Editora:
Publicações Europa-América
ISBN: 978-97-2104-279-7
Opinião: ★★☆☆☆
Páginas: 208
Sinopse: Idade
Média. A Idade das Trevas. Eis a imagem que temos ainda do que aprendemos no
liceu. Régine Pernoud reage contra estes preconceitos, revelando toda a riqueza
do período medieval. No campo da literatura, refere-se a epopeias como a Canção
de Rolando, aos romances de cavalaria, à novela amorosa, à poesia, às farsas,
às fábulas. Evoca o desenvolvimento artístico desta época, assim como aspectos
menos conhecidos: o interesse dedicado às ciências e à medicina. A própria vida
quotidiana traz a marca de uma civilização já refinada. Basta dizer que a
higiene estava mais desenvolvida do que no século XVII. A hierarquia social
assentava essencialmente nos laços familiares. As mulheres tinham direitos que
perderam a partir do século XVI.
“Em Roma, um homem só tem valor enquanto exerce
os seus direitos de cidadão, enquanto vota, delibera e participa nos negócios do
Estado. As lutas da plebe para obter o direito de ser representada por um tribuno
são, a este nível, bastante significativas. Na Idade Média, raramente se trata de
negócios públicos. Ou melhor, estes tomam logo o aspecto de uma administração familiar,
são contas de domínio, regulamentos de rendeiros e de proprietários. Mesmo quando
os burgueses reclamam direitos políticos, no momento da formação das comunas, é
para poderem exercer livremente o seu ofício e não serem mais incomodados pelas
portagens e pelos direitos de alfândega. A atividade política, em si, não apresenta
interesse para eles. De resto, a vida rural é então infinitamente mais ativa que
a vida urbana, e tanto numa como noutra é a família, não o indivíduo, que prevalece
como unidade social.”
“Assegurar à família uma base fixa e ligá-la ao solo de qualquer forma,
para que aí tome raízes, dê fruto e se perpetue, tal é a finalidade dos nossos
antepassados. Pode-se traficar com as riquezas móveis e dispô-las por
testamento, porque por essência são mutáveis e pouco estáveis. Pelas razões
inversas, os bens fundiários* são propriedade familiar, inalienáveis e
impenhoráveis. O homem não é senão o guardião temporário, o usufrutuário. O
verdadeiro proprietário é a linhagem.
Uma
série de costumes medievais decorrem dessa preocupação de salvaguardar o
patrimônio de família. Assim, em caso de falta de herdeiro direto os bens de
origem paterna voltam para a família do pai, e os de origem materna para a da
mãe, enquanto no direito romano só se reconhecia o parentesco por via
masculina. É o que se chama direito de retorno, que desempata de acordo com a
sua origem os bens de uma família extinta. Do mesmo modo, o asilo de linhagem
dá aos parentes mesmo afastados o direito de preferência, quando por uma razão
ou por outra um domínio é vendido. A maneira como é regulada a tutela de uma
criança que ficou órfã apresenta também um tipo de legislação familiar. A
tutela é exercida pelo conjunto da família, e torna-se naturalmente tutor
aquele cujo grau de parentesco designa para administrar os bens. O nosso
conselho de família é apenas um resíduo do costume medieval que regulava o
arrendamento dos feudos e a guarda das crianças.
Na
Idade Média se tem viva a preocupação de respeitar o curso natural das coisas,
de não criar prejuízos quanto aos bens familiares, tanto que, no caso em que
morram sem herdeiro aqueles que detêm determinados bens, o seu domínio não pode
voltar para os ascendentes. Procuram-se os descendentes mesmo afastados, primos
ou parentes, evitando voltar esses bens para os que tiveram antes a sua posse:
“Bens próprios não voltam para trás”. Tudo isso pelo desejo de seguir a ordem
normal da vida, que se transmite do mais velho para o mais novo e não volta
para trás: os rios não voltam à nascente, do mesmo modo os elementos da vida
devem alimentar aquilo que representa a juventude, o futuro. Esta é mais uma
garantia para o patrimônio da linhagem, que se transfere necessariamente para
seres jovens, portanto mais ativos e capazes de o fazer valer mais longamente.
Por
vezes, a transmissão dos bens faz-se de uma forma muito reveladora do
sentimento familiar, que é a grande força da Idade Média. A família (aqueles
que vivem de um mesmo “pão e pote”) constitui uma verdadeira personalidade
moral e jurídica, possuindo em comum os bens cujo administrador é o pai. Pela
sua morte, a comunidade reconstitui-se com a orientação de um dos filhos,
designado portanto pelo sangue, sem que tenha havido interrupção da posse dos
bens nem transmissão de qualquer espécie. É aquilo a que se chama a comunidade
silenciosa, de que faz parte qualquer membro da casa de família que não tenha
sido expressamente posto “fora do pão e pote”. O costume subsistiu até ao fim
do Antigo Regime, e podem-se citar famílias francesas que durante séculos nunca
pagaram o mínimo direito de sucessão. Em 1840, o jurista Dupin assinalava nessa
situação a família Jault, que não o pagava desde o século XIV.”
* -
Bens fundiários - Propriedades rústicas ligadas à terra, à agricultura, são a
base da economia medieval.
“É curioso seguir ao longo dos séculos a história dos povos formados
nessas diferentes disciplinas, e verificar os resultados a que chegaram. A
expansão romana tinha sido política e militar, e não étnica. Os romanos
conquistaram pelas armas um império e o conservaram por intermédio dos seus
burocratas. Esse império só foi sólido enquanto soldados e funcionários puderam
vigiá-lo facilmente. Mas não parou de crescer a desproporção entre a extensão
das fronteiras e a centralização, que é o fim ideal e a conseqüência inevitável
do direito romano. O Império desabaria por si próprio, pelas suas próprias
instituições, quando o ímpeto das invasões lhe veio dar o golpe de
misericórdia.
Podemos
opor a este exemplo o das raças anglo-saxônicas. Os seus costumes familiares
foram idênticos aos nossos durante toda a Idade Média. Contrariamente ao que se
passou entre nós, eles os mantiveram, e é isso sem dúvida que explica a sua
prodigiosa expansão através do mundo. Vagas de exploradores, pioneiros, comerciantes,
aventureiros e temerários, deixando as suas casas a fim de tentarem a sorte,
sem por isso esquecerem a terra natal e as tradições dos pais — eis o que funda
um império.”
“Para compreender a Idade Média, temos de nos representar uma sociedade
que vive de modo totalmente diferente, da qual a noção de trabalho assalariado,
e mesmo em parte a de dinheiro, estão ausentes ou são muito secundárias. O
fundamento das relações de homem para homem é a dupla noção de fidelidade, por
um lado, e por outro a de proteção. Assegura-se devoção a qualquer pessoa, e
dela espera-se em troca a segurança. Não se compromete a atividade em função de
um trabalho preciso, de uma remuneração fixa, mas a própria pessoa, ou melhor,
a sua fé, e em troca se requer subsistência e proteção, em todos os sentidos da
palavra. Tal é a essência do vínculo feudal.
Esta
característica da sociedade medieval explica-se, ao considerarmos as
circunstâncias que presidiram à sua formação. A origem encontra-se nessa Europa
caótica do século V ao século VIII. O Império Romano desmoronava-se sob o duplo
efeito da decomposição interior e da pressão das invasões. Tudo em Roma
dependera da força do poder central. A partir do momento em que esse poder foi
ultrapassado, a ruína era inevitável. Nem a cisão em dois impérios nem os
esforços de recuperação provisória poderiam travá-la. Nada de sólido subsiste
nesse mundo em que as forças vivas foram pouco a pouco esgotadas por um
funcionalismo sufocante, onde o fisco oprime os pequenos proprietários. Em
breve estes não têm outro recurso senão ceder as suas terras ao Estado para
pagar os impostos. O povo abandona os campos, e para o trabalho dos campos
apela voluntariamente a esses mesmos bárbaros que dificilmente são contidos nas
fronteiras. É assim que na Gália os borguinhões se instalam na região Sabóia-Franco-Condado
e se tornam os rendeiros dos proprietários galo-romanos, cujo domicílio
partilham. Sucessivamente, pacificamente ou pela espada, as hordas germânicas
ou nórdicas assomam no mundo ocidental. Roma é tomada e retomada pelos
bárbaros, os imperadores são eleitos e destituídos conforme o capricho dos
soldados. A Europa não é mais que um vasto campo de batalha, onde se enfrentam
as armas, as raças e as religiões.
Como
poderá alguém defender-se numa época em que a agitação e a instabilidade são a
única lei? O Estado encontra-se distante e impotente, senão inexistente, cada
um move-se por isso naturalmente em direção à única força que permaneceu
realmente sólida e próxima: os grandes proprietários fundiários, que podem
assegurar a defesa do seu domínio e dos seus rendeiros. Fracos e pequenos
recorrem a eles, confiam-lhes a sua terra e a sua pessoa, com a condição de se
verem protegidos contra os excessos fiscais e as incursões estrangeiras. Por um
movimento que se tinha esboçado a partir do Baixo Império, e não tinha parado
de se acentuar nos séculos VII e VIII, o poderio dos grandes proprietários
aumenta com a fraqueza do poder central. Cada vez mais se procura a proteção do
“senhor” (senior), a única ativa e eficaz, que protegerá não só da
guerra e da fome, mas também da ingerência dos funcionários reais. Assim se
multiplicam as cartas de vassalagem, pelas quais a arraia-miúda se liga a um
“senhor” para garantir a sua segurança pessoal. (...)
A dinastia de Pepino tinha chegado ao poder porque
os seus representantes se contavam entre os mais fortes proprietários da época.
Contentaram-se em canalizar as forças das quais faziam parte, e em aceitar a hierarquia
feudal tirando dela o partido que podiam tirar. Tal é a origem do estado social
da Idade Média, cujas características são completamente diferentes das que se conheceram
até então. A autoridade, em lugar de estar concentrada num só ponto (indivíduo ou
organismo), encontra-se repartida pelo conjunto do território. A grande sabedoria
dos carolíngios foi de não tentarem ter nas mãos toda a máquina administrativa,
mantendo a organização empírica que tinham encontrado. A sua autoridade imediata
se estendia apenas a um pequeno número de personagens, que possuíam elas próprias
autoridade sobre outros, e assim sucessivamente até às camadas sociais mais humildes.
De degrau em degrau, uma ordem do poder central podia assim transmitir-se ao conjunto
do país, e aquilo que não controlavam diretamente podia ser atingido indiretamente.
Em lugar de combatê-la, Carlos Magno contentou-se em disciplinar a hierarquia que
deveria impregnar tão fortemente os hábitos franceses. Reconhecendo a legitimidade
do duplo juramento que todo homem livre devia a si próprio e ao seu senhor, ele
consagrou a existência do vínculo feudal. Tal é a origem da sociedade medieval,
e também a da nobreza fundiária, não a militar, ao contrário do que se julgou demasiadas
vezes. Desta formação empírica, modelada pelos fatos, pelas necessidades sociais
e econômicas,* decorre uma extrema diversidade na condição das pessoas e dos bens,
já que a natureza dos compromissos que uniam o proprietário ao seu rendeiro variava
segundo as circunstâncias, a natureza do solo e o modo de vida dos habitantes. Toda
sorte de fatores entram em jogo, os quais tornam diferentes as relações e a hierarquia
de uma província para outra, ou mesmo de um domínio para outro. Mas o que permanece
estável é a obrigação recíproca: fidelidade por um lado, proteção pelo outro. Por
outras palavras, o vínculo feudal.
Durante
a maior parte da Idade Média, a principal característica desse vínculo é ser
pessoal. Um vassalo preciso e determinado recomenda-se a um senhor igualmente
preciso e determinado, decide vincular-se a ele, jura-lhe fidelidade e espera
em troca subsistência material e proteção moral. Quando Roland morre, evoca
“Carlos, meu senhor que me alimentou”, e esta simples evocação diz bastante da
natureza do vínculo que os une. Somente a partir do século XIV o vínculo se
tornará mais real que pessoal. Ligar-se-á à posse de uma propriedade e
decorrerá das obrigações fundiárias que existem entre o senhor e os seus
vassalos, cujas relações se assemelharão desde então muito mais às de um
proprietário com os seus locatários. É a condição da terra que fixa a condição
da pessoa. Mas, para todo o período medieval propriamente dito, os vínculos
criam-se de indivíduo para indivíduo: Nihil est preter individuum (nada
existe fora do indivíduo). O gosto de tudo o que é pessoal e preciso, o horror
da abstração e do anonimato são características da época.
Este
vínculo pessoal que liga o vassalo ao suserano é proclamado no decorrer de uma
cerimônia em que se afirma o formalismo, caro à Idade Média, porque qualquer
obrigação, transação ou acordo deve traduzir-se por um gesto simbólico, forma
visível e indispensável do assentimento interior. Quando se vende um terreno,
por exemplo, o que constitui o ato de venda é a entrega pelo vendedor ao novo
proprietário de um pouco de palha ou um torrão de terra proveniente do seu
campo. Se a seguir se faz uma escritura — o que nem sempre ocorre —, servirá
apenas para memória. O ato essencial é a traditio, como nos nossos dias
é o aperto de mão em alguns mercados. Diz o Ménagier de Paris: “Como
sinal deste grande acontecimento(como sinal de uma transação importante),
entregar-lhe-ei um pouco de palha, ou um prego velho, ou uma pedra que me foram
entregues”. A Idade Média é uma época em que triunfa o rito, em que tudo o que
se realiza na consciência deve passar obrigatoriamente a ato. Isto satisfaz uma
necessidade profundamente humana: a do sinal corporal, à falta do qual a
realidade fica imperfeita, inacabada, fraca.
O
vassalo presta “fidelidade e homenagem” ao seu senhor. Fica na sua frente de
joelhos, com o cinturão desfeito, e coloca a mão na dele — gestos que
significam o abandono, a confiança, a fidelidade. Declara-se seu vassalo e
confirma-lhe a dedicação da sua pessoa. Em troca, e para selar o pacto que
doravante os liga, o suserano beija o vassalo na boca. Este gesto implica mais
e melhor que uma proteção geral, é um laço de afeição pessoal que deve reger as
relações entre os dois homens. Segue-se a cerimônia do juramento, cuja
importância não é demais sublinhar. É preciso entender juramento no seu sentido
etimológico de sacramentum, coisa sagrada. Jura-se sobre os Evangelhos,
realizando assim um ato sagrado que compromete não só a honra, mas a fé, a
pessoa inteira. O valor do juramento é tão grande, e o perjúrio tão monstruoso,
que não se hesita em manter a palavra dada em circunstâncias extremamente
graves — por exemplo, para atestar as últimas vontades de um moribundo com o
testemunho de uma ou duas pessoas.
Renegar
um juramento representa na mentalidade medieval a pior das desonras. Uma
passagem de Joinville manifesta de maneira muito significativa que se trata de
um excesso, porque um cavaleiro não pode decidir-se, mesmo que a sua vida
esteja em jogo. Quando do seu cativeiro, os drogomanos do sultão do Egito
vieram oferecer a libertação a ele e aos companheiros, e perguntaram-lhe se
daria para a sua libertação algum dos castelos que pertencem aos barões de
além-mar. O conde respondeu que não tinha poder, porque eles pertenciam ao
imperador da Alemanha, ainda vivo. Perguntaram se entregaríamos algum dos
castelos do Templo ou do Hospital, para a nossa libertação. E o conde respondeu
que não podia ser, pois quando aí se nomeava um castelão, faziam-no jurar pelos
santos que não entregaria castelo algum para libertação de corpo de homem. E
eles manifestaram que parecia não termos talento para nos libertarmos, e que se
iriam embora e nos enviariam aqueles que nos lançariam espadas, como tinham
feito aos outros (isto é, que os massacrariam como aos outros).
A
cerimônia completa-se com a investidura solene do feudo, feita pelo senhor ao
vassalo. Confirma-lhe a posse desse feudo por um gesto de traditio,
entregando-lhe geralmente uma vara ou um bastonete, símbolo do poder que deve
exercer no domínio desse senhor. É a investidura cum baculo vel virga,
para empregar os termos jurídicos em uso na época.
Desse
cerimonial, das tradições que ele supõe, decorre a elevada concepção que a
Idade Média fazia da dignidade pessoal. Nenhuma época esteve mais pronta para
afastar as abstrações, os princípios, para se entregar unicamente às convenções
de homem para homem; e também nenhuma fez apelo a mais elevados sentimentos
como base dessas convenções. Era prestar uma magnífica homenagem à pessoa
humana. Conceber uma sociedade fundada sobre a fidelidade recíproca, era
indubitavelmente audacioso. Como se pode esperar, houve abusos, faltas, e as
lutas dos reis contra os vassalos recalcitrantes são a prova disso. Resta dizer
que durante mais de cinco séculos a fé e a honra permanecem a base essencial, a
armadura das relações sociais. Quando estas foram substituídas pelo princípio
de autoridade, no século XVI e sobretudo no século XVII, não se pode pretender
que a sociedade tenha ganho com isso. Em qualquer dos casos, a nobreza, já
enfraquecida por outras razões, perdeu a sua força moral essencial.”
* - Citemos a excelente fórmula de Henri Pourrat:
“O sistema feudal foi a organização viva imposta pela terra aos homens da terra”
(L’homme à la bêche. Histoire du paysan, p. 83).
“Um grande número de camponeses é livre, nomeadamente aqueles a quem se
chamava plebeus ou vilãos (os termos tomaram o sentido pejorativo muito depois).
O plebeu é o camponês, o trabalhador, pois rutura designa a ação de
romper a terra com a relha da charrua. O vilão é de modo geral aquele que
habita um domínio, ou villa.
Depois
vêm os servos. A palavra foi muitas vezes mal compreendida, porque se confundiu
a servidão própria da Idade Média com a escravatura, que foi a base das
sociedades antigas, e da qual não se encontra qualquer rastro na
sociedade medieval. Como refere Loisel: “Todas as pessoas são livres neste
reino, e logo que um escravo atinge os degraus do conhecimento, fazendo-se
batizar, é franqueado”. Por força das circunstâncias a Idade Média teve de
buscar o seu vocabulário na língua latina, e seria tentador concluir da
semelhança dos termos a semelhança do sentido. Ora, a condição do servo é
totalmente diferente da do escravo antigo: o escravo é uma coisa, não uma
pessoa; está sob a dependência absoluta do seu dono, que possui sobre ele
direito de vida e de morte; qualquer atividade pessoal lhe é recusada; não
conhece nem família, nem casamento, nem propriedade. O servo medieval, pelo
contrário, é uma pessoa, não uma coisa, e tratam-no como tal. Possui uma
família, uma casa, um campo, e fica desobrigado em relação ao seu senhor logo
que pague os censos. Está ligado a um domínio, mas não submetido a um patrão.
Não é uma servidão pessoal, mas uma servidão real.
A
restrição imposta à liberdade do servo é que ele não pode abandonar a terra que
cultiva. Mas é conveniente notar que essa restrição não deixa de ter uma
vantagem, já que, embora não possa deixar a propriedade, também não podem
tomá-la dele. Esta particularidade não estava longe, na Idade Média, de ser
considerada um privilégio. De fato, o termo encontra-se numa coleta de
costumes, o Brakton, que diz expressamente quando fala dos servos: “Tali
gaudent privilegio, quod a gleba amoveri non poterunt“ (gozam desse
privilégio de não poderem ser arrancados à sua terra). Isto corresponde mais ou
menos àquilo que seria, nos nossos dias, uma garantia contra o desemprego. O
rendeiro livre está submetido a toda espécie de responsabilidades civis, que
tornam a sua sorte mais ou menos precária: endividando-se, podem confiscar-lhe
a terra; em caso de guerra, pode ser forçado a tomar parte nela, ou o seu
domínio pode ser destruído sem compensação possível. Quanto ao servo, está ao
abrigo das vicissitudes da sorte: a terra que trabalha não pode escapar-lhe, da
mesma maneira que não pode afastar-se dela. Esta ligação à gleba é muito
reveladora da mentalidade medieval.
A
esta altura é oportuno notar-se que o nobre está submetido às mesmas obrigações
que o servo, porque também em caso algum pode ele alienar o seu domínio, ou
separar-se dele de qualquer forma que seja. Nas duas extremidades da hierarquia
encontramos essa mesma necessidade de estabilidade e fixação, inerente à alma
medieval, que produziu a França e, de uma maneira geral, a Europa ocidental.
Não é um paradoxo dizer que o camponês atual deve a sua prosperidade à servidão
dos seus antepassados, pois nenhuma instituição contribuiu mais para o destino
do campesinato francês. Mantido durante séculos sobre o mesmo solo, sem
responsabilidades civis, sem obrigações militares, o camponês tornou-se o
verdadeiro senhor da terra. Só a servidão poderia realizar uma ligação tão
íntima do homem à gleba, fazendo do antigo servo o proprietário do solo.
Se
permaneceu tão miserável a condição do camponês na Europa oriental — na Polônia
e em outros lugares — é porque não houve esse laço protetor da servidão. Nas
épocas de perturbação, o pequeno proprietário responsável pela sua terra,
entregue a si próprio, conheceu as mais terríveis angústias, que facilitaram a
formação de domínios imensos. Daí um flagrante desequilíbrio social, contrastando
a riqueza exagerada dos grandes proprietários com a condição lamentável dos
seus rendeiros. Se o camponês francês pôde desfrutar até aos últimos tempos uma
existência fácil, comparada à do camponês da Europa oriental, não o deve apenas
à riqueza do solo, mas também e sobretudo à sabedoria das nossas antigas
instituições, que fixaram a sua sorte no momento em que tinha mais necessidade
de segurança, e o subtraíram às obrigações militares, as quais pesaram depois
mais duramente sobre as famílias camponesas.”
“As atas mostram-nos, aliás, que os servos não tinham em relação aos
senhores essa atitude de cães espancados, que demasiadas vezes se supôs.
Vemo-los discutir, afirmar o seu direito, exigir o respeito por antigas
convenções e reclamar sem rodeios o que lhes era devido.*
Cabe-nos
o direito de aceitar sem contestação a lenda do camponês miserável, inculto
(esta é uma outra história) e desprezado, que se impõe ainda em grande número
dos nossos manuais de História? Veremos que o seu regime geral de vida e de
alimentação não oferecia nada que deva suscitar piedade. O camponês não sofreu
mais na Idade Média do que sofreu o homem em geral, em todas as épocas da
história da humanidade. Sofreu sim a repercussão das guerras, mas terão elas
poupado os seus descendentes dos séculos XIX e XX? Além disso, o servo medieval
estava livre de qualquer obrigação militar, como a maior parte dos plebeus. E o
castelo senhorial era para ele um refúgio na desventura, a paz de Deus
uma garantia contra as brutalidades dos homens de armas. Sofreu a fome nas
épocas de más colheitas, como da mesma forma sofreu o mundo inteiro, até que as
facilidades de transportes permitiram levar ajuda às regiões ameaçadas. Mesmo a
partir dessa altura... Mas o camponês tinha a possibilidade de recorrer ao
celeiro do senhor.
A
única época realmente dura para o camponês na Idade Média — que também o foi
para todas as classes da sociedade indistintamente — foi a dos desastres
produzidos pelas guerras que marcaram o declínio da época. Período lamentável
de perturbações e de desordens, engendradas por uma luta fratricida durante a
qual a França conheceu uma miséria que só se pode comparar à das guerras de
religião, da Revolução Francesa ou do nosso tempo. Bandos de plebeus devastando
o país, fomes provocando revoltas e insurreições camponesas, e para cúmulo essa
terrível epidemia de peste negra, que despovoou a Europa. Mas isso faz parte do
ciclo de misérias próprias da humanidade, e das quais nenhum povo foi isento. A
nossa própria experiência basta largamente para nos informar sobre isso.
Terá
o camponês sido o mais desprezado? Talvez nunca o tenha sido menos, de fato, do
que na Idade Média. Não deve iludir-nos determinada literatura, em que o vilão
muitas vezes está envolvido. Não passa de testemunho do rancor, velho como o
mundo, que sente o charlatão, o vagabundo, pela situação do camponês no domínio,
cuja morada é estável, cujo espírito por vezes é lento, e cuja bolsa muitas
vezes demora a abrir-se. A isto se acrescenta o gosto, bem medieval, de zombar
de tudo, inclusive daquilo que parece mais respeitável. Na realidade, nunca
foram mais estreitos os contatos entre o povo e as classes ditas dirigentes —
neste caso, os nobres. Contatos estes facilitados pela noção de laço pessoal,
essencial para a sociedade medieval, e multiplicados pelas cerimônias locais,
festas religiosas e outras, nas quais o senhor encontra o rendeiro, aprende a
conhecê-lo e partilha a sua existência, muito mais estreitamente do que, nos
nossos dias, os pequenos burgueses partilham a dos seus criados.
A
administração do feudo obriga o nobre a ter em conta todos os detalhes da vida
dos servos. Nascimentos, casamentos, mortes nas famílias de servos entram em
linha de conta para o nobre, como interessando diretamente o domínio. O senhor
tem encargos judiciários, donde para ele a obrigação de assistir os camponeses,
resolver os seus litígios, arbitrar os seus diferendos. Tem portanto em relação
a eles uma responsabilidade moral, do mesmo modo que suporta a responsabilidade
material do feudo em relação ao suserano. Nos nossos dias o patrão de fábrica
está liberto de qualquer obrigação material e moral relativamente aos
operários, a partir do momento em que “passaram pelo caixa para receber o
salário”. Não o vemos abrir as portas da sua casa para lhes oferecer um
banquete, por exemplo, na ocasião do casamento de um dos filhos. No conjunto,
uma concepção totalmente diferente da que prevaleceu na Idade Média. Como disse
Jean Guiraud, o camponês ocupa a ponta da mesa, mas é a mesa do senhor.”
* -
Em Portugal, a partir dos fins do século XI até princípios do século XIII, o
servo adscrito à gleba foi progressivamente transformado em colono livre. Entre
nós, foi D. Afonso III que deu exemplo nos seus reguengos, ao conceder carta de
franquia aos servos.
“Não poderíamos definir melhor a corporação medieval do que vendo nela
uma organização familiar aplicada ao ofício. Ela é o agrupamento, num organismo
único, de todos os elementos de um determinado ofício: patrões, operários e
aprendizes estão reunidos, não sob uma autoridade dada, mas em virtude dessa
solidariedade que nasce naturalmente do exercício de uma mesma indústria. Como
a família, ela é uma associação natural, não emana do Estado nem do rei. Quando
São Luís manda Étienne Boileau redigir o Livre des métiers (Livro dos
ofícios), é apenas para colocar por escrito os usos já existentes, sobre os
quais não intervém a sua autoridade. O único papel do rei face à corporação,
como de todas as instituições de direito privado, é controlar a aplicação leal
dos costumes em vigor. Como a família, como a universidade, a corporação
medieval é um corpo livre, que não conhece outras leis senão as que ela própria
forjou. É esta a sua característica essencial, que conservará até ao fim do
século XV.
Todos
os membros de um mesmo ofício fazem obrigatoriamente parte da corporação, mas
nem todos, bem entendido, desempenham aí o mesmo papel. A hierarquia vai dos
aprendizes aos mestres-jurados, que formam o conselho superior do ofício.
Habitualmente distinguimos aí três graus: aprendiz, companheiro ou servente de
ofício e mestre. Mas isto não pertence ao período medieval, durante o qual, até
por meados do século XIV, na maior parte dos ofícios se pode passar a mestre
logo que terminada a aprendizagem. Os serventes de ofício só se tornarão numerosos
no século XVIII, quando uma oligarquia de artesãos ricos procura cada vez mais
reservar-se o acesso à mestria, o que esboça a formação de um proletariado
industrial. Durante toda a Idade Média, no entanto, as possibilidades iniciais
são exatamente as mesmas para todos, e todo aprendiz, a menos que seja
demasiado desajeitado ou preguiçoso, acaba por passar a mestre.
O
aprendiz está ligado ao mestre por um contrato de aprendizagem — sempre esse
laço pessoal caro à Idade Média — que comporta obrigações para as duas partes:
para o mestre, a de formar o aluno no ofício e lhe assegurar a casa e o
sustento, sendo proporcionado o pagamento pelos pais das despesas de
aprendizagem; para o aprendiz, a obediência ao mestre e a aplicação ao
trabalho. Transposta para o artesanato, encontramos aí a dupla noção de
“fidelidade-proteção”, que une o senhor ao vassalo ou ao rendeiro. Mas, como
aqui uma das partes do contrato é uma criança de doze a quatorze anos, são
tomados todos os cuidados para reforçar a proteção de que deve gozar. Enquanto
se manifesta toda a indulgência para as faltas, as leviandades, até mesmo as
vadiagens do aprendiz, os deveres do mestre são severamente precisados: só pode
receber um aprendiz de cada vez, para que o ensino seja frutuoso e para que não
possa explorar os alunos descarregando sobre eles uma parte do trabalho. O
aprendiz só tem o direito de incumbir-se do trabalho depois de o ter praticado
durante um ano, pelo menos, para que se possa avaliar as suas capacidades
técnicas e morais.
Dizem
os regulamentos: “Ninguém deve receber um aprendiz, se não for tão sábio e tão
rico que possa ensiná-lo, governá-lo e mantê-lo, [...] e isto deve ser sabido e
feito pelos dois membros do conselho que defendam o ofício”. Eles fixam
expressamente aquilo que o mestre deve gastar diariamente para a alimentação e
a manutenção do aluno. Finalmente, os mestres estão submetidos a um direito de
visita detido pelos jurados da corporação, que vêm ao domicílio examinar a
forma como o aprendiz é alimentado, iniciado no ofício e tratado de maneira
geral. O mestre tem para com ele os deveres e os encargos de um pai e deve velar
pela sua conduta e pelo seu comportamento moral, entre outras coisas. Em
contrapartida, o aprendiz lhe deve respeito e obediência, mas vai-se ao ponto
de favorecer uma certa independência deste. No caso de um aprendiz abandonar a
casa do mestre, este deve esperar um ano até poder receber outro, e durante
todo esse ano é obrigado a receber o fugitivo, se ele voltar. Todas as
garantias estão assim do lado mais fraco, não do mais forte.
Para
passar a mestre, é preciso ter terminado o tempo de aprendizagem, que varia
conforme os ofícios, como é natural, e dura em geral de três a cinco anos. É
provável que então o futuro mestre devesse fazer prova da sua habilidade face
aos jurados da corporação, o que está na origem da obra-prima, cujas condições
irão complicar-se no decorrer dos séculos. Além disso, deve pagar uma taxa —
aliás mínima, em geral de 3 a 5 soldos — pela sua cotização na confraria do
corpo do ofício. Finalmente, em alguns ofícios cuja solvabilidade o mercador é
obrigado a justificar, é exigido o pagamento de uma caução.
Tais
são as condições da mestria durante o período medieval propriamente dito.”
“A par deste espírito metódico, é preciso mencionar a bonomia, a amável
familiaridade desses reis da França. Alguém fez notar que nada há de menos
autocrata que um monarca medieval.* Nas crônicas, nas narrativas, trata-se
sempre de assembleias, de deliberações, de conselhos de guerra. O rei não faz
nada sem ter a opinião do seu conselho, que não é composto por dóceis cortesãos
como o será Versalhes. São os homens de armas — vassalos tão poderosos e às
vezes mais ricos que o próprio rei — monges, sábios, juristas. O rei solicita
os seus conselhos, discute com eles, e dá muita importância a esses contatos.
Lê-se nos Enseignements de Saint Louis: “Toma empenho para teres na tua
companhia homens honestos e leais, que não estejam cheios de cobiça, quer sejam
religiosos ou seculares, e fala muitas vezes com eles. [...] E se algum tem uma
ação contra ti, não o julgues até que saibas a verdade, porque assim o julgarão
mais ousadamente os teus conselheiros de acordo com a verdade, por ti ou contra
ti”. Ele próprio pratica o que ensina. É preciso ler minuciosamente, em Joinville,
a narrativa desse patético conselho de guerra realizado pelo rei na Terra
Santa, quando os começos difíceis da sua cruzada vêm pôr tudo em questão e
incitam a maior parte dos barões a querer regressar à França.
A
forma como Luís IX faz saber a Joinville que lhe está agradecido por ter tomado
o partido contrário, e por ter ele ousado exprimi-lo, é toda ela marca dessa
familiaridade, extremamente simpática, dos reis para com os que os cercam:
“Enquanto o rei ouvia as suas graças, fui a uma janela de ferro. Tinha os meus
braços entre os ferros da janela, e pensava que se o rei viesse para França, eu
iria para o príncipe de Antíoco. Neste ponto em que me encontrava então, o rei
veio apoiar-se nos meus ombros e pôs-me as duas mãos na cabeça. Julguei que
fosse o Sr. Philippe de Nemours, que me tinha causado demasiado aborrecimento
nesse dia, pelo conselho que lhe tinha dado, e eu disse assim: ‘Deixe-me em
paz, Sr. Philippe’. Por pouca sorte, ao voltar a cabeça, a mão do rei caiu-me
sobre o rosto, e percebi que era o rei por causa de uma esmeralda que tinha no
dedo. E ele disse-me: ‘Fique tranquilo, porque quero perguntar-lhe como foi
que, embora sendo tão jovem, ousou defender a minha permanência, contra todos
os grandes homens e os sábios da França que louvavam a minha partida’. Eu lhe respondi:
‘Senhor, teria eu a maldade no meu coração, se não defendesse a qualquer preço
a vossa permanência’. Perguntou-me: ‘Eu faria mal se partisse?’, e eu lhe
respondi que ‘se Deus me ajuda, senhor, faríeis mal em partir’. Perguntou-me
então: ‘Se eu ficar, ficas também?’. Respondi-lhe que sim, e ele disse: ‘Esteja
tranquilo, porque lhe tenho muita amizade por ter aprovado a minha
permanência’”.
Esta
bonomia, esta simplicidade de hábitos, são muito características da época.
Enquanto o imperador e a maior parte dos grandes vassalos se comprazem em
manifestar o seu fausto, a linhagem capetiana faz-se notar pela frugalidade do
seu modo de vida. Os reis vão e vêm no meio do povo. Luís VII adormece na orla
de uma floresta, e quando os familiares o despertam, faz-lhes observar que pode
bem dormir assim, sozinho e sem armas, já que ninguém lhe quer mal. Filipe
Augusto, algumas horas antes de Bouvines, senta-se ao pé de uma árvore e
recupera as forças com um pouco de pão molhado no vinho. São Luís deixa-se
insultar na rua por uma velha mulher, e proíbe os seus companheiros de a
repreenderem. Gibões de veludo e capas de arminho são reservados para as festas
e recepções solenes, e ainda assim é muitas vezes usado o cilício sob o
arminho. É um motivo corrente de gracejo, para os estudantes alemães habituados
às magnificências imperiais, a simplicidade do equipamento real. Esta
simplicidade não foi imitada pelos Valois, e menos ainda pelos seus sucessores
do Renascimento, mas se estes ganharam com isso uma corte brilhante, perderam
esse contato familiar com o povo, elemento precioso do prestígio de um
príncipe.”
* –
Citemos esta passagem muito pertinente de A. Hadengue, na sua obra Bouvines,
victoire créatrice: “Os conselhos de guerra estão muito em uso nos
estados-maiores dos exércitos da Idade Média. Sem cessar, vêm à pena dos
cronistas as mesmas referências a eles. No século XIII, um chefe militar não
comanda, não decide à maneira de um general onipotente. A sua autoridade é
feita de colaboração, de confiança, de amizade. Está em dificuldade? Senta-se
ao pé de uma árvore, chama os seus altos barões, expõe os fatos, recolhe as
opiniões. A sua opinião pessoal não prevalece sempre. ‘Cada um diz a sua
razão’, como escreve Philippe Mouskès (pp. 188-189)”.
A opinião sobre o livro não é tão favorável não porque seja um livro de leitura desagradável, mas sim porque no afã de dourar a pílula da Idade Média, a autora distorce, mente e omite. Com vigor.
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