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sexta-feira, 25 de outubro de 2019

Anti-Dühring: a revolução da ciência segundo o senhor Eugen Dühring (Parte I) – Friedrich Engels

Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-458-2
Tradução: Nélio Schneider
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 384
Sinopse: Publicada em livro originalmente em 1878, a obra reúne materiais escritos entre 1877-1878 para o jornal dos social-democratas alemães, o Vorwärts. Anti-Dühring, considerado um dos melhores escritos de Engels e leitura imprescindível para a introdução ao pensamento marxiano, foi concebido como uma resposta ao também alemão Eugen Dühring, que havia criado sua própria versão do socialismo, baseada em uma teoria “autocrática” que excluía a teoria marxiana.
O livro é dividido em três seções – Filosofia, Economia Política e Socialismo – e, em cada uma, Engels discute temas como moral, igualdade, liberdade, necessidade, verdades eternas, a dialética “quantidade e qualidade”, teoria do poder, teoria do valor, renda fundiária, entre outros assuntos.


“Quando submetemos a natureza ou a história humana, ou nossa própria atividade intelectual, à análise pensante, o que nos salta à vista, em primeiro lugar, é a imagem de um entrelaçamento infinito de interconexões e interações, no qual nada permanece o que e como era nem onde estava, mas tudo se move, se modifica, devém e fenece. A visão original, ingênua mas objetivamente correta do mundo é a da filosofia grega antiga, e o primeiro que a expressou com clareza foi Heráclito: tudo é e também não é, pois tudo flui[8], encontra-se em constante mudança, em constante devir e fenecer. Porém, por mais corretamente que capte o caráter universal da visão de conjunto dos fenômenos, essa visão não é suficiente para explicar os pormenores que compõem essa visão de conjunto; e, enquanto não lograrmos fazer isso, tampouco teremos clareza sobre a visão de conjunto. Para conhecer esses pormenores, temos de retirá-los do seu contexto natural ou histórico e examinar cada um deles quanto à sua constituição, suas causas e seus efeitos específicos etc.[9]. Essa tarefa cabe, primeiramente, à ciência da natureza e à pesquisa histórica – ramos de investigação que, por boas razões, tinham uma posição apenas subordinada entre os gregos do período clássico, visto que eles tinham, antes de tudo, de carrear material. Os primórdios da pesquisa exata da natureza só seriam desenvolvidos pelos gregos do período alexandrino[10] e, mais tarde, na Idade Média, pelos árabes[11]; entretanto, uma ciência da natureza de verdade só teve início na segunda metade do século XV e, a partir daí, fez progressos cada vez mais rápidos. A decomposição da natureza em suas partes individuais, a subdivisão dos diferentes processos e objetos naturais em classes bem determinadas, a investigação do interior dos corpos orgânicos quanto às suas múltiplas configurações anatômicas constituíram a condição básica para os gigantescos progressos que os últimos quatrocentos anos nos proporcionaram em termos de conhecimento da natureza. Porém, essa condição igualmente nos legou o hábito de apreender as coisas da natureza e os processos naturais em seu isolamento, à parte do grande conjunto de conexões; de apreendê-las, por conseguinte, não em seu movimento, mas em sua estagnação, não como elementos essencialmente mutáveis, mas como elementos sólidos, não em sua vida, mas em sua morte. E, quando, por obra de Bacon e Locke, esse modo de conceber as coisas foi transferido da ciência da natureza para a filosofia, ele deu origem à tacanhice específica dos últimos séculos, a saber, ao modo metafísico de pensar[12].
Para o metafísico, as coisas e seus retratos ideais, os conceitos, constituem objetos de investigação isolados, a serem analisados um após o outro e um sem o outro – objetos sólidos, petrificados, dados de uma vez para sempre. Ele pensa unicamente mediante antagonismos não mediados: ele diz sim, sim, não, não, e o que passar disso é do mal[13]. Para ele, uma coisa existe ou não existe: uma coisa tampouco pode ser, simultaneamente, ela própria e outra coisa. Positivo e negativo se excluem de modo absoluto; causa e efeito igualmente se encontram num antagonismo petrificado. À primeira vista, esse modo de pensar nos parece extremamente plausível, porque é o do assim chamado senso comum. Só que o senso comum, um camarada tão respeitável quando se encontra no território caseiro das suas quatro paredes, passa a viver aventuras admiráveis assim que ousa adentrar o vasto mundo da pesquisa; e a concepção metafísica, por mais justificada e até necessária que seja em campos tão vastos, que se expandem de acordo com a natureza do objeto, cedo ou tarde topa com alguma barreira, além da qual ela se torna unilateral, tacanha e abstrata, perdendo-se em contradições insolúveis, porque diante das coisas individuais esquece o nexo entre elas, diante do ser dessas coisas esquece seu devir e fenecer, diante do seu repouso esquece seu movimento, porque de tantas árvores não vê o mato. (...) Todo ser orgânico, a cada instante, é o mesmo e não é o mesmo; a cada instante ele processa substâncias trazidas a ele de fora e excreta outras; a cada instante morrem células do seu corpo e novas se formam; depois de um período mais ou menos longo, todas as substâncias desse corpo foram totalmente renovadas, substituídas por outros átomos dessas substâncias, de tal forma que todo ser organizado é sempre o mesmo e, ainda assim, sempre diferente. Num exame mais preciso, descobrimos também que os dois polos de um antagonismo, como positivo e negativo, são tão inseparáveis um do outro quanto opostos um ao outro e que, apesar de todo o seu caráter antagônico, interpenetram-se reciprocamente; descobrimos igualmente que causa e efeito são representações que só têm validade como tais quando aplicadas ao caso individual, mas, assim que examinamos o caso individual em sua conexão universal com a totalidade do mundo, causa e efeito se fundem, se dissolvem na noção da interação universal, na qual causas e efeitos trocam continuamente sua posição, e o que agora e aqui é efeito depois e ali se transforma em causa, e vice-versa.
Todos esses processos e métodos de pensar não cabem na moldura do pensamento metafísico. Para a dialética, em contrapartida, que concebe as coisas e seus retratos conceituais essencialmente em seu nexo, em seu encadeamento, em seu movimento, em seu devir e fenecer, processos como os anteriormente mencionados são outras tantas confirmações do seu próprio modo de proceder. A natureza é a prova da dialética, e temos de afirmar a respeito da moderna ciência da natureza que ela forneceu para essa prova um material extremamente abundante e cada dia mais volumoso, comprovando, desse modo, que, na natureza, as coisas acontecem, em última instância, de maneira dialética, e não metafísica.”
8 A famosa frase “tudo flui” baseia-se em formulações de Aristóteles, mas aparece na referida forma somente em Simplício, comentarista de Aristóteles na Antiguidade tardia (Simplicius, Commentaria in Aristotelis Physicorum libros IV posteriores, org. Diels, Berlim, 1895, p. 1.313). Engels provavelmente se apoiou nas explanações de Hegel sobre Heráclito (G. W. F. Hegel, Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie, org. K. L. Michelet, Berlim, 1833, v. 1, p. 333). (N. E. A.)
9 Engels desenvolveu essas conexões em 1874, na nota “Wechselwirkung” da Dialektik der Natur (1873-1882) [Dialética da natureza] (MEGA-2 I/26, Berlim, Dietz, 1985, p. 23-4). (N. E. A.)
10 O período alexandrino compreende a época do helenismo (que se inicia com Alexandre III, rei da Macedônia, e vai até 30 antes da nossa era) e a época do Império Romano até sua divisão em 395. Nesse período, a cidade portuária egípcia de Alexandria se tornou um centro da ciência natural antiga. Em alguns ramos dessa ciência, houve consideráveis avanços: na matemática (sobretudo graças a Euclides), na mecânica (sobretudo graças a Arquimedes) e na astronomia (sobretudo graças a Hiparco). O ponto alto da atuação desses eruditos situa-se na época do helenismo. Alexandria permaneceu importante para a ciência natural até a destruição da sua famosa biblioteca (390) e, depois disso, até a invasão dos árabes (640). Engels formulou uma apreciação extensa desse período em 1875, no texto “Die successive Entwicklung”, em Dialektik der Natur, cit., p. 53, mencionando-o também na Introdução de 1875-1876, em ibidem, p. 72. (N. E. A.)
11 Esse parecer se encontra também na Introdução de 1875-1876 a Dialektik der Natur, cit., p. 67, formulada entre novembro de 1875 e maio de 1876. (N. E. A.)
12 Uma caracterização detalhada desse período da “moderna investigação da natureza” foi feita por Engels na Introdução de 1875-1876 à Dialektik der Natur, cit., p. 67-75. (N. E. A.)
13 Referência a uma passagem bíblica do Novo Testamento, “Evangelho de Mateus”, cap. 5 e 37. (N. E. A.)



“Hegel era idealista, isto é, as ideias em sua mente não equivaliam, para ele, a retratos mais ou menos abstratos das coisas e dos processos reais, mas, em vez disso, as coisas e seu desenvolvimento eram apenas retratos realizados da “ideia” que já existia em algum lugar antes do mundo. Desse modo, tudo foi posto de cabeça para baixo e o nexo real do mundo foi completamente invertido. E, por mais correta e genial que tenha sido a apreensão de alguns nexos individuais por Hegel, por causa das razões apontadas, inclusive nos detalhes, muita coisa só podia resultar remendada, artificial, arranjada, em suma, errada. O sistema hegeliano foi em si um aborto colossal – mas também foi o último da sua espécie. É que tal sistema ainda padecia de uma contradição interna insanável: por um lado, tinha como pressuposto essencial a concepção histórica, segundo a qual a história humana é um processo de desenvolvimento que, por sua natureza, não poderá chegar à sua finalização intelectual pela descoberta de uma assim chamada verdade absoluta; por outro lado, porém, ele afirmava ser o suprassumo justamente dessa verdade absoluta. Um sistema de conhecimento da natureza e da história que abrange tudo e que finaliza tudo de uma vez por todas está em contradição com as leis básicas do pensamento dialético; entretanto, isso de modo algum exclui, antes inclui, a possibilidade de que o conhecimento sistemático da totalidade do mundo exterior avance a passos gigantescos de geração em geração.”


“A luta de classes entre o proletariado e a burguesia passou para o primeiro plano da história dos países mais avançados da Europa, na mesma proporção em que ali se desenvolviam, de um lado, a grande indústria e, de outro, o recém-conquistado domínio político da burguesia. As doutrinas da economia burguesa sobre a identidade dos interesses de capital e trabalho, sobre a harmonia universal e o bem-estar geral do povo como consequência da livre concorrência eram desmentidas de modo cada vez mais contundente pelos fatos. (...) Porém, a antiga concepção idealista da história, que ainda não havia sido descartada, não tomou conhecimento de nenhuma luta de classes baseada em interesses materiais, e de modo geral não sabia de nenhum interesse material; a produção, assim como todas as relações econômicas, aparecia apenas à margem, como elemento subordinado da “história da cultura”.
Os novos fatos obrigaram a submissão de toda a história pregressa a uma nova investigação, e então ficou evidente que toda a história até ali fora a história da lutas de classes, que essas classes da sociedade que combatem umas às outras são, em cada caso, produtos das relações de produção e de intercâmbio, em suma, das relações econômicas de sua época, e que, portanto, cada estrutura econômica da sociedade constitui a base real, a partir da qual deve ser explicada, em última instância, toda a superestrutura das instituições jurídicas e políticas, bem como o modo de representação religiosa, filosófica e de qualquer natureza de cada período histórico. Com isso, o idealismo havia sido expulso do seu último refúgio, o da concepção da história; estava dada uma concepção materialista da história e havia sido descoberta a maneira de explicar a consciência dos seres humanos a partir do seu ser, em vez de explicar o seu ser a partir de sua consciência, como havia sido feito até ali.
Porém, o socialismo existente até aquele momento era tão incompatível com essa concepção materialista da história quanto a concepção de natureza do materialismo francês era incompatível com a dialética e a ciência natural mais recente. O socialismo existente até aquele momento criticava o modo de produção capitalista vigente e suas consequências, mas não era capaz de explicá-los e, portanto, de lidar com eles; só o que ele conseguia fazer era condená-los como ruins. Por um lado, tratava-se de expor esse modo de produção capitalista em seu nexo histórico e em sua necessidade para um determinado período histórico – e, portanto, de expor também a necessidade do seu desaparecimento. Mas, por outro lado, de desvelar seu caráter intrínseco que continuava oculto, visto que a crítica feita até aquele momento se lançara mais sobre as consequências perversas do que sobre o andamento da coisa em si. Isso aconteceu mediante a descoberta do mais-valor. Ficou comprovado que a apropriação de trabalho não pago é a forma básica do modo de produção capitalista e da espoliação do trabalhador por ela levada a efeito; que, mesmo que o capitalista compre a força de trabalho do seu trabalhador pelo valor cheio que ela tem como mercadoria no mercado, ainda assim ele conseguirá extrair dela um valor maior do que pagou; e que esse mais-valor constitui, em última instância, a soma de valor a partir da qual se acumula a massa sempre crescente de capital nas mãos das classes possuidoras. Assim estava explicado o percurso tanto da produção capitalista como da produção de capital.
Devemos a Marx essas duas grandes descobertas: a concepção materialista da história e a revelação do mistério da produção capitalista mediante o mais-valor. Elas fizeram do socialismo uma ciência que agora deve, em primeiro lugar, continuar a ser elaborada em todos os seus pormenores e em todas as suas conexões[20].”
20 Eugen Dühring, Cursus der Philosophie als streng wissenschaftlicher Weltanschauung und Lebensgestaltung (Leipzig, Koschny, 1875). A primeira tiragem da obra se deu em meados de outubro de 1874, a segunda, em meados de dezembro do mesmo ano, e a terceira, em fevereiro de 1875. (N. E. A.)


“De suas viagens científicas, Darwin havia trazido para casa o ponto de vista de que as espécies das plantas e dos animais não são constantes, mas variáveis. Para continuar no encalço dessa ideia, não havia campo melhor à sua disposição que o da criação de animais e plantas. Justamente para isso a Inglaterra é o país clássico; as realizações de outros países, por exemplo da Alemanha, nem remotamente podem fornecer um parâmetro para o que foi alcançado nesse tocante na Inglaterra. Sendo que a maior parte dos êxitos foi atingida nos últimos cem anos, a constatação dos fatos ofereceu poucas dificuldades. Ora, Darwin descobriu que essa criação provocara artificialmente, em animais e plantas da mesma espécie, diferenças maiores do que aquelas que ocorrem em espécies geralmente reconhecidas como distintas. Portanto, estava provada, por um lado, até certo grau, a mutabilidade das espécies e, por outro lado, a possibilidade de antepassados comuns para organismos que possuíam características de espécies distintas. Darwin passou a analisar, então, se na natureza não haveria causas que – sem a intenção consciente de um criador – teriam de provocar, com o tempo, mudanças nos organismos vivos, parecidas com aquelas provocadas pela criação artificial. Ele encontrou essas causas na desproporção entre o número gigantesco de germes criados pela natureza e o número pequeno de organismos que realmente chegam à maturidade. Ora, visto que cada germe busca desenvolver-se, surge necessariamente uma luta pela existência que se manifesta não só como combate ou devoração direta, física, mas também como luta por espaço e luz, inclusive no caso das plantas. E é evidente que, nessa luta, quem tem as melhores perspectivas de chegar à maturidade e reproduzir-se são aqueles indivíduos que possuem alguma peculiaridade individual, por mais insignificante que seja, mas que representa uma vantagem na luta pela existência. Sendo assim, essas peculiaridades individuais tendem a tornar-se hereditárias e, ocorrendo em mais indivíduos da mesma espécie, tendem a intensificar-se na direção tomada mediante transmissão hereditária cumulativa; ao passo que os indivíduos que não possuem essa peculiaridade sucumbem mais facilmente na luta pela existência e desaparecem gradativamente. Desse modo, uma espécie se modifica pela seleção natural, mediante a sobrevivência do mais apto.”


“Aliás, não há por que assustar-se com o fato de que o estágio de conhecimento em que hoje nos encontramos não é nem um pouco mais definitivo do que todos os que o precederam. Ele já abrange uma enorme quantidade de material teórico e exige de quem pretende familiarizar-se com qualquer disciplina uma especialização muito grande dos estudos. Porém, quem aplica o parâmetro da verdade definitiva, imutável e autêntica de última instância a conhecimentos que, pela natureza do assunto, permaneceram relativos para longas séries de gerações e que precisaram ser complementados pouco a pouco ou o aplica até mesmo a conhecimentos que, como na cosmogonia, geologia, história da humanidade, sempre permanecerão lacunosos e incompletos, em razão da incompletude do material histórico, atesta a sua própria insciência e equivocação, mesmo que o pano de fundo propriamente dito não seja constituído, como no nosso caso, pela pretensão à infalibilidade pessoal. Verdade e erro, assim como todas as determinações do pensamento que se movem por meio de oposições polares, possuem validade absoluta só para um campo extremamente restrito, como acabamos de ver e como o sr. Dühring também saberia caso tivesse algum conhecimento dos primeiros elementos da dialética, que tratam exatamente da insuficiência de todas as oposições polares. No momento em que aplicamos a oposição de verdade e erro fora do campo restrito recém-mencionado, ela se torna relativa e, desse modo, sem serventia para expressar-se de modo científico; e, se tentamos aplicá-la como absolutamente válida fora daquele campo, aí mesmo é que nos damos mal; os dois polos da oposição revertem em seu contrário – a verdade vira erro, o erro vira verdade.”


“Repelimos toda pretensão descabida de impingir-nos qualquer dogmatismo moral na condição de lei consuetudinária eterna, definitiva e doravante imutável, sob o pretexto de que também o mundo moral teria seus princípios permanentes, localizados acima da história e das diferenças étnicas. Afirmamos, em contraposição, que toda teoria moral concebida até agora é, em última instância, produto da respectiva condição econômica da sociedade. E como, até agora, a sociedade se moveu por força de antagonismos de classes, a moral sempre foi uma moral de classes: ou ela justificou a dominação e os interesses da classe dominante, ou então, quando a classe oprimida se tornou suficientemente forte, representou a indignação contra essa dominação e os interesses futuros dos oprimidos. Ninguém duvida que, nesse processo, tenha ocorrido, em termos gerais, um progresso tanto na moral como nos demais ramos do conhecimento humano. Porém, ainda não transcendemos a moral de classes. Uma moral realmente humana, que esteja acima dos antagonismos de classes e acima da lembrança desses antagonismos, só será possível num estágio da sociedade em que o antagonismo de classes não só foi superado, como também foi esquecido para a práxis da vida.”


“Trata-se aqui apenas de outra formulação do velho e apreciado método ideológico, em outras partes também chamado apriorístico, de identificar as propriedades de um objeto não a partir do próprio objeto, mas de derivá-las argumentativamente do conceito do objeto. Primeiro, formula-se, a partir do objeto, o conceito do objeto; em seguida, inverte-se tudo e mede-se o objeto por seu retrato, pelo conceito. Dali por diante, não é o conceito que deve se orientar pelo objeto, mas o objeto pelo conceito. (...)
Ora, quando algum ideólogo dessa linha formula a moral e o direito a partir do conceito ou dos assim chamados elementos mais simples “da sociedade”, em vez de fazê-lo a partir das relações sociais reais das pessoas que o rodeiam, que material ele tem à disposição para realizar essa formulação? Claramente, são dois tipos de material: em primeiro lugar, o resíduo escasso do conteúdo real que possivelmente ainda está presente nas abstrações colocadas como base e, em segundo lugar, o conteúdo que nosso ideólogo reintroduz a partir de sua própria consciência. E o que ele encontra em sua consciência? Sobretudo, noções morais e jurídicas como expressão – positiva ou negativa, afirmativa ou polêmica – correspondente, em maior ou menor grau, às relações sociais e políticas nas quais ele vive; além disso, talvez encontre concepções extraídas da bibliografia pertinente; por fim, possivelmente ache ainda algumas excentricidades pessoais. Nosso ideólogo pode virar e mexer como quiser: a realidade histórica que ele jogou porta afora volta a entrar pela janela e, acreditando esboçar uma teoria moral e jurídica para todos os mundos e todas as épocas, ele de fato confecciona um retrato desfigurado das correntes conservadoras ou revolucionárias do seu tempo – desfigurado por ter sido desarraigado do seu chão real e posto de cabeça para baixo como num espelho côncavo.”


“Naturalmente, é antiquíssima a concepção de que, como pessoas, todos os seres humanos têm algo em comum e, também, são iguais no tocante a esse elemento comum. Porém, a moderna exigência de igualdade é totalmente diferente disso; ela consiste, muito antes, em derivar daquela qualidade comum do existir humano, daquela igualdade das pessoas como seres humanos, a reivindicação de equivalência política ou social de todos os seres humanos ou então, pelo menos, de todos os cidadãos de um Estado ou de todos os membros de uma sociedade. Até que daquela concepção original de igualdade relativa pudesse ser extraída a consequência da igualdade de direitos no Estado e na sociedade, ou mesmo até que essa consequência pudesse aparecer como algo natural e óbvio, foi preciso que transcorressem (e de fato transcorreram) milênios. Em relação às comunidades mais antigas, de cunho natural-espontâneo, podia-se falar de igualdade de direitos quando muito entre os membros da comunidade; mulheres, escravos e estrangeiros estavam por si sós excluídos disso. Entre os gregos e os romanos, as desigualdades entre os seres humanos eram mais valorizadas do que qualquer igualdade. Os antigos certamente considerariam maluquice a ideia de que gregos e bárbaros, livres e escravos, cidadãos do Estado e tutelados, cidadãos romanos e súditos dos romanos (para usar uma expressão bem abrangente) deveriam ter direito à equivalência política. Sob o cesarismo romano, todas essas diferenças foram se diluindo gradativamente, com exceção da diferença entre livres e escravos; surgiu, desse modo, pelo menos para os livres, a igualdade entre as pessoas privadas e, em sua base, se desenvolveu o direito romano, a composição mais bem acabada que conhecemos do direito fundado na propriedade privada. Porém, enquanto perdurasse o antagonismo entre livres e escravos, não se poderia falar de extrair consequências legais da igualdade universalmente humana; hoje em dia, ainda verificamos isso nos Estados escravistas da União norte-americana. O cristianismo tinha ciência de uma só igualdade de todos os seres humanos: a da igual pecaminosidade hereditária, que correspondia totalmente ao seu caráter de religião de escravos e oprimidos. Ao lado desta, ele conhecia, quando muito, a igualdade dos eleitos, que, no entanto, foi enfatizada só nas suas origens. Os vestígios da posse comum de bens, igualmente presentes nos primórdios da nova religião, podem ser derivados mais da união dos perseguidos do que de concepções de igualdade realmente existentes.
Não demorou muito para que a consolidação do antagonismo entre sacerdotes e leigos pusesse fim também a esse rudimento de igualdade cristã. – A invasão da Europa Ocidental pelos germanos eliminou por séculos todas as concepções de igualdade mediante a edificação gradativa de uma hierarquia social e política sumamente intrincada, sem igual até aquele momento; e, concomitantemente, ela envolveu a Europa Ocidental e a Central no movimento histórico, criando pela primeira vez um território cultural compacto e, nesse território, também pela primeira vez, um sistema de Estados preponderantemente nacionalistas que se influenciavam de maneira recíproca e mantinham uns aos outros em xeque. Desse modo, preparou-se o único terreno no qual se poderia falar, numa época posterior, de equivalência humana, de direitos humanos.
Ademais, a Idade Média feudal desenvolveu em seu interior a classe vocacionada para tornar-se, em sua configuração posterior, a portadora da moderna exigência de igualdade: a burguesia. Sendo no início um estamento feudal, a burguesia havia desenvolvido a indústria preponderantemente artesanal e a troca de produtos no interior da sociedade feudal a um nível relativamente elevado quando, no final do século XV, os grandes descobrimentos marítimos lhe descortinaram uma carreira nova e bem mais abrangente. O comércio para fora da Europa, que até aquele momento havia sido realizado apenas entre a Itália e o Levante, foi estendido até a América e a Índia e logo suplantou em importância tanto a troca dos países europeus entre si como a circulação interna de cada país em particular. O ouro e a prata da América inundaram a Europa e se infiltraram como elemento desagregador em todas as fendas, fissuras e poros da sociedade feudal. O empreendimento artesanal não conseguia mais atender à demanda crescente; nas indústrias de ponta dos países mais avançados, ele foi substituído pela manufatura.
Contudo, essa portentosa viravolta nas condições econômicas da vida em sociedade não foi seguida de imediato pela mudança correspondente de sua estruturação política. A ordem estatal permaneceu feudal, enquanto a sociedade se tornava cada vez mais burguesa. O comércio em grande escala (ou seja, principalmente o comércio internacional e mais ainda o comércio mundial) exige possuidores de mercadorias que sejam livres, que não tenham seus movimentos tolhidos, que como tais tenham direitos iguais, que possam comerciar com base num direito que, pelo menos em nível local, seja igual para todos. A passagem do artesanato para a manufatura tem como pressuposto a existência de uma certa quantidade de trabalhadores livres – livres, por um lado, das amarras da guilda e, por outro, dos meios de valer-se por si sós da sua força de trabalho – que podem contratar com o fabricante o aluguel de sua força de trabalho, ou seja, que, como contraentes, estão em igualdade de direitos com ele. E, por fim, a igualdade e a equivalência de todos os trabalhos humanos, por serem e na medida em que são trabalho humano em termos gerais, encontrou a sua expressão inconsciente, mas mais enfática, na lei do valor da moderna economia burguesa, segundo a qual o valor de uma mercadoria é medido pelo trabalho socialmente necessário nela contido. [b], [206] – Porém, onde as condições econômicas exigiam liberdade e igualdade de direitos, a ordem política lhes contrapôs, a cada passo, amarras corporativas e privilégios excepcionais. Prerrogativas locais, taxas alfandegárias diferenciadas, leis de exceção de todo tipo não atingiam, no comércio, só os estrangeiros ou os habitantes das colônias, mas bastantes vezes também categorias inteiras dos próprios integrantes do Estado; em toda parte e de modo sempre renovado, privilégios corporativos atravancavam o desenvolvimento da manufatura. Em lugar nenhum, o caminho estava desimpedido e os concorrentes burgueses tinham as mesmas chances – e, no entanto, essa era a exigência principal e cada vez mais urgente.
A exigência de libertação das amarras feudais e de implementação da igualdade jurídica mediante a eliminação das desigualdades feudais logo assumiria forçosamente dimensões maiores, bastando que fosse posta na ordem do dia pelo progresso econômico da sociedade. Se ela fosse atendida com base no interesse da indústria e do comércio, seria preciso exigir a mesma igualdade de direitos também para a grande multidão dos camponeses que, em todos os estágios da servidão (a começar pelo da escravidão completa), eram obrigados a oferecer a maior parte do seu tempo de trabalho de graça para o magnânimo senhor feudal e, além disso, pagar inúmeros tributos a ele e ao Estado. Por outro lado, não havia como não exigir que os privilégios feudais, a isenção de impostos da nobreza e as prerrogativas políticas dos estamentos individuais também fossem abolidos. E, visto que não se vivia mais num império mundial, como havia sido o romano, mas sim num sistema de Estados independentes que se encontravam aproximadamente no mesmo nível de desenvolvimento burguês e que se relacionavam uns com os outros em pé de igualdade, é óbvio que a exigência assumiu um caráter universal, que transcendia as fronteiras de cada Estado em nível individual, é óbvio que liberdade e igualdade foram proclamadas como direitos humanos. Nesse tocante, é sintomático do caráter especificamente burguês desses direitos humanos que a Constituição norte-americana, a primeira a reconhecer os direitos humanos, tenha, no mesmo fôlego, confirmado a escravidão dos negros vigente na América do Norte: as prerrogativas de classe foram excomungadas, e as prerrogativas de raça, santificadas[207].
Entretanto, como se sabe, a partir do momento em que a burguesia deixa a crisálida da burguesia feudal, em que o estamento medieval passa a ser uma classe moderna, ela é constante e inevitavelmente acompanhada pela sua sombra, pelo proletariado. E, da mesma forma, as exigências burguesas de igualdade são acompanhadas pelas exigências proletárias de igualdade. A partir do momento em que é levantada a exigência burguesa de abolição das prerrogativas de classe, ela é secundada pela exigência proletária da abolição das próprias classes – primeiro em sua forma religiosa, apoiando-se no cristianismo primitivo, e mais tarde embasando-se nas próprias teorias burguesas da igualdade. Os proletários tomam os burgueses pela palavra: a igualdade não deve ser apenas aparente, não só no âmbito do Estado, mas deve ser realizada realmente, também no âmbito social e econômico. E principalmente depois que a burguesia francesa, a partir da Grande Revolução, trouxe para o primeiro plano a igualdade burguesa, o proletariado francês lhe respondeu ponto por ponto com a exigência de igualdade social e econômica; a igualdade se transformou em grito de guerra especialmente do proletariado francês.
A exigência de igualdade na boca do proletariado tem, portanto, um duplo significado. Ou ela é a reação natural contra as gritantes desigualdades sociais, contra o contraste entre ricos e pobres, entre senhores e servos, entre glutões e esfomeados – esse é o caso principalmente nos primórdios, como na guerra dos camponeses – e, como tal, é simplesmente expressão do instinto revolucionário, tendo nisso, e só nisso, a sua justificativa. Ou, então, ela surge da reação contra a exigência burguesa de igualdade, extrai dessa exigência outras mais avançadas, mais ou menos corretas, serve de meio de agitação para estimular os trabalhadores contra os capitalistas valendo-se das afirmações dos próprios capitalistas e, nesse caso, fica de pé ou cai junto com a própria igualdade burguesa. Nos dois casos, o conteúdo real da exigência proletária de igualdade é a exigência da abolição das classes. Toda exigência de igualdade que vai além disso necessariamente se esvai no absurdo. (...)
Assim, a própria concepção da igualdade, em sua forma tanto burguesa como proletária, é um produto histórico para cuja confecção se fizeram necessárias certas relações históricas, as quais, por sua vez, pressupõem uma longa história prévia. Portanto, ela é tudo menos uma verdade eterna. E se hoje, aos olhos do grande público, ela parece algo óbvio – num sentido ou no outro –, se ela, como diz Marx, “já possui a fixidez de um preconceito popular” [208], isso não é por efeito de sua verdade axiomática, mas por efeito da difusão universal e da contemporaneidade duradoura das ideias do século XVIII.”
b O primeiro a abordar essa derivação das modernas concepções de igualdade a partir das condições econômicas da sociedade burguesa foi Marx, em O capital. (Nota de Engels.)
206 Karl Marx, Das Kapital. Kritik der politischen Oekonomie, Bd. 1, Buch 1: Der Produktionsprocess des Kapitals (2. ed. rev., Hamburgo, 1872), p. 35-6 (MEGA-2 II/6, Berlim, Dietz, 1987, p. 91-2) [ed. bras.: O capital: crítica da economia política, Livro I, O processo de produção do capital, trad. Rubens Enderle, São Paulo, Boitempo, 2013, p. 135s]. (N. E. A.)
207 A Constituição dos Estados Unidos da América, de 17 de setembro de 1787, sancionou faticamente a escravidão no artigo IV, alínea 2. Os artigos complementares 1-10 de 1791, nos quais foram formulados os direitos fundamentais, não mudaram nada quanto a isso. Só depois da guerra civil de 1861-1865, os artigos complementares 13 (1865), 14 (1868) e 15 (1870) aboliram a escravidão e estabeleceram a igualdade civil formal de todos os cidadãos. (N. E. A.)
208 Karl Marx, Das Kapital, cit., p. 36 (MEGA-2 II/6, cit., p. 91) [ed. bras.: O capital, Livro I, cit., p. 136]. (N. E. A.)


“Hegel foi o primeiro a expor corretamente a relação entre liberdade e necessidade. Para ele, liberdade é ter noção da necessidade. “Cega a necessidade só é enquanto não é conceituada.”[242] A liberdade não reside na tão sonhada independência em relação às leis da natureza, mas no conhecimento dessas leis e na possibilidade proporcionada por ele de fazer com que elas atuem, conforme um plano, em função de determinados fins. Isso vale com referência tanto às leis da natureza externa como àquelas que regulam a existência corporal e espiritual do próprio ser humano – duas classes de leis que podemos separar uma da outra, quando muito, em termos de concepção, mas não na realidade. Em consequência, liberdade da vontade nada mais é que a capacidade de decidir com conhecimento de causa. Portanto, quanto mais livre o juízo de um ser humano em relação a uma determinada questão, maior será a necessidade de que esse juízo seja determinado, ao passo que a incerteza baseada no desconhecimento, que aparentemente escolhe de modo arbitrário entre muitas possibilidades diferentes e contraditórias de decisão, comprova, justamente por isso, sua falta de liberdade, seu ser dominado exatamente pelos objetos que ela deveria dominar. A liberdade consiste, portanto, no domínio sobre nós mesmos e sobre a natureza exterior baseado no conhecimento das necessidades naturais; desse modo, é necessariamente um produto do desenvolvimento histórico. Os primeiros seres humanos a se separarem do reino animal foram, em todos os aspectos essenciais, tão carentes de liberdade quanto os próprios animais; porém, todo progresso cultural foi um passo rumo à liberdade. No limiar da história da humanidade, está a descoberta da transformação do movimento mecânico em calor: a produção do fogo por fricção; no final do desenvolvimento até aqui está a descoberta da transformação de calor em movimento mecânico: a máquina a vapor. – E, apesar da gigantesca revolução libertadora que a máquina a vapor efetua no mundo social (ainda falta mais da metade por realizar), é indubitável que o fogo resultante da fricção a supera em termos de efeito libertador em relação ao mundo. Porque o fogo resultante da fricção deu ao ser humano, pela primeira vez, o domínio sobre uma força da natureza e, desse modo, separou-o definitivamente do reino animal. A máquina a vapor jamais provocará um salto tão tremendo no desenvolvimento da humanidade, por mais que seja encarada como representante de todas as forças produtivas nela apoiadas, cujo auxílio é indispensável para possibilitar um estado de sociedade em que não haja mais diferenças de classes, preocupação com os meios individuais de existência e na qual, pela primeira vez, será possível falar de liberdade humana real, de uma existência em harmonia com as leis da natureza conhecidas. Toda a história humana, porém, ainda é muito recente e seria ridículo querer atribuir às nossas atuais concepções qualquer validade absoluta, o que decorre do simples fato de que toda a história até aqui pode ser caracterizada como a história do período que vai da descoberta prática da transformação do movimento mecânico em calor até a descoberta prática da transformação de calor em movimento mecânico.”
242 G. W. F. Hegel, Encyclopädie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse, cit., Teil 1, p. 294 [ed. bras.: Enciclopédia das ciências filosóficas, cit., v. I, p. 275]. (N. E. A.)

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