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sábado, 26 de outubro de 2019

As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen: marxismo e positivismo na sociologia do conhecimento (Parte I), de Michael Löwy

Editora: Cortez

ISBN: 978-85-249-1513-0

Tradução: Juarez Guimarães e Suzanne Felicie Léwy

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 272

Sinopse: O livro reconstitui as vicissitudes do conceito de ideologia nas versões diferentes que lhe dão Marx e Lenin, bem como nos esforços que marcam as reflexões de Lukács, Korsch, Gramsci, Goldmann, Marcuse, Adorno e Horkheimer.


 

“O positivismo “clássico” de Comte ou Durkheim não é um anacronismo do século XIX; encontramos representantes dele até em nossos dias e ele exerce uma influência considerável sobre a sociologia moderna, especialmente nos países anglo-saxões. Um exemplo entre outros inumeráveis: George Lundberg (1895-1966), durante vários anos presidente da American Society of Sociology e editor da revista Sociometry. De acordo com Lundberg, “ao considerar a sociologia como uma ciência natural, vamos estudar o comportamento social humano com o mesmo espírito objetivo que o biólogo estuda uma colmeia, uma colônia de térmites ou a organização e o funcionamento de um organismo”. Para alcançar esta objetividade é suficiente “colocar de lado nossos sentimentos” e “eliminar”, na análise das evidências empíricas, “a influência das crenças ou desejos pessoais”. Trata-se, na sua opinião, de um problema puramente “técnico”: “ele havia desenvolvido uma técnica aperfeiçoada de evitar, controlar e corrigir estas influências (exteriores) na ciência”.37

Na realidade, a “boa vontade” positivista enaltecida por Durkheim e seus discípulos é uma ilusão ou uma mistificação. Liberar-se por um “esforço de objetividade” das pressuposições éticas, sociais ou políticas fundamentais de seu próprio pensamento é uma façanha que faz pensar irresistivelmente na célebre história do Barão de Münchhausen, este herói picaresco que consegue, através de um golpe genial, escapar ao pântano onde ele e seu cavalo estavam sendo tragados, ao puxar a si próprio pelos cabelos... Os que pretendem ser sinceramente seres objetivos são simplesmente aqueles nos quais as pressuposições estão mais profundamente enraizadas. Para se liberar destes “preconceitos” é necessário, antes de tudo, reconhecê-los como tais: ora, a sua principal característica é que eles não são considerados como tais, mas como verdades evidentes, incontestáveis, indiscutíveis. Ou melhor, em geral eles não são sequer formulados, e permanecem implícitos, subjacentes à investigação científica, às vezes ocultos ao próprio pesquisador. Eles constituem o que a sociologia do conhecimento designa como o campo do comprovado como evidente, um conjunto de convicções, atitudes ou ideias (do pesquisador e de seu grupo de referência) que escapa à dúvida, à distância crítica ou ao questionamento.38

É suficiente examinar a obra dos positivistas, de Comte e Durkheim até nossos dias, para se dar conta de que eles estão inteiramente fora da condição de “privados de preconceitos”. Suas análises estão fundadas sobre premissas político-sociais tendenciosas e ligadas ao ponto de vista e à visão social de mundo de grupos sociais determinados. Sua pretensão à neutralidade é às vezes uma ilusão, às vezes um ocultamento deliberado, e, frequentemente, uma mistura bastante complexa dos dois. É inútil insistir, aliás, neste aspecto, já que os positivistas mais lúcidos como Karl Popper mostraram, eles próprios, o ridículo desta doutrina tradicional da ciência social sem preconceitos e sem prenoções. Quanto a Max Weber, como se sabe, ele considerava as pressuposições, os valores, os pontos de vista ou a visão de mundo não somente como inevitáveis, mas também como constituindo a própria condição de toda atividade científico-social significativa.

Dito isto, há um “núcleo racional” na problemática positivista: a vontade de conhecimento, a investigação obstinada da verdade, a intenção de verdade é uma condição necessária da prática científica. Se a investigação é deliberadamente submetida a outros fins considerados mais importantes do que a verdade — imperativos éticos, políticos ou simplesmente pecuniários —, ela está condenada de antemão do ponto de vista de sua validade cognitiva, de seu conteúdo de conhecimento. Neste caso, ela deixa de ser ciência para se tornar outra coisa: sermão, mistificação, propaganda, publicidade etc. Sem ter intenção de buscar a verdade, o discurso não tem conteúdo científico: ele se torna simples instrumento a serviço de objetivos extracientíficos. Esta condição — aliás quase tautológica: para ter acesso à verdade é necessário querer ter acesso à verdade — é necessária mas de forma alguma suficiente para assegurar a objetividade científica. Ela elimina os determinantes exteriores diretos, mas não o condicionamento estrutural (sociocultural) do pensamento; ela permite afastar a mistificação sicofanta, mas não o ponto de vista de classe.”

37. Cf. George A Lundberg, Clarence C Schrag, Otto N Larsen, Sociology, Harper and Brothers, Nova York, 1958, p 6, 16, 736, 744 etc

38. Cf. Kurt Wolff, Versuch zu einer Wissenssoziologie, Luchterhand, Berlim Neuwied, 1968, cap 1.

 

 

“Weber parte da temática rickertiana da Wertbeziehung (a relação com os valores) como fundamento das ciências sociais e históricas; mas, contrariamente a Rickert, ele não acreditava em valores “objetivos”, universais, absolutos. Ele se aproxima, deste ponto de vista, do relativismo histórico de Dilthey, apesar de mencionar muito raramente este autor em seus trabalhos.40 É, portanto, somente com relação a valores específicos, os Kulturwertideen (ideias-de-valor culturais) particulares de uma época, uma nação ou uma fé religiosa, que se pode selecionar, no caos infinito dos fenômenos sociais, o que nos parece importante, digno de interesse, significativo. Em outras palavras: “Não existe análise científica diretamente ‘objetiva’ da vida cultural ou... dos fenômenos sociais, que seja independente de pontos de vista específicos e ‘unilaterais’, que fazem com que estas manifestações sejam, explícita ou implicitamente, consciente ou inconscientemente, selecionadas como objeto de pesquisa, conformadas e organizadas no corpo de exposição”.41

Longe de ser, aos olhos de Weber, um elemento negativo, a Wertbezeihung é a condição sine qua non de todo conhecimento histórico-social, o pressuposto indispensável de toda pesquisa científica no domínio dos fenômenos culturais. Max Weber não examina de maneira mais precisa a gênese social destas Wertideen, pontos de vista ou visões de mundo. Em uma passagem de seu ensaio de 1904 sobre a objetividade do conhecimento científico-social, ele reconhece (com reservas) a existência de uma Wahlverwandtschaft (afinidade eletiva) entre as visões de mundo e os interesses de classe, mas esta hipótese não é prosseguida, aprofundada ou levada em consideração em seus escritos metodológicos.42 Os valores e os Gesichtspunkte (pontos de vista) são para ele determinantes nos vários níveis da investigação científico-social: 1) eles orientam a escolha do objeto de conhecimento; 2) eles orientam a direção da investigação empírica; 3) eles determinam o que é para nós importante ou sem importância, essencial ou acessório, significativo ou insignificante, interessante ou sem interesse; 4) eles determinam a formação do aparelho conceitual utilizado; 5) e, sobretudo, eles fornecem a problemática (Fragestellung) da pesquisa, as questões que se colocam (ou não se colocam) à realidade.43

Em uma das mais belas passagens de seus ensaios sobre a teoria da ciência, Weber resume sua concepção com uma metáfora surpreendente (que relembra irresistivelmente certas formulações de Dilthey): “A luz que estas ideias de valores supremos difundem ilumina a cada momento apenas uma parte finita, incessantemente variável, da onda caótica e prodigiosa de acontecimentos que escoa através do tempo”. 44 Não há dúvida que esta primeira parte (na ordem lógica do processo de conhecimento) de seu método pertence, no essencial, ao universo espiritual do historicismo alemão e se opõe, de forma radical e irreconciliável, às teses clássicas do positivismo, a seu modelo científico-natural e, em particular, à ideia de que “o conhecimento da realidade deveria ou poderia ser uma cópia (Abbildung) ‘sem pressuposições’ de fatos ‘objetivos’...” 45 Encontra-se aliás aqui e em seus escritos metodológicos polêmicas explícitas contra o positivismo; elas não se dirigem nunca a Comte ou Durkheim, soberbamente ignorados ou tratados em quantidade negligenciável, mas à filosofia do Iluminismo e à economia política, cuja visão de mundo racionalista, estreitamente vinculada ao desenvolvimento das ciências naturais, impediu-os de descobrir o caráter problemático de seu próprio ponto de vista, considerado evidente em si próprio (selbstverstandlich). Ele critica também a influência da biologia nas ciências históricas, que havia: a) estimulado a pretensão de descobrir a realidade social por um conjunto de “leis” do tipo científico-natural e de validade geral; b) criado a ilusão de que “o crepúsculo dos deuses de todos os pontos de vista axiológicos (Wertgesichtspunkte)” poderia agora “se ampliar a todas as ciências”. De acordo com Weber, este impacto da biologia no século XIX é uma das principais razões pelas quais a tendência naturalista persistia na ciência econômica, apesar do fato de que “a crítica socialista e os trabalhos dos historiadores tinham começado a transformar em problemas os seus pontos de vista axiológicos (Wertgesichtspunkte) originais”.46 Observemos, de passagem, esta justaposição entre socialismo e historicismo, unidos no campo antipositivista, no qual o próprio Weber parece se situar.

Em que medida se pode, então, falar de uma convergência entre Max Weber e a problemática positivista? Sua teoria da ciência social como necessariamente fundamentada sobre um ponto de vista preliminar não está no polo oposto da exigência de Durkheim de “afastar as prenoções”? É na segunda versão de sua Wissenschaftslehre, que analisa as condições de possibilidade de objetividade do conhecimento científico-social, que ele vai se aproximar do positivismo.

Poderia se resumir a démarche de Weber nos seguintes termos: sua teoria da Wertbeziehung das questões é de tendência historicista; sua teoria de Wert-freiheit (neutralidade axiológica ou “sem julgamentos de valor”) das respostas é de orientação positivista. O resultado desta dualidade é, em nossa opinião, uma contradição irresolvível no próprio coração de sua teoria da ciência.

Para poder discutir de forma precisa a concepção weberiana da separação entre julgamentos de fato e julgamentos de valor, é necessário distinguir dois aspectos que se tende geralmente a confundir: 1) a não-dedução dos fatos a partir dos valores; 2) a não-dedução dos valores a partir dos fatos.

É a partir do primeiro aspecto que Weber formula sua doutrina da ciência social Wert-frei, isto é, livre de julgamentos de valor (ou “axiologicamente neutra”). Os valores determinaram as questões da investigação, mas as respostas devem ser estritamente Wert-frei; o objeto da pesquisa foi definido a partir de um ponto de vista valorativo, mas a démarche concreta da pesquisa científica sobre este objeto é submetida a regras objetivas e universais, a um tipo de conhecimento de validade absoluta; os valores forjaram nossos instrumentos conceituais, mas a forma de utilizá-los no estudo científico da causalidade é regida por normas gerais. Os pressupostos das ciências culturais são subjetivos, mas isso não tem por consequência absolutamente que os resultados da pesquisa devam ser, eles próprios, “subjetivos”, isto é, válidos para uns e não para outros; o interesse do objeto de estudo pode mudar de um cientista para outro, mas as conclusões da investigação empírico-causal deveriam ser aceitáveis e, neste sentido, “objetivas”. De acordo com uma frase, que se tornou célebre, do ensaio sobre a objetividade científico-social, “na esfera das ciências sociais uma demonstração científica, metodicamente correta, que pretende ter atingido seu objetivo, deve poder ser reconhecida como exata da mesma maneira por um chinês...”, apesar do fato de que este não tenha nenhuma sensibilidade, interesse ou simpatia por nossos valores éticos e culturais.47 Este exemplo é característico da forma através da qual Weber concebia (na sua teoria da ciência) as fontes históricas dos valores e dos pontos de vista: quase sempre ele os relaciona a culturas nacionais ou religiosas.

Esta é, talvez, uma das razões pela qual ele acreditava na possibilidade da “neutralidade axiológica” dos resultados científicos. É, realmente, mais fácil conceber um chinês contemporâneo de Weber que aceitasse as conclusões de A ética protestante e o espírito do capitalismo do que um marxista alemão que vivesse em Heidelberg; é mais fácil imaginar um chinês que considera válidos os resultados de sua pesquisa sobre a exploração dos camponeses pelos junkers na Alemanha Oriental, que um economista ou historiador alemão conservador, social ou politicamente identificado com a aristocracia prussiana. Se Weber tivesse aprofundado a ideia que ele menciona, de passagem, sobre a afinidade eletiva entre visões de mundo e classes sociais, ele teria talvez percebido de outra forma os problemas da objetividade nas ciências sociais. Mas, é exatamente aí que se toca nos limites decorrentes de sua própria visão de mundo e de seu próprio ponto de vista...

Segue-se a esta premissa weberiana — a possibilidade de resultados axiologicamente neutros no conhecimento científico-social — um imperativo categórico para os pesquisadores científicos: a separação total e rigorosa (na pesquisa científica) entre fatos e valores, constatações e julgamentos. Ele via na infração deste imperativo um dos mais graves perigos que ameaçam as ciências sociais: “A confusão permanente entre discussão científica dos fatos e argumentação axiológica é uma das particularidades mais frequentes e mais nefastas nos trabalhos de nossa especialidade”.48

Esta confusão — voluntária ou não — tem para Weber dois resultados negativos: a) enganar o leitor (ou o auditório) ao apresentar julgamentos de valor como fatos objetivos que “falam por si próprios”; b) impedir um real conhecimento científico do objeto: “cada vez que um homem de ciência faz intervir seu próprio julgamento de valor, não há mais compreensão integral dos fatos”.49 Weber reconhecia que esta separação é “difícil”: é, confessa ele, um obstáculo contra o qual nos chocamos constantemente. Ela permanece, entretanto, sendo um postulado válido, sobre o qual não se pode transigir.50

O segundo aspecto da heterogeneidade entre julgamentos de fato e de valor sobre o qual insiste Weber é, como já mencionamos, a impossibilidade lógica de deduzir um imperativo prático ou ético a partir de constatações de fato: “Não existe absolutamente nenhum ponto que conduza da verdade puramente ‘empírica’ da realidade dada pelos meios de explicação causal, à afirmação ou contestação da ‘validade’ de não importa qual julgamento de valor...”51 A ciência pode demonstrar que as condições sociais se desenvolvem em uma certa direção; ela não permite responder à questão: deve-se ou não contribuir para este desenvolvimento?52 Os dados empíricos não podem servir de “pedestal” para a demonstração de validade deste ou daquele julgamento de valor.53

Contrariamente ao que pretendiam os seus epígonos positivistas, Weber não acreditava absolutamente em um “consenso” de valores ou em um desaparecimento das visões de mundo (ideologias). Em uma das passagens mais marcantes do discurso “A ciência como vocação”, de 1919, ele apresenta o conflito de valores como um confronto entre deuses (ou entre deuses e demônios), que se combatem eternamente, e que a ciência não pode absolutamente resolver. Por exemplo, “qual é o homem que teria a pretensão de refutar ‘cientificamente’ a ética do Sermão da Montanha ou por exemplo a máxima ‘não oponha resistência ao mal’ ou ainda a parábola das duas faces?... Em cada caso escolher entre a dignidade da religião... e a dignidade de um ser viril que prega uma outra coisa, a saber, ‘resista ao mal, senão você é responsável por sua vitória’. De acordo com as convicções profundas de cada ser, uma destas éticas tomará a face do diabo, a outra, a face de Deus...”54 A partir desta visão dramática e lúcida dos antagonismos axiológicos, Weber rejeita toda ilusão de uma solução puramente “científica” para as questões éticas ou políticas.

Ele recusa também, de forma cortante e explícita, a via do ecletismo como caminho para a verdade: o compromisso entre valores opostos não tem nada a ver com a objetividade científica e a “síntese” política ou a “linha média” não é de forma alguma mais objetiva que as posições radicais: “A ‘média exata’ não é de modo nenhum uma verdade mais científica que os ideais extremados dos partidos de direita ou de esquerda”.55

A Wissenschaftslehre de Weber é um edifício imponente, cuja arquitetura rigorosa e coerência lógica impõem o respeito e a admiração. Não é por acaso que ele serve de ponto de referência obrigatório para toda tentativa séria de fundamentar ou refutar a tese da neutralidade axiológica das ciências sociais (os positivistas vulgares se contentam em repetir fastidiosamente as velhas receitas de Durkheim). Esta arquitetura não comporta nenhuma fissura lógica; é apenas se situando em um terreno externo à lógica abstrata de sua demonstração que se pode descobrir a falha nessa formidável couraça metodológica. É a partir de uma perspectiva de sociologia do conhecimento que se revela o calcanhar-de-aquiles da teoria weberiana da ciência.

Não se pode senão estar de acordo com Weber sobre o postulado da heterogeneidade lógica entre fatos e valores, sua pertinência a esferas distintas, níveis diferentes de raciocínio. É verdade também que não se pode mais deduzir logicamente um julgamento de valor a partir de um julgamento de fato e vice-versa. Como o diz a célebre fórmula de Poincaré, premissas no indicativo não podem em nenhum caso conduzir a conclusões no imperativo. Entretanto, existe uma ligação decisiva entre valores e fatos, um vínculo que não é lógico, mas sociológico; ele se manifesta em dois sentidos:

1. O conhecimento (ou a ignorância) dos fatos, da verdade objetiva, pode ter uma influência poderosa sobre as opções práticas, éticas, sociais ou políticas de certos grupos ou camadas sociais. Por exemplo: a crença em que o aumento do salário seja a causa principal da inflação pode ter um efeito paralisante sobre a atividade reivindicativa dos operários, sua atitude face às greves etc.

2. Os julgamentos de valor, os pontos de vista de classe, as ideologias, utopias e visões de mundo dos grupos sociais influenciam de forma decisiva — direta ou indireta, consciente ou não — o conjunto da atividade científica e cognitiva no domínio das ciências sociais. Isto é, tanto a problemática como a pesquisa empírica dos fatos e de sua causalidade, assim como sua interpretação social e histórica de conjunto.

Examinemos mais de perto essa segunda proposição, que é, no momento, a mais importante para a análise crítica da Wissenschaftslehre weberiana. Como vimos, Weber reconhecia a influência dos valores na definição das questões, mas não das respostas da pesquisa científico-social. Ora; a primeira observação que se impõe é esta: o tipo de resposta possível não é já largamente predeterminado pela própria formulação da questão! Por exemplo, quando Durkheim coloca a questão de saber “por que certos órgãos do corpo social são privilegiados”, qualquer que seja a resposta, o conjunto da démarche cognitiva está viciado pela própria natureza da questão. Um crítico marxista de Durkheim não colocará em dúvida somente a resposta apresentada por A divisão do trabalho social, mas a própria questão, na medida em que sua formulação contém já uma concepção muito discutível e ideologicamente carregada da estrutura social. E, por sua vez, um sociólogo não-marxista, ao ler História e consciência de classe, diante da questão que domina esta obra — “qual é a classe social cuja consciência possível pode romper o véu da reificação” —, recusará não a resposta de Lukács (“o proletariado”), mas sobretudo a própria questão enquanto tal, como falsa ou não-científica, ou ideológica. Os exemplos poderiam ser multiplicados.

Na realidade, a problemática de uma investigação científico-social não é somente um corte do objeto: ela define um certo campo de visibilidade (e de não-visibilidade), impõe uma certa forma de conceber este objeto, e circunscreve os limites de variação das respostas possíveis.56 A carga valorativa ou ideológica da problemática repercute, portanto, necessariamente sobre o conjunto da pesquisa e é normal que isso seja questionado pelos cientistas que não partilham estes valores ou pressuposições: eles se recusam, com razão, a partir de seu ponto de vista, a se situar sobre um terreno minado e aceitar um campo teórico que lhes parece falso de antemão.

O próprio Weber reconhecia, como vimos, o papel da Wertbeziehung na escolha dos elementos importantes, na distinção entre o essencial e o não-essencial etc. Ora, como lembrava Lucien Goldmann em sua crítica da teoria weberiana da objetividade: “Os elementos escolhidos determinam de antemão, por si só, o resultado do estudo. Os valores sendo os ‘nossos’, os de nossa cultura ou de nossa sociedade, sobretudo desta ou daquela classe social, o que uma perspectiva eliminará como não-essencial pode ser, ao contrário, muito importante em uma outra perspectiva”.57 Sendo a realidade social uma totalidade dialética, a escolha do essencial não pode ser neutra; um dos principais problemas da ciência social é precisamente a determinação dos aspectos essenciais de um fenômeno. É evidente que uma história da Revolução Francesa para a qual o importante, significativo e essencial são o Terror e os massacres estará em total contradição com uma interpretação que vê, na conquista das liberdades republicanas, o aspecto decisivo dos acontecimentos de 1789-1793.

Esta dificuldade havia sido pressentida pelo discípulo de Max Weber e autor da obra mais autorizada sobre sua Wissenschaftslehre, Alexander von Schelting. Ele propõe a seguinte questão: que garantia temos de que os aspectos escolhidos por nossos valores estão realmente no centro de um fenômeno histórico determinado e não são algo periférico? Como obter a partir da visão subjetiva e parcial inspirada em nossos valores uma visão da totalidade histórica de um acontecimento? Ele reconhece não encontrar na teoria da ciência weberiana uma resposta a esta inquietação e sugere, a título de solução, a démarche seguinte: o processo de conhecimento passa por duas fases — inicialmente, a Wertbeziehung de certos aspectos da realidade histórica de acordo com nossas ideias de valores; em segundo lugar, a compreensão da estrutura total interna de um fenômeno histórico, na qual se inserem os aspectos escolhidos por nossos valores.58 Ora, esta solução imaginária não resolve o problema: ela supõe a questão resolvida de antemão! Como descobrir os elementos objetivamente essenciais que permitem compreender a estrutura social se a escolha entre o essencial e o acessório é, como o demonstrou de forma marcante Weber, inevitavelmente determinada por nossos valores subjetivos? A passagem entre as duas etapas da pesquisa, a “subjetiva” e a “objetiva”, que parece válida em si mesma em von Schelting, é precisamente o problema que se tem a resolver.

Parece-nos, portanto, que Pietro Rossi tinha razão ao enfatizar, em sua intervenção no Congresso de Sociologia Alemã, em Heidelberg (dedicado em 1964 a Max Weber), que “a Wertbeziehung não pode ser confinada somente ao primeiro estágio do procedimento científico e se limitar a definir a área de pesquisa. Ao contrário, a ligação com os pressupostos de valor é evidente em todos os estágios posteriores de investigação. Eles determinam a direção geral e as decisões metodológicas que daí decorrem; e, sob forma de hipóteses explicativas, eles influenciam também o desenvolvimento da explicação. Se isto é verdade, a aceitação de certos pressupostos de valor condiciona direta ou indiretamente os resultados da pesquisa — mas isto é precisamente o que Weber negava”.59

Em certos momentos, o próprio Weber reconheceu que os valores interferem no próprio conteúdo da pesquisa e em seus resultados: “É verdade que no campo de nossa disciplina as concepções pessoais de mundo intervém habitualmente sem cessar na argumentação científica, perturbam-na permanentemente, levando a avaliar diversamente o peso desta argumentação, inclusive na esfera da descoberta das relações causais simples, segundo o resultado aumente ou diminua as chances dos ideais pessoais, o que vale dizer, a possibilidade de querer uma coisa determinada. Com esta afirmação, os editores e os colaboradores desta revista não se julgarão certamente ‘estranhos ao que é humano”.60 Mas ele considerava isto simplesmente como uma “fraqueza humana” (menschliche Schwache)61 que não colocava em questão sua concepção de objetividade nas ciências sociais. Ora, ao designar o problema como uma “fraqueza”, ele absolutamente não a resolveu... Ainda mais que esta estranha “fraqueza” parece se estender ao conjunto dos cientistas sociais como sugere o próprio Max Weber pela menção “autocrítica” aos editores de Archiv für Sozialwissenschaft (do qual ele fazia parte). O único remédio que Weber parece propor para esta enfermidade é “o dever elementar do controle científico de si próprio”62 — o que nos conduz à velha problemática positivista “clássica” da “boa vontade” e às aventuras do Barão de Münchhausen, capaz de retirar a si mesmo do pântano apoiando-se sobre o seu próprio sistema capilar. Apesar de seu soberbo rigor e inteligência, a démarche de Weber chegou, em última análise, aos mesmos impasses que o positivismo mais limitado.

Alexander von Schelting parece implicitamente reconhecer a impossibilidade, no quadro da teoria weberiana da ciência, de resolver o problema do papel concreto dos valores na pesquisa científico-social: “A questão”, escreveu ele, “de saber se e em que medida os ‘julgamentos de valor’ expressam (ou não podem senão expressar) de fato no seio da atividade empírico-científica... assim como a questão inversa; se e em que medida a penetração dos valores pode de todo ser ‘evitada’ factualmente, não nos interessa aqui. Esta questão não é um problema lógico”.63 Realmente, não se pode senão estar de acordo com von Schelting: o problema não é lógico, mas factual, vulgarmente empírico (acrescentaríamos também: sociológico). Mas isto não significa absolutamente que se possa ignorá-lo ou fazer abstração dele na construção de uma teoria da ciência social! Se se confirma — como pensamos e von Schelting parece disposto a aceitar — que a exclusão dos valores da própria pesquisa empírica é na prática impossível e irrealizável, para que serve o imperativo categórico da Wissenschaftslehre weberiana: “Você não cometerá um julgamento de valor”? Se se reconhece que os valores estão, de fato, sempre presentes na ciência social, não seria necessário abandonar a miragem de um conhecimento Wert-frei da sociedade e procurar outros caminhos de acesso à objetividade científica? Por que manter a exigência quimérica de um “autocontrole científico”, se se sabe que ele está condenado de antemão ao fracasso no seu vão objetivo de um conhecimento axiológico neutro?

Na realidade, a própria obra de Max Weber, apesar de sua integridade científica indiscutível, e seu esforço sincero e obstinado no sentido de eliminar os julgamentos de valor da pesquisa, ilustra perfeitamente este fracasso: encontramos aí exemplos abundantes da “interferência” de seus Wert-ideen no estudo empírico da causalidade. Seu escrito mais notável, A ética protestante e o espírito do capitalismo, é geralmente considerado uma tentativa de refutação “espiritualista” do materialismo histórico. Isso nos parece uma interpretação reducionista da obra e o próprio Weber insiste que seria despropositado e doutrinário afirmar que o capitalismo enquanto sistema econômico é uma criação da Reforma protestante. Mas há certas passagens do livro onde Weber é conduzido por seu desejo (axiologicamente motivado) de refutar o marxismo, e permite a esta aspiração, valorativamente carregada, interferir na análise empírica da causalidade. Por exemplo, examinando este representante típico do espírito capitalista, Benjamin Franklin, para quem a busca do dinheiro era um fim em si mesmo, uma vocação moral, Weber enfatiza: “no século XVIII, nas condições pequeno-burguesas, no meio das florestas da Pensilvânia, onde os negócios ameaçavam degenerar em troca pela simples falta de dinheiro, onde se encontravam apenas vestígios de grandes empresas industriais, onde os bancos não estavam senão nos seus primeiros passos, o mesmo fato (de fazer dinheiro ML) pôde ser considerado por Benjamin Franklin como a essência da conduta moral, e mesmo recomendado em nome do dever. Falar aqui de ‘reflexo’ das condições ‘materiais’ sobre a ‘superestrutura das ideias’ seria um puro absurdo”. A explicação da atitude de Benjamin Franklin deve ser buscada por conseguinte (segundo Weber) na educação puritana que ele havia recebido de seu pai e não em quaisquer circunstâncias econômicas.64 Ora, o que Max Weber parece esquecer ou negligenciar no calor da sua polêmica contra o materialismo histórico é que B. Franklin nasceu e viveu a sua juventude (até a idade dos 17 anos) em Boston, a primeira cidade da América e a mais capitalista de todas; que, em seguida, viveu menos “nas florestas da Pensilvânia” do que na Filadélfia, a segunda ou terceira cidade da América, bastante próspera no século XVIII; e que, além disso, morou durante vários anos em Londres, sem dúvida na época o maior centro da economia capitalista do mundo inteiro.65 Este exemplo é particularmente impressionante, mas de fato é o conjunto da obra de Weber — e especialmente sua sociologia política — que é tributário de um certo ponto de vista axiológico e limitado por um certo horizonte de classe; o que não significa, de forma alguma, que sua obra não tenha, apesar destas limitações, um valor científico bastante grande.”

40. Ver a este respeito H. Stuart Hughes, Consciousness and Society, The Reorientation of European Social Thought 1890-1930, Paladin, St. Alberts, 1974, p. 309-310. Uma outra diferença entre Rickert e Weber é que este último não exclui de forma tão taxativa o estudo das leis nas ciências históricas, apesar de lhe atribuir um lugar subordinado como simples meio auxiliar no conhecimento do fenômeno individual e único. Ver Max Weber, Essais sur la Théorie de la Science (trad. Julien Freund), Librairie Plon, Paris, 1965, p. 162-165.

41. Max Weber, Théorie de la Science, p 152, cf Max Weber, Gesammelte Aufsdtze zur Wissentchaftslehre, Tübingen, J C B Mohr, 1922, p 178 179 NB. Revimos e corrigimos às vezes a tradução francesa de acordo com o texto original.

42. M. Weber, Théorie de la Science, p 128 129 Wissentchaftslehre, p 153.

43. M. Weber, Théorie de la Science, p 151 152, 163, 168 169, 171 172, Wiisemchaftslehre, p 170, 178, 182, 184.

44. ld, p 212, Wissentchaftslehre, p 213 214.

45. Id, p 183.

46. Id, p 173 175 Wissentchaftslehre, p 185 186.

47. Id, p 131 132, cf também p 137 138 168 172 e Wissentchaftslehre, p. 473.

48. Id, p 134.

49. M. Weber, “La science comme vocation”, 1919, Le savant e le politique, UGE, 1963, p 82, cf também Wissentchaftslehre, p 471 72.

50. M. Weber, Wissentchaftslehre, p 459.

51. M. Weber, “Roscher und Kmes II Kmes und das Irrationalitätsproblem”, 1905, Wissentchaftslehre, p 61.

52. M. Weber, Wissentchaftslehre, p 471.

53. M. Weber, Théorie de la science, p 212.

54. M. Weber, La savant et le politique, p 85.

55. M. Weber, Théorie de la science, p 130, Wissentchaftslehre, p 154-155 e também p 460.

56. Ver a este respeito L Althusser, Lire le Capital, Maspéro, Paris, 1965, tomo I, p 27-28.

57. L. Goldmann, Les sciences humames et la philosophie, p 43.

58. A. von Schelting, Max Webers Wissenschaftslehre, J C B Mohr, Tübingen, 1934, p 405-412.

59. P. Rossi, “Discussion on Value freedom and Objectivity” em O Stammer (ed.), Max Weber and Sociology Today, Harper and Row, Nova York, 1972, p. 75 76.

60. M. Weber, Théorie de la Science, p 126.

61. M. Weber, Wissentchaftslehre, p 151.

62. M. Weber, Théorie de la Science, p 193.

62: M. Weber, Théorie de la Science, (tr Juhen Freund), Libraine Plon Paris, p 193.

63. A von Schelting, op cit, p 62.

64. M. Weber, op cit, p 80-81.

65. Para uma discussão detalhada destas questões, ver nosso ensaio “Marx et Weber notes sur un dialogue imphcite”, Dialectique et Révolution, Ed Anthropos, Paris, 1973.

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