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quinta-feira, 25 de junho de 2020

Miséria da filosofia (Boitempo: Parte I) – Karl Marx

Editora: Boitempo
Tradução e apresentação: José Paulo Netto
ISBN: 978-85-7559-567-1
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 232
Sinopse: Miséria da filosofia, primeiro livro que Marx publicou sozinho e o único que redigiu em francês, foi escrito entre janeiro e abril de 1847, em Bruxelas, e saiu em edição custeada pelo autor, com tiragem de oitocentos exemplares, em princípios de julho. A obra de Proudhon que é objeto da crítica de Marx, Système des contradictions économiques ou Philosophie de la misère [Sistema das contradições econômicas ou Filosofia da miséria], fora publicada em Paris em outubro do ano anterior e, semanas depois, um exemplar chegou-lhe às mãos, enviado por Engels. Desde seu lançamento, Miséria da filosofia tem provocado incômodo por seu implacável tom polêmico, pelo ferino estilo que não poupa diatribes contra um autor que não só era respeitado intelectualmente (por justas razões) como tinha grande influência entre os socialistas franceses. A crítica marxiana, à qual Proudhon nunca respondeu publicamente (embora tenha feito registros amargos e indignados em seus diários e em sua correspondência), pôs fim a uma relação iniciada em Paris em 1844, quando Marx foi recebido por Proudhon em seu apartamento. Os encontros se repetiram até 1845, quando o governo francês obrigou Marx a abandonar o país. Publicada a Miséria da filosofia, os dois jamais voltaram a se falar. A edição traz um novo prefácio de José Paulo Netto, que também assina a tradução revista da obra e texto de orelha do professor João Antonio de Paula, da UFMG.



“O Sr. Proudhon tem a infelicidade de ser singularmente desconhecido na Europa. Na França, tem o direito de ser um mau economista, porque passa por ser um bom filósofo alemão. Na Alemanha, tem o direito de ser um mau filósofo, porque passa por ser um dos mais vigorosos economistas franceses. Na qualidade de alemão e economista ao mesmo tempo, quisemos protestar contra este duplo erro.
O leitor compreenderá que, nesta ingrata tarefa, frequentemente fomos obrigados a abandonar a crítica ao Sr. Proudhon para fazê-la à filosofia alemã e, ao mesmo tempo, apresentar um breve resumo da economia política.
Karl Marx
Bruxelas, 15 de junho de 1847


“A obra do Sr. Proudhon não é simplesmente um tratado de economia política, um livro comum: é uma Bíblia: “Mistérios”, “Segredos arrancados ao seio de Deus”, “Revelações” – nada lhe falta. No entanto, como, em nossos dias, os profetas são discutidos mais conscientemente que os autores profanos, o leitor deve resignar-se a percorrer conosco a erudição árida e tenebrosa do “Gênesis” para se alçar, mais tarde, com o Sr. Proudhon, às etéreas e fecundas regiões do supra-socialismo (ver Proudhon, “prólogo”, Philosophie de la misère, p. III, linha 20).”


“Uma vez admitida a utilidade, o trabalho é a fonte do valor. A medida do trabalho é o tempo. O valor relativo dos produtos é determinado pelo tempo de trabalho que foi preciso para produzi-los. O preço é a expressão monetária do valor relativo de um produto. Enfim, o valor constituído de um produto é simplesmente o valor que se constitui pelo tempo do trabalho nele cristalizado.”


“Todo o mundo sabe que, quando a oferta e a demanda se equilibram, o valor relativo de um produto qualquer é exatamente determinado pela quantidade de trabalho que é fixada nele, isto é, esse valor relativo exprime a relação de proporcionalidade precisamente no sentido que acabamos de dar a ele.”


“No mesmo momento em que começa a civilização, a produção começa a se fundar no antagonismo das ordens, dos estamentos, das classes, enfim, no antagonismo do trabalho acumulado e do trabalho imediato. Sem antagonismo não há progresso. Essa é a lei que a civilização seguiu até hoje. Até o presente, as forças produtivas se desenvolveram graças a esse regime antagônico das classes. Afirmar, agora, que, estando satisfeitas todas as nenecessidades de todos os trabalhadores, os homens puderam dedicar-se à criação de produtos de uma ordem superior, a indústrias mais complexas, é abstrair do antagonismo entre as classes e subverter todo o desenvolvimento histórico. É como querer afirmar que, como se criavam moreias em piscinas artificiais sob os imperadores romanos, podia-se alimentar fartamente toda a população de Roma; mas, na verdade, enquanto o povo romano não tinha como comprar o seu pão, não faltavam escravos aos aristocratas para oferecer como comida às moreias.”


“Por que, então, o algodão, a batata e a aguardente são as pedras angulares da sociedade burguesa? Porque, para produzi-los, é necessário menos trabalho e, consequentemente, eles são mais baratos. Por que o mínimo de preço determina o máximo de consumo? Por acaso seria em função da utilidade absoluta desses produtos, de sua utilidade intrínseca, de sua utilidade na medida em que correspondem melhor às necessidades do operário como homem, e não do homem como operário? Não. É porque, numa sociedade fundada na miséria, os produtos mais miseráveis têm a prerrogativa fatal de servir ao uso da maioria.
Dizer, agora, que as coisas mais baratas, porque são as mais usadas, devem ser de maior utilidade significa dizer que o uso generalizado da aguardente, por causa dos poucos custos de sua produção, é a prova mais concludente de sua utilidade; significa dizer ao proletário que a batata é mais saudável que a carne; significa aceitar o estado de coisas vigente; significa, enfim, fazer, como o sr. Proudhon, a apologia de uma sociedade sem compreendê-la.
Numa sociedade futura, quando não existir mais o antagonismo das classes, quando não existirem mais as classes, o uso não será mais determinado pelo mínimo do tempo de produção, mas o tempo de produção consagrado aos diferentes produtos será determinado por seu grau de utilidade social.
Para retornarmos à tese do sr. Proudhon: se o tempo de trabalho necessário à produção de um objeto não é a expressão de seu grau de utilidade, o valor de troca desse mesmo objeto, determinado previamente pelo tempo de trabalho nele fixado, não poderá nunca regular a justa relação entre a oferta e a demanda, isto é, a relação de proporcionalidade no sentido que lhe atribui o sr. Proudhon.”


“O que determina o valor não é o tempo de produção de uma coisa, mas o mínimo de tempo no qual ela pode ser produzida, e esse mínimo é constatado pela concorrência. Suponha, por um instante, que não exista mais a concorrência e, consequentemente, não haja como verificar o mínimo de trabalho necessário para a produção de uma mercadoria. O que acontecerá? Bastará aplicar na produção de um objeto seis horas de trabalho para se ter o direito, segundo o sr. Proudhon, de exigir em troca seis vezes mais do que aquele que aplicou apenas uma hora na produção do mesmo objeto.
Em vez de uma “relação de proporcionalidade”, temos uma relação de desproporcionalidade, se insistirmos em permanecer nas relações, boas ou más.
A depreciação contínua do trabalho é apenas um aspecto, uma consequência da avaliação dos artigos pelo tempo de trabalho. A superelevação dos preços, a superprodução e muitos outros fenômenos de anarquia industrial são interpretáveis por esse mesmo modo de avaliação.
Mas, servindo de medida do valor, o tempo de trabalho faz surgir, ao menos, a variedade proporcional de produtos que tanto fascina o sr. Proudhon?
Muito pelo contrário: o monopólio, com toda a sua monotonia, invade o mundo dos produtos, do mesmo modo que, à vista de todos, invadiu o mundo dos instrumentos de produção. Apenas alguns ramos industriais, como a indústria algodoeira, podem fazer progressos rápidos. A consequência natural desses progressos é que os produtos da manufatura algodoeira, por exemplo, baixam rapidamente de preço, mas, à medida que o preço do algodão cai, o do linho, comparativamente, deve aumentar. O que acontecerá? O linho será substituído pelo algodão. Foi desse modo que o linho foi abandonado em quase toda a América do Norte. E obtivemos, em vez da variedade proporcional dos produtos, o império do algodão.
O que resta dessa “relação de proporcionalidade”? Nada mais que o desejo de um homem honesto, que gostaria que as mercadorias se produzissem em proporções tais que pudessem ser vendidas a um preço honesto. Desde sempre, os bons burgueses e os economistas filantropos gostam de formular esse desejo inocente.
Deixemos falar o velho Boisguillebert:
O preço das mercadorias deve ser sempre proporcionado, uma vez que só essa inteligência lhes permite conviver, para se trocarem a todo momento [eis a permutabilidade contínua do sr. Proudhon] e receberem reciprocamente o surgimento uns dos outros [...]. Já que a riqueza é apenas esse contínuo intercâmbio de homem para homem, de profissão para profissão etc., constitui uma espantosa cegueira procurar a causa da miséria fora da interrupção de semelhante comércio, ocasionada pela desordem das proporções nos preços.33
Ouçamos também um economista moderno:
Uma grande lei que se deve aplicar à produção é a lei da proporcionalidade (the law of proportion), que é a única que pode preservar a continuidade do valor [...]. O equivalente deve ser garantido. [...] Todas as nações tentaram, em diversas épocas, por numerosos regulamentos e restrições comerciais, realizar até certo ponto essa lei da proporcionalidade; mas o egoísmo, inerente à natureza do homem, levou-o a subverter todo esse regime regulamentar. Uma produção proporcionada (proportionate production) constitui a realização da verdade plena da ciência da economia social.34
Fuit Troja! [Troia já não existe!] Essa justa proporção entre a oferta e a demanda, que volta a ser objeto de tantos votos, deixou de existir há muito. Tornou-se uma velharia. Só foi possível em épocas nas quais os meios de produção eram limitados, nas quais a troca ocorria em limites extremamente pequenos. Com o aparecimento da grande indústria, essa justa proporção teve de acabar, e a produção foi fatalmente obrigada a passar, numa sucessão perpétua, pelas vicissitudes de prosperidade, depressão, crise, estagnação, nova prosperidade e assim por diante.
Aqueles que, como Sismondi, querem retornar à justa proporcionalidade da produção, conservando ao mesmo tempo as bases atuais da sociedade, são reacionários, porque, para serem consequentes, devem querer também o restabelecimento de todas as outras condições da indústria dos tempos passados.
O que mantinha a produção em proporções justas ou quase justas? Era a demanda, que determinava e precedia a oferta. A produção acompanhava o consumo, passo a passo. A grande indústria, forçada a produzir sempre em escala cada vez maior pelos próprios instrumentos de que dispõe, não pode mais esperar pela demanda. A produção precede o consumo, a oferta pressiona a demanda.
Na sociedade atual, na indústria fundada nas trocas individuais, a anarquia da produção, que é a fonte de tanta miséria, é, ao mesmo tempo, a fonte de todo progresso.
Assim, das duas uma: ou se deseja a justa proporção dos séculos passados com os meios de produção de nossa época e, nesse caso, é-se reacionário e utopista ao mesmo tempo; ou se deseja o progresso sem anarquia e, nesse caso, para conservar as forças produtivas, é-se obrigado a abandonar as trocas individuais.
As trocas individuais só são compatíveis com a pequena indústria dos séculos passados, com seu corolário da “justa proporção”, ou com a grande indústria atual, mas com todo o seu cortejo de miséria e anarquia.”
33 Dissertation sur la nature des richesses, edição de Daire, p. 405 e 408. [Marx cita segundo a antologia Économistes-financiers du XVIIIe siècle. Précedés de notices historiques sur chaque auteur, et accompagnés de commentaires et de notes explicatives par Eugène Daire (Paris, Guillaumin, 1843).]
34 William Atkinson, Principles of Political Economy, Londres, [Whittaker,] 1840, p. 170 e 195.


“O que é hoje o resultado do capital e da concorrência entre os operários será amanhã – se abolirmos a relação entre o trabalho e o capital – o resultado de uma convenção baseada na relação entre a soma das forças produtivas e a soma das necessidades existentes.”


“O sr. Bray faz da ilusão do burguês honesto o ideal que ele gostaria de realizar. Depurando a troca individual, expurgando-a de todos os seus componentes antagônicos, ele acredita encontrar uma relação “igualitária” que gostaria de introduzir na sociedade.
O sr. Bray não vê que essa relação igualitária, esse ideal corretivo que ele gostaria de aplicar no mundo, é apenas o reflexo do mundo atual e, consequentemente, é totalmente impossível reconstruir a sociedade sobre uma base que não passa de uma sombra embelezada de si mesma. À medida que a sombra se torna corpo, percebe-se que esse corpo, longe de ser a transfiguração sonhada, é o corpo atual da sociedade.”


“A moeda não é uma coisa, é uma relação social. Por que a relação da moeda é uma relação da produção, como qualquer outra relação econômica, por exemplo a divisão do trabalho etc.? Se o sr. Proudhon compreendesse bem essa relação, não teria visto na moeda uma exceção, um elemento destacado de uma série desconhecida ou que se deve recuperar.
Ele teria reconhecido, ao contrário, que essa relação é um elo e, como tal, está intimamente ligada a todo o encadeamento das outras relações econômicas e corresponde a um modo de produção determinado, tanto quanto a troca individual.”


“De fato, é preciso ser desprovido de qualquer conhecimento histórico para ignorar que os soberanos, em todos os tempos, submeteram-se às condições econômicas, sem jamais lhes impor sua lei. A legislação, tanto política quanto civil, apenas enuncia, verbaliza o poder das relações econômicas.
Foi o soberano que se apoderou do ouro e da prata para torná-los agentes universais da troca, imprimindo-lhes sua chancela, ou foram esses agentes universais da troca que, ao contrário, se apoderaram do soberano, obrigando-o a imprimir-lhes sua chancela e a dar-lhes uma consagração política?”


“Se o inglês transforma os homens em chapéus, o alemão transforma os chapéus em ideias. O inglês é Ricardo, banqueiro rico e distinto economista; o alemão é Hegel, simples professor de filosofia na Universidade de Berlim.”


“A metafísica, a filosofia inteira, resume-se, segundo Hegel, no método.”


“As relações sociais estão intimamente ligadas às forças produtivas. Adquirindo novas forças produtivas, os homens mudam seu modo de produção e, ao mudar o modo de produção, a maneira de ganhar a vida, eles mudam todas as suas relações sociais. O moinho movido pelo braço humano nos dá a sociedade com o suserano; o moinho a vapor nos dá a sociedade com o capitalista industrial
Os mesmos homens que estabeleceram as relações sociais de acordo com sua produtividade material produzem também os princípios, as ideias, as categorias, de acordo com suas relações sociais.
Assim, essas ideias, essas categorias, são tão pouco eternas quanto as relações que elas exprimem. Elas são produtos históricos e transitórios.
Há um movimento contínuo de crescimento nas forças produtivas, de destruição nas relações sociais, de formação nas ideias; de imutável só existe a abstração do movimento – mors immortalis*.
*: Marx retoma aqui um verso de Lucrécio, extraído de rerum natura (Da natureza das coisas), Livro III, verso 869: “Mortalem vitam mors immortalis ademit” (“A morte imortal ceifou a vida mortal”). Em seu exemplar, Proudhon anotou: “Sim, eternas como a humanidade, nem mais nem menos, e todas contemporâneas. Sua segunda observação não conduz a nada”.


“O que constitui o movimento dialético é a coexistência de dois lados contraditórios, sua luta e sua fusão numa categoria nova.”


“Admitamos, com o sr. Proudhon, que a história real, a história segundo a ordem temporal, é a sucessão histórica na qual as ideias, as categorias e os princípios se manifestaram.
Cada princípio teve seu século para nele manifestar-se: o princípio da autoridade, por exemplo, teve o século XI, assim como o do individualismo teve o século XVIII De consequência em consequência, era o século que pertencia ao princípio, e não o princípio ao século. Em outros termos: era o princípio que fazia história, não era a história que fazia o princípio. Quando, em seguida, para salvar tanto os princípios quanto a história, indaga-se por que tal princípio se manifestou no século XI ou no XVIII e não em outro qualquer, é-se necessariamente obrigado a examinar com minúcia quem eram os homens dos séculos XI e XVIII, quais eram suas necessidades, suas forças produtivas, seu modo de produção, as matérias-primas de sua produção – enfim, quais eram as relações de homem para homem que resultavam de todas essas condições de existência. Aprofundar todas essas questões não é fazer a história real, a história profana, dos homens em cada século, representar esses homens ao mesmo tempo como os autores e os atores de seu próprio drama? Mas, a partir do momento em que os homens são representados como os atores e os autores de sua própria história, chega-se, por um atalho, ao verdadeiro ponto de partida, uma vez que são abandonados os princípios eternos de que se tratava inicialmente.
O sr. Proudhon nem mesmo avançou o suficiente nesses atalhos que o ideólogo percorre para alcançar a grande estrada da história.”


“Os economistas têm uma maneira singular de proceder. Para eles, só existem duas espécies de instituições: as da arte e as da natureza. As instituições feudais são artificiais, as da burguesia são naturais. Nisso, eles se parecem com os teólogos, que também estabelecem dois tipos de religião: toda religião que não é a deles é uma invenção dos homens, ao passo que a deles é uma emanação de Deus. Dizendo que as relações atuais – as relações da produção burguesa – são naturais, os economistas dão a entender que é nessas relações que se cria a riqueza e se desenvolvem as forças produtivas segundo as leis da natureza. Portanto, essas relações são leis naturais independentes da influência do tempo. São leis eternas que devem sempre reger a sociedade. Assim, houve história, mas não há mais. Houve história porque existiram instituições de feudalidade e porque nelas se encontram relações de produção inteiramente diferentes das da sociedade burguesa, que os economistas querem fazer passar por naturais, logo eternas.
O feudalismo também possuía um proletariado – os servos, que continham em si o embrião da burguesia. A produção feudal também possuía dois elementos antagônicos, designados igualmente o lado bom e o lado mau do feudalismo, sem se considerar que o lado mau sempre acaba sobrepondo-se ao bom. É o lado mau que produz o movimento que faz a história, constituindo a luta. Se, na época da dominação feudal, os economistas, entusiasmados com as virtudes cavalheirescas, com a bela harmonia entre deveres e direitos, com a vida patriarcal das cidades, com o estado de prosperidade da indústria doméstica no campo, com o desenvolvimento da indústria organizada por corporações, confrarias e grêmios, enfim, com tudo o que constitui o lado bom do feudalismo, se eles resolvessem eliminar tudo que tornava sombrio esse quadro – servidão, privilégios, anarquia –, o que aconteceria? Ter-se-iam eliminado todos os elementos constitutivos da luta e sufocado, em seu embrião, o desenvolvimento da burguesia. Ter-se-ia colocado o absurdo problema da liquidação da história.
Quando a burguesia se impôs, não se colocou a questão do lado bom e do lado mau do feudalismo. Ela incorporou as forças produtivas que desenvolvera sob ele. Foram destruídas todas as antigas formas econômicas, as relações civis que lhes correspondem, o estado político que era a expressão oficial da antiga sociedade civil.
Assim, para avaliar corretamente a produção feudal, é preciso vê-la como um modo de produção baseado no antagonismo. É preciso mostrar como a riqueza se produzia no interior desse antagonismo, como as forças produtivas se desenvolviam ao mesmo tempo que o antagonismo das classes, como uma dessas classes, o lado mau, o inconveniente da sociedade, ia sempre crescendo, até que as condições materiais de sua emancipação alcançaram seu ponto de maturidade. Não é suficiente dizer que o modo de produção, as relações nas quais se desenvolvem as forças produtivas, não são nada menos que leis eternas, mas correspondem a um desenvolvimento determinado dos homens e de suas forças produtivas, e que uma mudança nas forças produtivas dos homens conduz necessariamente a uma mudança em suas relações de produção? Como o que importa é principalmente não se privar dos frutos da civilização, das forças produtivas adquiridas, é preciso liquidar as formas tradicionais nas quais elas foram produzidas. A partir de então, a classe revolucionária torna-se conservadora.
A burguesia começa com um proletariado que é ele próprio um resto do proletariado* dos tempos feudais. No curso de seu desenvolvimento histórico, a burguesia desenvolve necessariamente seu caráter antagônico, que no início aparece mais ou menos disfarçado, existe apenas em estado latente. À medida que a burguesia se desenvolve, desenvolve-se em seu interior um novo proletariado, um proletariado moderno: desenvolve-se uma luta entre a classe proletária e a classe burguesa, uma luta que, antes de ser sentida por ambos os lados, percebida, avaliada, compreendida, confessada e proclamada, manifesta-se previamente por conflitos parciais e momentâneos, por episódios subversivos. Por outro lado, se todos os membros da burguesia moderna têm o mesmo interesse, na medida em que formam uma classe vis-à-vis a outra classe, eles têm interesses opostos, antagônicos, na medida em que se colocam vis-à-vis aos outros. Essa oposição de interesses decorre das condições econômicas da vida burguesa. Dia após dia, torna-se mais claro que as relações de produção nas quais a burguesia se move não têm um caráter uno, simples, mas um caráter de duplicidade; que, nas mesmas relações em que se produz a riqueza, também se produz a miséria; que, nas mesmas relações em que há desenvolvimento das forças produtivas, há uma força produtora de repressão; que essas relações só produzem a riqueza burguesa, isto é, a riqueza da classe burguesa, destruindo continuamente a riqueza dos membros integrantes dessa classe e produzindo um proletariado sempre crescente.
Quanto mais se evidencia esse caráter antagônico, mais os economistas, os representantes científicos da produção burguesa, embaralham-se em sua própria teoria e formam diferentes escolas.
Temos os economistas fatalistas, que, em sua teoria, são tão indiferentes ao que chamam de inconvenientes da produção burguesa quanto o são, na prática, os próprios burgueses aos sofrimentos dos proletários que os ajudam a adquirir riquezas. Nessa escola fatalista, há clássicos e românticos. Os clássicos, como Adam Smith e Ricardo, representam uma burguesia que, lutando ainda contra os restos da sociedade feudal, trabalha apenas para depurar as relações econômicas das marcas feudais, para aumentar as forças produtivas e para dar um novo impulso à indústria e ao comércio. Participando dessa luta, o proletariado, absorvido nesse trabalho febril, tem apenas sofrimentos passageiros, acidentais, e ele mesmo os vê desse modo. Os economistas como Adam Smith e Ricardo, que são os historiadores dessa época, não têm outra missão a não ser demonstrar como a riqueza se adquire nas relações de produção burguesas, formular essas relações em categorias, em leis, e demonstrar como essas leis, essas categorias, são, para a produção de riquezas, superiores às leis e às categorias da sociedade feudal. A miséria, para eles, é apenas a dor que acompanha todo parto, tanto na natureza quanto na indústria**.
Os românticos pertencem à nossa época, na qual a burguesia se encontra em oposição direta ao proletariado e a miséria se engendra em tão grande abundância quanto a riqueza. Nesse caso, os economistas se apresentam como fatalistas enfastiados que, do alto de sua posição, lançam um olhar de soberbo desprezo sobre os homens-locomotiva que fabricam as riquezas. Eles plagiam todos os desenvolvimentos de seus antecessores, e a indiferença que, naqueles, era ingenuidade, neles se converte em afetação.
Em seguida vem a escola humanitária, que toma a peito o lado mau das relações de produção atuais. Procura, para desencargo de consciência, amenizar um pouco os contrastes reais; deplora sinceramente a infelicidade do proletariado, a concorrência desenfreada dos burgueses entre si, aconselha aos operários a sobriedade, o trabalho consciencioso e o controle de filhos, recomenda aos burgueses que se dediquem à produção com entusiasmo refletido. Toda a teoria da escola assenta sobre as distinções intermináveis entre a teoria e a prática, os princípios e os resultados, a ideia e a aplicação, o conteúdo e a forma, a essência e a realidade, o direito e o fato, os lados bom e mau.
A escola filantrópica é a escola humanitária aperfeiçoada. Ela nega a necessidade do antagonismo; quer tornar burgueses todos os homens e realizar a teoria na medida em que esta se distingue da prática e não contém nenhum antagonismo. E supérfluo dizer que, na teoria, é fácil abstrair das contradições que encontramos a cada passo na realidade. Essa teoria seria então a realidade idealizada. Assim, os filantropos querem conservar as categorias que exprimem as relações burguesas sem o antagonismo que as constitui e é inseparável delas. Imaginam combater seriamente a prática burguesa e são mais burgueses que os outros***.
Do mesmo modo que os economistas são os representantes científicos da classe burguesa, os socialistas e os comunistas são os teóricos da classe proletária. Enquanto o proletariado não estiver bastante desenvolvido para se constituir como classe e, consequentemente, sua luta com a burguesia não tiver ainda um caráter político; enquanto as forças produtivas não estiverem bastante desenvolvidas no próprio interior da burguesia para possibilitar uma antevisão das condições materiais necessárias à libertação do proletariado e à formação de uma sociedade nova, esses teóricos serão apenas utopistas que, para amenizar os sofrimentos das classes oprimidas, improvisam sistemas e correm atrás de uma ciência regeneradora. Mas, à medida que a história avança e, com ela, a luta do proletariado se desenha mais claramente, eles não precisam mais procurar a ciência em seu espírito: basta-lhes dar-se conta do que se passa diante de seus olhos e tornar-se porta-vozes disso. Enquanto procuram a ciência e apenas formulam sistemas, enquanto estão no início da luta, eles veem na miséria somente a miséria, não veem nela o lado revolucionário, subversivo, que derrubará a velha sociedade. A partir desse momento, a ciência produzida pelo movimento histórico, e associando-se a ele com pleno conhecimento de causa, deixa de ser doutrinária e se torna revolucionária.
Voltemos ao sr. Proudhon****
Cada relação econômica tem um lado bom e um lado mau, e esse é o único ponto em que o sr. Proudhon não se desmente. O lado bom ele o vê exposto pelos economistas; o mau, denunciado pelos socialistas. Toma emprestada dos economistas a necessidade das relações eternas; dos socialistas, a ilusão de ver na miséria apenas a miséria. Concorda com estes e aqueles quando quer se referir à autoridade da ciência. Esta, para ele, reduz-se às magras proporções de uma fórmula científica: é um homem à caça de fórmulas. Assim, o sr. Proudhon jacta-se de ter feito a crítica da economia política e do comunismo, mas está aquém de ambos. Está aquém dos economistas porque, como filósofo que tem na manga uma fórmula mágica, acreditou poder dispensar-se de entrar em pormenores puramente econômicos; aquém dos socialistas porque carece da coragem e da lucidez necessárias para se elevar, ainda que especulativamente, acima do horizonte burguês.
Ele quer ser a síntese, e é um erro composto.
Como homem de ciência, quer pairar acima de burgueses e proletários, mas não passa de um pequeno-burguês que oscila constantemente entre o capital e o trabalho, entre a economia política e o comunismo.”
* No exemplar oferecido a Natália Utina, figura esta anotação: “da classe trabalhadora”.
** Em seu exemplar, Proudhon fez várias anotações: “Marx tem a pretensão de apresentar, em oposição ao que eu teria escrito, tudo isso como sendo seu?”; “Tudo isso é da minha lavra”, “Eu disse tudo isso”.
*** Em seu exemplar, Proudhon anotou: “Marx faz como Vidal”. Em seus Carnets, Proudhon acusa Vidal dos mesmos “crimes” de Marx: incompreensão e plágio.
**** Em seu exemplar, junto das observações de Marx acerca dos utopistas, Proudhon anotou: “Plágio do meu primeiro capítulo”. Quanto à frase “Voltemos ao sr, Proudhon”, escreveu: “Mas como? Voltemos! Se as páginas precedentes são uma cópia do que redigi”.

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