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sexta-feira, 25 de outubro de 2019

Anti-Dühring: a revolução da ciência segundo o senhor Eugen Dühring (Parte II) – Friedrich Engels

Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-458-2
Tradução: Nélio Schneider
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 384
Sinopse: Ver Parte I


“Enquanto encararmos as coisas como inertes e inanimadas, cada uma para si, uma ao lado da outra e uma depois da outra, de fato não depararemos com contradições entre elas. Encontramos nelas certas propriedades – em parte comuns, em parte diferentes e até contraditórias entre si –, mas, nesse caso, distribuídas em coisas diferentes e, portanto, não contendo nenhuma contradição em si. Na mesma medida em que esse campo de análise é suficiente, também chegamos a bom termo com o pensamento metafísico habitual. Porém, tudo muda completamente de figura assim que examinamos as coisas em seu movimento, em sua mudança, em sua vida, na incidência recíproca umas sobre as outras. Nesse caso, envolvemo-nos imediatamente em contradições. O próprio movimento é uma contradição; o simples movimento mecânico de um lugar para outro só pode se efetuar de tal modo que, no mesmo momento, um corpo está num lugar e simultaneamente está em outro, um corpo está no mesmo lugar e não está nele. E o contínuo pôr e a simultânea resolução dessa contradição são precisamente o movimento. (...)
Se o simples movimento mecânico de um lugar para outro já contém em si uma contradição, isso é ainda mais verdadeiro em relação às formas mais elevadas de movimento da matéria e, de modo bem especial, a vida orgânica e sua evolução. A vida consiste sobretudo no fato de que, a cada instante, um ser é ele mesmo e, ainda assim, outro. Portanto, a vida também é uma contradição presente nas próprias coisas e processos que continuamente se põem e se resolvem; e, assim que cessa a contradição, cessa a vida e instaura-se a morte. No campo do pensamento, tampouco podemos escapar às contradições e que, por exemplo, a contradição entre a capacidade interiormente ilimitada do conhecimento humano e sua existência real se resolve apenas na forma de seres humanos exteriormente limitados e limitadamente cognoscentes no progresso infinito da sucessão das gerações, que, ao menos para nós, é praticamente sem fim.”


“A dialética nada mais é que a ciência das leis universais do movimento e da evolução da natureza, da sociedade humana e do pensamento.”


“A economia política, no seu sentido mais amplo, é a ciência das leis que governam a produção e a troca do sustento material da vida na sociedade humana. Produção e troca são duas funções distintas. A produção pode acontecer sem a troca, a troca – justamente por ser de antemão apenas troca de produtos – não pode acontecer sem a produção. Cada uma dessas duas funções sociais sofre a influência de efeitos exteriores em grande parte específicos e, em consequência, possui também em grande parte suas próprias leis, suas leis específicas. Em contrapartida, porém, uma condiciona a outra em todos os momentos e uma incide na outra com tal intensidade que seria possível caracterizá-las com a abscissa e a ordenada da curva econômica.
As condições sob as quais os seres humanos produzem e trocam mudam de país para país e, em cada país, de geração para geração. A economia política não pode, portanto, ser a mesma para todos os países nem a mesma para todas as épocas históricas. Há uma distância enorme entre o arco e a flecha, entre a faca de pedra e o comércio de troca de ocorrência excepcional do selvagem e a máquina a vapor de mil cavalos, o tear mecânico, as ferrovias e o Banco da Inglaterra. Os habitantes da Terra do Fogo não conseguem chegar à produção em massa nem ao comércio mundial, à especulação cambial ou à quebra da Bolsa. Quem quisesse submeter a economia política da Terra do Fogo às mesmas leis a que está sujeita a Inglaterra de hoje evidentemente nada traria à tona a não ser o mais banal dos lugares-comuns. Assim, a economia política, essencialmente, não é nada além de uma ciência histórica. Ela trata de uma matéria histórica, isto é, uma matéria em constante mudança; ela examina primeiramente as leis específicas de cada fase do desenvolvimento da produção e da troca e, só no final desse exame, pode estabelecer as poucas leis bem universais válidas de modo geral para a produção e a troca. Nesse tocante, é óbvio que as leis válidas para determinados modos de produção e determinadas formas de troca também mantêm a validade para todos os períodos históricos que têm em comum ditos modos de produção e formas de troca. Assim, por exemplo, com a introdução do dinheiro de metal, passa a vigorar uma série de leis que permanecerão válidas para todos os países e períodos históricos em que o dinheiro de metal medeia a troca.
Com o modo de produção e de troca de uma determinada sociedade histórica e com as precondições históricas dessa sociedade também está dado, simultaneamente, o modo de distribuição dos produtos. Na sociedade tribal e aldeã com propriedade fundiária comum, com a qual ou com cujos resquícios claramente identificáveis todos os povos civilizados ingressam na história, é óbvio que há uma distribuição bastante uniforme dos produtos; onde começa a surgir uma desigualdade maior da distribuição entre os membros, ela já constitui um indício da desagregação incipiente da sociedade. – A agricultura em grande escala e aquela em pequena escala, dependendo das precondições históricas a partir das quais se desenvolveram, permitem formas de distribuição muito variadas. Porém, é evidente que a agricultura em grande escala sempre condiciona uma distribuição bem diferente daquela da agricultura em pequena escala; que a agricultura em grande escala pressupõe ou gera um antagonismo de classes – escravistas e escravos, senhores de terra e agricultores sujeitos a trabalhos forçados, capitalistas e trabalhadores assalariados –, ao passo que a agricultura em pequena escala de modo algum tem como condicionante uma diferença de classes entre os indivíduos ativos na produção agrícola; ao contrário, a simples presença dessa diferença indica a incipiente decadência da economia parceleira. – A introdução e a disseminação do dinheiro de metal num país onde até então vigorava exclusiva ou preponderantemente a economia natural estão sempre associadas a uma revolução mais lenta ou mais rápida da distribuição até então praticada, e isso ocorre de modo tal que se intensifica cada vez mais a desigualdade da distribuição entre os indivíduos, ou seja, o antagonismo entre rico e pobre. – A atividade artesanal local e corporativa da Idade Média impossibilitava a existência de grandes capitalistas e trabalhadores assalariados vitalícios, do mesmo modo que a grande indústria moderna, a atual formação do crédito e a forma de troca que corresponde ao desenvolvimento de ambas (a livre concorrência) necessariamente os geram.
Porém, com as diferenças na distribuição afloram as diferenças de classes. A sociedade as subdivide em classes privilegiadas e desfavorecidas, exploradoras e exploradas, dominantes e dominadas, e o Estado – para cuja formação haviam progredido os grupos nativos de sociedades da mesma comunidade tribal, primeiramente, apenas em função da consecução de interesses comuns (por exemplo, a irrigação no Oriente) e da defesa contra ataques de fora – passa a ter, na mesma medida, a finalidade de assegurar, mediante a força, as condições de vida e o domínio da classe dominante contra a classe dominada. (...)
A conexão entre cada caso singular de distribuição e as respectivas condições materiais de existência de uma sociedade reside de tal modo na natureza da coisa que ela se reflete, regularmente, no instinto popular. Enquanto um modo de produção se encontrar na linha ascendente do seu desenvolvimento, ele será saudado até por aqueles que são menos favorecidos pelo modo de distribuição que lhe corresponde. Foi o caso dos trabalhadores ingleses no despontar da grande indústria. Até mesmo enquanto esse modo de produção permanecer o socialmente normal, reinará, em termos gerais, satisfação com a distribuição; e, se for levantada alguma objeção, esta advirá do seio da própria classe dominante (Saint-Simon, Fourier, Owen) e, por isso mesmo, não terá repercussão nenhuma entre a massa espoliada. Somente quando o modo de produção em questão já tiver percorrido um bom trecho na sua linha descendente, somente quando ele já tiver passado da idade, somente quando as condições da sua existência tiverem em grande parte desaparecido e seu sucessor já estiver batendo à porta – somente então a distribuição cada vez mais desigual parecerá ser injusta, somente então se apelará à assim chamada justiça eterna diante dos fatos com o prazo vencido. Do ponto de vista científico, esse apelo à moral e ao direito não permite avançar nem uma polegada; a ciência econômica não tem como encarar a indignação moral, por mais justificada que seja, como uma prova, podendo ver nela tão somente um sintoma. Sua tarefa é, muito antes, demonstrar que as anomalias sociais novas que começam a aparecer são consequências necessárias do modo de produção vigente e são, ao mesmo tempo, indicativos de sua iminente dissolução, bem como revelar, no interior da forma do movimento econômico em dissolução, os elementos da futura nova organização da produção e da troca que eliminará ditas anomalias. A ira que faz o poeta[1] tem seu lugar bem próprio na descrição dessas anomalias ou no ataque contra os harmonizadores que negam essas anomalias ou querem dourá-las a serviço da classe dominante; mas o pouco que ela serve de prova para cada caso já ressalta do fato de que, em toda e qualquer época de toda a história até aqui, encontra-se material suficiente para provocá-la.”
[1] Decimus Iunius Iuvenalis, Satirae 1,79 [ed. bras.: Décimo Júnio Juvenal, Sátiras, Rio de Janeiro, Ediouro, 1990]. (N. E. A.)


“Se, em vista da revolução iminente do presente modo de distribuição dos produtos do trabalho, junto com seus contrastes gritantes de miséria e opulência, fome e excesso, não tivéssemos certeza melhor do que a consciência de que esse modo de distribuição é injusto e a justiça necessariamente acabará triunfando, estaríamos enrascados e poderíamos ter de esperar bastante. Os místicos medievais que sonhavam com o advento do reino milenar já tinham consciência da injustiça dos antagonismos de classes. No limiar da nova história, há 350 anos, Thomas Münzer gritou isso em alta voz para o mundo ouvir. Na Revolução Inglesa, na burguesa Revolução Francesa, o mesmo grito ressoa – e desvanece. E a que se deve o fato de agora o grito pela abolição dos antagonismos de classes e das diferenças de classes, que até 1830 deixou as classes trabalhadoras e sofredoras indiferentes, de agora ele ser ecoado milhões de vezes, tomando conta de um país após o outro, e isso na mesma sequência e com a mesma intensidade com que a grande indústria se desenvolve em cada um desses países? A que se deve o fato de, no período de uma geração, esse grito ter conquistado um poder capaz de resistir a todos os poderes unidos contra ele e, num futuro próximo, conseguir estar certo da vitória? Isso se deve ao fato de a grande indústria moderna, por um lado, ao criar o proletariado, ter gerado uma classe que, pela primeira vez na história, pode fazer a exigência da abolição não dessa ou daquela organização de classe específica nem desse ou daquele privilégio de classe específico, mas das classes em geral, e ela foi colocada na situação de ter de fazer essa exigência sob pena de descer ao nível do cule chinês. E, por outro lado, isso se deve ao fato de a mesma grande indústria, ao criar a burguesia, ter gerado uma classe que detém o monopólio de todas as ferramentas de produção e de todos os meios de vida, mas que, em cada período de trapaça e consequente quebradeira, demonstra que se tornou incapaz de continuar no controle das forças produtivas, que crescem além das suas forças; é uma classe sob cuja condução a sociedade corre direto para a ruína, como uma locomotiva que tem a válvula de escape emperrada e o maquinista não consegue abrir por falta de forças. Em outras palavras: isso se deve ao fato de tanto as forças produtivas geradas pelo moderno modo de produção capitalista como o sistema de distribuição de bens por ele criado terem entrado em candente contradição com esse mesmo modo de produção, e isso em tal grau que precisa ocorrer uma revolução do modo de produção e distribuição que elimine todas as diferenças de classes, caso não se queira a derrocada de toda a sociedade moderna. É nesse fato material palpável que a certeza da vitória do socialismo moderno se impõe na mente dos proletários espoliados de maneira irresistível e de forma mais ou menos clara – é nele que ela se fundamenta, e não nas concepções desse ou daquele sujeito que reflete sobre justiça e injustiça sentado no conforto do seu lar.”


“Mas retornemos aos nossos dois homens. Robinson, “com a espada na mão”[30], faz de Sexta-Feira seu escravo. Porém, para conseguir isso, Robinson precisa mais do que a espada. Não é qualquer um que tira proveito de um escravo. Para poder usá-lo, é preciso dispor de dois tipos de coisas: em primeiro lugar, de ferramentas e objetos para o trabalho do escravo e, em segundo lugar, de meios para seu sustento precário. Portanto, antes que a escravidão seja possível, é preciso que já se tenha alcançado uma certa fase da produção e instaurado um certo grau de desigualdade na distribuição. E, para que o trabalho escravo se torne o modo de produção dominante de uma sociedade inteira, é preciso que haja um incremento muito maior da produção, do comércio e da acumulação de riquezas. Nas antigas sociedades naturais com sua propriedade coletiva do solo, a escravidão não ocorre ou desempenha um papel bastante secundário. O mesmo aconteceu na Roma primitiva, quando era uma cidade de camponeses; em contrapartida, quando Roma se tornou “cosmópole” e a posse fundiária foi passando cada vez mais às mãos de uma classe menos numerosa de proprietários enormemente ricos, a população camponesa foi substituída por uma população de escravos. Para que, na época das guerras persas, o número de escravos subisse para 460 mil em Corinto e 470 mil em Égina, chegando à proporção de dez escravos para cada habitante livre[31], foi preciso algo mais que “poder”, a saber: uma indústria artística e artesanal altamente desenvolvida e um comércio disseminado. A escravidão nos Estados Unidos norte-americanos estava baseada menos no poder e mais na indústria algodoeira inglesa; nas regiões em que não crescia algodão ou nas quais não se praticava a criação de escravos para os estados algodoeiros, como acontecia com os estados limítrofes, a escravidão se extinguiu por si mesma, sem o uso da força, simplesmente por não ser rentável.
Portanto, quando o sr. Dühring denomina a atual propriedade de propriedade obtida pela força, caracterizando-a como “aquela forma de dominação que não tem em sua base meramente a exclusão do semelhante do uso dos meios naturais para a existência, mas também, o que é ainda mais relevante, a subjugação do ser humano visando ao trabalho servil”[32], ele põe toda a relação de cabeça para baixo. A subjugação do ser humano visando ao trabalho servil pressupõe, em todas as suas formas, que o subjugador disponha dos meios de trabalho, sem os quais ele não poderá usar o escravizado, e ademais, no caso da escravidão, disponha dos meios de vida, sem os quais ele não poderá manter o escravo com vida. Em todas as situações, portanto, ele deve dispor de um certo patrimônio superior ao da média das pessoas. Mas como surgiu esse patrimônio? É claro que ele pode ter sido roubado, ou seja, pode ter como base o uso da força, mas também isso de modo algum é forçoso. Ele pode ter sido conseguido por meio de trabalho, roubo, negociação, trapaça. Ele precisa, inclusive, ser resultante do trabalho antes de poder ser roubado.
A propriedade privada de maneira nenhuma assoma na história como resultado do roubo ou do uso da força. Pelo contrário. Ela já existe, ainda que restrita a certos objetos, na antiquíssima comunidade natural-espontânea de todos os povos civilizados. No interior dessas comunidades, primeiramente na troca com estrangeiros, ela já assume a forma de mercadoria. Quanto mais os produtos da comunidade tomam a forma de mercadorias, isto é, quanto menor é o número dos que são produzidos para uso próprio do produtor e quanto mais eles são produzidos para fins de troca, quanto mais a troca toma o lugar da divisão natural original do trabalho no interior da comunidade, mais desigual se torna o estado patrimonial de cada um dos membros da comunidade, mais profundamente é minada a antiga posse comum do solo, mais rapidamente o sistema comunitário é arrastado ao encontro de sua dissolução num povoado de agricultores parceleiros. O despotismo oriental e a dominação alternada dos povos nômades conquistadores durante milênios não conseguiram desestabilizar esse antigo sistema comunitário; a destruição gradativa de sua indústria caseira natural pela concorrência dos produtos da grande indústria leva-o, cada vez mais, à beira da dissolução. Não se pode falar de uso da força nem em relação a esse caso nem em relação à repartição da posse comum de terras das “cooperativas hereditárias” junto ao rio Mosela e na região do Hochwald; os agricultores acham que é do seu interesse que a propriedade privada da terra de cultivo substitua a propriedade comum[33]. Nem mesmo a formação de uma aristocracia natural, como ocorreu entre os celtas, germanos e na região indiana dos cinco rios, sobre a base da propriedade fundiária comum, foi, num primeiro momento, fundamentada no uso da força, mas na voluntariedade e no hábito. Em toda parte em que a propriedade privada toma forma, isso acontece em consequência de condições alteradas de produção e troca, do interesse no aumento da produção e da promoção do intercâmbio – portanto, em virtude de causas econômicas. O uso da força não tem nenhum papel nesse processo. Pois está claro que a instituição da propriedade privada precisa existir antes que o ladrão possa se apropriar de bens alheios e que, portanto, o uso da força até pode modificar o estado patrimonial, mas não pode originar a propriedade privada como tal.
Para explicar “a subjugação do ser humano visando ao trabalho servil” em sua forma mais moderna, no trabalho assalariado, tampouco podemos nos valer do uso da força ou da propriedade obtida pela força. Já mencionamos o papel que desempenhou na dissolução do antigo sistema comunitário (ou seja, na generalização direta ou indireta da propriedade privada) a metamorfose dos produtos do trabalho em mercadorias, a sua confecção não para consumo próprio, mas para a troca. Ocorre, porém, que Marx demonstrou de modo cristalino em O capital – e o sr. Dühring tem o cuidado de não mencionar isso nem com uma sílaba – que, num certo grau de desenvolvimento, a produção de mercadorias se transforma em produção capitalista e que, nessa fase, a lei da apropriação ou lei da propriedade privada, fundada na produção e na circulação de mercadorias, transforma-se, obedecendo a sua dialética própria, interna e inevitável, em seu direto oposto. A troca de equivalentes, que aparecia como a operação original, torceu-se ao ponto de, agora, a troca se efetivar apenas na aparência, pois, em primeiro lugar, a própria parte do capital trocada por força de trabalho não é mais do que uma parte do produto do trabalho alheio, apropriado sem equivalente; em segundo lugar, seu produtor, o trabalhador, não só tem de repô-la, como tem de fazê-lo com um novo excedente. [...] Originalmente, o direito de propriedade apareceu diante de nós como fundado no próprio trabalho. [...] Agora [no final da explicitação marxiana] a propriedade aparece do lado do capitalista, como direito a apropriar-se de trabalho alheio não pago ou de seu produto; do lado do trabalhador, como impossibilidade de apropriar-se de seu próprio produto. A cisão entre propriedade e trabalho torna-se consequência necessária de uma lei que, aparentemente, tinha origem na identidade de ambos. [34]
Em outras palavras: mesmo que excluamos a possibilidade de qualquer rapina, ato de violência e trapaça, mesmo supondo que toda propriedade privada se baseia originalmente no trabalho próprio do possuidor e que, em todo o longo transcurso ulterior, foram trocados sempre valores equivalentes, ainda assim, no desenvolvimento progressivo da produção e da troca, chegamos necessariamente ao presente modo de produção capitalista, ao monopólio dos meios de produção e de vida nas mãos de uma classe pouco numerosa, à degradação da outra classe, que compõe a esmagadora maioria, à condição de proletários despossuídos, à alternância periódica de produção fraudulenta e crise comercial e à atual anarquia na produção. Todo esse processo se explica a partir de causas puramente econômicas, sem que uma única vez tenha sido necessário o roubo, o uso da força, o Estado ou a interferência política de qualquer natureza. A “propriedade obtida pela força” (como afirma Dühring) evidencia-se, também nesse ponto, como uma fraseologia pernóstica que visa encobrir a falta de compreensão do decurso real das coisas.
Esse decurso, expresso em termos históricos, é a história do desenvolvimento da burguesia. Se “as condições políticas são as causas determinantes da situação da economia”, então a burguesia moderna não deve ter se desenvolvido em meio à luta contra o feudalismo, mas deve ser sua criança de colo voluntariamente gerada. Qualquer pessoa sabe que ocorreu o contrário. Originalmente um estamento oprimido, recrutado dentre escravos e servos de todo tipo, obrigado a pagar tributo à nobreza feudal dominante, a burguesia conquistou em luta contínua contra a nobreza uma posição de poder após a outra e, por fim, nos países mais desenvolvidos, substituiu a nobreza no poder; na França, derrubando diretamente a nobreza e, na Inglaterra, aburguesando-a mais e mais e incorporando-a como sua liderança ornamental. E como foi que ela logrou isso? Simplesmente pela mudança da “situação econômica”, à qual se seguiu, mais cedo ou mais tarde, voluntariamente ou pela conquista, uma mudança das condições políticas. A luta da burguesia contra a nobreza feudal é a luta da cidade contra o campo, da indústria contra a posse fundiária, da economia do dinheiro contra a economia natural, e as armas decisivas dos burgueses nessa luta foram meios econômicos de poder que cresceram continuamente mediante o desenvolvimento da indústria, começando do artesanato e mais tarde avançando até a manufatura, e mediante a expansão do comércio. Durante toda essa luta, o poder político sempre esteve do lado da nobreza, com exceção de um período em que o poder imperial utilizou a burguesia contra a nobreza para colocar um estamento em xeque com o auxílio do outro; porém, no momento em que a burguesia, que ainda era politicamente impotente, começou a se tornar perigosa em virtude de seu crescente poder econômico, a realeza voltou a aliar-se à nobreza e, desse modo, provocou, primeiro na Inglaterra e depois na França, a revolução da burguesia. As “condições políticas” haviam permanecido inalteradas na França, ao passo que a “situação da economia” já as extrapolara. De acordo com a condição política, a nobreza era tudo, e o burguês, nada; de acordo com a situação social, o burguês agora era a classe mais importante no Estado, ao passo que a nobreza havia perdido todas as suas funções sociais e se limitava a embolsar seus rendimentos como pagamento dessas funções desaparecidas. Mas isso não é tudo: em toda a sua produção, a burguesia ficara espremida nas formas políticas feudais da Idade Média, as quais essa produção – não só a manufatura, mas até o artesanato – há muito já havia extrapolado, bem como nos milhares de privilégios corporativos e nas barreiras alfandegárias locais e provinciais que se converteram em meras chicanas e entraves à produção. A revolução da burguesia pôs fim a isso. Porém, não segundo o princípio do sr. Dühring, adequando a situação econômica às condições políticas – foi isso justamente que a nobreza e a realeza tentaram em vão fazer durante anos –, mas, ao contrário, descartando a velha tralha política mofada e criando condições políticas nas quais a nova “situação econômica” pôde subsistir e se desenvolver. E, nessa atmosfera política e jurídica adequada a ela, essa situação se desenvolveu de modo brilhante, tão brilhante que a burguesia já não se encontra muito distante da posição ocupada pela nobreza em 1789: ela se torna cada vez mais não só socialmente supérflua, como também se converte em obstáculo social; ela se dissocia mais e mais da atividade produtiva e se torna mais e mais, como no seu tempo a nobreza, uma classe que vive de embolsar rendimentos; e ela conseguiu realizar essa revolução de sua própria posição e gestar uma nova classe, a do proletariado, sem recorrer a nenhum abracadabra de uso da força, mas por vias puramente econômicas. E mais. Ela de modo algum desejou esse resultado de sua ação e atividade – pelo contrário, ele se impôs com poder irresistível contra a sua vontade e contra a sua intenção; suas próprias forças produtivas extrapolaram a sua condução e arrastam, como que por necessidade natural, toda a sociedade burguesa para o declínio ou a revolução. E, ao apelarem agora para o uso da força a fim de preservar da derrocada a “situação da economia” que está ruindo, só o que os burgueses demonstram é que estão enredados na mesma ilusão que o sr. Dühring – ou seja, a de que “as condições políticas são a causa determinante da situação da economia” – e que, a exemplo do sr. Dühring, imaginam que, com o auxílio do “elemento primitivo”, do “poder imediatamente político”, podem reverter aquele “fato de segunda ordem”, a situação econômica e seu desenvolvimento inexorável, e eliminar do mundo a tiros de canhões Krupp e rifles Mauser os efeitos econômicos da máquina a vapor e da maquinaria moderna propelida por ela, do comércio mundial e do desenvolvimento atual dos bancos e do crédito.”
30 Eugen Dühring, Cursus der Nationalund Socialökonomie, cit., p. 23. (N. E. A.)
31 Ernst Curtius, Griechische Geschichte (3. ed., Berlim, 1869), v. 2, p. 48, 731. (N. E. A.)
32 Eugen Dühring, Cursus der Nationalund Socialökonomie, cit., p. 5. (N. E. A.)
33 Georg Hanssen, Die Gehöferschaften (Erbgenossenschaften) im Regierungsbezirk Trier (Berlim, 1863). (N. E. A.)
34 Karl Marx, Das Kapital, cit., p. 607-8 (MEGA-2 II/6, cit., p. 538) [ed. bras.: O capital, Livro I, cit., p. 659]. (N. E. A.)


“No início do século XIV, a pólvora chegou à Europa ocidental por intermédio dos árabes e, como qualquer criança de escola já sabe, isso revolucionou toda a condução da guerra[41]. Porém, a introdução da pólvora e das armas de fogo de modo algum constituiu um ato de força, mas um ato industrial, ou seja, um progresso econômico. Indústria é indústria, quer ela esteja direcionada para a produção ou para a destruição de objetos. E a introdução das armas de fogo atuou revolucionariamente não só sobre a própria condução da guerra, mas também sobre as relações políticas de dominação e servidão. A aquisição de pólvora e armas de fogo requeria indústria e dinheiro, e os burgueses citadinos possuíam ambos. Por conseguinte, as armas de fogo foram, desde o começo, armas das cidades e da monarquia em ascensão, que tinha nas cidades seu ponto de apoio contra a nobreza feudal. Os muros de pedra dos castelos da nobreza anteriormente inexpugnáveis sucumbiram aos canhões dos burgueses, as balas dos mosquetes burgueses furaram as armaduras cavalheirescas. Junto com a cavalaria encouraçada da nobreza desabou também o domínio da nobreza; com o desenvolvimento da burguesia, a infantaria e a artilharia foram se tornando os tipos de armamento cada vez mais decisivos; forçado pela artilharia, o ofício da guerra teve de ser incrementado por uma nova subseção totalmente industrial: a engenharia.
O aperfeiçoamento das armas de fogo se deu muito lentamente. A arma continuava difícil de manejar, os canos permaneciam toscos, apesar de muitas invenções isoladas. Demorou mais de trezentos anos até se obter uma espingarda apropriada para armar uma infantaria inteira. Foi só no início do século XVIII que o fuzil de pederneira com baioneta substituiu definitivamente o pique como armamento da infantaria. A infantaria daquele tempo era composta de soldados recrutados pelos príncipes dentre os elementos mais degenerados da sociedade, muitas vezes dentre prisioneiros de guerra inimigos forçados a lutar que, rigorosamente treinados, mas totalmente inconfiáveis, só se mantinham em ordem unida na base do porrete; a única forma de luta na qual esses soldados conseguiam fazer uso do novo fuzil era a formação tática linear, que atingiu seu maior aperfeiçoamento sob Frederico II. Toda a infantaria de um exército era disposta num quadrilátero oco muito largo, formado por três conjuntos, e só podia se mover em formação de batalha como um todo; no máximo, era permitido que uma das duas alas avançasse ou recuasse um pouco. Era possível mover essa massa desengonçada em ordem unida só num terreno totalmente plano e, também neste, só com muita lentidão (75 passos por minuto); mudar a formação de batalha durante o combate era impossível e, assim que a infantaria abria fogo, a vitória ou a derrota eram decididas de um só golpe em pouco tempo.”
41 Segundo pesquisas mais recentes, os árabes não conheciam nenhuma mescla de pólvora que pudesse ser utilizada como munição para armas de fogo no sentido moderno. Contudo, suas experiências devem ter estimulado muitos experimentos na Europa ocidental e na meridional. As primeiras notícias claras sobre o uso de armas de fogo permitem supor que o aperfeiçoamento da pólvora para uso como “pólvora de atirar” aconteceu nos centros econômicos desenvolvidos da Baixa Renânia e na Alta Itália. (N. E. A.)


“Todo o desenvolvimento da sociedade humana para além do estágio da selvageria animal começou no dia em que o trabalho da família gerou mais produtos do que eram necessários para seu sustento, no dia em que uma parte do trabalho pôde ser empregada na produção não mais de simples meios de vida, mas de meios de produção. Um excedente do produto do trabalho além dos custos de manutenção desse trabalho, bem como a composição e a multiplicação de um fundo social de produção e de reserva a partir desse excedente, foi e é o fundamento de todo progresso social, político e intelectual. Na história até agora, esse fundo era possessão de uma classe privilegiada, à qual cabia, junto com essa possessão, o domínio político e a condução intelectual. A revolução social iminente só transformará esse fundo social de produção e reserva – isto é, a massa total das matérias-primas, dos instrumentos de produção e dos meios de vida – num fundo realmente social quando o subtrair da disposição da dita classe privilegiada e o transferir para toda a sociedade como bem comum.”

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