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quarta-feira, 18 de setembro de 2019

O que é Ideologia (Parte II) — Marilena Chauí

Editora: Brasiliense
ISBN: 978-85-2950-042-3
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 120

“Esses vários aspectos do pensamento hegeliano (aqui grosseiramente resumidos) constituem a dialética (palavra grega derivada de dia-logos, isto é, a palavra e o pensamento divididos em dois polos contraditórios), ou seja, a história como processo temporal movido internamente pelas divisões ou negações (contradição) e cujo Sujeito é o Espírito como reflexão. Essa dialética é idealista porque seu sujeito é o Espírito e seu objeto também é o Espírito. Ora, as obras do Espírito (a Cultura), embora apareçam como fatos e coisas, são ideias, pois um espírito não produz coisas nem é coisa, mas produz ideias e é ideia. O idealismo hegeliano consiste, portanto, em afirmar que a história é o movimento de posição, negação e conservação das ideias, e essas são a unidade do sujeito e do objeto da história, que é Espírito.
Vejamos como opera a dialética hegeliana tomando um exemplo da Filosofia do Direito, quando Hegel expõe o movimento de constituição da sociedade civil e do Estado.
O Espírito começa em seu momento natural, isto é, como algo dado ou imediatamente existente: trata-se da existência dos indivíduos como vontades livres que se reconhecem como tais pelo poder que têm de apropriar-se das coisas naturais através (pela mediação) do trabalho. Assim, no primeiro momento, existem os indivíduos definidos como proprietários de seu corpo e das coisas de que se apropriam. A regulação das relações entre os proprietários conduz ao aparecimento do Direito, no qual o proprietário é definido como pessoa livre. A pessoa é, portanto, o indivíduo natural que é livre porque sua vontade o faz ser proprietário. As pessoas entram em relação por meio dos contratos (relação entre proprietários) e pelo crime (quebra do contrato).
No entanto, esses indivíduos naturais livres não são apenas proprietários. Isto é, sua vontade livre não se relaciona apenas com as coisas exteriores (propriedade) e com outros indivíduos exteriores (os proprietários contratantes). Sua vontade livre é consciente de si e faz com que cada indivíduo se relacione consigo mesmo, com sua interioridade ou consciência. Esse indivíduo livre interior se chama sujeito. As relações entre os sujeitos constituem a Moral.
Ora, o Direito e a Moral estão em conflito. Ou seja, os interesses do proprietário estão em conflito com os deveres do sujeito moral, pois o proprietário tem interesse em ampliar sua propriedade espoliando e desapropriando outros proprietários, tratando-os como se fossem coisas suas e não homens livres e independentes. E o sujeito moral deve tratar os demais como homens livres e independentes. Há, pois, uma contradição no interior de cada indivíduo entre sua face-pessoa (proprietário) e sua face-sujeito (moral). Isto é, como proprietário ele se torna não-moral e como sujeito ele se torna não-proprietário.
A resolução dessa contradição faz-se em dois momentos: no primeiro surge a família e no segundo surge a sociedade civil.
As individualidades naturais imediatas são integradas numa realidade nova que faz a mediação entre o indivíduo como pessoa e o indivíduo como sujeito. É a família que concilia os interesses dos proprietários e os deveres dos sujeitos, fazendo-os interesses coletivos da família e deveres comuns dos membros da família (deveres paternos, maternos, fraternos e filiais). Surge uma vida comunitária e Hegel a denomina: unidade do Espírito Subjetivo.
No entanto, a existência de múltiplas famílias reabre a contradição. Essa, agora, se estabelece entre o membro da família e o não-membro da família. A luta entre as famílias constitui o primeiro momento da sociedade civil.
A sociedade civil resolve as lutas familiares criando a diferença entre os interesses públicos e os privados, e regulando as relações entre eles através do Direito (público e privado). A sociedade civil é a negação da família. Isso não significa que a família deixou de existir, significa apenas que a realidade da família não depende dela própria, mas é determinada pelas relações da sociedade civil. Isso significa que o indivíduo social não se define como membro da família (como pai, mãe, filho, irmão), mas se define por algo que desestrutura a família: as classes sociais.
A sociedade civil é constituída por três classes, a primeira das quais se encontra ainda amarrada à família, enquanto a terceira já não possui qualquer relação com a vida familiar, mas é inteiramente definida pela vida social. A primeira é aristocracia ou nobreza, proprietária da terra e que se conserva justamente pelos laços de sangue e pela linhagem (por isso ainda está próxima da família). A terceira, que Hegel denomina classe universal, é a classe média constituída pelos funcionários do Estado (governantes, dirigentes, magistrados, professores, funcionários públicos em geral). Entre essas duas classes, existe uma, intermediária, e que é o coração da sociedade civil: a classe formal, isto é, os indivíduos que vivem da indústria e do comércio, do trabalho próprio ou do trabalho alheio. Formam as corporações (sindicatos) e seus interesses definem toda a esfera da vida civil. Através (pela mediação) das classes sociais, a sociedade civil nega o indivíduo isolado (pessoa e sujeito) e o indivíduo como membro da família, fazendo-o aparecer como indivíduo membro da sociedade, e pertencente a uma classe social. A unidade ou síntese do proprietário, do sujeito e do membro da família chama-se, agora, o cidadão. Ora, entre os cidadãos (ou seja, entre as classes sociais) existem conflitos e se reabre a contradição. Agora, a contradição se estabelece entre os interesses de cada classe social e os das outras, e entre os interesses dos próprios membros de uma classe social. Ou seja, ressurge, de modo novo, a contradição entre o privado (cada classe) e o público (todas as classes). A resolução dessa contradição é feita pelo Estado.
O Estado constitui a unidade final. Ele sintetiza numa realidade coletiva a totalidade dos interesses individuais, familiares, sociais, privados e públicos. Somente nele o cidadão se torna verdadeiramente real e somente nele se define a existência social e moral dos homens. O Estado é o Espírito Objetivo.
O Estado é uma comunidade. Mas difere da comunidade familiar e da comunidade das classes sociais (suas corporações), porque não possui nenhum interesse particular, mas apenas os interesses comuns e gerais de todos. É uma comunidade universal (isto é, seus interesses não sendo particulares, desta ou daquela família, deste ou daquele indivíduo, desta ou daquela classe, são interesses universais). O Estado não é, pois, um dado imediato da vida social, mas um produto da sociedade enquanto Espírito Subjetivo que busca tornar-se Espírito Objetivo. O Estado é a Ideia política por excelência, uma das mais altas sínteses do Espírito. Nele se harmonizam os interesses da pessoa (proprietário), do sujeito (moral) e do cidadão (sociedade e política).
Ora, enquanto os ideólogos alemães se contentam em ridicularizar o sistema hegeliano, permanecendo presos a ele sem o saber, Marx critica radicalmente o idealismo hegeliano e por isso pode conservar sem risco muitas das contribuições do pensamento de Hegel. Vejamos como se passa da dialética idealista para a materialista.
Da concepção hegeliana, Marx conserva o conceito de dialética como movimento interno de produção da realidade cujo motor é a contradição. Porém Marx demonstra que a contradição não é a do Espírito consigo mesmo, entre sua face subjetiva e sua face objetiva, entre sua exteriorização em obras e sua interiorização em ideias: a contradição se estabelece entre homens reais em condições históricas e sociais reais e se chama luta de classes.
A história não é, portanto, o processo pelo qual o Espírito toma posse de si mesmo, não é história das realizações do Espírito. A história é história do modo real como os homens reais produzem suas condições reais de existência. É história do modo como se reproduzem a si mesmos (pelo consumo direto ou imediato dos bens naturais e pela procriação), como produzem e reproduzem suas relações com a natureza (pelo trabalho), do modo como produzem e reproduzem suas relações sociais (pela divisão social do trabalho e pela forma da propriedade, que constituem as formas das relações de produção). É também história do modo como os homens interpretam todas essas relações, seja numa interpretação imaginária, como na ideologia, seja numa interpretação real, pelo conhecimento da história que produziu ou produz tais relações.”


“As classes sociais não são coisas nem ideias, mas são relações sociais determinadas pelo modo como os homens, na produção de suas condições materiais de existência, se dividem no trabalho, instauram formas determinadas da propriedade, reproduzem e legitimam aquela divisão e aquelas formas por meio das instituições sociais e políticas, representam para si mesmos o significado dessas instituições através de sistemas determinados de ideias que exprimem e escondem o significado real de suas relações. As classes sociais são o fazer-se classe dos indivíduos em suas atividades econômicas, políticas e culturais.
A dialética é materialista porque seu motor não é o trabalho do Espírito, mas o trabalho material propriamente dito: o trabalho como relação dos homens com a Natureza, para negar as coisas naturais enquanto naturais, transformando-as em coisas humanizadas ou culturais, produtos do trabalho. Mas o que interessa realmente à dialética materialista não é a simples relação dos homens com a Natureza através (pela mediação) do trabalho. O que interessa é a divisão social do trabalho e, portanto, a relação entre os próprios homens através do trabalho dividido. Essa divisão começa no trabalho sexual de procriação, prossegue na divisão de tarefas no interior da família, continua como divisão entre pastoreio e agricultura e entre estes e o comércio, caminha separando proprietários das condições do trabalho e trabalhadores avançam como separação entre cidade e campo e entre trabalho manual e trabalho intelectual. Essas formas da divisão social do trabalho, ao mesmo tempo em que determinam a divisão entre proprietários e não proprietários, entre trabalhadores e pensadores, determinam a formação das classes sociais e, finalmente, a separação entre sociedade e política, isto é, entre instituições sociais e o Estado.
O motor da dialética materialista é a forma determinada das condições de trabalho, isto é, das condições de produção e reprodução da existência social dos homens, forma que é sempre determinada por uma contradição interna, isto é, pela luta de classes ou pelo antagonismo entre proprietários das condições de trabalho e não proprietários (servos, escravos, trabalhadores assalariados).
Enfim, da concepção hegeliana Marx também conserva o conceito de alienação, tendo como referência às análises de Feuerbach sobre a alienação religiosa. Para Feuerbach, a religião é a forma suprema da alienação humana, na medida em que ela é a projeção da essência humana num Ser superior, estranho e separado dos homens, um poder que os domina e governa porque não reconhecem que foi criado por eles próprios.
Todavia, Marx imprimirá grandes modificações nesse conceito. Contra Hegel, dirá que a alienação não é do Espírito, mas dos homens reais em condições reais. Contra Feuerbach dirá, em primeiro lugar, que não há uma “essência humana”, pois o homem é um ser histórico que se faz diferentemente em condições históricas diferentes; e, em segundo lugar, que a alienação religiosa não é a forma fundamental da alienação, mas apenas um efeito de uma outra alienação real, que é a alienação do trabalho. O trabalho alienado é aquele no qual o produtor não pode reconhecer-se no produto de seu trabalho; porque as condições desse trabalho, suas finalidades reais e seu valor não dependem do próprio trabalhador, mas do proprietário das condições do trabalho. Como se não bastasse, o fato de que o produtor não se reconheça no seu próprio produto, não o veja como resultado de seu trabalho, faz com que o produto surja como um poder separado do produtor e como um poder que o domina e ameaça.
A elaboração propriamente materialista da alienação no modo de produção capitalista é feita por Marx em O Capital. Trata-se do fetichismo da mercadoria.
Que é a mercadoria? Trabalho humano concentrado e não pago. Por depender da forma da propriedade privada capitalista, que separa o trabalhador dos meios, instrumentos e condições da produção, a mercadoria é uma realidade social. No entanto, o trabalhador e os demais membros da sociedade capitalista não percebem que a mercadoria, por ser produto do trabalho, exprime relações sociais determinadas. Percebem a mercadoria como uma coisa dotada de valor de uso (utilidade) e de valor de troca (preço). Ela é percebida e consumida como uma simples coisa.
Assim, em lugar da mercadoria aparecer como resultado de relações sociais enquanto relações de produção, ela aparece como um bem que se compra e se consome. Aparece como valendo por si mesma e em si mesma, como se fosse um dom natural das próprias coisas. Basta entrarmos num supermercado nos sábados à tarde para vermos o espetáculo de pessoas tirando de prateleiras mercadorias como se estivessem apanhando frutas numa árvore, para entendermos como a mercadoria desapareceu enquanto trabalho concentrado e não pago.
E como o dinheiro também é mercadoria (aquela mercadoria que serve para estabelecer um equivalente social geral para todas as outras mercadorias), tem início uma relação fantástica das mercadorias umas com as outras (a mercadoria $18,00 se relaciona com a mercadoria sabonete Gessy, a mercadoria $5.000,00 se relaciona com a mercadoria menino-que-faz-pacotes, etc. etc.). As coisas-mercadorias começam, pois, a se relacionar umas com as outras como se fossem sujeitos sociais dotados de vida própria (um apartamento estilo “mediterrâneo” vale um “modo de viver”, um cigarro vale “um estilo de vida”, um automóvel zero km. vale “um jeito de viver”, uma bebida vale “a alegria de viver”, uma calça vale “uma vida jovem”, etc., etc.). E os homens-mercadorias aparecem como coisas (um nordestino vale $20,00 à hora, na construção civil, um médico vale $2.000,00 à hora, no seu consultório, etc.). A mercadoria passa a ter vida própria, indo da fábrica à loja, da loja a casa, como se caminhasse sobre seus próprios pés.
O primeiro momento do fetichismo é este: a mercadoria é um fetiche (no sentido religioso da palavra), uma coisa que existe em si e por si.
O segundo momento do fetichismo, mais importante, é o seguinte: assim como o fetiche religioso (deuses, objetos, símbolos, gestos) tem poder sobre seus crentes ou adoradores, os domina como uma força estranha, assim também age a mercadoria. O mundo se transforma numa imensa fantasmagoria.
Como, então, aparecem as relações sociais de trabalho? Como relações materiais entre sujeitos humanos e como relações sociais entre coisas. E Marx afirma que as relações sociais aparecem tais como efetivamente são. Que significa dizer que a aparência social é a própria realidade social? Significa mostrar que no modo de produção capitalista os homens realmente são transformados em coisas e as coisas são realmente transformadas em “gente”.
Com efeito, o trabalhador passa a ser uma coisa denominada força de trabalho que recebe uma outra coisa chamada salário. O produto trabalho passa a ser uma coisa chamada mercadoria que possui uma outra coisa, isto é, um preço. O proprietário das condições de trabalho e dos produtos do trabalho passa a ser uma coisa chamada capital, que possui uma outra coisa, a capacidade de ter lucros. Desapareceram os seres humanos, ou melhor, eles existem sob a forma de coisas (donde o termo usado por Lucaks: reificação; do latim: res, que significa coisa).
Em contrapartida, as coisas produzidas e as relações entre elas (produção, distribuição, circulação, consumo) se humanizam e passam a ter relações sociais. Produzir, distribuir, comerciar, acumular, consumir, investir, poupar, trabalhar, todas essas atividades econômicas começam a funcionar e a operar sozinhas, por si mesmas, com uma lógica que emana delas próprias, independentemente dos homens que as realizam. Os homens se tornam os suportes dessas operações, instrumentos delas.
Alienação, reificação, fetichismo: é esse processo fantástico no qual as atividades humanas começam a se realizar como se fossem autônomas ou independentes dos homens e passam a dirigir e comandar a vida dos homens, sem que estes possam controlá-las. São ameaçados e perseguidos por elas. Tornam-se objetos delas. Basta pensar no trabalhador submetido às “vontades” da máquina regulada por um “cérebro eletrônico”, ou no indivíduo que, jogando na bolsa de valores de São Paulo, tem sua vida determinada pela falência de um banco numa cidade do interior da Europa, de que nunca ouviu falar.
Quando Marx afirma que as relações sociais capitalistas aparecem tais como são, que o aparecer e o ser da sociedade capitalista se identificaram, ele o diz porque houve uma gigantesca inversão na qual o social vira coisa e a coisa vira social. É isto a realidade capitalista.
Uma pergunta nos vem agora: por que os homens conservam essa realidade? Como se explica que não percebam a retificação? Como entender que o trabalhador não se revolte contra uma situação na qual não só lhe foi roubada a condição humana, mas ainda é explorado naquilo que faz, pois seu trabalho não pago (a mais-valia) é o que mantém a existência do capital e do capitalista? Como explicar que essa realidade nos apareça como natural, normal, racional, aceitável? De onde vem o obscurecimento da existência das contradições e dos antagonismos sociais? De onde vem a não percepção da existência das classes sociais, uma das quais vive da exploração e dominação das outras? A resposta a essas questões nos conduz diretamente ao fenômeno da ideologia.”


“Os homens, escrevem Engels e Marx, se distinguem dos animais não porque tenham consciência (como dizem os ideólogos burgueses), mas porque produzem as condições de sua própria existência material e espiritual. São o que produzem e são como produzem. (...)
A divisão social do trabalho não é uma simples divisão de tarefas, mas a manifestação de algo fundamental na existência histórica: a existência de diferentes formas da propriedade, isto é, a divisão entre as condições e instrumentos ou meios do trabalho e o próprio trabalho, incidindo, por sua vez, na desigual distribuição do produto do trabalho. Numa palavra: a divisão social do trabalho engendra e é engendrada pela desigualdade social ou pela forma da propriedade.
A propriedade começa como propriedade tribal e a estrutura social é a de uma família ampliada e hierarquizada por tarefas, funções, poderes e consumo. A segunda forma da propriedade é a comunal ou estatal, isto é, propriedade privada coletiva dos cidadãos ativos do Estado (Grécia, Roma, por exemplo), e a estrutura da sociedade é constituída pela divisão entre senhores (cidadãos) e escravos. Esta separação permite aos senhores se distanciarem da terra e dos ofícios, que ficam a cargo dos escravos — esta separação leva os senhores a viverem nas cidades e a partir daí se estabelece a separação entre a cidade e o campo, de onde resultarão lutas sociais e políticas. A terceira forma da propriedade é a feudal ou estamental e que se apresenta como propriedade privada territorial trabalhada por servos da gleba, e como propriedade dos instrumentos de trabalho pelos artesãos livres ou oficiais das corporações que vivem nos burgos (cidades medievais). A estrutura da sociedade cria os proprietários como nobreza feudal e como oficiais livres dos burgos, e os trabalhadores como servos da terra enfeudada e como aprendizes nas corporações dos burgos. Junto a eles, há uma figura social intermediária: o comerciante. As transformações dessa estrutura social, ou seja, da forma da propriedade e da divisão do trabalho, dá origem à forma da propriedade que conhecemos: a propriedade privada capitalista. Aqui a divisão social do trabalho alcança seu ápice: de um lado, os proprietários privados do capital (portanto dos meios, condições e instrumentos da produção e da distribuição), que são também os proprietários do produto do trabalho, e, de outro lado, a massa dos assalariados ou dos trabalhadores despossuídos, que dispõem exclusivamente de sua força de trabalho, que vendem como mercadoria ao proprietário do capital. (...)
A consciência, prossegue o texto de A Ideologia Alemã, estará indissoluvelmente ligada às condições materiais de produção da existência, das formas de intercâmbio e de cooperação, e as ideias nascem da atividade material. Isto não significa, porém, que os homens representem nessas ideias a realidade de suas condições materiais, mas, ao contrário, representam o modo como essa realidade lhes aparece na experiência imediata. Por esse motivo, as ideias tendem a ser uma representação invertida do processo real, colocando como origem ou como causa aquilo que é efeito ou consequência, e vice-versa.
Assim, por exemplo, a Natureza, tal como se exprime nas ideias da religião natural, não surge como relação dos homens com um meio trabalhado por eles, mas é representada como um poder separado, estranho, insondável e que comanda de fora as ações humanas.
Também as relações sociais são representadas imediatamente pelas ideias de maneira invertida. Com efeito, à medida que uma forma determinada da divisão social do trabalho se estabiliza, se fixa e se repete, cada indivíduo passa a ter uma atividade determinada e exclusiva que lhe é atribuída pelo conjunto das relações sociais, pelo estágio das forças produtivas e, evidentemente, pela forma da propriedade. Cada um não pode escapar da atividade que lhe é socialmente imposta. A partir desse momento, todo o conjunto das relações sociais aparece nas ideias como se fossem coisas em si, existentes por si mesmas e não como consequência das ações humanas. Pelo contrário, as ações humanas são representadas como decorrentes da sociedade, que é vista como existindo por si mesma e dominando os homens. Se a Natureza, pelas ideias religiosas, se “humaniza” ao ser divinizada, em contrapartida a Sociedade se “naturaliza”, isto é, aparece como um dado natural, necessário e eterno, e não como resultado da práxis humana. “Esta fixação da atividade social — esta consolidação de nosso próprio produto num poder objetivo superior a nós, que escapa de nosso controle, que contraria nossas expectativas e reduz a nada nossos cálculos — é um dos momentos fundamentais do desenvolvimento histórico que até aqui tivemos”.
A forma inicial da consciência é, portanto, a alienação, pois os homens não se percebem como produtores da sociedade, transformadores da natureza e inventores da religião, mas julgam que há um alienus, um Outro (deus, natureza, chefes) que definiu e decidiu suas vidas e a forma social em que vivem. Submetem-se ao poder que conferem a esse Outro e não se reconhecem como criadores dele. E porque a alienação é a manifestação inicial da consciência, a ideologia será possível: as ideias serão tomadas como anteriores à práxis, como superiores e exteriores a ela, como um poder espiritual autônomo que comanda a ação material dos homens.
E porque a alienação é a manifestação inicial da consciência, a ideologia será possível: as ideias serão tomadas como anteriores a práxis, como superiores e exteriores a ela, como um poder espiritual autônomo que comanda a ação material dos homens.
A divisão social do trabalho torna-se completa quando o trabalho material e o espiritual separam-se.
Somente com essa divisão “a consciência pode realmente imaginar ser diferente da consciência da práxis existente, representar realmente algo, sem representar algo real. Desde esse instante, a consciência está em condições de emancipar-se do mundo e entregar-se à construção da teoria, da teologia, da filosofia, da moral, etc., ‘puras’”.
Nasce agora a ideologia propriamente dita, isto é, o sistema ordenado de ideias ou representações e das normas e regras como algo separado e independente das condições materiais, visto que seus produtores — os teóricos, os ideólogos, os intelectuais — não estão diretamente vinculados à produção material das condições de existência. E, sem perceber, exprimem essa desvinculação ou separação através de suas ideias. Ou seja: as ideias aparecem como produzidas somente pelo pensamento, porque os seus pensadores estão distanciados da produção material. Assim, em lugar de aparecer que os pensadores estão distanciados do mundo material e por isso suas ideias revelam tal separação, o que aparece é que as ideias é que estão separadas do mundo e o explicam. As ideias não aparecem como produtos do pensamento de homens determinados — aqueles que estão fora da produção material direta — mas como entidades autônomas descobertas por tais homens.
As ideias podem parecer estar em contradição com as relações sociais existentes, com o mundo material dado, porém essa contradição não se estabelece realmente entre as ideias e o mundo, mas é uma consequência do fato de que o mundo social é contraditório. Porém, como as contradições reais permanecem ocultas (são as contradições entre as relações de produção ou as forças produtivas e as relações sociais), parece que a contradição real é aquela entre as ideias e o mundo.”

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