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segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Introdução à filosofia antiga, de Antonio Djalma Braga Junior e Luís Fernando Lopes

Editora: InterSaberes

ISBN: 978-85-4430-300-9

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 240

Sinopse: A obra pretende iniciar o leitor na história da filosofia antiga. Para isso, oferece uma análise introdutória dos principais pressupostos teóricos desenvolvidos pelos mais importantes pensadores da Antiguidade, que vai desde o nascimento da filosofia até o helenismo. Por meio deste livro, você terá uma visão geral das principais preocupações filosóficas da Antiguidade e do legado que os filósofos desse período deixaram para a humanidade.

 

1.2.5 – A invenção da vida urbana e da política

Entre todas as riquezas culturais que os gregos nos legaram, sem dúvida nenhuma a invenção da política é uma das mais importantes para a sociedade ocidental. A política surgiu em um contexto de ampliação e estruturação da vida urbana, fazendo com que as cidades se organizassem de maneira a alcançar uma funcionalidade prática baseada em ideais inéditos.

Com o florescimento do comércio e do artesanato, os gregos se depararam com a necessidade de desenvolver técnicas de fabricação de produtos e estratégias de troca e venda que tornassem os processos comerciais da época mais ágeis e eficientes. Esse fator foi determinante para a diminuição do prestígio das famílias que pertenciam à aristocracia grega e elevou o poder econômico da classe dos comerciantes.

A ascensão social de uma classe de comerciantes suplantou o poderio da elite aristocrática grega, fazendo com que essa parcela da sociedade desenvolvesse estratégias de distinção e prestígio social por intermédio das artes. Essa aristocracia passou, então, a estimular, incentivar e patrocinar o desenvolvimento às artes, às técnicas e aos conhecimentos da época, preparando, assim, o terreno para o surgimento da filosofia. Além disso, essa aglomeração nos centros urbanos exigiu do povo grego a criação de formas de organização social por meio da política, de modo que a nova classe detentora de poderio econômico - os comerciantes - pudesse também participar das decisões políticas, não mais ficando restritas apenas às grandes famílias proprietárias de terras.

Essa organização política traz alguns aspectos interessantes a serem analisados sob a ótica do surgimento da filosofia. Chaui (2000) destaca esses aspectos da seguinte maneira:

1. A ideia da lei como expressão da vontade de uma coletividade humana que decide por si mesma o que é melhor para si e como ela definirá suas relações internas. O aspecto legislado e regulado da cidade - da pólis - servirá de modelo para a Filosofia propor o aspecto legislado, regulado e ordenado do mundo como um mundo racional.

2. O surgimento de um espaço público, que faz aparecer um novo tipo de palavra ou de discurso, diferente daquele que era proferido pelo mito. Neste, um poeta vidente, que recebia das deusas ligadas à memória (a deusa Mnemosyne, mãe das Musas, que guiavam o poeta) uma iluminação misteriosa ou uma revelação sobrenatural, diziam aos homens quais eram as decisões dos deuses que eles deveriam obedecer. Agora, com a pólis, isto é, a cidade política, surge a palavra como direito de cada cidadão de emitir em público sua opinião, discuti-la com os outros, persuadi-los a tomar uma decisão proposta por ele, de tal modo que surge o discurso político como a palavra humana compartilhada, como diálogo, discussão e deliberação humana, isto é, como decisão racional e exposição dos motivos ou das razões para fazer ou não fazer alguma coisa. A política, valorizando o humano, o pensamento, a discussão, a persuasão e a decisão racional, valorizou o pensamento racional e criou condições para que surgisse o discurso ou a palavra filosófica.

3. A política estimula um pensamento e um discurso que não procuram ser formulados por seitas secretas dos iniciados em mistérios sagrados, mas que procuram, ao contrário, ser públicos, ensinados, transmitidos, comunicados e discutidos. A ideia de um pensamento que todos podem compreender e discutir, que todos podem comunicar e transmitir, é fundamental para a Filosofia. (Chaui, 2000, p. 36-37, grifo do original)

Essas três ideias levantadas por Marilena Chaui nos ajudam a compreender como o surgimento da política está diretamente relacionado ao surgimento da filosofia, principalmente pelo fato de a política exigir do cidadão grego o desenvolvimento da prática do debate nos espaços públicos e a articulação de discursos que todos pudessem compreender, não somente os iniciados aos mistérios das divindades e musas. Um discurso claro, livre de contradições e elementos fantasiosos, característicos do discurso mítico; um discurso baseado na razão e na lógica.

Sem dúvida nenhuma, não fossem esses fatos históricos, a filosofia não teria surgido nesse período e nessa região. Isso prova que a filosofia não se origina do nada, mas surge como uma reação a uma série de fatores e acontecimentos históricos que, de certa forma, foram fundamentais para o princípio desse tipo de conhecimento.

Pudemos perceber, ao longo dessas linhas, que essas transformações fizeram com que os gregos se afastassem do pensamento mítico e aderissem ao pensamento racional filosófico.”

 

 

“Essas características dos mitos, de impregnar a natureza de qualidades emocionais, nos permite compreender como o pensamento mítico está ligado aos anseios e aos desejos dos seres humanos, projetando nas narrativas míticas o que gostariam que acontecesse. Essa dinâmica abriu espaço para a criação de rituais como uma estratégia para que os deuses realizassem seus desejos: “o ritual é o mito tornado ação” (Aranha; Martins, 2005, p. 125). Com a função de acalmar o espírito dos homens e tranquilizá-los diante de um mundo assustador, cheio de pestes e doenças, catástrofes naturais e guerras, o mito, caracterizado por ações fantasiosas e mágicas, assegurava que o que acontecia na natureza dependia das ações ritualísticas: uma vez cumprido o ritual de maneira correta, as bênçãos dos deuses cairiam sobre eles; uma vez descumprindas tais ações, coisas ruins aconteceriam em forma de castigo pela desobediência.

Vejamos um exemplo de como isso acontece nas narrativas míticas relacionadas ao Minotauro. A mitologia nos mostra que Minos, filho do rei cretense Astérion e irmão de Sarpédon e Radamanto, clamou para si o direito de ser o sucessor de seu pai no governo de Creta. Como argumento, falou aos irmãos que essa era a vontade dos deuses, conforme se segue na passagem da obra de Junito de Souza Brandão intitulada Mitologia grega (1996, p. 61-62, grifo do original):

Minos alegou que, de direito, Creta lhe pertencia por vontade dos deuses e, para prová-lo, afirmou que estes lhe concederiam o que bem desejasse. Um dia, quando sacrificava a Posídon, solicitou ao deus que fizesse sair um touro do mar, prometendo que lhe sacrificaria, em seguida, o animal. O deus atendeu-lhe o pedido, o que valeu ao rei o poder, sem mais contestação por parte de Sarpédon e Radamanto. Minos, no entanto, dada a beleza extraordinária da rês e desejando conservar-lhe a raça, enviou-a para junto de seu rebanho, não cumprindo o prometido a Posídon. O deus, irritado, enfureceu o animal, o mesmo que Héracles matou mais tarde (ou foi Teseu?) a pedido do próprio Minos ou por ordem de Euristeu. A ira divina, todavia, não parou aí, como se verá. Minos se casou com Pasífae, filha do deus Hélio, o Sol, da qual teve vários filhos, entre os quais se destacam Glauco, Androgeu, Fedra e Ariadne. Para vingar-se mais ainda do rei perjuro, Posídon fez que a esposa de Minos concebesse uma paixão fatal e irresistível pelo touro. Sem saber como entregar-se ao animal, Pasífae recorreu às artes de Dédalo, que fabricou uma novilha de bronze tão perfeita que conseguiu enganar o animal. Pasífae colocou-se dentro do simulacro e concebeu do touro um ser monstruoso, metade homem, metade touro, o Minotauro.

Perceba, caro leitor, que o fato de Minos não realizar o ritual de sacrifício do touro entregue por Posêidon para demonstrar que os deuses estavam com o pretenso rei fez com que recebesse um castigo terrível: sua mulher concebeu um filho que era metade homem, metade touro. A história segue seu curso com a ordem de Minos a Dédalo para construir um labirinto e aprisionar a fera dentro, fazendo com que, de tempos em tempos, a fera fosse alimentada com carne humana em forma de tributo ao Rei Minos, até que Teseu libertasse o povo desse tributo matando o Minotauro com a ajuda da filha do rei, Ariadne.

Cabe destacarmos aqui que essa é uma característica de toda mitologia: acreditar que suas ações mágicas, por meio de rituais e sacrifícios, determinam o que acontece ou não na vida dos seres humanos. O ritual se transforma em uma espécie de barganha com os deuses, que, aceitando os sacrifícios, abençoam os homens. É nesse sentido que Aranha e Martins (2005) definem a função de ritual e de mito:

O ritual é a repetição dos atos executados pelos deuses no início dos tempos e que devem ser imitados e repetidos para que as forças do bem e do mal sejam mantidas sob controle. Desse modo, o ritual “atualiza”, isto é, torna atual o acontecimento sagrado que teve lugar no passado mítico.

O mito é uma primeira fala sobre o mundo, uma primeira atribuição de sentido ao mundo, sobre a qual a afetividade e a imaginação exercem grande papel e cuja função principal não é explicar a realidade, mas acomodar o ser humano ao mundo. (Aranha; Martins, 2005, p. 125, grifo do original)

Diante disso, podemos afirmar, por um lado, que os mitos têm uma função de representar essa primeira tentativa de atribuir sentido à realidade, procurando - por meio de rituais que atualizam os mistérios sagrados narrados pelos mitos - fazer com que os gregos conseguissem conviver em um mundo caótico, de incertezas e falta de conhecimento sobre a natureza. Por outro lado, esses mitos apresentam um caráter moralizante, que dita o que os homens devem ou não fazer com base em preceitos morais predeterminados nas narrações míticas.”

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

O socialismo jurídico, de Friedrich Engels e Karl Kautsky

 Editora: Boitempo

ISBN: 978-85-7559-210-6

Tradução: Lívia Cotrim e Márcio Brilharinho Naves

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 80

Sinopse: Planejado por Friedrich Engels e Karl Kautsky, o artigo O socialismo jurídico foi publicado sem assinatura na revista da social-democracia alemã, Neue Zeit, em 1887. O objetivo era dar uma resposta aos ataques à teoria econômica de Karl Marx, assim como elaborar uma crítica ao reformismo jurídico e combater a sua influência no movimento operário.

“À época da escrita deste livro, os reformistas, em combate às ideias revolucionárias de Marx, apontavam para uma transição controlada, objetivando ganhos por meio do aumento de direitos, sem transformar plenamente as contradições da exploração capitalista”, afirma na orelha do livro o professor da Faculdade de Direito da USP, Alysson Leandro Mascaro, para quem O socialismo jurídico é uma das obras clássicas do marxismo sobre a relação entre o direito e o capitalismo.

“Engels e Kautsky dedicam esta obra justamente a combater o socialismo dos juristas – ou o socialismo por meio do direito. O direito é, irremediavelmente, uma forma do capitalismo. Assim sendo, é a revolução – e não a reforma por meio de instituições jurídicas – a única opção realmente transformadora das condições das classes trabalhadoras”, conclui Mascaro. O texto é também uma crítica ao livro O direito ao produto integral do trabalho historicamente exposto, do sociólogo e jurista burguês austríaco Anton Menger, publicado em 1886, e que vinha obtendo grande repercussão. Em tal obra, Menger tentou provar que a teoria econômica de Marx fora plagiada dos socialistas utópicos ingleses da escola ricardiana, especialmente William Thompson. Essas afirmações, bem como a falsificação da essência da teoria marxiana efetuada por Menger, não poderiam passar despercebidas a Engels, que decidiu interceder.

 

“Relacionando a forma do direito com a forma da mercadoria – “O intercâmbio de mercadorias [...] engendra complicadas relações contratuais recíprocas” –, Engels e Kautsky permitem desvendar todo o segredo do direito: o processo de trocas mercantis generalizado exige, para a sua efetivação, o surgimento da subjetividade jurídica e dos princípios da liberdade, da igualdade etc. que a acompanham8. A emergência da categoria de sujeito de direito vai possibilitar, então, que o homem circule no mercado como mercadoria, ou melhor, como proprietário que oferece a si mesmo no mercado: “O sujeito existe apenas a título de representante da mercadoria que ele possui, isto é, a título de representante de si próprio enquanto mercadoria”9. Desse modo, o direito põe o homem em termos de propriedade, ele aparece ao mesmo tempo na condição de sujeito e objeto de si mesmo, isto é, na condição de proprietário que aliena a si próprio: “A estrutura mesma do sujeito de direito, na dialética da vontade-produção-propriedade, não é, definitivamente, mais que a expressão jurídica da comercialização do homem”10. O direito faz funcionar, assim, as categorias da liberdade e da igualdade, já que o homem não poderia dispor de si se não fosse livre – a liberdade é essa disposição de si como mercadoria – nem poderia celebrar um contrato – esse acordo de vontades – com outro homem se ambos não estivessem em uma condição de equivalência formal (caso contrário, haveria a sujeição da vontade de um pela do outro). Como diz Bernard Edelman:

O essencial são as trocas, e as trocas realizam o homem; as formas jurídicas que são impostas pela circulação são as mesmas formas da liberdade e da igualdade; a forma sujeito desvenda a realidade das suas determinações numa prática concreta: o contrato; a circulação é um processo de sujeitos.11

A Engels e Kautsky não escapou a percepção do papel decisivo da categoria da igualdade jurídica e é a isso que eles se referem quando relacionam a concorrência, “forma fundamental das relações entre livres produtores de mercadorias”, “niveladora ao extremo”, com a igualdade jurídica, que se tornou o “brado de guerra” da burguesia12.

Não é de surpreender, portanto, que a classe operária, na luta contra a burguesia, ou permanecesse dentro do campo do direito, formulando reivindicações de igualdade, ou construísse projetos utópicos de sociedade, em uma apenas aparente recusa do campo jurídico-político. Dizem Engels e Kautsky:

Ambas as concepções abstraíam a base histórica à qual deviam a existência; as duas apelavam para o sentimento, uma para o sentimento jurídico, outra para o sentimento de humanidade. Ambas formulavam suas reivindicações como votos piedosos.13

Nos dois casos, a rigor, a classe operária exprimia os seus interesses dentro do terreno jurídico, seja por meio de uma alteração no direito existente (reivindicação de igualdade), seja pela elaboração de um novo direito (sociedade utópica). Como lembra Peter Schöttler, “em ambos os casos se trata ainda de ‘votos piedosos’; a ilusão jurídica mantém toda a sua força”14.

Para que a classe operária possa transformar as relações sociais existentes, é necessário que rompa com a ideologia jurídica, pois ela “não pode exprimir plenamente a própria condição de vida na ilusão jurídica”, de modo que os trabalhadores possam compreender essas condições na própria realidade, a partir da demonstração de que “todas as representações dos homens – jurídicas, políticas, filosóficas, religiosas etc. – derivam, em última instância, [...] de seu modo de produzir e trocar os produtos”15.

Ora, a isso se contrapõe todo o esforço dos aparelhos de Estado burgueses, que se encaminha no sentido de encerrar a existência da classe operária e suas lutas no estrito terreno jurídico, ali onde a luta já está, por antecipação, ganha pela burguesia, uma vez que o funcionamento do direito implica obrigatoriamente a reprodução das relações sociais burguesas.

Essa legalização da luta de classes significa que as formas de luta do proletariado só são legalmente reconhecidas se observam os limites que o direito e a ideologia jurídica estabelecem. Assim, a greve só se transforma em direito de greve se os trabalhadores aceitam os termos que a ela emprestam licitude: a greve não pode desorganizar a produção colocando em risco o processo do capital, questionando, portanto, a dominação burguesa dos meios de produção. Como diz Edelman:

O direito de greve é um direito burguês. Entendemo-nos: eu não disse que a greve é burguesa, o que não teria sentido, mas o direito de greve é um direito burguês. O que quer dizer muito precisamente que a greve só acede à legalidade em certas condições, e que essas condições são as mesmas que permitem a reprodução do capital.16

8 Cf. Evgeni Pasukanis, A teoria geral do direito e o marxismo (Rio de Janeiro, Renovar, 1989).

9 Bernard Edelman, O direito captado pela fotografia, cit., p. 95.

10 Idem, “Esquisses d’une théorie du sujet”, Communications, n. 26, 1977, p. 195.

11 Idem, O direito captado pela fotografia, cit., p. 130.

12 Ver p. 19 desta edição. Sobre a questão da igualdade jurídica, ver o excepcional trabalho de Celso Naoto Kashiura Júnior, Crítica da igualdade jurídica – contribuição ao pensamento jurídico marxista, cit.

13 Ver p. 21 desta edição.

14 Peter Schöttler, “Friedrich Engels and Karl Kautsky...“, cit., p. 14.

15 Ver p. 21-2 desta edição.

16 Bernard Edelman, La légalisation de la classe ouvrière, t. 1: L’entreprise (Paris, Christian Bourgois, 1980), p. 52.

(Márcio Brilharinho Naves)

 

 

“As reivindicações jurídicas do proletariado devem conter um elemento desestabilizador, que “perturbe” a quietude do domínio da ideologia jurídica. É precisamente a isso que se refere Peter Schöttler quando menciona um texto de Engels no qual ele aponta para a espécie de reivindicação jurídica que o movimento operário pode exprimir: Engels, após analisar a tradicional reivindicação jurídica do movimento sindical em favor de um salário “justo”, sugere a sua substituição pela reivindicação da posse dos meios de produção pelos trabalhadores20.

Ora, essa reivindicação é incompatível com o direito burguês, revela os seus limites e demonstra a necessidade da sua abolição21.

Mas, além disso, Engels e Kautsky acrescentam que o movimento socialista não elabora “uma nova filosofia do direito”, isto é, que não pode existir um “direito socialista”, e que o direito burguês perdura na fase da transição socialista até que se extinga a forma valor. Só quando a natureza das relações de produção e o caráter das forças produtivas capitalistas forem revolucionarizados, e as formas mercantis extintas, só então será possível, como dizia Karl Marx na Crítica do Programa de Gotha*, ultrapassar o estreito horizonte do direito burguês e conhecer, por fim, a liberdade real jamais experimentada, a liberdade comunista.”

20 Peter Schöttler, “Friedrich Engels and Karl Kautsky as Critics of ‘Legal Socialism’”, International Journal of the Sociology of Law, n. 14, 1986, p. 22.

21 A transferência de titularidade não é, evidentemente, incompatível com o direito burguês. Observemos, porém, que Engels e Kautsky não se referem à propriedade, mas à “posse” dos meios de produção, apontando, assim, para uma condição não jurídica, absolutamente necessária para a instauração das novas relações sociais, a apropriação real dos meios de produção pelos trabalhadores. É por isso que essa reivindicação é incompatível com o direito burguês, porque ela traz em si um elemento que anula a sua natureza jurídica. De modo que, nesse inocente “deslize” jurídico, revela-se a impossibilidade de se sair desse círculo de ferro: uma vez apenas formulada, a reivindicação jurídica simplesmente se despedaça! Sobre a questão da propriedade, da posse e da apropriação real, ver Charles Bettelheim, Cálculo económico e formas de propriedade (Lisboa, Dom Quixote, 1972), Etienne Balibar, “Sobre os conceitos fundamentais do materialismo histórico”, em Louis Althusser, Etienne Balibar e Roger Establet, Ler O capital, v. II (Rio de Janeiro, Zahar, 1980), e Maria Turchetto, “As características específicas da transição ao comunismo”, em Márcio Bilharinho Naves (org.), Análise marxista e sociedade de transição (Campinas, IFCH/Unicamp, 2005).

* São Paulo, Boitempo, 2012, p. 31-2. (N. E.)

(Márcio Brilharinho Naves)

 

 

“Na Idade Média, a concepção de mundo era essencialmente teológica. A unidade interna europeia, de fato inexistente, foi estabelecida pelo cristianismo diante do inimigo exterior comum representado pelo sarraceno. Essa unidade do mundo europeu ocidental, formada por um amálgama de povos em desenvolvimento, foi coordenada pelo catolicismo. A coordenação teológica não era apenas ideal; consistia, efetivamente, não só no papa, seu centro monárquico, mas sobretudo na Igreja, organizada feudal e hierarquicamente, a qual, proprietária de cerca de um terço das terras, em todos os países detinha poderosa força no quadro feudal. Com suas propriedades fundiárias feudais, a Igreja se constituía no verdadeiro vínculo entre os vários países; sua organização feudal conferia consagração religiosa à ordem secular. Além disso, sendo o clero a única classe culta, era natural que o dogma da Igreja fosse a medida e a base de todo pensamento. Jurisprudência, ciência da natureza e filosofia, tudo se resumia em saber se o conteúdo estava ou não de acordo com as doutrinas da Igreja.

Entretanto, no seio da feudalidade desenvolvia-se o poder da burguesia. Uma classe nova se contrapunha aos grandes proprietários de terras. Enquanto o modo de produção feudal se baseava, essencialmente, no autoconsumo de produtos elaborados no interior de uma esfera restrita – em parte pelo produtor, em parte pelo arrecadador de tributos –, os burgueses eram sobretudo e com exclusividade produtores de mercadorias e comerciantes. A concepção católica de mundo, característica do feudalismo, já não podia satisfazer à nova classe e às respectivas condições de produção e troca. Não obstante, ela ainda permaneceu por muito tempo enredada no laço da onipotente teologia. Do século XIII ao século XVII, todas as reformas efetuadas e lutas travadas sob bandeiras religiosas nada mais são, no aspecto teórico, do que repetidas tentativas da burguesia, da plebe urbana e em seguida dos camponeses rebelados de adaptar a antiga concepção teológica de mundo às condições econômicas modificadas e à situação de vida da nova classe. Mas tal adaptação era impossível. A bandeira religiosa tremulou pela última vez na Inglaterra no século XVII, e menos de cinquenta anos mais tarde aparecia na França, sem disfarces, a nova concepção de mundo, fadada a se tornar clássica para a burguesia, a concepção jurídica de mundo.

Tratava-se da secularização da visão teológica. O dogma e o direito divino eram substituídos pelo direito humano, e a Igreja pelo Estado. As relações econômicas e sociais, anteriormente representadas como criações do dogma e da Igreja, porque esta as sancionava, agora se representam fundadas no direito e criadas pelo Estado. Visto que o desenvolvimento pleno do intercâmbio de mercadorias em escala social – isto é, por meio da concessão de incentivos e créditos – engendra complicadas relações contratuais recíprocas e exige regras universalmente válidas, que só poderiam ser estabelecidas pela comunidade – normas jurídicas estabelecidas pelo Estado –, imaginou-se que tais normas não proviessem dos fatos econômicos, mas dos decretos formais do Estado. Além disso, uma vez que a concorrência, forma fundamental das relações entre livres produtores de mercadorias, é a grande niveladora, a igualdade jurídica tornou-se o principal brado de guerra da burguesia. Contribuiu para consolidar a concepção jurídica de mundo o fato de que a luta da nova classe em ascensão contra os senhores feudais e a monarquia absoluta, aliada destes, era uma luta política, a exemplo de toda luta de classes, luta pela posse do Estado, que deveria ser conduzida por meio de reivindicações jurídicas.

Mas a burguesia engendrou o antípoda de si mesma, o proletariado, e com ele novo conflito de classes, que irrompeu antes mesmo de a burguesia conquistar plenamente o poder político. Assim como outrora a burguesia, em luta contra a nobreza, durante algum tempo arrastara atrás de si a concepção teológica tradicional de mundo, também o proletariado recebeu inicialmente de sua adversária a concepção jurídica e tentou voltá-la contra a burguesia. As primeiras formações partidárias proletárias, assim como seus representantes teóricos, mantiveram-se estritamente no jurídico “terreno do direito”, embora construíssem para si um terreno do direito diferente daquele da burguesia. De um lado, a reivindicação de igualdade foi ampliada, buscando completar a igualdade jurídica com a igualdade social; de outro lado, concluiu-se das palavras de Adam Smith – o trabalho é a fonte de toda a riqueza, mas o produto do trabalho dos trabalhadores deve ser dividido com os proprietários de terra e os capitalistas – que tal divisão não era justa e devia ser abolida ou modificada em favor dos trabalhadores. Entretanto, a percepção de que relegar o fato apenas ao jurídico “terreno do direito” absolutamente não possibilitava eliminar as calamidades criadas pelo modo de produção burguês-capitalista, especialmente pela grande indústria moderna, levou as cabeças mais significativas dentre os primeiros socialistas – Saint-Simon, Fourier e Owen – a abandonar por completo a esfera jurídico-política e a declarar que toda luta política é estéril.

As duas posições eram igualmente insuficientes, tanto para expressar a situação econômica da classe trabalhadora quanto para estruturar a luta emancipatória dela decorrente. A reivindicação da igualdade, assim como do produto integral do trabalho, perdia-se em contradições insolúveis tão logo se buscava formular seus pormenores jurídicos, e deixava mais ou menos intacto o cerne do problema, a transformação do modo de produção. A rejeição da luta política pelos grandes utópicos era, ao mesmo tempo, rejeição da luta de classes, portanto da única forma de ação possível para a classe cujos interesses defendiam. Ambas as concepções abstraíam a base histórica à qual deviam a existência; as duas apelavam para o sentimento, uma para o sentimento jurídico, outra para o sentimento de humanidade. Ambas formulavam suas reivindicações como votos piedosos, dos quais era impossível dizer por que deviam se realizar justamente agora, e não mil anos antes ou depois.

A classe trabalhadora – despojada da propriedade dos meios de produção no curso da transformação do modo de produção feudal em modo de produção capitalista e continuamente reproduzida pelo mecanismo deste último na situação hereditária de privação de propriedade – não pode exprimir plenamente a própria condição de vida na ilusão jurídica da burguesia. Só pode conhecer plenamente essa condição se enxergar a realidade das coisas, sem as coloridas lentes jurídicas. A concepção materialista da história de Marx ajuda a classe trabalhadora a compreender essa condição de vida, demonstrando que todas as representações dos homens – jurídicas, políticas, filosóficas, religiosas etc. – derivam, em última instância, de suas condições econômicas de vida, de seu modo de produzir e trocar os produtos. Está posta com ela a concepção de mundo decorrente das condições de vida e luta do proletariado; à privação da propriedade só podia corresponder a ausência de ilusões na mente dos trabalhadores. E essa concepção proletária de mundo percorre agora o planeta.”

 

 

“É francamente desprezível a opinião de Menger de que as condições econômicas para o socialismo nunca tenham sido tão favoráveis como no tempo do Império Romano. Os socialistas, alvo da contestação dele, veem a garantia do êxito do socialismo no desenvolvimento da própria produção. De um lado, por meio do desenvolvimento da mecanização industrial e agrícola em larga escala, a produção se torna cada vez mais social e a produtividade do trabalho, gigantesca; isso estimula a superação das diferenças de classes e a transição da produção de mercadorias em empresas privadas para a produção direta para e pela sociedade. De outro lado, o moderno modo de produção gera a classe que, em medida sempre crescente, tem o interesse e a força para de fato levar avante esse desenvolvimento – um proletariado livre e trabalhador.”

 

 

“O direito jurídico, que apenas reflete as condições econômicas de determinada sociedade, ocupa posição muito secundária nas pesquisas teóricas de Marx; ao contrário, aparecem em primeiro plano a legitimidade histórica, as situações específicas, os modos de apropriação, as classes sociais de determinadas épocas, cujo exame interessa fundamentalmente aos que veem na história um desenvolvimento contínuo, apesar de muitas vezes contraditório, e não simples caos [Wust] de loucura e brutalidade, como a via o século XVIII. Marx compreende a inevitabilidade histórica e, em consequência, a legitimidade dos antigos senhores de escravos, dos senhores feudais medievais etc. como alavancas do desenvolvimento humano em um período histórico delimitado; do mesmo modo, reconhece também a legitimidade histórica temporária da exploração, da apropriação do produto do trabalho por outros; mas demonstra igualmente não apenas que essa legitimidade histórica já desapareceu, mas também que a continuidade da exploração, sob qualquer forma, ao invés de promover o desenvolvimento social, dificulta-o cada vez mais e implica choques crescentemente violentos.”

 

 

“Isso naturalmente não significa que os socialistas renunciem a propor determinadas reivindicações jurídicas. É impossível que um partido socialista ativo não as tenha, como qualquer partido político em geral. As reivindicações resultantes dos interesses comuns de uma classe só podem ser realizadas quando essa classe conquista o poder político e suas reivindicações alcançam validade universal sob a forma de leis. Toda classe em luta precisa, pois, formular suas reivindicações em um programa, sob a forma de reivindicações jurídicas. Mas as reivindicações de cada classe mudam no decorrer das transformações sociais e políticas e são diferentes em cada país, de acordo com as particularidades e o nível de desenvolvimento social. Daí decorre também o fato de as reivindicações jurídicas de cada partido singular, apesar de concordarem quanto à finalidade, não serem completamente iguais em todas as épocas e entre todos os povos. Constituem elemento variável e são revistas de tempos em tempos, como se pode observar nos partidos socialistas de diversos países. Para essas revisões, são as relações reais que devem ser levadas em conta; em contrapartida, não ocorreu a nenhum dos partidos socialistas existentes fazer uma nova filosofia do direito a partir do seu programa, e possivelmente não lhes ocorrerá no futuro.”

Caminhos da filosofia, de Roseane Almeida da Silva

 Editora: InterSaberes

ISBN: 978-85-5972-454-7

Opinião: ★★☆☆☆

Páginas: 270

Sinopse: O que é a filosofia? Qual é a natureza do pensamento filosófico? Quais são as principais áreas que compõem essa ciência? Quais são os filósofos de maior destaque e quais argumentos estes desenvolveram? Essas são apenas algumas das muitas perguntas que costumam surgir quando damos nossos primeiros passos no estudo dessa rica área do saber. Na obra que você tem mãos, os conceitos e as ideias mais fundamentais da filosofia foram organizados de forma a lhe ajudar a desenvolver criticidade em relação à realidade humana. Siga conosco nestas páginas e descubra o vasto universo do pensar!

 


“Para ajudar a compreender um conceito de ciência, recorreremos a Lakatos e Marconi (2003, p. 80)*, que afirmam que ciência é “uma sistematização de conhecimentos, um conjunto de proposições logicamente correlacionadas sobre o comportamento de certos fenômenos que se deseja estudar”.”

*: A autora citou, mas não referenciou a obra.

 

 

“Sócrates constata que todo conhecimento possível parte do indivíduo, ou seja, é parte do ser. Desse modo, cada pessoa pode apenas conhecer aquilo que em si já sabe. Assim, fazendo uma reflexão sobre o “conhece-te a ti mesmo”, é possível concluir que a atitude de conhecer é a prática de voltar o olhar sobre si mesmo, atividade que se dá única e exclusivamente através do uso da razão.

É aí que entra o trabalho da parteira, pois, segundo Sócrates, o ato de conhecer ou de pensar é semelhante a um parto. Não físico, mas racional.

Sócrates desenvolveu uma forma de ajudar os jovens em sua formação, auxiliando-os na descoberta dos próprios conhecimentos e conduzindo-os ao “conhece-te a ti mesmo”. Essa forma, que o próprio pensador chamava de maiêutica, que significa “parto” em grego, consistia em uma espécie de interrogatório em que, com muita habilidade, o filósofo induzia as pessoas a exporem seus pensamentos sobre os mais diversos assuntos. Em seguida, com um trabalho de reflexão e inquisição intelectual, Sócrates questionava ou contrapunha as opiniões oferecidas de forma implacável, sempre possibilitando ao interlocutor a autorreflexão. Por esse motivo, pode-se afirmar que o método socrático é dialético, ou seja, fundamenta-se em um conhecimento que, embora seja inerente ao próprio sujeito que conhece, se desenvolve pela possibilidade de ser reflexivo (Reale; Antiseri, História da filosofia: Antiguidade e Idade Média, 1990). Por meio da maiêutica, Sócrates chegou a outro elemento peculiar do ato de filosofar: a ironia.

Vimos que pela maiêutica Sócrates estimulava as pessoas não só a refletir mas também a falar, a expor as suas ideias. (...)

No entanto, como Sócrates queria extrair sempre mais conhecimento, acreditando que cada pessoa teria mais dentro de si, Sócrates lançava um novo questionamento, justamente no momento em que o interlocutor acreditava que sabia tudo, que havia chegado a uma conclusão. A pessoa partia do zero, novamente não sabia de nada, de novo teria que supor, indagar-se até uma nova conclusão, que possivelmente seria também derrubada com um novo argumento socrático.”

 

 

“Na história da humanidade e, mais precisamente, na história da filosofia, é possível observar que os filósofos sempre foram contestadores e ao mesmo tempo instigadores. Sempre contestaram o senso comum, o óbvio, as maiorias. Por meio dessa contestação, sempre instigaram a reflexão, a crítica e o questionamento de verdades, muitas vezes impostas, consideradas incontestáveis.

Imbuídos dessa postura contestadora, o filósofo acaba por se tornar indesejado para a sociedade, pois chama a atenção para as ideologias, para a estrutura social que envolve a política, a economia, a cultura, a educação, dentre outros elementos sociais.

O debate proposto pelos filósofos tende a “desmascarar” essas estruturas que são construídas, na maioria das vezes, por discursos que pressupõem uma dominação social e ideológica. Nesse sentido, o filósofo propõe uma nova visão sobre aquilo que está sendo debatido ou, ao menos, observado por ele.

Ainda que muitos não reconheçam, ser filósofo é criar novas concepções e diretrizes de pensamento, como um guia que direciona o olhar do outro para a reflexão e contém ideias pioneiras que despertam o indivíduo, um grupo ou a sociedade para um outro olhar – um olhar mais crítico, profundo, tenaz e contumaz sobre as coisas materiais, espirituais, sociais e científicas que se inter-relacionam na composição e atuação do ser humano como sujeito em si e cidadão.

Não há exagero em considerar que é dever do filósofo estar atento a todo movimento do sujeito, da sociedade (com todos os seus elementos) e da ciência, bem como ensinar as pessoas a serem críticas, a refletirem sobre esses movimentos. O filósofo tem o dever de conduzir os seres humanos do senso comum a uma consciência crítica que perpassa as questões práticas do dia a dia, como o consumo, o trabalho, as relações, até temas como política e ideologias.

Em uma sociedade como a nossa, que apresenta inúmeras injustiças sociais, com uma política consumida pela corrupção, com uma mídia que favorece a alienação e transforma a população em massa de manobra a serviço daqueles que estão no poder, com um dinamismo econômico e social que reduz o trabalhador à sua função e a um consumo voraz, é fundamental que o filósofo se faça cada vez mais presente.

Ressaltamos que a ausência do pensamento crítico dos indivíduos colabora para a deterioração da sociedade, uma vez que ideologias dominantes exercem seu poder sobre o povo. O filósofo não pode ser ignorado. Precisa ser visto como profissional capaz de construir a crítica do homem na sociedade, de conduzir o homem a seu próprio pensamento crítico.

Uma vez mais reafirmamos: o filósofo não renuncia ao pensamento crítico e, ao não fazê-lo hoje em nossa sociedade, possibilita àqueles que o observam, que o escutam e, principalmente, que aprendem com ele a traçar seu próprio horizonte reflexivo.”

 

 

“Os métodos científicos e as perguntas em torno deles passaram a ser objetos de estudo da filosofia da ciência. Embora haja várias ciências e vários métodos, a estrutura lógica do método científico apresenta algumas etapas comuns, conforme apontam Lakatos e Marconi (1991)*: a colocação do problema (questão levantada que o conhecimento disponível ainda não responde); a formulação de hipótese (solução ou um conjunto de soluções que possam servir como respostas a serem testadas para solucionar o problema); testes (conjunto de testes que avaliarão as hipóteses); conclusão (resultados sobre os testes aplicados que comprovarão a resolução do problema, ou até mesmo a criação de alguma teoria).”

*: A autora citou, mas também não referenciou a obra.

 

 

“Outro filósofo contemporâneo que traz novos elementos para a discussão da ética é Gilles Lipovetski (A sociedade pós-moralista, 2005). Analisando a nossa sociedade atual, o filósofo francês afirma que os valores de hoje mudaram, o que fez mudar a moral. Na contemporaneidade, que Lipovetski chama de pós-modernidade, o bem passou a ter a ideia de bem-estar, quando não um bem-estar social. O homem ético não tem mais o dever moral diante da sociedade como tinha na Modernidade, muito menos o dever religioso que tinha no período medieval. Na pós-modernidade, seu dever é para com o seu bem-estar. O individualismo, o consumo, o apelo da mídia, o narcisismo são elementos que Lipovetski (2005, p. 127) traz para sua discussão:

No momento em que impera o culto do ego é que os valores da tolerância triunfam; no momento em que perece a escola do dever, o ideal do respeito aos outros atinge sua consagração suprema. A consciência individualista é uma mescla de indiferença e repugnância pela violência, de relativismo e universalismo, de incerteza e imposição absoluta dos direitos do homem, de abertura às diferenças “dignas de consideração” e recusa às diferenças “inadmissíveis”.

O sujeito ético da pós-modernidade é individualista no sentido de que é guiado por suas próprias escolhas. Não mais se guia pelo dever, mas por um querer, por isso a busca pelos seus direitos, por isso a indiferença e indignação ou não a essa ou aquela situação.

Esse novo cenário é estimulado pela mídia que, segundo Lipovetski (2005, p. 110), também exerce um papel ético:

Agora, os “empresários da moral” não são apenas as associações caritativas e humanitárias, mas também as redes de TV e os astros da mídia. Quanto mais se depaupera a religião do dever, mais consumimos generosidade; quanto mais os valores individuais ganham terreno, mais proliferam e alcançam recordes de audiência as encenações midiáticas das boas causas.”

 

 

“Na tradição do conhecimento filosófico, chamamos de estética o campo que estuda a natureza do belo e suas manifestações na arte. O fundamental em uma reflexão estética é o entendimento sobre a valoração humana no que diz respeito às suas experiências sensoriais e à produção de sentimentos gerados pela percepção de fenômenos estéticos naturais ou criados pelo ser humano como a arte e, consequentemente, o próprio conceito de arte. (...)

O que é o belo? A beleza e a feiura estão nos objetos do mundo ou são apenas julgamentos feitos por sujeitos exteriores a eles? É possível uma apreciação estética do feio? Por que as pessoas gostam da representação de coisas desagradáveis, como peças trágicas ou filmes de violência e terror? Esse tipo de discussão acaba sendo central na estética e na filosofia da arte, desde a filosofia clássica até a contemporânea.

 

4.2.1 Estética e filosofia clássica

A preocupação com uma noção verdadeira da beleza remonta aos pensadores clássicos da Grécia Antiga, inicialmente com Sócrates, que entendia o belo como intimamente relacionado à utilidade do objeto em questão. Para o filósofo grego, o objeto em questão deve ser útil e ter uma boa funcionalidade para aquilo que foi construído: o que é útil é belo, e o que é belo é útil. Essa noção socrática do belo é perceptível em diálogos como Hípias maior (1980), na obra A República, de Platão, em que o discípulo de Sócrates afirma que seria feio um olho que não pudesse enxergar ou um corpo humano incapaz de desempenhar atividades físicas (Platão, 1980). A mesma discussão pode ser observada no texto Ditos e feitos memoráveis de Sócrates, escrito por Xenofonte, em que Sócrates afirma que um cesto de lixo pode ser belo, enquanto um escudo de ouro pode ser feio. Se o cesto de lixo é adequado para cumprir sua função, é belo, e se o escudo de ouro se apresenta pesado demais para cumprir a sua função, seria feio (Sócrates, 1987).

Enquanto para Sócrates um objeto belo é aquele que desempenha adequadamente sua função, para seu discípulo Platão, a noção de belo se torna um tanto diferente. Para Platão, o belo passa a ser uma característica não acessível pelos sentidos, mas passível de ser apreendida de forma sensível, entretanto, apenas possível de ser compreendida pela intelecção (Nougué, O belo e a arte segundo Platão, 2013). O belo só pode ser em si no mundo das ideias, como o justo, o verdadeiro e o bem.

Em sua obra A República, Platão critica os artistas (pintores, escultures, poetas e atores) por acreditar que esses indivíduos, sendo miméticos (mimesis em grego, ou “imitação”), faziam cópias imperfeitas das coisas, inferiores em sua verdade. Se o nosso mundo sensível já é imperfeito e os objetos menos verdadeiros que no mundo das ideias, as obras de arte seriam então menos verdadeiras ainda.

O belo não pode ser criado, pois existe por si mesmo no mundo das ideias, e a obra de arte é apenas imitação. Para Platão, os artistas, além de serem reprodutores de cópias imperfeitas, eram criadores de obras que mexem com as sensações e as emoções do homem, confundindo então sua capacidade intelectiva e racional (Nougué, 2013).

Aristóteles concorda que a obra de arte é uma cópia, que é mimética que produz efeitos. Porém, o estagirita discorda do papel da arte para a polis (cidade) conferido por Platão, acredita no efeito positivo da poesia, do teatro, das artes plásticas e de outras formas de representação (Nougué, 2013).

Aristóteles distingue dois tipos de arte: as que imitam a natureza (mas que podem abordar o que é impossível) e as que têm utilidade prática. Aristóteles trouxe uma noção importante para a estética: de que não apenas o belo e o alegre podem ter um valor artístico, mas também o feio e o triste. Por isso, o filósofo afirma que, ao assistir peças trágicas, como Édipo Rei*, as pessoas gostam e se entretêm com obras dessa natureza porque causam uma sensação de terror ligada a uma sensação de piedade e, ao fim da peça, uma limpeza, um alívio de tensões. Isso é o que ele chama de catarse (em grego katharsis, que significa “purificação”) (Aristóteles, Poética, 2008).”

* Peça clássica de Sófocles que retrata a história de um homem que acaba por matar seu pai, se casar com uma mulher sem saber que ela é a sua mãe. Ao descobrir, esses eventos, arranca os próprios olhos.