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sábado, 5 de setembro de 2020

Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético (Parte II), de Slavoj Žižek

Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-316-5
Tradução: Rogério Bettoni
Opinião: ★★★★☆
Sinopse: Ver Parte I

“Um dos melhores indicadores da dimensão que resiste à compreensão pseudo-hegeliana do tratamento psicanalítico como processo de apropriação, por parte do paciente, do conteúdo reprimido é o paradoxo da perversão no edifício teórico freudiano: a perversão demonstra a insuficiência da lógica simples da transgressão. A sabedoria comum nos diz que os pervertidos fazem na verdade aquilo que os histéricos sonham fazer, pois “tudo é permitido” na perversão: o pervertido efetiva abertamente todo conteúdo reprimido – e, ainda assim, como enfatiza Freud, em nenhum lugar o recalque é tão forte como na perversão, fato amplamente confirmado por nossa realidade capitalista recente, em que a total permissividade sexual causa ansiedade e impotência ou frigidez, em vez de libertação. Isso nos obriga a distinguir entre o conteúdo reprimido e a forma de repressão, quando a forma continua em operação mesmo depois que o conteúdo deixa de ser reprimido – em suma, o sujeito pode se apropriar plenamente do conteúdo reprimido, mas a repressão continua. Ao comentar um sonho curto de uma paciente (uma mulher que a princípio se recusou a contar o sonho, “porque era muito indistinto e confuso”) que se revelou uma referência ao fato de ela estar grávida, mas em dúvida quanto a quem era o pai da criança (isto é, a paternidade era “indistinta e confusa”), Freud chega a uma conclusão dialética fundamental: “a falta de clareza exibida pelo sonho era parte do material que a instigara, ou seja, parte desse material estava representada na forma do sonho. A forma de um sonho, ou a forma como é sonhado, é empregada com surpreendente frequência para representar seu tema oculto57.”
57 Sigmund Freud, A interpretação dos sonhos, primeira parte (trad. Jayme Salomão, Rio de Janeiro, Imago, 1996), p. 357. (Volume 4 da edição standard das obras completas).


“Há algumas décadas, a revista MAD publicou uma série de variações do tema de como um sujeito pode se relacionar com uma norma em quatro níveis: por exemplo, em relação à moda, os pobres não se importam com a maneira de se vestir; a classe média baixa tenta seguir a moda, mas está sempre atrasada; a classe média alta veste-se de acordo com a última moda; os que estão no topo, os que ditam as tendências, também não se importam com a maneira de se vestir, desde que essa maneira seja a moda. No que diz respeito à lei, os marginais não se importam com o que ela diz, simplesmente fazem o que querem; os utilitaristas egoístas seguem a lei, mas de maneira apenas aproximada, quando convém a seus próprios interesses; os moralistas a seguem estritamente; e os que estão no topo, como a monarquia absoluta, também fazem o que querem, desde que seja a lei. Nos dois casos, avançamos da ignorância para o comprometimento parcial e depois para o pleno comprometimento, mas ainda há um passo além desses três: nesse nível mais avançado, as pessoas fazem exatamente a mesma coisa que as do nível anterior, mas com a mesma atitude subjetiva de quem está no nível mais inferior. Isso não corresponde ao dizer de Agostinho, de que, se temos amor cristão, podemos fazer o que quisermos, desde que esteja automaticamente em concordância com a lei? E esses quatro passos também não servem de modelo para a “negação da negação”? Partimos de uma atitude totalmente não alienada (eu faço o que quero), depois progredimos para uma alienação parcial (eu restrinjo a mim mesmo, ao meu egoísmo) e chegamos à alienação total (rendo-me completamente à norma ou à lei), até que, finalmente, na figura do Mestre, essa alienação total é autonegada e coincide com seu oposto.”


“Hegel define a reconciliação como “exteriorização”, um tipo de contramovimento à interiorização dialética padrão da oposição exterior: aqui, a contradição interna do sujeito é exteriorizada na relação entre os sujeitos, indicando a aceitação do sujeito de si mesmo como parte do mundo social exterior que ele mesmo não controla. No sim da reconciliação é aceita, portanto, uma alienação básica em sentido quase marxista: o significado dos meus atos não depende de mim, das minhas intenções – ele é decidido posteriormente, retroativamente. Em outras palavras, o que é aceito, o que o sujeito tem de assumir, é sua descentralização constitutiva e radical na ordem simbólica.
“Os dois” da passagem que acabamos de citar refere-se à oposição entre a consciência que age e a consciência que julga: agir é errar, o ato é parcial por definição, envolve culpa, mas a consciência que julga não admite que seu julgar seja também um ato, recusa-se a incluir a si mesma naquilo que julga. Ela ignora o fato de que o verdadeiro mal reside no olhar neutro que vê o mal por toda parte, de modo que seja não menos manchado que a consciência que age.”


“É fato notório que o botão de “fechar a porta” da maioria dos elevadores é um placebo sem nenhuma função, colocado ali apenas para nos dar a impressão de que podemos de certo modo acelerar as coisas; no entanto, quando apertamos o botão, a porta se fecha exatamente no mesmo momento que fecharia se tivéssemos apertado apenas o botão do andar que desejamos. Esse caso claro e extremo de falsa participação é uma metáfora apropriada para a participação dos indivíduos no processo político “pós-moderno”. Além disso, representa o ocasionalismo em sua forma mais pura: da perspectiva de Malebranche, estamos de fato apertando esses botões o tempo todo, e a atividade incessante de Deus é que faz a coordenação entre nossa ação e o evento que se segue, ainda que pensemos que o evento resulta de nossa ação.
Por esse motivo, é crucial manter aberta a ambiguidade radical envolvida no modo como o ciberespaço afetará nossas vidas: ela não depende da tecnologia como tal, mas do modo de sua inscrição social. A imersão no ciberespaço pode intensificar nossa experiência corporal (uma nova sensualidade, um novo corpo com mais órgãos, novos sexos...), mas também oferece, para quem manipula a máquina, a possibilidade de literalmente roubar nosso próprio corpo (virtual), privando-nos do controle sobre ele, de modo que não nos relacionemos mais com nosso corpo enquanto “corpo próprio”. Eis a ambiguidade constitutiva da ideia de mediatização21. Originalmente, o termo se referia ao ato de arrancar do sujeito seu direito imediato e direto de tomar decisões; o grande mestre da mediatização política foi Napoleão, que deixava a fachada do poder para os monarcas dos territórios que ele conquistava, embora não estivessem mais na posição de usar esse poder. Em um nível mais geral, poderíamos dizer que apenas essa “mediatização” do monarca define a monarquia constitucional: nela, o monarca é reduzido a um gesto simbólico puramente formal de “pôr os pingos nos is”, de firmar e assim conferir força performativa aos éditos cujo conteúdo tenha sido determinado pelo órgão governamental eleito. E, mutatis mutandis, o mesmo não seria válido para a digitalização progressiva de nossa vida cotidiana, no decorrer da qual o sujeito também é cada vez mais “mediatizado”, imperceptivelmente arrancado de seu poder, mas o tempo todo com a falsa impressão de que esse poder está aumentando? Quando nosso corpo é mediatizado (preso na rede da mídia eletrônica), ele é simultaneamente exposto à ameaça de uma “proletarização”: o sujeito é potencialmente reduzido ao puro $, posto que até a minha experiência pessoal pode ser roubada, manipulada, regulada pelo Outro mecânico.”
21 Sobre essa ambiguidade, ver Paul Virilio, A arte do motor (trad. Paulo Roberto Pires, São Paulo, Estação Liberdade, 1996).


“Isso nos leva à necessidade da Queda: dado o elo kantiano entre dependência e autonomia, a Queda é inevitável, um passo necessário no progresso moral do homem. Ou seja, em termos kantianos precisos: a “Queda” é a própria renúncia da minha autonomia ética radical; ocorre quando me refugio em uma Lei heteronômica, em uma Lei entendida como algo que me é imposto de fora. A finitude em que busco apoio para evitar a vertigem da liberdade é a finitude da própria Lei heteronômica externa. Nisso reside a dificuldade de ser kantiano. Todos os pais e todas as mães sabem que as provocações do filho, por mais selvagens e “transgressivas” que pareçam, no fim das contas escondem e expressam a necessidade de que uma figura de autoridade estabeleça limites firmes, trace uma linha que signifique “Até aqui, não mais do que isso!”, permitindo assim que a criança mapeie claramente o que é e o que não é possível. (E o mesmo não acontece com as provocações do histérico?) É exatamente isso que o analista se recusa a fazer, e é isso que o torna tão traumático para o analisando – paradoxalmente, é o estabelecimento de um limite firme que é libertador, e é a própria ausência de um limite firme que é vivida como sufocante.
É por isso que a autonomia kantiana do sujeito é tão difícil – sua implicação é exatamente não haver mais ninguém, não haver um agente externo de “autoridade natural” que possa fazer o trabalho por mim, que eu mesmo tenha de estabelecer o limite da minha “insubordinação” natural. Embora Kant tenha escrito de modo memorável que o homem é um animal que precisa de um senhor, não devemos nos iludir: Kant não visava um lugar-comum filosófico segundo o qual, em contraste com os animais, cujos padrões de comportamento são baseados em instintos herdados, o homem carece dessas coordenadas firmes, que, portanto, têm de ser impostas a ele de fora, por meio de uma autoridade cultural; o verdadeiro objetivo de Kant é antes apontar como a própria necessidade de um senhor externo é uma isca enganadora: o homem precisa de um senhor para esconder de si mesmo o impasse de sua difícil liberdade e responsabilidade por si mesmo. Nesse sentido preciso, um ser humano “maduro” e verdadeiramente esclarecido é um sujeito que não precisa mais de um senhor, um sujeito que pode assumir plenamente o pesado fardo de definir seus próprios limites. Essa lição kantiana (e também hegeliana) básica foi muito bem colocada por Chesterton: “Cada ato de vontade é um ato de autolimitação. Desejar uma ação é desejar uma limitação. Nesse sentido, todas as ações são ações de sacrifício de si mesmo”25.
Desse modo, a lição que temos aqui é, em sentido preciso, uma lição hegeliana: a oposição externa entre liberdade (espontaneidade transcendental, autonomia moral e responsabilidade de si) e escravidão (submissão a minha natureza, a seus instintos “patológicos” ou a um poder exterior) tem de ser transportada para a liberdade em si como o “maior” antagonismo entre a liberdade monstruosa enquanto “insubordinação” e a verdadeira liberdade moral. Contudo, um possível contra-argumento seria que esse excesso numenal da liberdade (a “insubordinação” kantiana, a “Noite do Mundo” hegeliana) é o resultado retroativo dos próprios mecanismos disciplinares (dentro do espírito do tema paulino da “Lei cria a transgressão”, ou o tópico foucaultiano de como as próprias medidas disciplinares que tentam regular a sexualidade geram o “sexo” como excesso esquivo) – o obstáculo cria aquilo que ele se esforça para controlar.”
25 G. K. Chesterton, Ortodoxia (trad. Almiro Pisetta, São Paulo, Mundo Cristão, 2008), p. 67.


“A grande originalidade de Hegel está no fato de ele mostrar exatamente como uma interpretação que não visa nada além da universalidade, que não admite nenhum papel para a singularidade do exegeta – uma interpretação, aliás, que se recusa a ser plástica, no sentido de ser ao mesmo tempo “universal e individual” – seria, na realidade, particular e arbitrária.1
É muito preciso o que está em jogo nessa passagem do revolucionário livro de Catherine Malabou sobre Hegel. Toda interpretação é parcial, “enraizada” na posição subjetiva e fundamentalmente contingente do sujeito; contudo, longe de impedir o acesso à verdade universal do texto interpretado, a plena aceitação dessa contingência e da necessidade de lidar com ela é a única maneira de o intérprete ter acesso à universalidade do conteúdo do texto. A posição subjetiva e contingente do intérprete produz o ímpeto, a ânsia ou o anseio que sustenta uma interpretação autêntica. Se quisermos chegar à universalidade do texto interpretado diretamente, como ele é “em si”, contornando, apagando ou abstraindo a posição engajada do intérprete, então temos de admitir a derrota e aceitar o relativismo historicista, ou elevar a um Em-si universal e determinado o que é de fato uma leitura particular e arbitrária do texto. Em outras palavras, a universalidade que alcançamos dessa maneira é universalidade abstrata, uma universalidade que, em vez de abranger, exclui a contingência do particular. A verdadeira “universalidade concreta” de um texto histórico notável como Antígona (ou a Bíblia, ou uma peça de Shakespeare) reside na própria totalidade de suas leituras determinadas historicamente. Aqui, o aspecto fundamental que devemos ter em mente é que a universalidade concreta não é universalidade concreta verdadeira se não incluir em si mesma a posição subjetiva de seu leitor-intérprete como ponto particular e contingente a partir do qual a universalidade é percebida. Ou seja, no desenvolvimento hegeliano do processo de cognição, o sujeito da cognição não é apenas o meio universal de reflexão no qual ocorrem pensamentos particulares, um tipo de receptáculo que contém, como conteúdo particular, pensamentos sobre determinados objetos. O oposto também é verdadeiro: o objeto da cognição é um Em-si universal, e o sujeito representa precisamente o que a palavra “subjetivo” significa em seu uso padrão, como quando falamos sobre “percepções subjetivas que distorcem o modo como uma coisa realmente é”. Aqui, a verdadeira particularidade de um Conceito universal não é apenas a particularidade de sua espécie que pode, como tal, ser apreendida por um sujeito neutro que observa essa universalidade (como quando, ao refletir sobre o conceito de Estado, vejo que o Estado em que vivo é uma espécie particular, e que também há outros tipos de Estados); antes, a verdadeira particularidade é, em primeiro lugar, a posição subjetiva particular da qual o Conceito universal é para mim aceitável (no caso do Estado, o fato de eu ser membro de um Estado particular, enraizado em sua estrutura ideológica particular, “colore” meu conceito universal de Estado). E, como Marx sabia muito bem, essa dialética também é válida para a ascensão da própria universalidade: é somente em uma constelação histórica específica e particular que a dimensão universal de um Conceito pode surgir “como tal”. O exemplo de Marx é o trabalho: somente no capitalismo, em que troco minha força de trabalho por dinheiro enquanto mercadoria universal, é que me relaciono com minha profissão específica enquanto forma particular contingente de emprego; somente aqui a noção abstrata de trabalho torna-se um fato social, em contraste com as sociedades medievais em que o trabalhador não escolhe seu campo de trabalho como profissão, pois “nasce” diretamente dentro deste. (O mesmo serve para Freud e sua descoberta da função universal do complexo de Édipo.) Em outras palavras, a própria lacuna entre uma noção universal e sua forma histórica particular só aparece em determinada época histórica. Isso significa que somente passamos realmente da universalidade abstrata para a concreta quando o sujeito cognoscente perde sua posição externa e se prende no movimento de seu conteúdo – é só dessa forma que a universalidade do objeto da cognição perde seu caráter abstrato e entra no movimento de seu conteúdo particular.
Desse modo, devemos distinguir estritamente entre universalidade concreta e historicismo. Em relação à noção de direitos humanos, uma leitura marxista sintomática pode identificar de maneira convincente o conteúdo particular que lhe dá uma ênfase ideológica especificamente burguesa: os direitos humanos universais são de fato os direitos dos donos de propriedades, brancos e do sexo masculino, de negociar livremente no mercado e explorar trabalhadores e mulheres, além de exercer dominação política. No entanto, a identificação do conteúdo particular que hegemoniza a forma universal é só a metade da história. A outra metade, igualmente importante, consiste em fazer uma pergunta muito mais difícil a respeito do surgimento da forma da própria universalidade. Como, e em que circunstâncias históricas específicas, a Universalidade abstrata tornou-se um “fato da vida (social)”? Em que condições os indivíduos vivenciam a si próprios como sujeitos dos direitos humanos universais? Esse é o argumento da análise marxista do fetichismo da mercadoria: em uma sociedade em que predomina a troca de mercadorias, os indivíduos, em sua vida cotidiana, relacionam-se com eles próprios, bem como com os objetos a sua volta, como encarnações contingentes de noções abstratas e universais. O que sou, tendo em vista meus antecedentes culturais e sociais concretos, é vivido como contingente, pois o que me define, em última análise, é a capacidade universal abstrata de pensar e/ou trabalhar. Qualquer objeto que possa satisfazer meu desejo é encarado como contingente, porque meu desejo é concebido como uma capacidade formal abstrata, indiferente à multiplicidade de objetos particulares que possam satisfazê-lo, mas nunca o satisfazem por completo. A ideia moderna de profissão, como acabamos de ver, implica que vivencio a mim mesmo como um indivíduo que não “nasceu” diretamente “dentro” de seu papel social. O que me tornarei depende do intercâmbio entre as circunstâncias sociais contingentes e minha escolha livre. O indivíduo contemporâneo tem uma profissão – é eletricista, professor, garçom –, mas não teria sentido nenhum afirmar que um servo da época medieval fosse camponês por profissão. Nesse aspecto, a ideia fundamental é que, mais uma vez, nas condições sociais específicas da troca de mercadorias dentro de uma economia de mercado global, a “abstração” torna-se característica direta da vida social efetiva. Ela tem impacto na forma como os indivíduos se comportam e se relacionam com seu próprio destino e com seu ambiente social. Marx compartilha a visão de Hegel de como a Universalidade torna-se “para si” somente na medida em que os indivíduos não identificam mais de maneira plena o âmago de seu ser com sua situação social particular: vivenciam-se sempre como “desconjuntados” em relação a essa situação. Em outras palavras, em determinada estrutura social, a Universalidade torna-se “para si” somente naqueles indivíduos que carecem de um lugar apropriado nela. Portanto, o modo de manifestação da Universalidade abstrata, sua entrada na existência efetiva, gera violência e perturba o antigo equilíbrio orgânico.
Isso não quer dizer apenas que cada universalidade é perseguida por um conteúdo particular que a corrompe, mas que cada posição particular é perseguida por sua universalidade implícita, o que a enfraquece. O capitalismo não é apenas Em-si universal, ele é Para-si universal enquanto um tremendo poder corrosivo que destrói mundos, culturas e tradições de vida particulares, atravessando-as e sugando-as para dentro de seu vórtice. Não faz sentido perguntar se “essa universalidade é genuína ou apenas uma máscara para interesses particulares?”. Essa universalidade é claramente efetiva enquanto universalidade, enquanto força negativa para mediar e destruir todo conteúdo particular. E a mesma lógica vale para a luta emancipatória: a cultura particular que tenta desesperadamente defender sua identidade tem de reprimir a dimensão universal que está ativa em seu próprio cerne, ou seja, a lacuna entre o particular (sua identidade) e o universal que a desestabiliza por dentro. É por isso que o argumento “deixe nossa cultura em paz” é um fracasso. Em toda cultura particular, os indivíduos sofrem e protestam – por exemplo, as mulheres protestam quando são obrigadas a passar por uma clitoridectomia – e esses protestos contra as restrições paroquiais de determinada cultura são formulados do ponto de vista da universalidade. A universalidade efetiva não é o sentimento “profundo” de que diferentes culturas acabam compartilhando os mesmos valores básicos etc.; a universalidade efetiva “aparece” (efetiva-se) como a experiência da negatividade, da inadequação para consigo, de uma identidade particular. A “universalidade concreta” não diz respeito à relação de um particular com o Todo mais amplo, ao modo como se relaciona com os outros e com seu contexto, mas sim ao modo como se relaciona consigo, ao modo como sua identidade particular é clivada de dentro. Assim, o problema usual da universalidade (como posso ter certeza de que o que percebo como universalidade não é colorido pela minha identidade particular) desaparece: a “universalidade concreta” significa exatamente que minha identidade particular é corroída de dentro, que a tensão entre particularidade e universalidade é inerente a minha identidade particular – ou, em termos mais formais, que a diferença específica coincide com a diferença genética.
Em suma, uma universalidade surge “para si” somente por meio ou no lugar de uma particularidade tolhida. A universalidade inscreve-se em uma identidade particular enquanto incapacidade de tornar-se plenamente si mesma: eu sou um objeto universal na medida em que não posso me realizar na minha identidade particular – por essa razão, o sujeito universal moderno é, por definição, “desconjuntado”, carente de seu lugar apropriado no edifício social. Essa tese tem de ser tomada ao pé da letra: não é apenas que a universalidade se inscreve na minha identidade particular como ruptura, desconjuntura; a universalidade “em si” é, em sua efetividade, nada mais que esse corte que impede de dentro toda e qualquer identidade particular. Em uma dada ordem social, uma alegação universal somente pode ser feita por um grupo que foi impedido de realizar sua identidade particular – mulheres tolhidas em seu esforço de realizar sua identidade feminina, um grupo étnico impedido de afirmar sua identidade e assim por diante. Por esse mesmo motivo, para Freud, “tudo tem conotação sexual”, pois a sexualidade pode infectar tudo: não por ser o componente “mais forte” na vida das pessoas e exercer certa hegemonia sobre todos os outros componentes, mas por ser o componente mais radicalmente tolhido em sua efetivação, marcado pela “castração simbólica” por conta da qual, como afirma Lacan, não existe relação sexual. Cada universalidade que surge, que é posta “como tal”, testemunha uma cicatriz em alguma particularidade, e permanece para sempre ligada a essa cicatriz.”
1 Catherine Malabou, The Future of Hegel, cit., p. 181.


A resposta para a afirmação de Derrida de que cada característica atribuída exclusivamente ao “homem” é uma ficção não poderia ser esta: tais ficções têm uma realidade própria, organizam efetivamente as práticas humanas – os seres humanos são exatamente os animais que se comprometem com suas ficções, mantendo-se escrupulosamente fiéis a elas (uma versão da afirmação de Nietzsche, segundo a qual o homem é o animal capaz de fazer promessas)?


“De que maneira então os dois excessos (no topo e na base) se relacionam um com o outro? A ligação entre os dois não fornece a fórmula para um regime populista autoritário? Em seu O 18 de brumário, uma análise do primeiro desses regimes (o reinado de Napoleão III), Marx destacou que, enquanto Napoleão III jogava uma classe contra a outra, roubando de uma para satisfazer a outra, a única verdadeira base de classe de seu governo era o lumpemproletariado. De maneira homóloga, o paradoxo do fascismo é o fato de defender uma ordem hierárquica em que “todos têm seu lugar apropriado”, ao passo que sua única base social verdadeira é a populaça (assassinos da SA etc.) – nela, o único elo de classe direto do Líder é aquele que o liga à populaça, somente no meio da populaça é que Hitler estava realmente “em casa”.”


“Dizem que, na China, quando realmente se odeia alguém, o mal que se deseja ao outro é: “Que você viva em tempos interessantes!”. Hegel tinha plena consciência de que, em nossa história, “tempos interessantes” são, na verdade, tempos de inquietação, guerra e lutas de forças, com milhões de observadores inocentes sofrendo suas consequências: “A história do mundo não é o teatro da felicidade. Períodos de felicidade são páginas em branco, pois são períodos de harmonia, períodos de ausência de oposição”34.”
34 G. W. F. Hegel, Lectures on the Philosophy of History, cit., p. 73.


Aqui, poderíamos reunir, como aspectos da mesma limitação, os dois temas em que Hegel fracassa (por seus próprios padrões): a populaça e o sexo. Longe de propiciar o fundamento natural da vida humana, a sexualidade é o verdadeiro terreno em que os seres humanos se destacam da natureza: a ideia de perversão sexual, ou de uma paixão sexual mortal, é totalmente alheia ao universo animal. Nesse aspecto, nem mesmo Hegel atinge os próprios padrões: ele simplesmente descreve como, por meio da cultura, a substância natural da sexualidade é cultivada, suprassumida, mediada – nós, seres humanos, já não fazemos amor para procriar, mas entramos em um processo complexo de sedução e casamento em que a sexualidade se torna expressão do vínculo espiritual entre homem e mulher etc. Contudo, o que Hegel não percebe é que, nos seres humanos, a sexualidade não é apenas transformada ou civilizada, mas sim, e de uma maneira muito mais radical, modificada em sua própria substância: ela não é mais a pulsão instintiva de reprodução, mas uma pulsão que se descobre tolhida em relação a seu objetivo natural (a reprodução) e, com isso, explode em uma paixão infinita, propriamente metafísica. O devir cultural da sexualidade, portanto, não é o devir da natureza, mas a tentativa de domesticar um excesso propriamente desnatural da paixão sexual metafísica. Esse excesso de negatividade discernível no sexo e na populaça é a própria dimensão da “insubordinação” identificada por Kant como a liberdade violenta em virtude da qual o homem, ao contrário dos animais, precisa de um mestre. Portanto, não é só que a sexualidade seja a substância animal “suprassumida” em rituais e modos civilizados, remodelada, disciplinada etc., mas o próprio excesso da sexualidade, a sexualidade como Paixão incondicional que ameaça detonar todas as restrições “civilizadas”, é resultado da Cultura. Nos termos do Tristão, de Wagner: a civilização não é apenas o universo do Dia, dos rituais e das honras que nos cegam, mas a própria Noite, a paixão infinita na qual dois amantes querem dissolver sua existência ordinária e cotidiana – os animais não conhecem tal paixão. Desse modo, a civilização/Cultura retroativamente põe/transforma seu próprio pressuposto natural, retroativamente “desnaturaliza” a natureza – é o que Freud chamou de id, libido. É desse modo que, também aqui, ao combater seu obstáculo natural, ou sua substância natural oposta, o Espírito combate a si mesmo, sua própria essência.
Elisabeth Lloyd sugere que o orgasmo feminino não tem nenhuma função evolutiva positiva: ele não é uma adaptação biológica com vantagens evolutivas, mas um “apêndice”, como os mamilos masculinos35. No estágio embrionário de crescimento, macho e fêmea têm a mesma estrutura anatômica durante os dois primeiros meses, antes de aparecerem as diferenças; a fêmea adquire a capacidade do orgasmo somente porque o macho precisará dela depois, assim como o macho adquire mamilos somente porque as fêmeas precisarão deles. Todas as explicações usuais (como a tese da “sucção uterina”, isto é, o orgasmo provoca contrações que “sugam” o esperma e, assim, ajuda a concepção) são falsas: embora o prazer sexual e até o clitóris sejam adaptáveis, o orgasmo não é. O fato de essa tese ter provocado a fúria das feministas é em si uma prova do declínio de nossos padrões intelectuais: como se a própria superfluidade do orgasmo feminino não o tornasse ainda mais “espiritual” – não devemos nos esquecer de que, segundo alguns evolucionistas, a própria linguagem é um subproduto sem nenhuma função evolutiva clara. Aqui, devemos ficar atentos para não deixar passar a reversão propriamente dialética da substância: o momento em que o ponto de partida substancial (“natural”) imediato não é influenciado, transformado, mediado/cultivado, mas modificado em sua própria substância. Nós não agimos simplesmente sobre a natureza e assim a transformamos – em um gesto de reversão retroativa, a própria natureza muda sua “natureza”36. É por isso que os católicos que insistem que o sexo humano é somente para procriar – e a cópula por luxúria é bestial – passam totalmente ao largo do problema e acabam celebrando a animalidade do homem.
Por que o cristianismo é contra a sexualidade, aceitando-a como mal necessário apenas quando serve ao propósito natural da procriação? Não porque nossa natureza inferior emerge na sexualidade, mas exatamente porque a sexualidade compete com a espiritualidade como atividade metafísica primordial. A hipótese freudiana diz que a passagem dos instintos animais (de acasalamento) para a sexualidade propriamente dita (pulsões) é o passo primordial do campo físico da vida biológica (animal) para a metafísica, para a eternidade e a imortalidade, para um nível que é heterogêneo com respeito ao ciclo biológico da geração e da corrupção37. Platão já sabia disso quando escreveu sobre Eros, a ligação erótica a um corpo belo, como o primeiro passo no caminho para o Bem supremo; cristãos observadores (como Simone Weil) perceberam no desejo sexual uma aspiração ao Absoluto. A sexualidade humana é caracterizada pela impossibilidade de atingir seu objetivo, e essa impossibilidade constitutiva o eterniza, como no caso dos mitos sobre grandes amantes cujo amor perdura para além da vida e da morte. O cristianismo concebe esse excesso propriamente metafísico da sexualidade como um distúrbio que deve ser eliminado; assim, paradoxalmente, é o próprio cristianismo (sobretudo o catolicismo) que quer se livrar de seu rival, reduzindo a sexualidade à função animal de procriação: o cristianismo quer “normalizar” a sexualidade, espiritualizando-a de fora (impondo sobre ela o invólucro externo da espiritualidade – o sexo deve acontecer em uma relação de amor, com respeito pelo parceiro ou parceira etc.), obliterando assim sua dimensão espiritual imanente, a dimensão da paixão incondicional. Até mesmo Hegel cai nesse erro quando entende a dimensão espiritual propriamente humana da sexualidade apenas em sua forma cultivada ou mediada, ignorando que essa mediação transubstancia ou eterniza retroativamente o próprio objeto de sua mediação. Em todo caso, o objetivo é se livrar do estranho duplo da espiritualidade, de uma espiritualidade em sua forma libidinal obscena, do excesso que absolutiza o próprio instinto na pulsão eterna.
A limitação do conceito de sexualidade em Hegel é claramente discernível em sua teoria do casamento (na Filosofia do direito), mas merece ainda assim uma leitura mais atenta: por baixo da superfície do conceito burguês padrão de casamento escondem-se muitas implicações perturbadoras. Embora o sujeito entre no casamento voluntariamente, renunciando à própria autonomia a título de imersão na unidade imediata ou substancial da família (que funciona com relação a sua aparência como uma pessoa), a função da família é exatamente o oposto dessa unidade substancial: é educar quem nasce dentro dela para que a abandone (os pais) e busque o próprio caminho, independentemente dela. A primeira lição do casamento, portanto, é que o objetivo maior de cada unidade ética substancial é se dissolver, dando origem a indivíduos que vão impor sua plena autonomia contra a unidade substancial que os deu à luz.”
35 Ver Elisabeth Lloyd, The Case of the Female Orgasm (Cambridge, Harvard University Press, 2006).
36 De maneira homóloga, quando entramos no domínio da sociedade civil legal, a ordem tribal de honra e vingança é destituída de sua nobreza e surge de repente como um crime comum.


“A distinção entre casamento e concubinato é que este último trata principalmente da satisfação de um desejo natural, ao passo que essa satisfação é secundária no primeiro [...]. O aspecto ético do casamento consiste na consciência que os cônjuges têm dessa unidade enquanto seu objetivo substantivo e assim, em seu amor, da confiança e do compartilhamento de toda a sua existência como indivíduos. Quando os cônjuges assumem esse modo de pensar e sua união é efetiva, a paixão física declina para o nível de um momento físico, destinado a desaparecer em sua própria satisfação. Por outro lado, o elo espiritual da união garante seus direitos como substância do casamento e assim se eleva, inerentemente indissolúvel, a um plano acima da contingência da paixão e da transitoriedade do capricho particular.44 (...)
Em termos lacanianos, o casamento subtrai do objeto (cônjuge) “o que há nele mais que ele”, o objeto a, o objeto-causa do desejo – ele reduz o cônjuge a um objeto ordinário. A lição do casamento que se tira do amor romântico é: você ama apaixonadamente certa pessoa? Então se case com ela e veja como ela é na vida cotidiana, com seus tiques vulgares, suas pequenas mesquinharias, suas roupas íntimas sujas, seu ronco etc. Devemos ser claros aqui: é função do casamento vulgarizar o sexo, retirar dele toda a paixão verdadeira e transformá-lo em um dever entediante. Aliás, deveríamos corrigir Hegel sobre esse ponto: o sexo em si não é natural, é função do casamento reduzi-lo a um momento patológico/natural subordinado. Também deveríamos corrigi-lo na medida em que confunde idealização e sublimação: e se o casamento for o grande teste do verdadeiro amor, em que a sublimação supera a idealização? Na paixão cega, o parceiro ou a parceira não são sublimados, mas idealizados; a vida de casado definitivamente desidealiza o cônjuge, mas não necessariamente o dessublima.
O velho ditado “o amor é cego, os amantes não” deveria ser interpretado de maneira precisa, voltado para a estrutura da renegação: “Eu sei muito bem (que aquele que amo é cheio de falhas), mas mesmo assim (eu o amo plenamente)”. A questão, portanto, não é que somos realistas mais cínicos do que parecemos, mas sim que, quando estamos apaixonados, esse realismo se torna inoperativo: em nossos atos, obedecemos ao amor cego. Em um velho melodrama cristão, um ex-soldado acometido de cegueira temporária apaixona-se pela enfermeira que cuida dele, fica fascinado com sua bondade e cria uma imagem idealizada dela; quando a cegueira passa, ele vê que ela é feia. Sabendo que esse amor não sobreviveria a um contato prolongado com essa realidade, e que a beleza interior de sua boa alma tem mais valor que sua aparência externa, ele intencionalmente se cega olhando ininterruptamente para o sol, para que seu amor por aquela mulher possa sobreviver. Se existe uma falsa celebração do amor, acabamos de citá-la. No verdadeiro amor, não há necessidade de idealização do objeto, não há necessidade de ignorar as características dissonantes do objeto: o ex-soldado seria capaz de ver a beleza da enfermeira resplandecendo através de sua “feiura”.”
44 G. W. F. Hegel, Filosofia do direito, § 163, p. 175.


A propósito da guerra, mais uma vez Hegel não é totalmente consistente com suas próprias premissas teóricas: para ser consistente, teria de reconhecer a ação jeffersoniana, a óbvia passagem dialética da guerra externa (entre Estados) à guerra “interna” (revolução, rebelião contra o poder do Estado), como uma explosão esporádica da negatividade que rejuvenesce o edifício do poder. É por isso que, ao lermos os infames parágrafos 322-4 da Filosofia do direito, em que Hegel justifica a necessidade ética da guerra, devemos ter todo o cuidado para notar a ligação entre sua argumentação e suas proposições básicas a respeito da negatividade autorrelativa que constitui o verdadeiro núcleo de um indivíduo livre e autônomo. Ele simplesmente aplica a negatividade autorrelativa básica da livre subjetividade às relações entre Estados.”


“Hegel também pensa o inconsciente, mas o inconsciente formal, a forma transcendental universal do que estou fazendo em oposição ao conteúdo imediato particular que é o centro da minha atenção – para usar o exemplo mais elementar do começo da Fenomenologia: quando digo “Agora!”, refiro-me a esse momento particular, mas o que digo é cada agora, e a verdade está no que digo. O inconsciente freudiano é, ao contrário, o inconsciente de elos e associações contingentes particulares – para citar um exemplo freudiano clássico, quando a paciente sonha com o funeral em que esteve no dia anterior, o “inconsciente” desse sonho foi o fato totalmente contingente de que, no funeral, a sonhadora se encontrou com um antigo amor, com quem ela se importava.
Ligado a isso está a impossibilidade, para Hegel, de pensar a sobredeterminação: ele pode pensá-la, mas apenas no sentido formal de um gênero universal que inclui a si mesmo como sua própria espécie e, desse modo, no meio de sua espécie, encontra a si mesmo nessa “determinação opositiva”. O que ele não consegue pensar é a rede complexa de elos particulares organizados ao longo das linhas da condensação, do deslocamento etc. Em termos mais gerais, o processo hegeliano sempre lida com (re)soluções radicais bem definidas; totalmente alheia a isso é a lógica freudiana dos compromissos pragmáticos e oportunistas – algo é rejeitado, mas não totalmente, pois retorna cifrado, é racionalmente aceito, mas isolado ou neutralizado em seu pleno peso simbólico e assim sucessivamente. Desse modo, temos uma dança louca de distorções que não seguem uma lógica clara e inequívoca, mas forma uma colcha de retalhos de conexões improvisadas.”

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