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domingo, 1 de março de 2020

Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos (Parte III) – Theodor Adorno e Max Horkheimer

Editora: Jorge Zahar
ISBN: 978-85-7110-414-3
Tradução: Guido Antonio de Almeida
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 224
Sinopse: Ver Parte I



“O mundo inteiro é forçado a passar pelo filtro da indústria cultural. A velha experiência do espectador de cinema, que percebe a rua como um prolongamento do filme que acabou de ver, porque este pretende ele próprio reproduzir rigorosamente o mundo da percepção quotidiana, tornou-se a norma da produção. Quanto maior a perfeição com que suas técnicas duplicam os objetos empíricos, mais fácil se torna hoje obter a ilusão de que o mundo exterior é o prolongamento sem ruptura do mundo que se descobre no filme. Desde a súbita introdução do filme sonoro, a reprodução mecânica pôs-se ao inteiro serviço desse projeto. A vida não deve mais, tendencialmente, deixar-se distinguir do filme sonoro. Ultrapassando de longe o teatro de ilusões, o filme não deixa mais à fantasia e ao pensamento dos espectadores nenhuma dimensão na qual estes possam, sem perder o fio, passear e divagar no quadro da obra fílmica permanecendo, no entanto, livres do controle de seus dados exatos, e é assim precisamente que o filme adestra o espectador entregue a ele para se identificar imediatamente com a realidade. Atualmente, a atrofia da imaginação e da espontaneidade do consumidor cultural não precisa ser reduzida a mecanismos psicológicos. Os próprios produtos – e entre eles em primeiro lugar o mais característico, o filme sonoro – paralisam essas capacidades em virtude de sua própria constituição objetiva. São feitos de tal forma que sua apreensão adequada exige, é verdade, presteza, dom de observação, conhecimentos específicos, mas também de tal sorte que proíbem a atividade intelectual do espectador, se ele não quiser perder os fatos que desfilam velozmente diante de seus olhos. O esforço, contudo, está tão profundamente inculcado que não precisa ser atualizado em cada caso para recalcar a imaginação. Quem está tão absorvido pelo universo do filme – pelos gestos, imagens e palavras –, que não precisa lhe acrescentar aquilo que fez dele um universo, não precisa necessariamente estar inteiramente dominado no momento da exibição pelos efeitos particulares dessa maquinaria. Os outros filmes e produtos culturais que deve obrigatoriamente conhecer tornaram-no tão familiarizado com os desempenhos exigidos da atenção, que estes têm lugar automaticamente. A violência da sociedade industrial instalou-se nos homens de uma vez por todas. Os produtos da indústria cultural podem ter a certeza de que até mesmo os distraídos vão consumi-los alertamente. Cada qual é um modelo da gigantesca maquinaria econômica que, desde o início, não dá folga a ninguém, tanto no trabalho quanto no descanso, que tanto se assemelha ao trabalho. É possível depreender de qualquer filme sonoro, de qualquer emissão de rádio, o impacto que não se poderia atribuir a nenhum deles isoladamente, mas só a todos em conjunto na sociedade. Inevitavelmente, cada manifestação da indústria cultural reproduz as pessoas tais como as modelou a indústria em seu todo.”


“O catálogo explícito e implícito, esotérico e exotérico, do proibido e do tolerado estende-se a tal ponto que ele não apenas circunscreve a margem de liberdade, mas também domina-a completamente. Os menores detalhes são modelados de acordo com ele. Exatamente como seu adversário, a arte de vanguarda, é com as proibições que a indústria cultural fixa positivamente sua própria linguagem com sua sintaxe e seu vocabulário. A compulsão permanente a produzir novos efeitos (que, no entanto, permanecem ligados ao velho esquema) serve apenas para aumentar, como uma regra suplementar, o poder da tradição ao qual pretende escapar cada efeito particular. Tudo o que vem a público está tão profundamente marcado que nada pode surgir sem exibir de antemão os traços do jargão e sem se credenciar à aprovação ao primeiro olhar. Os grandes astros, porém, os que produzem e reproduzem, são aqueles que falam o jargão com tanta facilidade, espontaneidade e alegria como se ele fosse a linguagem que ele, no entanto, há muito reduziu ao silêncio. Eis aí o ideal do natural neste ramo. Ele se impõe tanto mais imperiosamente quanto mais a técnica aperfeiçoada reduz a tensão entre a obra produzida e a vida quotidiana. O paradoxo da rotina travestida de natureza pode ser notado em todas as manifestações da indústria cultural, e em muitas ele é tangível. Um músico de jazz que tenha de tocar uma peça de música séria, por exemplo o mais simples minueto de Beethoven, é levado involuntariamente a sincopá-lo, e é com um sorriso soberano que ele, por fim, aceita seguir o compasso. É essa natureza, complicada pelas exigências sempre presentes e sempre exageradas do medium específico, que constitui o novo estilo, a saber, “um sistema da não cultura, à qual se pode conceder até mesmo uma certa ‘unidade de estilo’, se é que ainda tem sentido falar em uma barbárie estilizada”1.”
1. Nietzsche. Unzeilgemässe Betrachtungen, in Werke (Grossoktavausgabe), vol. I, Leip-zig, 1917, p.187.


“Em toda obra de arte, o estilo é uma promessa. Ao ser acolhido nas formas dominantes da universalidade: a linguagem musical, pictórica, verbal, aquilo que é expresso pelo estilo deve se reconciliar com a Ideia da verdadeira universalidade. Essa promessa da obra de arte de instituir a verdade imprimindo a figura nas formas transmitidas pela sociedade é tão necessária quanto hipócrita. Ela coloca as formas reais do existente como algo de absoluto, pretextando antecipar a satisfação nos derivados estéticos delas. Nessa medida, a pretensão da arte é sempre ao mesmo tempo ideologia. No entanto, é tão somente neste confronto com a tradição, que se sedimenta no estilo, que a arte encontra expressão para o sofrimento. O elemento graças ao qual a obra de arte transcende a realidade, de fato, é inseparável do estilo. Contudo, ele não consiste na realização da harmonia – a unidade problemática da forma e do conteúdo, do interior e do exterior, do indivíduo e da sociedade –, mas nos traços em que aparece a discrepância, no necessário fracasso do esforço apaixonado em busca da identidade. Ao invés de se expor a esse fracasso, no qual o estilo da grande obra de arte sempre se negou, a obra medíocre sempre se ateve à semelhança com outras, isto é, ao sucedâneo da identidade. A indústria cultural acaba por colocar a imitação como algo de absoluto. Reduzida ao estilo, ela trai seu segredo, a obediência à hierarquia social. A barbárie estética consuma hoje a ameaça que sempre pairou sobre as criações do espírito desde que foram reunidas e neutralizadas a título de cultura. Falar em cultura foi sempre contrário à cultura. O denominador comum “cultura” já contém virtualmente o levantamento estatístico, a catalogação, a classificação que introduz a cultura no domínio da administração. Só a subsunção industrializada e consequente é inteiramente adequada a esse conceito de cultura. Ao subordinar da mesma maneira todos os setores da produção espiritual a este fim único – ocupar os sentidos dos homens da saída da fábrica, à noitinha, até a chegada ao relógio do ponto, na manhã seguinte, com o selo da tarefa de que devem se ocupar durante o dia – essa subsunção realiza ironicamente o conceito da cultura unitária que os filósofos da personalidade opunham à massificação.
Assim a indústria cultural, o mais inflexível de todos os estilos, revela-se justamente como a meta do liberalismo, ao qual se censura a falta de estilo. Não somente suas categorias e conteúdos são provenientes da esfera liberal, tanto do naturalismo domesticado quanto da opereta e da revista: as modernas companhias culturais são o lugar econômico onde ainda sobrevive, juntamente com os correspondentes tipos de empresários, uma parte da esfera de circulação já em processo de desagregação. Aí ainda é possível fazer fortuna, desde que não se seja demasiado inflexível e se mostre que é uma pessoa com quem se pode conversar. Quem resiste só pode sobreviver integrando-se. Uma vez registrado em sua diferença pela indústria cultural, ele passa a pertencer a ela assim como o participante da reforma agrária ao capitalismo. A rebeldia realista torna-se a marca registrada de quem tem uma nova ideia a trazer à atividade industrial. A esfera pública da sociedade atual não admite qualquer acusação perceptível em cujo tom os bons entendedores não vislumbrem a proeminência sob cujo signo o revoltado com eles se reconcilia. Quanto mais incomensurável é o abismo entre o coro e os protagonistas, mais certamente haverá lugar entre estes para todo aquele que mostrar sua superioridade por uma notoriedade bem planejada. Assim, também sobrevive na indústria cultural a tendência do liberalismo a deixar caminho livre a seus homens capazes. Abrir caminho para esses competentes ainda é a função do mercado, que sob outros aspectos já é extensamente regulado e cuja liberdade consistia mesmo na época de seu maior brilho – para os artistas bem como para outros idiotas – em morrer de fome. Não é à toa que o sistema da indústria cultural provém dos países industriais liberais, e é neles que triunfam todos os seus meios característicos, sobretudo o cinema, o rádio, o jazz e as revistas. (...) A dependência econômica em face dos Estados Unidos, em que se encontrou o continente europeu depois da guerra e da inflação, teve uma parte nesse processo. A crença de que a barbárie da indústria cultural é uma consequência do cultural lagi, do atraso da consciência norte-americana relativamente ao desenvolvimento da técnica, é profundamente ilusória. Atrasada relativamente à tendência ao monopólio cultural estava a Europa pré-fascista. Mas era exatamente esse atraso que deixava ao espírito um resto de autonomia e assegurava a seus últimos representantes a possibilidade de existir ainda que oprimidos. Na Alemanha, a incapacidade de submeter a vida a um controle democrático teve um efeito paradoxal. Muita coisa escapou ao mecanismo de mercado que se desencadeou nos países ocidentais. O sistema educativo alemão juntamente com as universidades, os teatros mais importantes na vida artística, as grandes orquestras, os museus estavam sob proteção. Os poderes políticos, o Estado e as municipalidades, aos quais essas instituições foram legadas como herança do absolutismo, haviam preservado para elas uma parte daquela independência das relações de dominação vigentes no mercado, que os príncipes e senhores feudais haviam assegurado até o século dezenove. Isso resguardou a arte em sua fase tardia contra o veredicto da oferta e da procura e aumentou sua resistência muito acima da proteção de que desfrutava de fato. No próprio mercado, o tributo a uma qualidade sem utilidade e ainda sem curso converteu-se em poder de compra: é por essa razão que editores literários e musicais decentes puderam cultivar por exemplo autores que rendiam pouco mais do que o respeito do conhecedor. Só a obrigação de se inserir incessantemente, sob a mais drástica das ameaças, na vida dos negócios como um especialista estético impôs um freio definitivo ao artista. (...) Atualmente em fase de desagregação na esfera da produção material, o mecanismo da oferta e da procura continua atuante na superestrutura como mecanismo de controle em favor dos dominantes. Os consumidores são os trabalhadores e os empregados, os lavradores e os pequenos burgueses. A produção capitalista os mantém tão bem presos em corpo e alma que eles sucumbem sem resistência ao que lhes é oferecido. Assim como os dominados sempre levaram mais a sério que os dominadores a moral que deles recebiam, hoje as massas logradas sucumbem mais facilmente ao mito do sucesso do que os bem-sucedidos. Elas têm os desejos deles. Obstinadamente, insistem na ideologia que as escraviza. O amor funesto do povo pelo mal que a ele se faz chega a se antecipar à astúcia das instâncias de controle.”
i Atraso cultural. (N.T.)


“Ao ratificar com refinada astúcia a demanda de porcarias, ele inaugura a harmonia total. A competência e a perícia são proscritas como arrogância de quem se acha melhor que os outros, quando a cultura distribui tão democraticamente seu privilégio a todos. Em face da trégua ideológica, o conformismo dos compradores, assim como o descaramento da produção que eles mantêm em marcha, adquire boa consciência. Ele se contenta com a reprodução do que é sempre o mesmo.
Essa mesmice regula também as relações com o que passou. O que é novo na fase da cultura de massas em comparação com a fase do liberalismo avançado é a exclusão do novo. A máquina gira sem sair do lugar. Ao mesmo tempo que já determina o consumo, ela descarta o que ainda não foi experimentado porque é um risco. É com desconfiança que os cineastas consideram todo manuscrito que não se baseie, para tranquilidade sua, em um best-seller. Por isso é que se fala continuamente em idea, novelty e surprise (idéia, novidade e surpresa), em algo que seria ao mesmo tempo familiar a todos sem ter jamais ocorrido. A seu serviço estão o ritmo e a dinâmica. Nada deve ficar como era, tudo deve estar em constante movimento. Pois só a vitória universal do ritmo da produção e reprodução mecânica é a garantia de que nada mudará, de que nada surgirá que não se adapte. O menor acréscimo ao inventário cultural comprovado é um risco excessivo. Formas fixas como o sketch, a história curta, o filme de tese, o êxito de bilheteria são a média, orientada normativamente e imposta ameaçadoramente, do gosto característico do liberalismo avançado. Os diretores das agências culturais – que estão numa harmonia como só os managers (gerentes) sabem criar, não importa se provêm da indústria de confecções ou de um college (faculdade)há muito sanaram e racionalizaram o espírito objetivo. Tudo se passa como se uma instância onipresente houvesse examinado o material e estabelecido o catálogo oficial dos bens culturais, registrando de maneira clara e concisa as séries disponíveis. As ideias estão inscritas no céu cultural, onde já haviam sido enumeradas por Platão e onde, números elas próprias, estavam encerradas sem possibilidade de aumento ou transformação.
O entretenimento e os elementos da indústria cultural já existiam muito tempo antes dela. Agora, são tirados do alto e nivelados à altura dos tempos atuais. A indústria cultural pode se ufanar de ter levado a cabo com energia e de ter erigido em princípio a transferência muitas vezes desajeitada da arte para a esfera do consumo, de ter despido a diversão de suas ingenuidades inoportunas e de ter aperfeiçoado o feitio das mercadorias. Quanto mais total ela se tornou, quanto mais impiedosamente forçou os outsidersl seja a declarar falência seja a entrar para o sindicato, mais fina e mais elevada ela se tornou, para enfim desembocar na síntese de Beethoven e do Casino de Paris. Sua vitória é dupla: a verdade, que ela extingue lá fora, dentro ela pode reproduzir a seu bel-prazer como mentira. A arte “leve” como tal, a diversão, não é uma forma decadente. Quem a lastima como traição do ideal da expressão pura está alimentando ilusões sobre a sociedade. A pureza da arte burguesa, que se hipostasiou como reino da liberdade em oposição à práxis material, foi obtida desde o início ao preço da exclusão das classes inferiores, mas é à causa destas classes – a verdadeira universalidade – que a arte se mantém fiel exatamente pela liberdade dos fins da falsa universalidade. A arte séria recusou-se àqueles para quem as necessidades e a pressão da vida fizeram da seriedade um escárnio e que têm todos os motivos para ficarem contentes quando podem usar como simples passatempo o tempo que não passam junto às máquinas. A arte leve acompanhou a arte autônoma como uma sombra. Ela é a má consciência social da arte séria. O que esta – em virtude de seus pressupostos sociais – perdeu em termos de verdade confere àquela a aparência de um direito objetivo. Essa divisão é ela própria a verdade: ela exprime pelo menos a negatividade da cultura formada pela adição das duas esferas. A pior maneira de reconciliar essa antítese é absorver a arte leve na arte séria ou vice-versa. Mas é isto que tenta a indústria cultural. A excentricidade do circo, do museu de cera e do bordel relativamente à sociedade é tão penosa para ela como a de Schönberg e Karl Kraus. É por isso que o jazzista Benny Goodman deve se apresentar juntamente com o Quarteto de Budapeste, mais meticuloso quanto ao ritmo do que qualquer clarinetista filarmônico, enquanto os músicos de Budapeste tocam, em compensação, de maneira tão uniforme e adocicada como Guy Lombardo. O que é significativo não é a incultura, a burrice e a impolidez nua e crua. O refugo de outrora foi eliminado pela indústria cultural graças à sua própria perfeição, graças à proibição e à domesticação do diletantismo, muito embora ela não cesse de cometer erros crassos, sem os quais o nível do estilo elevado seria absolutamente inconcebível. Mas o que é novo é que os elementos irreconciliáveis da cultura, da arte e da distração se reduzem mediante sua subordinação ao fim a uma única fórmula falsa: a totalidade da indústria cultural. Ela consiste na repetição. O fato de que suas inovações características não passem de aperfeiçoamentos da produção em massa não é exterior ao sistema. É com razão que o interesse de inúmeros consumidores se prende à técnica, não aos conteúdos teimosamente repetidos, ocos e já em parte abandonados. O poderio social que os espectadores adoram é mais eficazmente afirmado na onipresença do estereótipo imposta pela técnica do que nas ideologias rançosas pelas quais os conteúdos efêmeros devem responder.
Todavia, a indústria cultural permanece a indústria da diversão. Seu controle sobre os consumidores é mediado pela diversão, e não é por um mero decreto que esta acaba por se destruir, mas pela hostilidade inerente ao princípio da diversão por tudo aquilo que seja mais do que ela própria. Como a absorção de todas as tendências da indústria cultural na carne e no sangue do público se realiza através do processo social inteiro, a sobrevivência do mercado neste ramo atua favoravelmente sobre essas tendências. A demanda ainda não foi substituída pela simples obediência. Pois a grande reorganização do cinema pouco antes da Primeira Guerra Mundial – condição material de sua expansão – consistiu exatamente na adaptação consciente às necessidades do público registradas com base nas bilheterias, necessidades essas que as pessoas mal acreditavam ter de levar em conta na época pioneira do cinema. Ainda hoje pensam assim os capitães da indústria cinematográfica – que no entanto se baseiam no exemplo dos sucessos mais ou menos fenomenais, e não, com muita sabedoria, no contraexemplo da verdade. Sua ideologia é o negócio. A verdade em tudo isso é que o poder da indústria cultural provém de sua identificação com a necessidade produzida, não da simples oposição a ela, mesmo que se tratasse de uma oposição entre a onipotência e impotência. A diversão é o prolongamento do trabalho sob o capitalismo tardio. Ela é procurada por quem quer escapar ao processo de trabalho mecanizado, para se pôr de novo em condições de enfrentá-lo. Mas, ao mesmo tempo, a mecanização atingiu um tal poderio sobre a pessoa em seu lazer e sobre a sua felicidade, ela determina tão profundamente a fabricação das mercadorias destinadas à diversão, que esta pessoa não pode mais perceber outra coisa senão as cópias que reproduzem o próprio processo de trabalho. O pretenso conteúdo não passa de uma fachada desbotada; o que fica gravado é a sequência automatizada de operações padronizadas. Ao processo de trabalho na fábrica e no escritório só se pode escapar adaptando-se a ele durante o ócio. Eis aí a doença incurável de toda diversão. O prazer acaba por se congelar no aborrecimento, porquanto, para continuar a ser um prazer, não deve mais exigir esforço e, por isso, tem de se mover rigorosamente nos trilhos gastos das associações habituais. O espectador não deve ter necessidade de nenhum pensamento próprio, o produto prescreve toda reação: não por sua estrutura temática – que desmorona na medida em que exige o pensamento –, mas através de sinais. Toda ligação lógica que pressuponha um esforço intelectual é escrupulosamente evitada. Os desenvolvimentos devem resultar tanto quanto possível da situação imediatamente anterior, e não da Ideia do todo. Não há enredo que resista ao zelo com que os roteiristas se empenham em tirar de cada cena tudo o que se pode depreender dela. Por fim, o próprio esquema parece perigoso na medida em que estabelece uma conexão inteligível, por mais pobre que seja, onde só é aceitável a falta de sentido. Muitas vezes se recusa maldosamente à ação o desenvolvimento que os personagens e o tema exigiam segundo o esquema antigo. Ao invés disso, a nova etapa escolhida é a ideia aparentemente mais eficaz que ocorre aos roteiristas para a situação dada. Uma surpresa estupidamente arquitetada irrompe na ação fílmica. A tendência do produto a recorrer malignamente ao puro absurdo – um ingrediente legítimo da arte popular, da farsa e da bufonaria desde os seus primórdios até Chaplin e os irmãos Marx – aparece da maneira mais evidente nos gêneros menos pretensiosos. Enquanto nos filmes de Greer Garson e Bette Davis a unidade do caso social-psicológico ainda justifica a pretensão de uma ação coerente, essa tendência impôs-se totalmente no texto da novelty song, no filme policial e nos cartoonsm. Exatamente como os objetos dos filmes cômicos e de terror, o pensamento é ele próprio massacrado e despedaçado. As novelty songs sempre viveram do desprezo pelo sentido inteligível, que elas – como predecessoras e sucessoras da psicanálise – reduzem à monotonia da simbólica sexual. Os filmes policiais e de aventuras não mais permitem ao espectador de hoje assistir à marcha do esclarecimento. Mesmo nas produções do gênero destituídas de ironia, ele tem de se contentar com os sustos proporcionados por situações precariamente interligadas.
Os filmes de animação eram outrora expoentes da fantasia contra o racionalismo. Eles faziam justiça aos animais e coisas eletrizados por sua técnica, dando aos mutilados uma segunda vida. Hoje, apenas confirmam a vitória da razão tecnológica sobre a verdade. Até poucos anos atrás, tinham enredos consistentes que só se esfacelavam no torvelinho da perseguição dos últimos minutos do filme. Seu procedimento assemelhava-se nisso ao velho costume da slapstick comedyn. Mas agora as relações temporais deslocaram-se. As primeiras sequências do filme de animação ainda esboçam uma ação temática, destinada, porém, a ser demolida no curso do filme: sob a gritaria do público, o protagonista é jogado para cá e para lá como um farrapo. Assim a quantidade da diversão organizada converte-se na qualidade da crueldade organizada. Os autodesignados censores da indústria cinematográfica, ligados a ela por uma afinidade eletiva, vigiam a duração do crime a que se dá a dimensão de uma caçada. A hilariedade põe fim ao prazer que a cena de um abraço poderia pretensamente proporcionar e adia a satisfação para o dia do pogrom. Na medida em que os filmes de animação fazem mais do que habituar os sentidos ao novo ritmo, eles inculcam em todas as cabeças a antiga verdade de que a condição de vida nesta sociedade é o desgaste contínuo, o esmagamento de toda resistência individual. Assim como o Pato Donald nos cartoons, assim também os desgraçados na vida real recebem a sua sova para que os espectadores possam se acostumar com a que eles próprios recebem.
O prazer com a violência infligida ao personagem transforma-se em violência contra o espectador, a diversão em esforço. Ao olho cansado do espectador nada deve escapar daquilo que os especialistas excogitaram como estímulo; ninguém tem o direito de se mostrar estúpido diante da esperteza do espetáculo; é preciso acompanhar tudo e reagir com aquela presteza que o espetáculo exibe e propaga. Deste modo, pode-se questionar se a indústria cultural ainda preenche a função de distrair, de que ela se gaba tão estentoreamente. Se a maior parte das rádios e dos cinemas fossem fechados, provavelmente os consumidores não sentiriam tanta falta assim. O passo que leva da rua ao cinema não leva mais, em todo caso, ao sonho, e, desde que a mera existência das instituições deixou de obrigar à sua utilização, também deixou de haver uma ânsia tão grande assim de utilizá-las. Esse fechamento de rádios e cinemas não seria nada comparável a uma destruição reacionária de máquinas. Os frustrados não seriam tanto os fãs quanto aqueles que sempre “pagam o pato”, os atrasados. A obscuridade do cinema oferece à dona de casa, apesar dos filmes destinados a integrá-la, um refúgio onde ela pode passar algumas horas sem controle, assim como outrora, quando ainda havia lares e folgas vespertinas, ela podia se pôr à janela para ficar olhando a rua. Os desocupados dos grandes centros encontram o frio no verão e o calor no inverno nos locais climatizados. Fora isso, mesmo pelo critério da ordem existente essa aparelhagem inflada do prazer não torna a vida mais humana para os homens. A ideia de “esgotar” as possibilidades técnicas dadas, a ideia da plena utilização de capacidades em vista do consumo estético massificado, é própria do sistema econômico que recusa a utilização de capacidades quando se trata da eliminação da fome.”
l Estranhos, forasteiros, marginais. (N.T.)
m Desenhos animados. (N.T.)
n Comédia-pastelão. (N.T.)

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