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quarta-feira, 18 de setembro de 2019

O que é Ideologia (Parte III) — Marilena Chauí

Editora: Brasiliense
ISBN: 978-85-2950-042-3
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 120


“Em suma, Engels e Marx consideram que os três aspectos que são condições para que haja história — força de produção, relações sociais e consciência — podem entrar e efetivamente entram em contradição como resultado da divisão social do trabalho material e intelectual porque, agora, o trabalho e a fruição, a produção e o consumo aparecem como realmente são, isto é, cabendo a indivíduos diferentes. Instalou-se para a própria consciência imediata dos homens a percepção da desigualdade social: uns pensam, outros trabalham; uns consomem, outros produzem e não podem consumir os produtos de seu trabalho.
Outra contradição mais aguda surge ainda: a contradição entre os interesses de um indivíduo ou de uma família particular e os interesses coletivos. No entanto, diferentemente de Hegel, Marx e Engels demonstram que tais interesses não são realmente coletivos ou comuns, mas apenas o sistema social de dependência recíproca dos indivíduos entre os quais o trabalho, os meios e condições do trabalho e os produtos do trabalho estão desigualmente distribuídos.
Existem conflitos entre os proprietários e existem contradições entre os proprietários e os não-proprietários. Há oposição entre os interesses dos proprietários e há contradição entre os interesses de todos os proprietários e os de todos os não proprietários. Os conflitos (entre proprietários) e a contradição (entre proprietários e não proprietários) aparecem para a consciência dos sujeitos sociais como se fossem conflitos entre o interesse particular e o interesse comum ou geral. Na realidade, porém, há antagonismos entre classes sociais particulares, pois onde houver propriedade privada não pode haver interesse social comum.
“É justamente desta contradição entre o interesse particular e o suposto interesse coletivo que este último toma, na qualidade de Estado, uma forma autônoma, separada dos reais interesses particulares e gerais e, ao mesmo tempo, na qualidade de comunidade ilusória, mas sempre sobre a base real dos laços existentes em cada conglomerado familiar ou tribal — tais como laços de sangue, linguagem, divisão do trabalho em maior escala e outros interesses — e, sobretudo, como desenvolveremos adiante, baseada nas classes sociais já condicionadas pela divisão social do trabalho, que se isolam em cada um desses conglomerados humanos e entre as quais há uma que domina sobre as outras todas (...) O poder social, isto é, a força produtiva unificada multiplicada, que nasce da cooperação de vários indivíduos exigida pela divisão do trabalho, aparece para esses indivíduos não como seu próprio poder unificado, mas como uma força estranha situada fora deles, cuja origem e cujo destino ignoram e que, pelo contrário, percorre agora uma série particular de fases e de estágios de desenvolvimento, independente do querer e do agir dos homens e que, na verdade, dirige esse querer e esse agir”.
Assim como da divisão entre trabalho material e intelectual nasce a suposição de uma autonomia das ideias, como se fossem ou como se tivessem uma realidade própria independente dos homens, assim também, da separação entre os homens em classes sociais particulares com interesses particulares contraditórios, nasce a ideia de um interesse geral ou comum que se encarna numa instituição determinada: o Estado.
O Estado aparece como a realização do interesse geral (por isso Hegel dizia que o Estado era a universalidade da vida social), mas, na realidade, ele é a forma pela qual os interesses da parte mais forte e poderosa da sociedade (a classe dos proprietários) ganham a aparência de interesses de toda a sociedade.
O Estado não é um poder distinto da sociedade, que a ordena e regula para o interesse geral definido por ele próprio enquanto poder separado e acima das particularidades dos interesses de classe. Ele é a preservação dos interesses particulares da classe que domina a sociedade. Ele exprime na esfera da política as relações de exploração que existem na esfera econômica.
O Estado é uma comunidade ilusória. Isto não quer dizer que seja falso, mas sim que ele aparece como comunidade porque é assim percebido pelos sujeitos sociais. Estes precisam dessa figura unificada e unificadora para conseguirem tolerar a existência das divisões sociais, escondendo que tais divisões permanecem através do Estado. O Estado é a expressão política da sociedade civil enquanto dividida em classes. Não é, como imaginava Hegel, a superação das contradições, mas a vitória de uma parte da sociedade sobre as outras.
Como, porém, o Estado não poderia realizar sua função apaziguadora e reguladora da sociedade (em benefício de uma classe) se aparecesse como realização de interesses particulares, ele precisa aparecer como uma forma muito especial de dominação: uma dominação impessoal e anônima, a dominação exercida através de um mecanismo impessoal que são as leis ou o Direito Civil. Graças às leis, o Estado aparece como um poder que não pertence a ninguém. Por isso, diz Marx, em lugar do Estado aparecer como poder social unificado aparece como um poder desligado dos homens. Por isso também, em lugar de ser dirigido pelos homens, aparece como um poder cuja origem e finalidade permanecem secretos e que dirigem os homens. Enfim, como o Estado ganhou autonomia, ele parecer ter sua própria história, suas fases e estágios próprios, sem nenhuma dependência da história social efetiva.
Está aberto o caminho para a ideologia política que explicará a sociedade através das formas dos regimes políticos (aristocracia, monarquia, democracia, ditadura, anarquia) e que explicará a história pelas transformações do Estado (passagem de um regime político para outro).
A divisão social, que separa proprietários e destituídos, exploradores e explorados, que separa intelectuais e trabalhadores, sociedade civil e Estado, interesse privado e interesse geral, é uma situação que não será superada por meio de teorias, nem por uma transformação da consciência, visto que tais separações não foram produzidas pela teoria nem pela consciência, mas pelas relações sociais de produção e suas representações pensadas.
Assim, a transformação histórica capaz de ultrapassar essas divisões e as contradições que as sustentam depende de pressupostos (condições ou pré-condições) práticos e não teóricos. Esses pressupostos, ou pré-condições, práticos são:
1) surgimento da massa da humanidade como massa inteiramente destituída de propriedade e em contradição com um mundo da cultura e da riqueza produzido por essa massa que se encontra excluída da abundância por ela produzida; é fundamental, diz Marx, que haja total desenvolvimento das forças produtivas (capitalistas), isto é, que tenha sido produzido um mundo cultural e material abundante, pois, sem isto, a massa revolucionária teria que recomeçar o processo histórico partindo da carência e da escassez, da luta pela sobrevivência material imediata, e seria obrigada a repor as divisões e contradições que pretendia superar;
2) que a divisão entre os proprietários privados das condições de produção e a massa destituída seja um fenômeno universal, de modo que quando a massa destituída de um país iniciar sua revolução seja acompanhada pela revolução de todas as massas do planeta; em outras palavras, é preciso que o modo de produção capitalista tenha se tornado um processo histórico mundial ou universal para que uma revolução plena possa efetuar-se. O capitalismo como mercado mundial é, portanto, o pressuposto prático do comunismo como sociedade na qual os indivíduos exercerão o controle consciente dos poderes que parecem dominá-los de fora (Natureza, Mercado, Estado).
A massa dos explorados enfim compreenderá que esses poderes foram produzidos pela práxis social e que, por serem produtos da atividade histórica dos homens em condições determinadas, também podem ser destruídos pela prática social dos homens em condições determinadas. Até agora os homens fizeram a história, mas sem saber que a faziam, pois, ao fazê-la em condições determinadas que não foram escolhidas por eles, tomavam tais condições como poderes exteriores e dominadores que os compeliam a agir. Com a revolução comunista, os homens saberão que fazem a história, mesmo que não tenham escolhido as condições em que a fazem.
Sem as condições materiais da revolução, é inútil a ideia de revolução, “já proclamada centenas de vezes”. Mas sem a compreensão intelectual dessas condições materiais, a revolução permanece como um horizonte desejado, sem encontrar práticas que a efetivem.
A história não é o desenvolvimento das ideias, mas o das forças produtivas. Não é a ação dos Estados e dos governantes, mas a luta das classes. Não é história das mudanças de regimes políticos, mas a das relações de produção que determinam as forças políticas da dominação. Assim sendo, qual é o palco onde se desenvolve a história? A sociedade civil.
A sociedade civil não é o aglomerado conflitante de famílias e de corporações (sindicatos, trustes, cartéis, holdings, oligopólios) que serão reconciliados graças à ação reguladora e ordenadora do Estado enquanto expressão do interesse geral. A sociedade civil é o sistema de relações sociais que se organizam na produção econômica, nas instituições sociais e políticas e que são representadas ou interpretadas por um conjunto sistemático de ideias jurídicas, religiosas, políticas, morais, pedagógicas, científicas, artísticas, filosóficas.
A sociedade civil é o processo de constituição e de reposição das condições materiais de existência, isto é, da produção (trabalho, divisão do trabalho, processo de trabalho, forma de distribuição e de consumo, circulação, acumulação e concentração da riqueza), por meio das quais são engendradas as classes sociais (exploradores e explorados, isto é, a contradição entre proprietários e não proprietários). A relação entre as classes assim produzidas é contraditória porque a condição necessária e suficiente para que haja proprietários privados é a existência dos não proprietários. Ou seja, a existência da classe dos proprietários depende inteiramente da existência da classe dos não proprietários e esta última nasce do processo pelo qual alguns proprietários conseguem expropriar todos os outros e conseguem reduzir todo o restante da sociedade (escravos, servos, artesãos) à condição de assalariados. Em uma palavra, no caso da sociedade civil capitalista, afirmar que a existência dos proprietários (da classe capitalista) depende da exploração dos não proprietários (trabalhadores assalariados) significa simplesmente o seguinte: o capital é o trabalho não-pago (a mais-valia). Temos uma contradição na medida em que a realidade do capital é a negação do trabalho.
A sociedade civil se realiza através de um conjunto de instituições sociais encarregadas de permitir a reprodução ou a reposição das relações sociais — família, escola, igrejas, polícia, partidos políticos, imprensa, meios de informação, magistraturas, Estado, etc. Ela é também o lugar onde essas instituições e o conjunto das relações sociais são pensados ou interpretados por meio das ideias — jurídicas, pedagógicas, morais, religiosas, científicas, filosóficas, artísticas, políticas, etc.
Produzida pela divisão social do trabalho que a cinde em classes contraditórias, a sociedade civil se realiza como luta de classes. A luta de classes não é apenas o confronto armado das classes, mas está presente em todos os procedimentos institucionais, político, policiais, legais, ilegais de que a classe dominante lança mão para manter sua dominação, indo desde o modo de organizar o processo de trabalho (separando os trabalhadores uns dos outros e separando a esfera de decisão e de controle do trabalho da esfera de execução, deixando esta última para os trabalhadores) e o modo de se apropriar dos produtos (pela exploração da mais-valia e pela exclusão dos trabalhadores do usufruto dos bens que produziram), até as normas do Direito e o funcionamento do Estado. Ela está presente também em todas as ações dos trabalhadores da cidade e do campo para diminuir a dominação e a exploração, indo desde a luta pela diminuição da jornada de trabalho, o aumento de salários, as greves, a criação de sindicatos livres até a formação de movimentos políticos para derrubar a classe dominante. A luta de classes é o quotidiano da sociedade civil. Está na política salarial, sanitária e educacional, está na propaganda e no consumo, está nas greves e nas eleições, está nas relações entre pais e filhos, professores e estudantes, policiais e povo, juízes e réus, patrões e empregados.
Se a história é história da luta de classes, então a sociedade civil não é A Sociedade, isto é, uma espécie de grande indivíduo coletivo, um organismo feito de partes ou de órgãos funcionais que ora estão em harmonia e ora estão em conflito, ora estão bem regulados, ora estão em crise. A sociedade civil concebida como um indivíduo coletivo é uma das grandes ideias da ideologia burguesa para ocultar que a sociedade civil é a produção e reprodução da divisão em classes e é luta das classes. Isto significa que a sociedade não pode ser o sujeito da história, criando-se e recriando-se a si mesma por passes de mágica. A história é “os indivíduos fazendo-se uns aos outros, tanto física quanto espiritualmente”. Este “fazer-se-uns-aos-outros” é a práxis social e significa:
1) que as classes sociais não estilo feitas e acabadas pela sociedade, mas que estão se fazendo umas às outras por sua ação e que esta ação produz o movimento da sociedade civil;
2) que o conjunto das práticas sociais, tanto materiais quanto espirituais, fazendo os indivíduos existirem como seres contraditórios, os faz membros de uma classe social, isto é, participantes de formas diferenciadas de existência social, determinada pelas relações econômicas de produção, pelas instituições sócio-políticas e pelas ideias ou representações. O sujeito da história, portanto, são as classes sociais.
Ora, Marx e Engels mostram que as relações dos indivíduos com sua classe é uma relação alienada. Ou seja, assim como a Natureza, a Sociedade e o Estado aparecem para a consciência imediata dos indivíduos com os poderes separados e estranhos que os dominam e governam, assim também a relação dos indivíduos com a classe lhes aparece imediatamente como uma relação com algo já dado e que os determina a ser, agir e pensar de uma forma fixa e determinada. A classe ganha autonomia com relação aos indivíduos, de modo que, em lugar de aparecer como resultante da ação deles, aparece de maneira invertida, isto é, como causando as ações deles.
“A classe se autonomiza em face dos indivíduos, de sorte que estes últimos encontram suas condições de vida preestabelecidas e têm, assim, sua posição na vida e o seu desenvolvimento pessoal determinado pela classe. Tornam-se subsumidos a ela. Trata-se do mesmo fenômeno que o da subsunção dos indivíduos isolados à divisão do trabalho e tal fenômeno não pode ser suprimido se não se supera a propriedade privada e o próprio trabalho. Indicamos várias vezes que essa subsunção dos indivíduos à classe determina e se transforma, ao mesmo tempo, em sua subsunção a todo tipo de representações”.
Esta última frase de Marx e de Engels é fundamental para compreendermos a relação entre alienação e ideologia.
A ideologia não é um processo subjetivo consciente, mas um fenômeno objetivo e subjetivo involuntário produzido pelas condições objetivas da existência social dos indivíduos. Ora, a partir do momento em que a relação do indivíduo com a sua classe é a da submissão a condições de vida e de trabalho pré-fixadas, essa submissão faz com que cada indivíduo não possa reconhecer-se como fazedor de sua própria classe. Ou seja, os indivíduos não podem perceber que a realidade da classe decorre da atividade de seus membros. Pelo contrário, a classe aparece como uma coisa em si e por si e da qual o indivíduo se converte numa parte, quer queira, quer não. É uma fatalidade do destino. A classe começa, então, a ser representada pelos indivíduos como algo natural (e não histórico), como um fato bruto que os domina, como uma “coisa” onde vivem. A ideologia burguesa, através de uma ciência chamada Sociologia, transforma em ideia científica ou em objeto científico essa “coisa” denominada “classe social”, estudando-a como um fato e não como resultado da ação dos homens.
A ideologia burguesa, através de seus intelectuais, irá produzir ideias que confirmem essa alienação, fazendo, por exemplo, com que os homens creiam que são desiguais por natureza e por talentos, ou que são desiguais por desejo próprio, isto é, os que honestamente trabalham enriquecem e os preguiçosos, empobrecem. Ou, então, faz com que creiam que são desiguais por natureza, mas que a vida social, permitindo a todos o direito de trabalhar, lhes dá iguais chances de melhorar — ocultando, assim, que os que trabalham não são senhores de seu trabalho e que, portanto, suas “chances de melhorar” não dependem deles, mas de quem possui os meios e condições do trabalho. Ou, ainda, faz com que os homens creiam que são desiguais por natureza e pelas condições sociais, mas que são iguais perante a lei e perante o Estado, escondendo que a lei foi feita pelos dominantes e que o Estado é instrumento dos dominantes.
Marx e Engels insistem em que não devemos tomar o problema da alienação como ponto de partida necessário para a transformação histórica. Ou seja, não devemos esperar que através da simples crítica da alienação haja uma modificação na consciência dos homens e que, graças a essa modificação, que é uma mudança subjetiva, haverá uma mudança objetiva. Insistem em que a alienação é um fenômeno objetivo (algo produzido pelas condições reais de existência dos homens) e não um simples fenômeno subjetivo, isto é, um engano de nossa consciência.
A alienação é um processo ou o processo social como um todo. Não é produzida por um erro da consciência que se desvia da verdade, mas é resultado da própria ação social dos homens, da própria atividade material quando esta se separa deles, quando não podem controlá-la e são ameaçados e governados por ela. A transformação deve ser simultaneamente subjetiva e objetiva: a prática dos homens precisa ser diferente para que suas ideias sejam diferentes.
“Todas as formas e todos os produtos da consciência não podem ser dissolvidos por força da crítica espiritual (como pretendiam os ideólogos alemães), pela dissolução dos fantasmas por ação da ‘autoconsciência’ ou pela transformação dos ‘fantasmas’, dos ‘espectros’, das ‘visões’ (maneira pela qual os ideólogos alemães descreviam a alienação). Só podem ser dissolvidos pela derrocada prática das relações reais de onde emanam essas tapeações idealistas. Não é a crítica, mas a revolução, a força motriz da história”.
Com isto, Marx e Engels dão à teoria um sentido inteiramente novo enquanto crítica revolucionária: a teoria não está encarregada de “conscientizar” os indivíduos, não está encarregada de criar a consciência verdadeira para opô-la a consciência falsa, e com isto mudar o mundo. A teoria está encarregada de desvendar os processos reais e históricos enquanto resultados e enquanto condições da prática humana em situações determinadas, prática que dá origem à existência e à conservação da dominação de uns poucos sobre todos os outros. A teoria está encarregada de apontar os processos objetivos que conduzem à exploração e à dominação e aqueles que podem conduzir à liberdade.
Percebemos, então, que a teoria — ao contrário da ideologia — não está encarregada de tomar o lugar da prática, fazendo a realidade depender das ideias. Também não está encarregada de guiar a prática, fazendo com que a atividade histórica dependa da consciência “verdadeira”. E também não está encarregada de se inutilizar enquanto teoria para valorizar apenas a prática, visto que a alienação prática reproduz a prática alienada.
A relação entre teoria e prática é revolucionária porque é dialética. Vimos que dialética é o movimento das contradições e que a contradição é a existência de uma relação de negação interna entre termos que só existem graças a essa negação. Que significa dizer que a relação entre teoria e prática é dialética e não ideológica (como aquela relação que mostramos ser feita pelos positivistas)? A relação entre teoria e prática é uma relação simultânea e recíproca por meio da qual a teoria nega a prática enquanto prática imediata, isto é, nega a prática como um fato dado para revelá-la em suas mediações e como práxis social, ou seja, como atividade socialmente produzida e produtora da existência social. A teoria nega a prática como comportamento e ação dados, mostrando que se trata de processos históricos determinados pela ação dos homens que, depois, passam a determinar suas ações. Revela o modo pelo qual criam suas condições de vida e são, depois, submetidos por essas próprias condições.
A prática, por sua vez, nega a teoria como um saber separado e autônomo, como puro movimento de ideias se produzindo umas às outras na cabeça dos teóricos. Nega a teoria como um saber acabado que guiaria e comandaria de fora a ação dos homens. E negando a teoria enquanto saber separado do real que pretende governar esse real, a prática faz com que a teoria se descubra como conhecimento das condições reais da prática existente, de sua alienação e de sua transformação. Por isso Marx e Engels afirmam que conhecem um único tipo de saber: a ciência da história.
“Toda concepção histórica, até o momento, ou tem omitido completamente a base real da história (forças de produção, capitais, divisão social do trabalho, propriedade, formas sociais de intercâmbio que cada geração encontra como produto da geração precedente e que a atual reproduz e transforma, alterando a forma da luta de classes), ou a tem considerado como algo secundário, sem qualquer conexão com o curso da história. Isto faz com que a história deva sempre ser escrita de acordo com um critério situado fora dela. A produção da vida real aparece como algo separado da vida comum, como algo extra e supraterrestre. Com isto, a relação dos homens com a Natureza é excluída da História, o que engendra a oposição entre Natureza e História. Consequentemente, tal concepção apenas vê na História as ações políticas dos Príncipes e do Estado, as lutas religiosas e as lutas teóricas em geral, e vê-se obrigada a compartilhar, em cada época, a ilusão dessa época. Por exemplo, se uma época imagina ser determinada por motivos puramente ‘políticos’ ou ‘religiosos’, embora a ‘política’ e a ‘religião’ sejam apenas formas aparentes de seus motivos reais, então o historiador dessa época considerada aceita essa opinião. A ‘imaginação’, a ‘representação’ que homens historicamente determinados fizeram de sua práxis real transforma-se, na cabeça do historiador, na única força determinante e ativa que domina e determina a práxis desses homens. Quando a forma sob a qual se apresenta a divisão do trabalho entre os hindus e entre os egípcios suscita nesses povos um regime de castas próprio de seu Estado e de sua religião, o historiador crê que o regime de castas é a força que engendrou essa forma social. Enquanto os franceses e os ingleses se atêm à ilusão política (isto é, tomam as formas e forças políticas como determinantes do processo histórico), o que está certamente mais próximo da realidade, os alemães se movem na esfera do “espírito puro” e faz da ilusão religiosa a força motriz da história”.
Uma vez postas como forças históricas motrizes àquelas forças (políticas, religiosas, culturais, etc.) que, na verdade, são determinadas pelas forças reais; todo o processo histórico fica invertido ou de ponta-cabeça. Assim, acontecimentos históricos posteriores são convertidos na “finalidade” da história anterior. É o que ocorre quando se explica a descoberta da América como um acontecimento que teve por finalidade auxiliar o surgimento da Revolução Francesa. Ou quando se explica o episódio da Inconfidência Mineira como tendo a finalidade de preparar o da Independência.
Na medida em que as forças reais, que explicam o processo de surgimento de um acontecimento, permanecem ignoradas ou escondidas, o historiador-ideólogo inventa causas e finalidades que acabam convertendo a história numa entidade autônoma que possui seu próprio sentido e caminha por sua própria conta, usando os homens como seus instrumentos ocasionais. Estamos, aqui, longe da realidade histórica e diante da ideia da história.
É assim, por exemplo, que a ideologia burguesa tende a explicar a história através da ideia de progresso. Como a burguesia se vê a si mesma como uma força progressista, porque usa as técnicas e as ciências para um aumento total do controle sobre a Natureza e a sociedade, considera que todo o real se explica em termos de progresso. O historiador-ideólogo constrói a ideia de progresso histórico concebendo-o como a realização, no tempo, de algo que já existia antes de forma embrionária e que se desenvolve até alcançar seu ponto final necessário. Visto que a finalidade do processo já está dada (isto é, já se sabe de antemão qual vai ser o futuro), e visto que o progresso é uma “lei” da história, esta irá alcançar necessariamente o fim conhecido. Com isto, os homens se tornam instrumentos ou meios para a “história” realizar seus fins próprios e são justificadas todas as ações que se realizam “em nome do progresso”.
Dessa maneira, não só os acontecimentos históricos são explicados de modo invertido (o fim explica o começo), mas tal “explicação” ainda permite que a classe dominante justifique suas ações, fazendo-as aparecer como as “razões da história”. Atribui-se à história uma racional idade que é apenas a legitimação dos dominantes.
Se a história é o processo prático pelo qual, homens determinados em condições determinadas estabelecem relações sociais por meio das quais transformam a Natureza (pelo trabalho) se dividem em classes (pela divisão social do trabalho que determina a existência de proprietários e de não proprietários), organizam essas relações através das instituições e representam suas vidas através das ideias, e se a história é da luta de classes, luta que fica dissimulada pelas ideias que representam os interesses contraditórios como se fossem interesses comuns de toda a sociedade (através da ideologia e do Estado), então a história é também o processo de dominação de uma parte da sociedade sobre todas as outras.
Isto significa que, em termos do materialismo histórico e dialético, é impossível compreender a origem e a função da ideologia sem compreender a luta de classes, pois a ideologia é um dos instrumentos da dominação de classe e uma das formas da luta de classes. A ideologia é um dos meios usados pelos dominantes para exercer a dominação, fazendo com que esta não seja percebida como tal pelos dominados.
A peculiaridade da ideologia e que a transforma numa força quase impossível de remover decorre dos seguintes aspectos:
1) o que torna a ideologia possível, isto é, a suposição de que as ideias existem em si e por si mesmas desde toda a eternidade, é a separação entre trabalho material e trabalho intelectual, ou seja, a separação entre trabalhadores e pensadores. Portanto, enquanto esses dois trabalhos estiverem separados, enquanto o trabalhador for aquele que “não pensa” ou que “não sabe pensar”, e o pensador for aquele que não trabalha, a ideologia não perderá sua existência nem sua função;
2) o que torna objetivamente possível a ideologia é o fenômeno da alienação, isto é, o fato de que, no plano da experiência vivida e imediata, as condições reais de existência social dos homens não lhes apareçam como produzidas por eles, mas, ao contrário, eles se percebem produzidos por tais condições e atribuem a origem da vida social a forças ignoradas, alheias às suas, superiores e independentes (deuses, Natureza, Razão, Estado, destino, etc.), de sorte que as ideias quotidianas dos homens representam a realidade de modo invertido e são conservadas nessa inversão, vindo a constituir os pilares para a construção da ideologia. Portanto, enquanto não houver um conhecimento da história real, enquanto a teoria não mostrar o significado da prática imediata dos homens, enquanto a experiência comum de vida for mantida sem crítica e sem pensamento, a ideologia se manterá;
3) o que torna possível a ideologia é a luta de classes, a dominação de uma classe sobre as outras. Porém, o que faz da ideologia uma força quase impossível de ser destruída é o fato de que a dominação real é justamente aquilo que a ideologia tem por finalidade ocultar. Em outras palavras, a ideologia nasce para fazer com que os homens creiam que suas vidas são o que são em decorrência da ação de certas entidades (a Natureza, os deuses ou Deus, a Razão ou a Ciência, a Sociedade, o Estado) que existem em si e por si e às quais é legítimo e legal que se submetam. Ora, como a experiência vivida imediata e a alienação confirmam tais ideias, a ideologia simplesmente cristaliza em “verdades” a visão invertida do real. Seu papel é fazer com que no lugar dos dominantes apareçam ideias “verdadeiras”. Seu papel também é o de fazer com que os homens creiam que tais ideias representam efetivamente a realidade. E, enfim, também é seu papel fazer com que os homens creiam que essas ideias são autônomas (não dependem de ninguém) e que representam realidades autônomas (não foram feitas por ninguém).
Assim, por exemplo, na ideologia burguesa, a família não é entendida como uma relação social que assume formas, funções e sentidos diferentes tanto em decorrência das condições históricas quanto em decorrência da situação de cada classe social na sociedade. Pelo contrário, a família é representada como sendo sempre a mesma (no tempo e para todas as classes) e, portanto, como uma realidade natural (biológica), sagrada (desejada e abençoada por Deus), eterna (sempre existiu e sempre existirá), moral (a vida boa, pura, normal, respeitada) e pedagógica (nela se aprendem as regras da verdadeira convivência entre os homens, com o amor dos pais pelos filhos, com o respeito e temor dos filhos pelos pais, com o amor fraterno). Estamos, pois, diante da ideia da família e não diante da realidade histórico-social da família.
Ou, então, quando se diz que o trabalho dignifica o homem e não se analisam as condições reais de trabalho, que brutalizam, entorpecem, exploram certos homens em benefícios de uns poucos. Estamos diante da ideia de trabalho e não diante da realidade histórico-social do trabalho.
Ou, então, quando se diz que os homens são livres por natureza e que exprimem essa liberdade pela capacidade de escolher entre coisas ou entre situações dadas, sem que se analise quais coisas e quais situações são dadas para que os homens escolham. Quem dá as condições para a escolha? Todos podem realmente escolher o que desejarem? O nordestino, vítima da seca e do proprietário das terras, realmente “escolhe” vir para o sul do país? Escolhe viver na favela? O peão metalúrgico “escolheu” livremente fazer horas-extras depois de 12 horas de trabalho? A menina grávida que teme as sanções da família e da sociedade “escolhe” fazer um aborto? A definição da liberdade como igual direito à escolha é a ideia burguesa da liberdade e não a realidade histórico-social da liberdade.
Dissemos que a ideologia é resultado da luta de classes e que tem por função esconder a existência dessa luta. Podemos acrescentar que o poder ou a eficácia da ideologia aumenta quanto maior for sua capacidade para ocultar a origem da divisão social em classes e a luta de classes.”

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