Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-709-5
Tradução: Diego Silveira
Coelho Ferreira e Ana Maria Chiarini
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 472
Sinopse: Ver Parte
I
“8. Revolução Francesa e celebração do
ético
O neoaristotelismo conservador acredita poder
fazer referência a Hegel, mas, na verdade, se associa a Burke, o implacável
inimigo da Revolução Francesa, à qual, por sua vez, faz referência, em primeiro
lugar, o páthos hegeliano da eticidade e da comunidade política. A
celebração da política, em contraposição a uma moralidade meramente individual,
constitui um momento essencial da preparação ideológica da Revolução Francesa. É
um tema encontrado em Rousseau, que se dá conta de que “tudo depende radicalmente
da política”, de modo que os “vícios pertencem não tanto ao homem quanto ao
homem mal governado “[41].
Em termos análogos se exprime Helvétius, que,
após considerar “os diferentes vícios das nações como consequências necessárias
das diversas formas de governo, ressalta que a mudança decisiva é aquela que concerne
à “legislação”, razão pela qual, em última análise, “a moral não é mais que uma
ciência frívola se não a fundirmos com a política e a legislação”[42]. Ou ainda,
citando Rousseau: “Aqueles que quiserem tratar separadamente da política e da
moral nunca entenderão nada de ambas”[43]. Por sua vez, D’Holbach acredita que
a moral pode demonstrar eficácia enquanto se unir com a política e, para
expressar tal necessária “união entre a Moral e a Política”, o filósofo iluminista
cunha, a partir do grego, o termo ethocratie[44], que faz pensar um
tanto vagamente na hegeliana Sittlichkeit. O clima cultural que antecede
a eclosão da Revolução Francesa encontra sua expressão mais clara talvez no
abade de Saint-Pierre, que, em sua autobiografia, falando de si mesmo em
terceira pessoa, escreve:
Ele se deu conta de que a maior parte da felicidade e da infelicidade
provinha das boas e das más leis [...]. Essa reflexão, que se apresentava
amiúde ao seu espírito, o persuadiu de que a moral não era a ciência mais
importante para a felicidade dos homens, mas que era a política ou a ciência do
governo e que uma lei sábia era capaz de tornar feliz um número de homens
incomparavelmente maior do que cem bons tratados de moral. Assim, com o
propósito de se tornar útil para a sociedade, ele abandonou o estudo da moral
por aquele da política.[45]
Às vésperas da Revolução, é a configuração
objetiva das instituições políticas que se coloca no centro das atenções.
Pode-se, então, compreender o real
significado da insistência de Hegel no fato de que, no que diz respeito à miséria
que se alastra na Irlanda, não se trata de recorrer apenas ao “meio moral das
queixas, das exortações, das associações de indivíduos isolados”, mas, em
primeiro lugar, à “mudança das instituições”, de “leis e relações” (B. Schr.,
p. 466 e 479). Os apelos morais fazem pouco sentido ou são pouco relevantes,
pois não está em questão a “culpa deste ou daquele indivíduo”; a tônica deve
ser colocada na “mudança da situação geral” (Änderung des allgemeinen Zustands)
(Rph., 57 AL; V. Rph., II, p. 243), isto é, na transformação política.
No mesmo Kant, é possível perceber um
deslocamento dessa tônica após a Revolução Francesa e as esperanças que esta
suscitou. Em Fundamentação da metafísica dos costumes, “não é concebível
nada de incondicionalmente bom para além de uma vontade boa”, que deve ser considerada
e apreciada independentemente de sua “capacidade de alcançar os fins a que se
propõe”[46]. Depois de 1789, leem-se declarações que parecem teorizar a
centralidade da política também em relação à moral: não é desta última que “podemos
esperar a boa constituição do Estado”; “é, sobretudo, a partir de uma boa
constituição do Estado que se deve esperar a boa educação moral de um povo”[47].
Confiando apenas na moral, “não se faz coisa alguma” (ist nichts
auszurichten)[48].
Claro, Kant nunca foi o filósofo de uma moral
edificante e politicamente inócua. A “vontade boa” não deve ser confundida com
um voluntarismo inerte, pois, para ser verdadeiramente tal, esta deve “recorrer
a todos os meios que estão em nosso poder”[49]. Já por ser construída sobre a
categoria de universalidade, a moral kantiana revela precisas implicações
políticas, capazes de questionar o ordenamento político existente (infra, cap.
XIII, § 1). Não por acaso, já muitos anos antes da Revolução Francesa, o filósofo
afirmava: “Sempre se fala muito de virtude. No entanto, deve-se preliminarmente
suprimir a injustiça para que se possa ser virtuoso [...]. Toda virtude é impossível
sem essa decisão”[50]. Entretanto, é indubitável que, ao defender a Revolução
Francesa, Kant é obrigado a polemizar com o clássico argumento da ideologia da conservação
que visava a desvalorizar a importância da transformação objetiva das
instituições políticas frente à mudança moral in interiore homine. É
justamente essa ideologia que contrapõe a “boa vontade” do monarca à precisa
determinação política de suas “obrigações jurídicas” reivindicada pelo
movimento revolucionário e constitucional[51]. É tal ideologia conservadora que
nega a possibilidade de uma “Constituição republicana” pelo fato de que seu
funcionamento pressuporia um povo de grandes qualidades morais e até de “anjos”.
É significativa a resposta de Kant: o “homem moralmente bom”, a “interioridade
moral” (das Innere der Moralität), não é o pressuposto necessário de uma
boa “constituição de um Estado”; aliás, tal problema “é solucionável, por mais
que a expressão possa parecer dura, também por um povo de diabos, contanto que
sejam dotados de inteligência”[52]. Se a ideologia conservadora, para negar a
necessidade e a utilidade da mudança político-institucional, é levada a deslocar
a atenção da esfera política para a esfera da interioridade moral (do monarca
ou de seus súditos), Kant, a fim de defender a Revolução Francesa e justificar
a necessidade da “constituição republicana”, não pode não colocar a tônica na
política, aproximando-se, assim, da teorização do primado da política.
Quando, mais tarde, Rosenkranz afirma que “não
vivemos mais com Kant no século do roi-philosophe, mas com Hegel no
século da política”[53], certamente ele tem razão no que se refere a Hegel,
que, não por acaso, recorda a afirmação de Napoleão, durante seu encontro com Goethe,
de que “no lugar do antigo destino apresentou-se a política” (W., XII, p. 339),
mas talvez peque ao considerar apenas o Kant anterior à eclosão da Revolução
Francesa. Quanto a seus escritos posteriores, nota-se certa consonância com
Hegel. À paz perpétua sublinha a irrelevância política das qualidades
morais do monarca: o ótimo Marco Aurélio tem como sucessor o indigno Cômodo;
isso não teria acontecido se houvesse uma válida “Constituição” (Staatsverfassung),
que, portanto, é mais relevante no plano político do que as qualidades morais
do monarca[54]. O mesmo exemplo retorna em Hegel: sim, Marco
Aurélio
soube se comportar também na vida privada como homem nobre e honesto.
Porém, esse imperador filósofo não pôde mudar as condições do Império Romano, e
nada impediu que seu sucessor, de caráter completamente diferente, fizesse todo
o mal que puderam fazer seu arbítrio e sua maldade. Bem superior é o princípio interno
do espírito, da vontade racional, que consegue realizar-se de modo que passe a
existir uma vida pública governada pela razão, uma condição fundamentada no direito
e na organização [...]. Então, temos um sistema de relações éticas; as
obrigações (Pflichten) que vêm à tona são parte de um sistema; toda determinação
está em seu lugar, cada uma subordinada a outra, e aquela superior domina. Acontece,
então, que a consciência moral (Gewissen) [...] é vinculada, que as
relações objetivas, que denominamos obrigações, não só se detêm no plano
jurídico, como valem na consciência moral como sólidas determinações. (W., XIX,
p. 294-5)
9. Moralidade, eticidade e liberdade moderna
Isso não significa que a moral tenha perdido
seu trono: a subjetividade moral é parte integrante do “direito à liberdade
subjetiva”, que, por sua vez, é parte integrante e irrenunciável da eticidade
moderna. Nesse sentido, “moralidade” e “consciência moral” constituem o princípio
da sociedade civil”, são “momentos da constituição política” (Rph., § 124 A).
Não estamos, portanto, na presença de uma desvalorização da moralidade. Aliás,
a opinião que Hegel tem sobre ela é tão elevada que Filosofia do direito
equipara à escravidão a “alienação da racionalidade inteligente, da moralidade,
da eticidade, da religião” (Rph., 66 A).
Justamente por isso, fica clara a mudança de
estatuto que a moral conhece em Hegel. Não se trata mais de um conjunto de
valores eternos; a moral tem uma história que se identifica com a história
mesma da liberdade moderna. Não por acaso, o princípio de “infinita
subjetividade e liberdade da autoconsciência” se vê face a face, pela primeira
vez, com Sócrates (W., XVIII, p. 442), que, logo, não deve ser considerado
mestre da moral” (moralischer Lehrer) — como se a moral fosse algo de
eterno — mas “inventor da moral” (W., XII, p. 329). Não apenas seu conteúdo,
mas a figura mesma da consciência moral enquanto tal, é um resultado histórico:
“Os gregos não tiveram nenhuma consciência moral” (Gewissen), no sentido
de que entre eles havia identificação imediata com as leis e os costumes concretamente
existentes, de modo que não havia lugar para aquela “reflexão” e aquela separação
da interioridade” constitutivas da consciência moral (V. G., p. 263*). Juntamente
com a “moral” e com a consciência moral”, é um resultado histórico “o homem moral”
(der moralische Mensch) (W., XII, p. 329), isto é, o homem capaz de
transcender a objetividade na autorreflexão e interioridade da própria consciência.
A invenção da “moral”, da “consciência moral”,
do “homem moral”, é a invenção, ao mesmo tempo, da liberdade. E isso num duplo
sentido: primeiro, no sentido forte e moderno do termo, a liberdade implica a
superação da identificação imediata com a objetividade política por parte da
subjetividade, sendo que esta última se reserva agora um espaço autônomo de reflexão
moral que introduz um elemento de tensão e de problematicidade na relação com a
objetividade. Nesse sentido, os gregos que não conheciam o Gewissen não
conhecem nem propriamente a liberdade (V. G., p. 263); a liberdade como
autorreflexão era estranha até para os homens livres. Cabe, contudo, fazer mais
uma consideração. Para que se possa desenvolver uma moral no sentido mais
rigoroso do termo, como discurso dirigido, ao menos potencialmente, a todos os
seres humanos, é necessário que a cada um seja reconhecida a dignidade de
sujeito moral, capaz de autorreflexão e titular de um direito à liberdade. Equiparados
como são, na Antiguidade clássica, a instrumentos de trabalho, os escravos não
pertencem à categoria de ser humano, o que torna impossível a construção da universalidade
moral. Desse ponto de vista, Sócrates, mais do que “inventor” tout court
da moral, constitui apenas uma etapa, ainda que de grande importância, de seu
processo de construção, um processo difícil e complexo, assim como é difícil e
complexa a construção histórica do conceito universal de homem.”
[41] Jean-Jacques Rousseau, “Confessions”
(1782, póstumo), em O. C., v. I, p. 404, e “Narcisse ou l’Amant de lui-même, Préface”
(1753), em O. C, v. II, p. 969.
[42] Claude-Adrien Helvétius, “De l’esprit”
(1758), em (Euvres complètes (Paris, F. Didot, 1795) (ed. fac-similar:
Hildesheim, 1969), v. II, p. 237, 244 e 249-50.
[43] Jean-Jacques Rousseau, “Emile” (1762),
em O. C., v. IV, p. 524.
[44] Paul-Henry Thiry d’Holbach, Ethocratie ou le Gouvernement fondé
sur la morale (Amsterdã, Marc-Michel Rey, 1776) (ed. fac-similar:
Hildesheim, 1973), p. 55 e Avertissement.
[45] Reportado em Bronislaw Baczko, Lumières
de l’utopie (Paris, Payot, 1978), p. 182.
[46] Immanuel Kant, “Grundlegung der Metaphysik der Sitten” (1785), em KGS,
v. IV, p. 393-4.
[47] Idem, “Zum ewigen Frieden” (1795), em KGS, v. MII, p. 366.
[48] Idem, “Handschriftlicher NachlaB”, em KGS, v. XXIII, p. 135.
[49] Idem, “Grundlegung der Metaphysik der Sitten”, cit., p. 394.
[50] Idem, “Handschriftlicher NachlaB”, em
KGS, v. XX, p. 151.
[51] Ibidem, em KGS, v. XXIII, p. 135.
[52] Idem, “Zum ewigen Frieden”, cit., p.
366; sobre a polêmica de Kant contra o argumento da ideologia conservadora, ver
Domenico Losurdo, Autocensura e compromesso nel pensiero politico di Kant
(2. ed., org. Istituto Italiano per gli Studi Filosofici, Nápoles, Bibliopolis,
2007 [1983]), cap. III, § 6.
[53] Karl Rosenkranz, Geschichte der Kantschen Philosophie (Leipzig, L.
Voss, 1840), p. 495.
[54] Immanuel Kant, “Zum ewigen Frieden”, cit., p. 353, nota.
*: Die Vernunft in der Geschichte, organizada
por Johannes Hoffmeister, Hamburgo, 1955.
“O comportamento de ruptura ou de afastamento
em relação à realidade política, motivado pelo não reconhecimento da
subjetividade moral na eticidade existente, é legítimo apenas se constituir um
estágio transitório, isto é, se servir de estímulo para a realização de um mais
rico ordenamento ético e político, ao passo que “o dever ser que se torna
perene” (perennierendes Sollen) em que se detém “o ponto de vista
meramente moral” (Rph., 135 A) é acusado por Hegel não só de inconclusão
política, mas também, como sabemos, de insinceridade moral. Nesses momentos de crise,
eis que pode voltar à atualidade a figura trágica do herói, que, porém, é herói
só na medida em que expressa, por seu risco e perigo, uma necessidade objetiva
da época e dos seres humanos de sua época, mas também na medida em que consegue
realizar concretamente tal necessidade, edificando, assim, uma eticidade nova e
mais rica, que, por sua vez, torna supérflua a figura do herói. Nesse sentido,
Hegel poderia exclamar com Brecht: “Felizes os povos que não precisam de heróis”,
ainda que a ação deles, em situações dramáticas de crise, possa se revelar
historicamente necessária e benéfica.”
“A transfiguração da tradição liberal
Em toda guerra religiosa se dá um estreito
entrelaçamento entre dois elementos: a demonização e a autoapologia ou hagiografia.
A condenação sem apelação do Oriente e da tradição cultural alemã caminha pari
passu com a transfiguração da tradição liberal, em especial aquela anglo-saxônica.
Mesmo sem desconhecer o grande mérito histórico adquirido por esta última em
sua luta contra o absolutismo monárquico, acenamos, nos capítulos precedentes,
a seus limites de fundo. Tais limites não consistem apenas na nítida separação
entre política e economia e na configuração meramente formal da liberdade, mas
se manifestam já em seu tema preferido e em seu cavalo de batalha, ou seja, no
nível da liberdade negativa, que essa tradição não se cansa de celebrar como a
liberdade tout court e que, entretanto, não consegue conceber em termos
realmente universais.
É assim que podemos compreender a tranquila teorização
da escravidão nas colônias a que se dedica Locke, que fala como de um fato óbvio
e pacífico relativo aos “plantadores das Índias ocidentais” que possuem escravos
e cavalos, com base em direitos adquiridos com contrato regular de compra e
venda[37] (o contratualismo pode servir também para justificar a instituição da
escravidão). O grande teórico da limitação do poder estatal, por outro lado,
gostaria que fosse sancionado na Constituição de uma colônia inglesa na América
o princípio de que “todo homem livre da Carolina deve ter absoluto poder e
autoridade sobre seus escravos negros, qualquer que seja a opinião e a religião
deles”[38]. Assim, num dos textos clássicos do liberalismo, encontramos a afirmação
de que existem homens “pela lei da natureza sujeitos ao domínio absoluto e ao
incondicional poder de seus donos”[39].
Ou talvez não se trate propriamente de
homens, pois num texto sobre a história da navegação — por longo tempo
atribuído a Locke, mas provavelmente de um autor próximo a ele —, a propósito
do comércio com as colônias africanas, podemos ler inclusive: “As mercadorias que
provêm desses países são o ouro, o marfim e os escravos”. Junto com outras commodities,
os escravos negros são parte integrante e essencial da economia política da Inglaterra
liberal daquela época, objetos de um “notável comércio” que se mostra “de
grande ajuda para todas as plantações americanas”[40] e no qual Locke se mostra
pessoalmente interessado, pois investiu nele uma parte de seu dinheiro[41]. Não
nos esqueçamos de que um dos mais relevantes atos de política internacional da
Inglaterra liberal derivada da Revolução Gloriosa consiste em arrancar da
Espanha, por meio do Tratado de Utrecht, o Asiento, isto é, o monopólio
do tráfico de escravos negros.
A dificuldade da tradição liberal em incluir
todos os seres humanos na categoria de homem, a dificuldade em conceber o homem
em sua universalidade, esse nominalismo antropológico não se manifesta apenas
em relação aos negros importados da África. Se Locke insere o escravo na
categoria de “mercadoria”, um século mais tarde, vimos Edmund Burke inserir o
trabalhador braçal ou assalariado na categoria de instrumentum vocal (supra,
cap. VI, § 4). Entre os adversários do grande antagonista da Revolução
Francesa, encontramos certamente Sieyès, que, porém, quanto ao tema em questão,
não parece pensar diferente do jornalista e estadista inglês, referindo-se
também à “maior parte dos homens como máquinas de trabalho”, “instrumentos
humanos da produção” ou “instrumentos bípedes”[42].
E de novo a tradição liberal revela seus
limites de fundo também no que diz respeito à liberdade negativa, que é negada
tanto aos escravos quanto aos pobres ou vagabundos” encarcerados em massa nas “casas
de trabalho”, instituição total à qual Locke não faz nenhuma objeção e na qual,
ao contrário, gostaria que a disciplina fosse mais dura: “Qualquer um que
falsifique um visto [saindo sem permissão], que seja punido com um corte das
orelhas na primeira vez, que, na segunda, seja deportado para as plantações
como por um crime” e, assim, reduzido, na prática, à condição de escravo. Existe,
no entanto, uma solução ainda mais simples, ao menos para aqueles que têm a
infelicidade de serem surpreendidos pedindo esmola fora da própria paróquia e próximo
a um porto marítimo: que sejam embarcados à força na Marinha Militar; “se,
depois, descerem à terra firme sem permissão, ou se distanciarem ou se
demorarem em terra mais do que o consentido, serão punidos como desertores”,
isto é, com a pena capital[43].
A instituição das casas de trabalho tem seu
centro na Inglaterra. Justamente fazendo referência ao país clássico do liberalismo,
o jovem Engels nos revela detalhes impressionantes: “[...] os internados são
obrigados a usar uniforme e não dispõem de nenhuma proteção em face do arbítrio
do diretor”; para que “os pais ‘moralmente degradados’ não influam sobre seus
filhos, as famílias são separadas: o homem vai para uma ala; a mulher, para outra;
e os filhos, para uma terceira”. A unidade familiar é rompida; quanto ao resto,
ficam todos amontoados, às vezes até o número de doze ou dezesseis num único cômodo,
e sobre todos é exercido todo tipo de violência que não poupa sequer os velhos
e as crianças e que implica atenções particulares no tocante às mulheres. Na
prática, os internados das casas de trabalho são declarados e tratados como “foras
da lei, objetos repugnantes postos fora da humanidade”[44]. Caso o quadro
traçado por Engels pareça muito sentimental, basta considerar o juízo mais
insensível de um estudioso liberal contemporâneo (Marshall), para quem é claro
que, uma vez nas casas de trabalho, os pobres “cessavam de ser cidadãos em qualquer
sentido genuíno da palavra”, pois perdiam o “direito civil da liberdade pessoal”
(supra, cap. VII, § 6).
Mesmo quando conseguem evitar as casas de
trabalho, as classes inferiores veem gravemente reduzida e mutilada sua
liberdade negativa. Hayek faz uma bela celebração de Mandeville por ser aquele
para quem “o exercício arbitrário do poder por parte do governo seria reduzido
ao mínimo”[45]; na verdade, o renomado expoente do primeiro liberalismo inglês,
defensor de uma moral despreconceituosamente laica, exige, porém, que a frequência
à igreja nos domingos e a doutrinação religiosa se tornem “obrigação para
pobres e iletrados”, a quem, de toda forma, aos domingos, “deveria ser impedido
[...] o acesso a qualquer tipo de divertimento além da igreja”[46].
Em Sieyès, podemos ler inclusive a proposta
de submeter os pobres a uma escravidão temporária e controlada pela lei: “A
última classe, composta de homens que têm apenas os braços, pode precisar da
escravidão legal para fugir da escravidão da necessidade”. Os amantes do
Ocidente mais autêntico, aquele anglo-saxão, poderiam logo objetar que dele não
faz parte Sieyès, que, entre outros, segundo Talmon, teria fornecido alguns argumentos
para a “democracia totalitária”[47]. O fato é que, entretanto, ao defender a
causa da introdução da “esclavage de la loi”, Sieyès remete
explicitamente a um modelo anglo-saxão: “Quero vender meu tempo e meus serviços
de toda espécie (não digo minha vida) por um ano, dois anos etc., como na
América inglesa”[48]. A referência é aos denominados “indentureds servants”
— na prática, “semiescravos”, ao menos pelo tempo de duração de seu “contrato”
(aliás, com frequência, sob vários pretextos, arbitrariamente prolongados por
seus senhores) — que, de fato, eram vendidos e comprados num mercado regular,
anunciado pela própria imprensa local, e aos quais se dava caça em caso de fuga
ou de afastamento indevido do lugar de trabalho[49]. É assim, ressalta Sieyès,
que os “americanos” brilhantemente conseguiram “importar os operários de todo
tipo de que precisam”, recorrendo a um meio” que, no entanto, continuava
suscitando desconfiança na França[50].
Quando lemos hoje que o liberalismo desde o
início foi sinônimo de liberdade para todos, quando lemos em Talmon que o
liberalismo sempre abominou a “coerção” e a “violência”[51], logo nos damos
conta de que, a essa altura, já foi abandonado o terreno da historiografia para
pairar no céu e nas nuvens da hagiografia. Assim, quando lemos em Bobbio que “as
declarações dos direitos do homem” estão “incluídas na constituição dos Estados
liberais” e que temos de remontar a Locke “a ideia de que o homem enquanto tal
tem direitos por natureza”[52], ou quando lemos em Dahrendorf que, já a partir
da Glorious Revolution, é afirmada a ideia de “cidadania” (num nível mínimo,
como “igualdade perante à lei”) para todos os homens[53], nos damos conta
claramente de que nos movemos num espaço histórico imaginário, do qual foram eliminados
fatos macroscópicos, como a escravidão, as casas de trabalho, as relações reais
de trabalho e até a ideologia por tanto tempo dominante na Inglaterra liberal, uma
ideologia que, em relação não apenas aos escravos negros, mas também em relação
ao “novo proletariado industrial”, comportava uma atitude tão dura “que não encontra
correspondência em nossos tempos, senão no comportamento dos mais abjetos
colonizadores brancos em relação aos trabalhadores negros”[54].
Depois de operar essa apressada identificação
entre tradição liberal e direitos do homem enquanto tal, Dahrendorf declara compartilhar
“as ideias de fundo do grande whig” que é Burke[55], como se, entre as
ideias de fundo deste, não houvesse, em primeiro lugar, a recusa categórica do
discurso sobre os direitos do homem, condenado enquanto teoria subversiva que
abre caminho para as reivindicações políticas e sociais de “cabeleireiros” e “vendedores
de velas”, “para não falar de inúmeras outras atividades mais servis do que
essas”, para as reivindicações da “multidão animalesca” ou de gente, cuja ocupação
sórdida e mercenária” (sordid mercenary occupation) implica por si só “uma
perspectiva mesquinha das coisas humanas”[56]. É ainda mais absurda a usual identificação
entre direitos do homem e tradição liberal inglesa, se pensarmos que até um
liberal radical como Bentham rechaça a reivindicação da égalité e a
teorização revolucionária francesa dos direitos do homem com argumentos muito
semelhantes àqueles de Burke, isto é, também nesse caso, a partir da
preocupação que tal discurso possa estimular a arrogância ou a desobediência anárquica
dos “aprendizes” e das classes inferiores em geral: “Todos os homens nascem
iguais em seus direitos. O herdeiro dessa família mais indigente teria,
portanto, direitos iguais ao herdeiro da família mais abastada? Quando isso é
verdadeiro?”. E como justificar a necessária “submissão do aprendiz ao patrão”[57]?
Enfim, a identificação entre tradição liberal
e direitos do homem se revela falsa também no que se refere à América — e não
só pela presença da instituição da escravidão (e, em sua forma mais dura, a chattel
slavery) até a Guerra da Secessão e de relações de trabalho semiservis e de
uma espécie de “debt slavery” bem além de 1865, mas também pela polêmica
mais ou menos explícita que podemos ler num autor como Hamilton. Este se opõe
vitoriosamente à inserção na Constituição dos Estados Unidos de uma declaração
dos direitos do homem, julgada adequada apenas como “tratado de moral”: não por
acaso, notável influência na tradição política americana exercem os implacáveis
acusadores da Revolução Francesa (e da teorização dos direitos do homem), como
Burke e Gentz, este último tendo sido logo traduzido, em 1800, por John Quincey
Adams, futuro sexto presidente dos Estados Unidos[58].”
[37] John Locke, Two Treatises of Civil Government, I, § 130.
[38] Idem, “The Fundamental Constitutions of Carolina” (1669), art. CX,
em The Works (Londres, Thomas Tegg, 1823,’ ed. fac-similar: Aalen,
1963), v. X, 196.
[39] Idem, Two Treatises of Civil Government, I, § 85.
[40] Idem, “The Whole History of Navigation from the Original to this
Time” (1704), em The Works, cit., v. X, p. 414.
[41] Ver Maurice Cranston, John Locke. A Biography (2. ed.,
Londres, Longmans, 1959), p. 115.
[42] Emmanuel-Joseph Sieyès, “Dire sur la
question du veto royal” (1789), em Ecrits politiques (org. Roberto Zapperi,
Paris, Editions des Archives Contemporaines, 1985), p. 236; idem, “Notes et
fragments inédits”, também em Ecrits politiques, p. 75 (fr. Esclaves) e
p. 81 (fr. Grêce. Citoyen-homme).
[43] O texto de 1697, escrito por Locke na
qualidade de membro da Commission on Trade, é citado em Henry Richard Fox
Bourne, The Life of John Locke (Londres, Henry S. King & Co., 1876)
(reimp. Aalen, 1969), v. II, p. 377-90.
[44] Friedrich Engels, “Die Lage der
arbeitenden Klasse in England” (1845), em MEW, v. II, p. 496-8 [ed. bras.: A
situação da classe trabalhadora na Inglaterra, trad. B. A. Schumann, São
Paulo, Boitempo, 2008, p. 318-9].
[45] Friedrich August von Hayek, New
Studies in Philosophy, Politics, Economics and the History of Ideas, 1978;
ed. it.: Nuovi studi di filosofia, politica, economia e storia delle idee
(Roma, Armando, 1988), p. 280; é a afirmação de Nathan Rosenberg que Hayek
subscreve e faz própria.
[46] Bernard de Mandeville, “An Essay on Charity and Charity-Schools” (1723),
em The Fable of the Bees (1705 e 1714) (org. Frederick Benjamin Kaye, Oxford,
Clarendon, 1924) (ed. fac-similar: Indianápolis, 1988), p. 307-8.
[47] Jacob Leib Talmon, The Origins of Totalitarian Democracy
(1952); ed. it.: Le origini della democrazia totalitaria (Bolonha, II
Mulino, 1967), p. 99 e seg.
[48] Emmanuel-Joseph Sieyès, “Notes et fragments inédits”, cit., p. 76
(fr. Esclavage).
[49] Ver Marcus Wilson Jernegan, Laboring and Dependent Classes in Colonial
America. 1607-1783 (Westport, Connecticut, 1980 [1931]), p. 45-56.
[50] Emmanuel-Joseph Sieyês, “Notes et fragments inédits”, cit., p. 77
(fr. Salaires: moyen de niveler leurprix dans les différents lieux).
[51] Jacob Leib Talmon, The Origins of Totalitar’ian Democracy, cita, p.
12 e 15.
[52] Norberto Bobbio, L’età dei diritti
(Turim, Einaudi, 1990), p. 45 e 21.
[53] Ralf Dahrendorf, Per un nuovo liberalismo, cit., p. 121.
[54] Richard Tawney, Religion and the Rise of Capitalism
(Londres, 1929); ed. it.: “La religione e la genesi del capitalismo”, em Opere
(trad. Aldo Martignetti, Orio Peduzzi e Gino Bianco,
org. Franco Ferrarotti, Turim, Utet, 1975), P. 513.
[55] Ralf Dahrendorf, Riflessioni sulla rivoluzione in Europa,
cit., p. 26.
[56] Edmund Burke, “Reflections on the Revolution in France” (1790), em The
Works of the Right Honourable Edmund Burke (Londres, Rivington, 1826), p. 154
e 105-6.
[57] Jeremy Bentham, “Anarchical Fallacies. A Critical Examination of
the Declaration of Rights” (1. ed. em inglês, 1838), em The Works (org. John
Bowring, Edimburgo, William Tait, 1838-1843), p. 498-9.
[58] Sobre a persistência de formas de trabalho forçado no sul dos
Estados Unidos, ver Willemins Kloosterboer, Involuntary Labour since the
Abolition of Slavery (Leiden, E. J. Brill, 1960), cap. V; sobre a polêmica
de Hamilton, ver The Federalist, n. 84, e Charles Edward Merriam, History
of American Political Theories (Nova York, A. M. Kelley, 1969 [1903]), p.
96-142; sobre a influência de Burke sobre Hamilton e a tradição política
americana em geral, ver Walter Gerhard, Das politische System Alexander
Hamiltons (Hamburgo, Friederichsen, de Gruyter & Co., 1929), e Harold
Joseph Laski, The American Democracy (Fairfield, EUA, A. M. Kelley, 1977
[1948]), p. 10; sobre Gentz e John Quincey Adams, ver Domenico Losurdo, “La
Révolution Française a-t-elle echouée?”, em La Pensée, n. 267, jan.-fev.
1989, p. 85 e seg.
“Uma vez desmantelados os estereótipos
nacionais e lançadas as bases para uma reconstrução da história cultural e
política dos países europeus, nos múltiplos entrelaçamentos e nas recíprocas
influências que a caracterizam, uma vez abatida a barreira erigida pela ideologia
da guerra ao longo dos dois conflitos mundiais, é evidente que não faz sentido
arrastar a filosofia clássica alemã para a frente do tribunal da tradição
liberal. Quer se chegue a uma absolvição, quer se chegue a uma condenação
parcial ou total, acaba-se por perder de vista um ponto essencial, aliás,
decisivo: em Kant, em Fichte, em Hegel, a Revolução Francesa encontra sua expressão
teórica bem mais do que nos autores liberais da época, que, ao contrário, se
formaram, na maioria, durante a polêmica e a luta exatamente contra a Revolução
Francesa. Na medida em que o patrimônio político e ideal derivado dela
constitui, como nós acreditamos, o ato fundador, por excelência, da liberdade
dos modernos, se quisermos compreender adequadamente o que isso significa, é preciso
recorrer à filosofia clássica alemã bem mais do que à tradição liberal a ela
contemporânea.
Quanto a Hegel, em particular, a herança da
Revolução Francesa, considerada em todo o período de desenvolvimento, mostra-se
evidente em dois pontos de importância capital: 1) a afirmação do conceito da universalidade
do homem e a leitura do progresso histórico como progressiva e difícil
construção de tal conceito; 2) a relação instituída entre política e economia,
uma relação em que a indigência material levada ao extremo implica “total falta
de direitos” por parte do faminto. Diga-se que entre esses dois pontos existe
uma estreita conexão, no sentido de que negar ao faminto seus direitos
significa negar-lhe a inclusão concreta e real na categoria universal de homem.
Em tal sentido, a filosofia hegeliana da história, enquanto legitima plenamente
o moderno, não considera concluído nem consente, de alguma forma, que não se
considere concluído o processo de emancipação que se desenvolveu em seu âmbito.”
“9. O conflito das liberdades
Existe um ponto de particular interesse.
Hegel não se limitou a distinguir entre “direito negativo” e “direito positivo”,
entre “liberdade formal” e “liberdade real”, mas, mesmo se pronunciando a favor
da síntese, ressaltou a possibilidade, ou o risco, no plano da concreta
realidade histórica, de um conflito entre esses diversos aspectos do direito e
da liberdade (supra, cap. IV, 6). Claro, Smith já observa que, justamente num “país
livre” (free country)[117] e sob um “governo livre” (free government),
revela-se particularmente difícil ou impossível para os escravos obter a
emancipação ou mesmo apenas uma melhora das condições ou uma atenuação da
opressão. E mais fácil que isso aconteça com um “governo despótico”, não
vinculado por organismos representativos, na maioria, nas mãos de proprietários
de escravos[118] O pensamento se volta para as colônias inglesas na América, já
amplamente fundadas no autogoverno e nas quais, entretanto, justamente o liberal
Locke quer ver consagrado, também no plano constitucional, o princípio do “absoluto
poder e autoridade” que todo “homem livre” deve deter “sobre seus escravos
negros”. Uma consideração análoga à defendida para a instituição da escravidão,
Smith faz no que se refere à servidão da gleba, dessa vez com o olhar voltado
para os países da Europa oriental, onde a fraqueza do poder central torna
impossível para o monarca impor à nobreza feudal a emancipação dos servos (supra,
cap. XII, § 6).
A consciência do possível conflito das
liberdades, aflorada no autor de Lições de jurisprudência e perdida ao longo
da posterior tradição liberal, reemerge com força em Hegel. O filósofo, a
partir disso, questiona as tranquilas certezas de Smith, que, apesar de tudo,
continua a chamar de “livre” um governo que aprova a escravidão ou a servidão
da gleba e de “despótico” um governo que, ao contrário, embatendo-se com a
resistência de organismos representativos dominados por camadas privilegiadas, suprime
uma e outra instituição. É também devido a essa aguda consciência do possível
conflito das liberdades que Hegel, ainda que nitidamente se afastando do
jacobinismo, se recusa a subscrever a simplista demonização que a tradição
liberal opera de um movimento ou de um partido que, se por um lado impõe uma
férrea ditadura, por outro leva a termo a dissolução das relações feudais de propriedade
e de trabalho, acabando por decretar a emancipação dos escravos das colônias,
reconhecendo os resultados da revolução deflagrada por eles no Haiti, sob a liderança
do jacobino negro Toussaint Louverture, e finalmente incluindo os ex-escravos
sob o conceito universal de homem, como titulares de direitos inalienáveis e
imprescritíveis.
Nesse sentido, podemos dizer que Hegel tornou
mais problemática e incerta a fronteira entre liberdade e opressão, e assim bem
se compreende a obsessão, em especial por parte dos neoliberais, em confinar
esse grande intérprete da liberdade, positiva e negativa, na história do totalitarismo
ou, na melhor das hipóteses, da democracia totalitária. Outros, ainda que longe
do zelo com que os neoliberais pretendem proceder à depuração do Ocidente, podem,
contudo, sentir nostalgia das tranquilas certezas perdidas e sentir-se pouco à
vontade pelo fato de que, a partir de Hegel, tornou-se mais complexo ou mais problemático
o discurso da liberdade. Convém, entretanto, que não esqueçamos que a única
alternativa a tal complexidade e problematicidade é uma história meramente, e
banalmente, ideológica dos conflitos políticos e sociais que, a partir da
Revolução Francesa, agitaram e continuam a agitar o mundo.”
[117] Adam Smith, Lectures on Jurisprudence (1762-1763 e 1766)
(v. V, ed. de Glasgow), p. 186 (lições de 1762-1763).
[118] Ibidem, p. 452.