pelos costumes germânicos, que conheciam um modo de servidão muito suavizado. O conjunto deu lugar à servidão medieval, que respeitava os direitos do ser humano, e como restrição à suas liberdades apenas introduzia a ligação à gleba. É curioso constatar que o fato paradoxal da reaparição da escravatura no século XVI, em plena civilização cristã, coincide com o retorno geral ao direito romano nos costumes.

Numerosas concepções próprias das leis canônicas passaram assim para o direito consuetudinário. Deste ponto de vista, é muito revelador o modo como a Idade Média encara a justiça, porque a noção de igualdade espiritual dos seres humanos, estranha às leis antigas, aí se manifesta geralmente. É neste sentido que ao longo do tempo foram introduzidas diversas reformas. Por exemplo, no que respeita à legislação dos bastardos, tratados mais favoravelmente pelo direito eclesiástico do que pelo direito civil, pois eles não são considerados responsáveis pela culpa à qual devem a vida. Em direito canônico, uma pena infligida não tem como fim a vingança da injúria ou a reparação para com a sociedade, mas a emenda do culpado. Também este conceito, inteiramente novo, não deixou de modificar o direito consuetudinário.

A sociedade medieval conhece assim o direito de asilo, consagrado pela Igreja. É bastante desconcertante, para a mentalidade moderna, ver oficiais de justiça sofrerem uma condenação por terem ousado penetrar nas terras de um mosteiro a fim de aí procurar um criminoso, o que aconteceu ao jurista Beaumanoir, entre outros. Acrescentemos que os tribunais eclesiásticos rejeitavam o duelo judiciário bem antes da sua proscrição por Luís IX, e até surgir a ordem de 1324 eles foram os únicos a prever perdas e danos para a parte lesada. Sob a mesma influência, a Idade Média conhecia a gratuidade da justiça para os pobres, que se necessário recebiam mesmo um advogado oficial. A declaração de culpa só era feita após a apresentação da prova, o que significa que se ignorava a prisão preventiva.

Como toda a sociedade medieval, a Igreja goza de privilégios, o principal dos quais consiste precisamente em possuir os seus próprios tribunais. É o privilegium fori, reconhecido a todos os clérigos e àqueles que, pela sua profissão, estão ligados à vida clerical — por exemplo, os estudantes e os médicos. O papel dos “provisorados” ou tribunais eclesiásticos, na Idade Média, foi tanto mais amplo pelo fato de ser imenso o número de pessoas dependendo direta ou indiretamente do clero. E o título de clérigo se aplicava de modo muitíssimo menos restrito que nos nossos dias, gerando frequentemente confusão e contestações entre a justiça real ou senhorial e a justiça eclesiástica. Os clérigos eram todos aqueles que tinham um modo de vida clerical. Era uma definição bastante vaga, que tinha o defeito de convir tanto aos mestres quanto aos alunos que frequentavam a universidade, aos monges e aos padres. Caracterizava-se por vezes com base em sinais exteriores, como a tonsura ou o vestuário, mas estes atributos podiam ser usurpados pelos que preferiam a justiça do direito canônico à do direito consuetudinário, e daí o provérbio “o hábito não faz o monge”. De um modo geral, consideraram-se clérigos aqueles que se submetiam às obrigações da vida clerical, em particular no que respeita à interdição do casamento, que aliás só se estendia então aos clérigos que recebiam as ordens maiores, quer dizer, aos diáconos e aos padres. No século XII esta interdição é aplicada aos subdiáconos, mas não às ordens menores, que não eram então consideradas como tendo de levar forçosamente ao sacerdócio. Os outros clérigos podiam tornar a casar em justas bodas, desde que cum unica et virgine (uma só vez, e com uma jovem). Casar com uma viúva, ou voltar a casar, era para um clérigo expor-se a ser taxado de bigamia, termo que várias vezes gerou confusão.”

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