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quarta-feira, 18 de setembro de 2019

O que é Ideologia (Parte IV) — Marilena Chauí

Editora: Brasiliense
ISBN: 978-85-2950-042-3
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 120 

“A divisão social do trabalho, ao separar os homens em proprietários e não proprietários, dá aos primeiros poder sobre os segundos. Estes são explorados economicamente e dominados politicamente. Estamos diante de classes sociais e da dominação de uma classe por outra. Ora, a classe que explora economicamente só poderá manter seus privilégios se dominar politicamente e, portanto, se dispuser de instrumentos para essa dominação. Esses instrumentos são dois: o Estado e a ideologia.
Através do Estado, a classe dominante monta um aparelho de coerção e de repressão social que lhe permite exercer o poder sobre toda a sociedade, fazendo-a submeter-se às regras políticas. O grande instrumento do Estado é o Direito, isto é, o estabelecimento das leis que regulam as relações sociais em proveito dos dominantes. Através do Direito, o Estado aparece como legal, ou seja, como “Estado de direito”. O papel do Direito ou das leis é o de fazer com que a dominação não seja tida como uma violência, mas como legal, e por ser legal e não violenta deve ser aceita. A lei é direito para o dominante e dever para o dominado. Ora, se o Estado e o Direito fossem percebidos nessa sua realidade real, isto é, como instrumentos para o exercício consentido da violência, evidentemente ambos não seriam respeitados e os dominados se revoltariam. A função da ideologia consiste em impedir essa revolta fazendo com que o legal apareça para os homens como legítimo, isto é, como justo e bom. Assim, a ideologia substitui a realidade do Estado pela ideia do Estado — ou seja, a dominação de uma classe é substituída pela ideia de interesse geral encarnado pelo Estado. E substitui a realidade do Direito pela ideia do Direito — ou seja, a dominação de uma classe por meio das leis é substituída pela representação ou ideias dessas leis como legítimas, justas, boas e válidas para todos.
Não se trata de supor que os dominantes se reúnam e decidam fazer uma ideologia, pois esta seria, então, uma pura maquinação diabólica dos poderosos. E, se assim fosse, seria muito fácil acabar com uma ideologia.
A ideologia resulta da prática social, nasce da atividade social dos homens no momento em que estes representam para si mesmos essa atividade, e vimos que essa representação é sempre necessariamente invertida. O que ocorre, porém, é o seguinte processo: as diferentes classes sociais representam para si mesmas o seu modo de existência tal como é vivido diretamente por elas, de sorte que as representações ou ideias (todas elas invertidas) diferem segundo as classes e segundo as experiências que cada uma delas tem de sua existência nas relações de produção. No entanto, as ideias dominantes em uma sociedade numa época determinada não são todas as ideias existentes nessa sociedade, mas serão apenas as ideias da classe dominante dessa sociedade nessa época. Ou seja, a maneira pela qual a classe dominante representa a si mesma (sua ideia a respeito de si mesma), representa sua relação com a Natureza, com os demais homens, com a sobre-natureza (deuses), com o Estado, etc., tornar-se-á a maneira pela qual todos os membros dessa sociedade irão pensar.
A ideologia é o processo pelo qual as ideias da classe dominante se tornam ideias de todas as classes sociais, se tornam ideias dominantes. É esse processo que nos interessa agora.
Na Ideologia Alemã, lemos: “As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual. A classe que tem à sua disposição os meios de produção material dispõe, ao mesmo tempo, dos meios de produção espiritual, o que faz com que a ela sejam submetidas, ao mesmo tempo e em média, as ideias daqueles aos quais faltam os meios de produção espiritual. As ideias dominantes nada mais são do que a expressão ideal das relações materiais dominantes, as relações materiais dominantes concebidas como ideias; portanto, a expressão das relações que tornam uma classe a classe dominante; portanto, as ideias de sua dominação. Os indivíduos que constituem a classe dominante possuem, entre outras coisas, também consciência e, por isso, pensam. Na medida em que dominam como classe e determinam todo o âmbito de uma época histórica, é evidente que o façam em toda a sua extensão e, consequentemente, entre outras coisas, dominem também como pensadores, como produtores de ideias; que regulem a produção e distribuição das ideias de seu tempo e que suas ideias sejam, por isso mesmo, as ideias dominantes da época”.
A ideologia consiste precisamente na transformação das ideias da classe dominante em ideias dominantes para a sociedade como um todo, de modo que a classe que domina no plano material (econômico, social e político) também domina no plano espiritual (das ideias). Isto significa que:
1) embora a sociedade esteja dividida em classes e cada qual devesse ter suas próprias ideias, a dominação de uma classe sobre as outras faz com que só sejam consideradas válidas, verdadeiras e racionais as ideias da classe dominante;
2) para que isto ocorra, é preciso que os membros da sociedade não se percebam como estando divididos em classes, mas se vejam como tendo certas características humanas comuns a todos e que tornam as diferenças sociais algo derivado ou de menor importância;
3) para que todos os membros da sociedade se identifiquem com essas características supostamente comuns a todos, é preciso que elas sejam convertidas em ideias comuns a todos. Para que isto ocorra é preciso que a classe dominante, além de produzir suas próprias ideias, também possa distribuí-las, o que é feito, por exemplo, através da educação, da religião, dos costumes, dos meios de comunicação disponíveis;
4) como tais ideias não exprimem a realidade real, mas representam a aparência social, a imagem das coisas e dos homens, é possível passar a considerá-las como independentes da realidade e, mais do que isto, inverter a relação fazendo com que a. realidade concreta seja tida como a realização dessas ideias.
Todos esses procedimentos consistem naquilo que é a operação intelectual por excelência da ideologia: a criação de universais abstratos, isto é, a transformação das ideias particulares da classe dominante em ideias universais de todos e para todos os membros da sociedade. Essa universalidade das ideias é abstrata porque não corresponde a nada real e concreto, visto que no real existem concretamente classes particulares e não a universalidade humana. As ideias da ideologia são, pois, universais abstratos.
Os ideólogos são aqueles membros da classe dominante ou da classe média (aliada natural da classe dominante) que, em decorrência da divisão social do trabalho em trabalho material e espiritual, constituem a camada dos pensadores ou dos intelectuais. Estão encarregados, por meio da sistematização das ideias, de transformar as ilusões da classe dominante (isto é, a visão que a classe dominante tem de si mesma e da sociedade) em representações coletivas ou universais. Assim, a classe dominante (e sua aliada, a classe média) se divide em pensadores e não pensadores, ou em produtores ativos de ideias e consumidores passivos de ideias.
Muitas vezes, no interior da classe dominante e de sua aliada, a divisão entre pensadores e não pensadores pode assumir a forma de conflitos, por exemplo, entre nobres e sacerdotes, entre burguesia conservadora e intelectuais progressistas —, mas tal conflito não é uma contradição, não exprime a existência de duas classes sociais contraditórias, mas apenas oposições no interior da mesma classe. A prova disso, escrevem Marx e Engels, é que basta haver uma ameaça real para a dominação da classe dominante para que os conflitos sejam esquecidos e todos fiquem do mesmo lado da barricada. Nessas ocasiões, “desaparece a ilusão de que as ideias dominantes não são as ideias da classe dominante e que teriam um poder diferente do poder dessa classe”.
Assim, por exemplo, é possível que, em determinadas circunstâncias históricas, os intelectuais se coloquem contra a burguesia e se façam aliados dos trabalhadores. Se os trabalhadores, compreendendo a origem da exploração econômica e da dominação política, decidirem destruir o poder dessa burguesia é possível que os intelectuais progressistas, sem o saber, passem para o lado da burguesia. É o que ocorre, por exemplo, quando, diante do aguçamento da luta de classes num país, os intelectuais demonstram aos trabalhadores que, naquela fase histórica, o verdadeiro inimigo não é a burguesia nacional, mas a burguesia internacional imperialista, e que se deve lutar primeiro contra ela. A ideologia da unidade nacional, que os intelectuais progressistas, de boa-fé, imaginam servir aos trabalhadores, na verdade serve à classe dominante.
Por que isto ocorre? Do lado dos intelectuais, isto decorre do fato de que interiorizaram de tal modo as ideias dominantes que não percebem o que estão pensando. Do lado dos trabalhadores, se aceitam tal ideologia nacionalista, isto decorre da divisão social do trabalho que foi interiorizada por eles, fazendo-os crer que não sabem pensar e que devem confiar em quem pensa. Com isto, também eles são vítimas do poder das ideias dominantes.
Esse fenômeno de manutenção das ideias dominantes mesmo quando se está lutando contra a classe dominante é o aspecto fundamental daquilo que Gramsci denomina de hegemonia, ou o poder espiritual da classe dominante. Por isso ele dizia que, se num determinado momento, os trabalhadores de um país precisam lutar usando a bandeira do nacionalismo, a primeira coisa a fazer é redefinir toda a ideia de nação, desfazer-se da ideia burguesa de nacionalidade e elaborar uma ideia do nacional que seja idêntica à de popular. Precisam, portanto, contrapor, à ideia dominante de nação, uma outra, popular, que negue a primeira.
Uma história concreta não perde de vista a origem de classe das ideias de uma época, nem perde de vista que a ideologia nasce para servir aos interesses de uma classe e que só pode fazê-lo transformando as ideias dessa classe particular em ideias universais.
Não perde de vista, também, que a produção e distribuição dessas ideias ficam sob controle da classe dominante, que usa as instituições sociais para sua implantação — família, escola, igrejas, partidos políticos, magistraturas, meios de comunicação da cultura, permanecem atrelados à conservação do poder dos dominantes.
“Se, ao concebermos o decurso da história, separarmos as ideias da classe dominante e a própria classe dominante e se as concebermos como independentes, se nos limitarmos a dizer que numa época estas ou aquelas ideias dominaram, sem nos preocuparmos com as condições de produção e com os produtores destas ideias; se, portanto, ignorarmos os indivíduos e as circunstâncias mundiais que são à base destas ideias, então podemos afirmar, por exemplo, que, na época em que a aristocracia dominava, os conceitos de honra, de fidelidade dominaram, ao passo que na época da dominação burguesa dominam os conceitos de igualdade, de liberdade, etc. É, em média, o que a classe dominante, em geral, imagina”.
Se fizermos esse tipo de interpretação, não compreenderemos, por exemplo, que a forma da dominação feudal impõe uma divisão social por estamentos fechados que se subordinam uns aos outros segundo uma hierarquia imóvel que culmina na figura do papa e deste alcança a de Deus, entendido como fonte de poder e que, por uma graça ou por um favor, concede poder a alguns homens determinados e que, portanto, as relações de honra e de fidelidade simplesmente exprimem o modo pelo qual os laços de poder são conservados no interior da nobreza contra os servos. Ao contrário, no mundo capitalista, as relações entre os indivíduos são determinadas pela compra e venda da força-de-trabalho no mercado, estabelecendo-se entre as partes (proprietários e assalariados) um contrato de trabalho. Ora, o pressuposto jurídico da ideia de contrato é que as partes sejam iguais e livres, de sorte que não apareça o fato de que uma das partes não é igual à outra, nem é livre. A realização de relações econômicas, sociais e políticas baseadas na ideia de contrato leva à universalização abstrata das ideias de igualdade e de liberdade.
O processo histórico real, escrevem Marx e Engels, não é o do predomínio de certas ideias em certas épocas, mas um outro e que é o seguinte: cada nova classe em ascensão que começa a se desenvolver dentro de um modo de produção que será destruído quando essa nova classe dominar, cada classe emergente, dizíamos, precisa formular seus interesses de modo sistemático e, para ganhar o apoio do restante da sociedade contra a classe dominante existente, precisa fazer com que tais interesses apareçam como interesses de toda a sociedade. Assim, por exemplo, a burguesia, ao elaborar as ideias de igualdade e de liberdade como essência do homem faz com que se coloquem de seu lado como aliados todos os membros da sociedade feudal submetido ao poder da nobreza, que encarnava o princípio da desigualdade e da servidão.
Para poder ser o representante de toda a sociedade contra uma classe particular que está no poder, a nova classe emergente precisa dar às suas ideias a maior universalidade possível, fazendo com que apareçam como verdadeiras e justas para o maior número possível de membros da sociedade. Precisa apresentar tais ideias como as únicas racionais e as únicas válidas para todos. Ou seja, a classe ascendente não pode aparecer como uma classe particular contra outra classe particular, mas precisa aparecer como representante de toda a sociedade, dos interesses de todos contra os interesses da classe particular dominante. E consegue aparecer assim universalizada graças às ideias que defende como universais.
No início do processo de ascensão é verdade que a nova classe representa um interesse coletivo: o interesse de todas as classes não dominantes. Porém, uma vez alcançada a vitória e a classe ascendente tomando-se classe dominante, seus interesses passam a ser particulares, isto é, são apenas seus interesses de classe. No entanto, agora, tais interesses precisam ser mantidos com a aparência de universais, porque precisam legitimar o domínio que exerce sobre o restante da sociedade. Em uma palavra: as ideias universais da ideologia não são uma invenção arbitrária ou diabólica, não são uma invenção arbitrária ou diabólica, mas são a conservação de uma universalidade que já foi real num certo momento (quando a classe ascendente realmente representava os interesses de todos os não dominantes), mas agora é uma universalidade ilusória (pois a classe dominante tornou-se representante apenas de seus interesses particulares).
“Cada nova classe estabelece sua dominação sempre sobre uma base mais extensa do que a classe que até então dominava, ao passo que, mais tarde, a oposição entre a nova classe dominante e a não dominante se agrava e se aprofunda ainda mais”. Isto significa que cada nova classe dominante, enquanto estava em ascensão, apontava para a possibilidade de um maior número de indivíduos exercerem a dominação e, por isso, quando toma o poder, usa de procedimentos mais radicais do que os já existentes para afastar as possibilidades de exercício do poder por parte dos dominados. Por isso à distância entre dominantes e dominados aumenta ainda mais e os dominados, afinal, terão que lutar pelo término de toda e qualquer forma de dominação.
Estamos agora em condições de compreender as determinações gerais da ideologia (recordando que determinação significa: características intrínsecas a uma realidade e que foram sendo produzidas pelo processo que deu origem a essa realidade). Podemos agora compreender o que é a ideologia porque acompanhamos o processo que a produz concretamente.
As principais determinações que constituem o fenômeno da ideologia são:
1) a ideologia é resultado da divisão social do trabalho e, em particular, da separação entre trabalho material/manual e trabalho espiritual/intelectual;
2) essa separação dos trabalhos estabelece a aparente autonomia do trabalho intelectual face ao trabalho material;
3) essa autonomia aparente do trabalho intelectual aparece como autonomia dos produtores desse trabalho, isto é, dos pensadores;
4) essa autonomia dos produtores do trabalho intelectual aparece como autonomia dos produtos desse trabalho, isto é, das ideias;
5) essas ideias autonomizadas são as ideias da classe dominante de uma época e tal autonomia é produzida no momento em que se faz uma separação entre os indivíduos que dominam e as ideias que dominam, de tal modo que a dominação de homens sobre homens não seja percebida porque aparece como dominação das ideias sobre todos os homens;
6) a ideologia é, pois, um instrumento de dominação de classe e, como tal, sua origem é a existência da divisão da sociedade em classes contraditórias e em luta;
7) a divisão da sociedade em classes se realiza como separação entre proprietários e não proprietários das condições e dos produtos do trabalho, como divisão entre exploradores e explorados, dominantes e dominados e, portanto, se realiza como luta de classes. Esta não deve ser entendida apenas como os momentos de confronto armado entre as classes, mas como o conjunto de procedimentos institucionais, jurídicos, políticos, policiais, pedagógicos, morais, psicológicos, culturais, religiosos, artísticos, usados pela classe dominante para manter a dominação. E como todos os procedimentos dos dominados para diminuir ou destruir essa dominação. A ideologia é um instrumento de dominação de classe;
8) se a dominação e a exploração de uma classe for perceptível como violência, isto é, como poder injusto e ilegítimo, os explorados e dominados se sentem no justo e legítimo direito de recusá-la, revoltando-se. Por este motivo, o papel específico da ideologia como instrumento da luta de classes é impedir que a dominação e a exploração sejam percebidas em sua realidade concretas. Para tanto, é função da ideologia dissimular e ocultar a existência das divisões sociais como divisões de classes, escondendo, assim, sua própria origem. Ou seja, a ideologia esconde que nasceu da luta de classes para servir a uma classe na dominação;
9) por ser o instrumento encarregado de ocultar as divisões sociais, a ideologia deve transformar as ideias particulares da classe dominante em ideias universais, válidas igualmente para toda a sociedade;
10) a universalidade dessas ideias é abstrata, pois no concreto existem ideias particulares de cada classe. Por ser uma abstração, a ideologia constrói uma rede imaginária de ideias e de valores que possuem base real (a divisão social), mas de tal modo que essa base seja reconstruída de modo invertido e imaginário;
11) a ideologia é uma ilusão, necessária à dominação de classe. Por ilusão não devemos entender “ficção”, “fantasia”, “invenção gratuita e arbitrária”, “erro”, “falsidade”, pois com isto suporíamos que há ideologias falsas ou erradas e outras que seriam verdadeiras e corretas. Por ilusão devemos entender: abstração e inversão. Abstração é o conhecimento de uma realidade tal como se oferece à nossa experiência imediata, como algo dado, feito e acabado que apenas classificamos, ordenamos e sistematizamos, sem nunca indagar como tal realidade foi concretamente produzida. Uma realidade é concreta porque mediata, isto é, porque produzida por um sistema determinado de condições que se articulam internamente de maneira necessária. Inversão é tomar o resultado de um processo como se fosse seu começo, tomar os efeitos pelas causas, as consequências pelas premissas, o determinado pelo determinante. Assim, por exemplo, quando os homens admitem que são desiguais porque Deus ou a Natureza os fez desiguais, estão tomando a desigualdade como causa de sua situação social e não como tendo sido produzida pelas relações sociais e, portanto, por eles próprios, sem que o desejassem e sem que o soubessem;
12) porque a ideologia é ilusão, isto é, abstração e inversão da realidade, ela permanece sempre no plano imediato do aparecer social. Ora, como vimos, ao falarmos do fetichismo da mercadoria, o aparecer social é o modo de ser do social de ponta-cabeça. A aparência social não é algo falso e errado, mas é o modo como o processo social aparece para a consciência direta dos homens. Isto significa que uma ideologia sempre possui uma base real, só que essa base está de ponta-cabeça: é a aparência social. Assim, por exemplo, a sociedade burguesa aparece em nossa experiência imediata como estando formada por três tipos diferentes de proprietários: o capitalista, proprietário do capital; o dono da terra, proprietário da renda da terra; e o trabalhador, proprietário do salário. Se todos são proprietários, embora de coisas diferentes, então todos os homens dessa sociedade são iguais e possuem iguais direitos. Enquanto não ultrapassarmos essa aparência e procurarmos o modo como realmente e concretamente são produzidos esses proprietários pelo sistema capitalista, não poderemos compreender que o salário não é a propriedade do trabalhador, mas é o trabalho não pago pelo capitalista, que a renda não vem da terra, mas de sua transformação em capital pelo trabalho não pago do camponês ou dos mineiros, e que, finalmente, só o capital é efetivamente propriedade. Enquanto não tivermos essa compreensão histórica do processo real, a ideia de igualdade não só parecerá verdadeira, mas ainda possuirá base real, ou seja, a maneira pela qual os homens aparecem no modo de produção capitalista. É neste sentido que se deve entender a ideologia como ilusão, abstração e inversão;
13) a ideologia não é um “reflexo” do real na cabeça dos homens, mas o modo ilusório (isto é, abstrato e invertido) pelo qual representam o aparecer social como se tal aparecer fosse a realidade social. Se a ideologia fosse um simples “reflexo invertido” da realidade na consciência dos homens, a relação entre o mundo e a consciência não seria dialética (isto é, contraditória ou de negação interna), mas seria mecânica ou de causa e efeito. Se a ideologia fosse o espelho “ruim” da realidade, ela seria o efeito mecânico da ação dos objetos exteriores sobre nossa consciência, como a ação da luz sobre nossa retina. Neste caso, não poderíamos compreender a célebre afirmação de Marx (nas chamadas Onze Teses Sobre Feuerbach) de que o engano dos materialistas tinha sido o de considerar a relação da consciência com os objetos como uma experiência sensível e não como uma práxis social, isto é, como uma atividade social que produz os objetos e o sentido dos objetos. A ideologia é uma das formas da práxis social: aquela que, partindo da experiência imediata dos dados da vida social, constrói abstratamente um sistema de ideias ou representações sobre a realidade.
Para percebermos que a ideologia não é o mero “reflexo” invertido da realidade na consciência dos homens, basta nos lembrarmos do modo como Marx define a religião.
Em geral, todos conhecem a famosa fórmula segundo a qual “a religião é o ópio do povo”, isto é, um mecanismo para fazer com que o povo aceite a miséria e o sofrimento sem se revoltar porque acredita que será recompensado na vida futura (cristianismo) ou porque acredita que tais dores são uma punição por erros cometidos numa vida anterior (religiões baseadas na ideia de reencarnação). Aceitando a injustiça social com a esperança da recompensa ou com a resignação do pecador, o homem religioso fica anestesiado como o fumador de ópio, alheio à realidade. No entanto, costuma-se esquecer que, antes de fazer tal afirmação, Marx define a religião como “a criação de um espírito num mundo sem espírito”, como “enciclopédia e lógica popular” e “consolação num mundo sem consolo”. Se a religião, que é uma forma de ideologia, fosse um “reflexo”, ela teria que espelhar de maneira invertida o mundo real. Ora, segundo Marx, a inversão religiosa não “reflete” coisa alguma — sendo criação do espírito em um mundo sem espírito, a religião é produção imaginária de algo que não existe. A inversão consiste em atribuir a essa criação do espírito a origem da realidade, em lugar de compreender que é a miséria real que está produzindo a crença no espírito numa divindade poderosa que pune e recompensa as ações humanas. A religião, como toda ideologia, é uma atividade da consciência social. A religiosidade consiste em substituir o mundo real (o mundo sem espírito) por um mundo imaginário (o mundo com espírito). Essa substituição do real pelo imaginário é a grande tarefa da ideologia e por isso ela anestesia como o ópio;
14) a ideologia é produzida em três momentos fundamentais:
a) ela se inicia como um conjunto sistemático de ideias que os pensadores de uma classe em ascensão produzem para que essa nova classe apareça como representante dos interesses de toda a sociedade, representando os interesses de todos os não dominantes. Nesse primeiro momento, a ideologia se encarrega de produzir uma universalidade com base real para legitimar a luta da nova classe pelo poder;
b) ela prossegue tornando-se aquilo que Gramsci denomina de senso comum, isto é, ela se populariza, torna-se um conjunto de ideias e de valores concatenados e coerentes, aceitos por todos os que são contrários à dominação existente e que imaginam uma nova sociedade que realize essas ideias e esses valores (por exemplo, quando os servos, aprendizes, pequenos artesãos e pequenos comerciantes no final da Idade Média e no início do mercantilismo aceitam e incorporam as ideias de liberdade e de igualdade, defendidas pela burguesia em ascensão). Ou seja, o momento essencial de consolidação social da ideologia ocorre quando as ideias e valores da classe emergente são interiorizados pela consciência de todos os membros não dominantes da sociedade;
c) uma vez sedimentada e interiorizada como senso comum, a ideologia se mantém, mesmo após a vitória da classe emergente, que se torna, então, classe dominante. Isto significa que, mesmo quando os interesses anteriores, que eram interesses de todos os não dominantes, são negados pela realidade da nova dominação — isto é, a nova dominação converte os interesses da classe emergente em interesses particulares da classe dominante e, portanto, nega a possibilidade de que se realizem como interesses de toda a sociedade —, tal negação não impede que as ideias e valores anteriores à dominação permaneçam como algo verdadeiro para os dominados. Ou seja, mesmo que a classe dominante seja percebida como tal pelos dominados, mesmo que estes percebam que tal classe defende interesses que são exclusivamente dela, essa percepção não afeta a aceitação das ideias e valores dos dominantes, pois a tarefa da ideologia consiste justamente em separar os indivíduos dominantes e as ideias dominantes, fazendo com que apareçam como independentes uns dos outros. (...)
Este fenômeno da conservação da validade das ideias e valores dos dominantes, mesmo quando se percebe a dominação e mesmo quando se luta contra a classe dominante mantendo sua ideologia, é que Gramsci denomina de hegemonia. Uma classe é hegemônica não só porque detém a propriedade dos meios de produção e o poder do Estado (isto é, o controle jurídico, político e policial da sociedade), mas ela é hegemônica, sobretudo porque suas ideias e valores são dominantes, e mantidos pelos dominados até mesmo quando lutam contra essa dominação.
Em geral, fala-se muito em “crise de hegemonia” (conceito gramsciano) para caracterizar momentos de crise econômica e política nos quais a classe dirigente (aquela fração da classe dominante que dirige a sociedade) é forçada a repensar sua ação econômica e política se quiser conservar o poder dirigente. Ora, crise de hegemonia não é isto. A crise de hegemonia só ocorre quando, além da crise econômica e política que afeta os dirigentes, há uma crise das ideias e dos valores dominantes, fazendo com que toda a sociedade, na qualidade de não dirigente, recuse a totalidade da forma de dominação existente. Assim é que Gramsci pode caracterizar o surgimento do fascismo na Itália a partir de uma crise de hegemonia. Mas quando hoje, no Brasil, se consideram as dificuldades dos atuais dirigentes em manter o controle econômico e político como uma “crise de hegemonia”, emprega-se erroneamente o conceito gramsciano.
Vejamos um exemplo de conservação da hegemonia burguesa.
Muitos movimentos feministas lutam contra o poder burguês porque ele é fundamentalmente um poder masculino que discrimina social, econômica, política e culturalmente as mulheres. É considerado um poder patriarcal, isto é, fundado na autoridade do Pai (chefe de família, chefe de seção, chefe de escola, chefe de hospital, chefe de Estado, etc.). É um poder que legitima a submissão das mulheres aos homens tanto pela afirmação da inferioridade feminina (fraqueza física e intelectual) quanto pela divisão de papéis sociais a partir de atividades sexuais (feminilidade como sinônimo de maternidade e domesticidade).
Partindo dessa colocação, muitos movimentos feministas vão defender duas ideias principais:
1) a de que as mulheres não devem se sujeitar à ideologia da inferioridade nem à ideologia dos papéis sociais, mas devem lutar por igual direito ao trabalho;
2) a de que as mulheres não devem continuar se submetendo ao poderio masculino e devem defender a liberdade do uso de seu corpo, porque este é propriedade delas e não dos homens (maridos, filhos, chefes, etc.).
Aparentemente, tais movimentos parecem estar lutando contra o poder burguês, pelo menos no seu aspecto discriminatório. Porém, se analisarmos as duas ideias defendidas, o que veremos? Defender a igualdade no mercado de trabalho não é criticar a exploração capitalista do trabalho, mas é mantê-la, fazendo com que as mulheres tenham igual direito de serem exploradas e de realizarem trabalhos alienados. Seria preciso que as mulheres, como movimento social, pudessem levar a cabo a crítica do próprio trabalho no modo de produção capitalista, em vez de desejarem virar força-de-trabalho. Por outro lado, defender a liberdade de usar o corpo porque este é propriedade privada da própria mulher e afirmar que tal direito define a mulher como pessoa autônoma, é esquecer de que um dos pilares da ideologia burguesa, na sua forma liberal, é justamente a definição dos seres humanos por algo chamado de “direito natural” e que seria o direito à posse e ao uso do próprio corpo, posse que nos torna livres, liberdade que é necessária para formular a ideia burguesa de contrato. Ora, vimos como Marx descreve o surgimento do trabalhador “livre” necessário ao capital: o homem que tendo apenas a posse de seu corpo, que estando despojado (“liberado”) dos meios e instrumentos do trabalho, tem o “livre” direito ao uso de seu corpo, vendendo-o no mercado da compra e venda da força-de-trabalho. E vimos, com Hegel, como a definição burguesa de pessoa é sinônima ou a versão jurídica do proprietário privado. Assim, a luta feminista pode realizar-se sem pôr em questão a hegemonia burguesa.
Isto não significa que os movimentos feministas são falsos ou inúteis, nem que todos eles defendam dessa maneira tais ideias. Significa apenas que é possível, de fato, movimentos de libertação das mulheres que reafirmam a ideologia dominante.”


“A ideologia é um conjunto lógico, sistemático e coerente de representações (ideias e valores) e de normas ou regras (de conduta) que indicam e prescrevem aos membros da sociedade o que devem pensar e como devem pensar, o que devem valorizar e como devem valorizar, o que devem sentir e como devem sentir, o que devem fazer e como devem fazer. Ela é, portanto, um corpo explicativo (representações) e prático (normas, regras, preceitos) de caráter prescritivo, normativo, regulador, cuja função é dar aos membros de uma sociedade dividida em classes uma explicação racional para as diferenças sociais, políticas e culturais, sem jamais atribuir tais diferenças à divisão da sociedade em classes, a partir das divisões na esfera da produção. Pelo contrário, a função da ideologia é a de apagar as diferenças como de classes e de fornecer aos membros da sociedade o sentimento da identidade social, encontrando certos referenciais identificadores de todos e para todos, como, por exemplo, a Humanidade, a Liberdade, a Igualdade, a Nação, ou o Estado. Isto significa que:
a) na qualidade de explicação teórica do real (através das ciências, sobretudo hoje em dia, ou das filosofias ou das religiões), a ideologia nunca pode explicitar sua própria origem, pois, se o fizesse, faria vir à tona a divisão social em classes e perderia, assim, sua razão de ser que é a de dar explicações racionais e universais que devem esconder as diferenças e particularidades reais. Ou seja, nascida por causa da luta de classes e nascida da luta de classes, a ideologia é um corpo teórico (religioso, filosófico ou científico) que não pode pensar realmente a luta de classes que lhe deu origem;
b) na qualidade de corpo teórico e de conjunto de regras práticas, a ideologia possui uma coerência racional pela qual precisa pagar um preço. Esse preço é a existência de “brancos”, de “lacunas” ou de “silêncios” que nunca poderão ser preenchidos sob pena de destruir a coerência ideológica. O discurso ideológico é coerente e racional porque entre suas “partes” ou entre suas “frases” há “brancos” ou “vazios” responsáveis pela coerência. Assim, ela é coerente não apesar das lacunas, mas por causa ou graças às lacunas. Ela é coerente como ciência, como moral, como tecnologia, como filosofia, como religião, como pedagogia, como explicação e como ação apenas porque não diz tudo e não pode dizer tudo. Se dissesse tudo, se quebraria por dentro.
Por este motivo cometemos um engano quando imaginamos ser possível substituir uma ideologia “falsa” (que não diz tudo) por uma ideologia “verdadeira” (que diz tudo). Ou quando imaginamos que a ideologia “falsa” é a dos dominantes, enquanto a ideologia “verdadeira” é a dos dominados. Por que nos enganamos nessas duas afirmações? Em primeiro lugar, porque uma ideologia que fosse plena ou que não tivesse “vazios” e “brancos”, isto é, que dissesse tudo, já não seria ideologia. Em segundo lugar, porque falar em ideologia dos dominados é um contrassenso, visto que a ideologia é um instrumento da dominação. Esses enganos nos fazem sair da concepção marxista de ideologia para cairmos na concepção positivista de ideologia. Podemos, isto sim, contrapor ideologia e crítica da ideologia, e podemos contrapor a ideologia ao saber real que muitos dominados têm acerca da realidade da exploração, da dominação, da divisão social em classes e da repressão a que este saber está submetido pelas forças repressivas dos dominantes (forças repressivas que não precisam ser apenas as da polícia ou as do exército, mas que podem ser, sutilmente, a própria ideologia difundida e conservada pela escola e pelas ciências ou filosofias dos dominantes).”


“Dizer que a ideologia não tem história significa que:
a) a transformação das ideias não depende delas mesmas, de alguma força interna que teriam (como na história do Espírito hegeliano, ou como nas etapas do Espírito humano de Augusto Comte), mas depende da transformação das relações sociais e, portanto, das relações econômicas e políticas. Com isto, podemos perceber que há entre a ideologia e a estrutura de uma sociedade aquilo que Louis Althusser chama de “contemporaneidade” ou de correspondência temporal entre a estrutura social e, as ideias ideológicas. Compreendemos também como as ideias não ideológicas (aquelas que estão empenhadas em compreender a gênese ou história real) são capazes de ultrapassar o tempo em que são pensadas. E isso em duas direções: com relação ao passado, de modo a não “explicá-lo” com as ideias do presente, mas reencontrando as próprias determinações diferenciadoras que fazem do passado, passado; com relação ao futuro, na medida em que não projeta para o que ainda está por vir àquilo que já existe, mas procura, nas linhas de força do presente, aquilo que anuncia a possibilidade futura, Enquanto a ideologia explica o presente como efeito do passado, o passado pelo presente e o futuro pelo já existente, fazendo com que este último deixe de ser o possível (aquilo que os homens poderão realizar) Para se tornar o previsível (aquilo que os homens deverão realizar), o saber histórico mantém as diferenças temporais como diferenças intrínsecas;
b) a ideologia fabrica uma história imaginária (aquela que reduz o passado e o futuro às coordenadas do presente), na medida em que atribui o movimento da história a agentes ou sujeitos que não podem realizá-lo. Assim, por exemplo, a ideologia nacionalista faz da Nação o sujeito da história, ocultando que a Nação é uma unidade imaginária, pois é constituída efetivamente por classes sociais em luta. A ideologia estadista faz do Estado ou da ação dos governantes ou das mudanças de regimes políticos o sujeito da história, ocultando que o Estado não é um sujeito autônomo, mas instrumento de dominação de uma classe social e que, portanto, o sujeito dessa história estadista imaginária é, afinal, apenas a classe dominante. A ideologia racionalista (e, atualmente, a ideologia cientificista) faz da Razão (e, hoje em dia, da Ciência) o sujeito da história, esquecendo-se de que a ideia da Razão (e de Ciência) é determinada por aquilo que numa sociedade é entendido como racional e como irracional, e que a ideia de racional idade é determinada pela forma das relações sociais.”


“Porque a ideologia não tem história, mas fabrica histórias imaginárias que nada mais são do que uma forma de legitimar a dominação da classe dominante, compreende-se por que a história ideológica (aquela que aprendemos na escola e nos livros) seja sempre uma história narrada do ponto de vista do vencedor ou dos poderosos. Não possuímos a história dos escravos, nem a dos servos, nem a dos trabalhadores vencidos — não só suas ações não são registradas pelo historiador, mas os dominantes também não permitem que restem vestígios (documentos, monumentos) dessa história. Por isso os dominados aparecem nos textos dos historiadores sempre a partir do modo como eram vistos e compreendidos pelos próprios vencedores.
O vencedor ou poderoso é transformado em único sujeito da história não só porque impediu que houvesse a história dos vencidos (ao serem derrotados, os vencidos perderam o “direito” à história), mas simplesmente porque sua ação histórica consiste em eliminar fisicamente os vencidos ou, então, se precisa do trabalho deles, elimina sua memória, fazendo com que se lembrem apenas dos feitos dos vencedores. Não é, assim, por exemplo, que os estudantes negros ficam sabendo que a Abolição foi um feito da Princesa Isabel? As lutas dos escravos estão sem registro e tudo que delas sabemos está registrado pelos senhores brancos. Não há direito à memória para o negro. Nem para o índio. Nem para os camponeses. Nem para os operários.
História dos “grandes homens”, dos “grandes feitos”, das “grandes descobertas”, dos “grandes progressos”, a ideologia nunca nos diz o que são esses “grandes”. Grandes em quê? Grandes por quê? Grandes em relação a quê? No entanto, o saber histórico nos dirá que esses “grandes”, agentes da história e do progresso, são os “grandes e poderosos”, isto é, os dominantes, cuja “grandeza” depende sempre da exploração e dominação dos “pequenos”. Aliás, a própria ideia de que os outros são os “pequenos” já é um pacto que fazemos com a ideologia dominante.
Graças a esse tipo de história, a ideologia pode manter sua hegemonia mesmo sobre os vencidos, pois estes interiorizam a suposição de que não são sujeitos da história, mas apenas seus pacientes.
Quem e o que pode desmantelar a ideologia? Somente uma prática política nascida dos explorados e dominados e dirigida por eles próprios. Para essa prática é de grande importância o que chamamos de crítica da ideologia, que consiste em preencher as lacunas e os silêncios do pensamento e discurso ideológicos, obrigando-os a dizer tudo que não está dito, pois desta maneira a lógica da ideologia se desfaz e se desmancha, deixando ver o que estava escondido e assegurava a exploração econômica, a desigualdade social, a dominação política e a exclusão cultural.”

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